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Os Sons e os Silêncios A Memória, a Culpa, a Valsa
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Os Sons e os Silêncios A Memória, a Culpa, a Valsa
José Ribeiro Ferreira
Os Sons e os Silêncios
(Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo
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OS SONS E OS SILÊNCIOS
A MEMÓRIA, A CULPA, A VALSA (Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo)
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
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José Ribeiro Ferreira
JOSÉ RIBEI RO FERREIRA
OS SONS E OS SILÊNCIOS
A MEMÓRIA, A CULPA, A VALSA (Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo)
COIMBRA – 2005
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
FICHA TÉCNICA Título: Os Sons e os Silêncios: A Memória, a Culpa, a Valsa (Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo) Autor: José Ribeiro Ferreira Arranjo gráfico: José Ribeiro Ferreira Fotografias: José Ribeiro Ferreira e Abílio Queirós) Edição: do autor. Em agosto de 2005. Tiragem: 35 exemplares (para o grupo e amigos)
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Este relato – descosido a cada passo, monótono aqui e ali, as mais das vezes nunca seguro – foi terminado em Fátima no dia 20 de agosto, escutando os sinos do Santuário e o bruaá multilinguístico dos peregrinos que enchiam ruas, lojas, hotéis e parques. Vai dedicado a todos os que, como o relator, gostam de estudoviajar e com amizade conviver. Também aos que não desdenham ler os seus desluzidos diários de viagem. Corre em especial ao encontro da Maria de Deus que, neste dia 20 de Agosto, faz anos e trata da saúde em S. Pedro do Sul. Nesta viagem não pôde ser a alegria que sempre dispensa, por
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circunstâncias adversas não consentirem que nos acompanhasse a Berlim, Viena e Salzburgo.
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Claridades e sombras na hora da partida
A partida estava marcada para as oito e um quarto do dia 18 de Março de 2005. E o dia, embora acordasse frio, apresentou-se ora sorridente, com o sol a despontar a espaços prometedor e amigo, ora orvalhado e morrinhoso, deixando-nos a roupa e o cabelo às camarinhas. Ainda os ponteiros dos relógios não atingiam as 8h15 e já todos tinham comparecido no local combinado e habitual, a Avenida Afonso Henriques, junto ao José Falcão. A alegria de pessoas que se reencontram, de sorrisos que se manifestam, se trocam e se abrem de satisfação. Tanto mais que de novo voltavam e tínhamos no nosso convívio amigos que connosco costumam estudoviajar: a Zé Alves e a Maria Miguéns, cuja ausência no ano anterior, na viagem ao norte da Grécia, sentíramos. Saudámos também as caras novas que, pela primeira vez, integravam “Os Estudiosos”: o casal Patrício, a Elisabete Parra e a Maria Manuel Almeida – ou simplesmente Mané, como lhe chamam os amigos – que, com facilidade, se ‘enturmaram’, como diriam
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os nossos irmãos do outro lado do Atlântico. Alguma tristeza velada se notava, no entanto: pairava na brisa que perpassava, envolvia a nossa sensação incómoda de ausência. Parecia que os olhares, ansiosos, procuravam, como quem espera mais alguém, outros rostos que são presença habitual, que agora não chegam e nos fazem falta: a Júlia, sempre amável e sensível, embora por vezes pareça alheada e a pairar por outros reinos. O casal Carlos Seabra e a Bita Penha, ele sempre urbano, contido, cavalheiro e com uma história à flor da língua; ela faladora e exuberante. A Helena Gouveia Monteiro, discreta sempre, mas interessada em tudo e nunca alheia. O Jorge Saraiva, que tudo tentou para continuar ‘Estudioso’ este ano, mas logo o neto, ou outros por ele, havia de marcar o baptismo para essa altura, sem possibilidade de alterar a data. O casal Urbano, a Luísa e o Albino, nosso fotógrafo e realizador oficial e sua inseparável assessora, por nós há muito diplomados, nossos companheiros habituais, mas impedidos este ano de o fazerem por circunstâncias várias. Rostos cuja falta e ausência nos oprime, um tanto, o peito e a sensibilidade e nos deixa a incómoda sensação de incompletude. Mas o dia saudava-nos, a viagem esperava-nos e prometia. Por isso, bem dispostos, com o sol a
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sorrir no verde do Jardim da Sereia e nas palmeiras da Avenida Sá da Bandeira, embora com o peso daquela ausência no peito e no coração, deixámos Coimbra no momento exacto em que a velha torre da Universidade batia o quarto de hora. Cerca de duas horas e meia até Lisboa, com paragem na Estação de Serviço de Santarém. Aí não tivemos o habitual, e sempre gostoso, prazer de encontrar, esta vez, o sorrisinho pequenino, redondinho, sempre bem disposto e sempre atencioso, dos nossos amigos Barata, a quem uma arreliadora doença de última hora retinha em casa. E o peso da ausência avolumou-se. E o autocarro, silencioso e pensativo, retomou o caminho até ao aeroporto, onde nos esperava a alegria do reencontro com a Berta, a nossa imprescindível e sempre eficiente guia, da Lídia Orestes e do José Filipe. Se um novo elemento se associou ao grupo, a Maximiana, o rol das ausências também cresceu: a da Lídia Pimentel que uma intervenção cirúrgica recente obrigava a recolhimento caseiro por uns dias e impedia voos de migração transumante. Ultrapassada a azáfama e ansiedade do checkin, do despachar das malas, do pedido de bons lugares – «Janela, se for possível» e «Por favor, não sobre a asa» –, já libertos de boa parte da bagagem,
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esperámos que chegasse a hora da partida, lenta, demorada, com atraso. Por fim, o avião da Lufthanza fez-se à pista, levanta voo e sobrevoa o casario de Lisboa, não sem um calafrio ou incomodativa ansiedade a percorrer a espinha de alto a baixo, sentida por muitos, mas de imediato superada pela excitação que olhava curiosa das janelas e reconhecia casas, monumentos, locais, estradas. Em breve essa excitação inicial foi esmorecendo até que o silêncio modorrento se instalou, nem sequer quebrado de todo pela distribuição de parca refeição. Só a escala em Frankfurt e a mudança de avião, com longa e zaguezaguiante caminhada pelos terminais do aeroporto, trouxe de novo o açodamento, a excitação, uma certa ansiedade tensa. Novo embarque, novo levantar voo, novo espiar o casario da cidade pelas janelas e mais uma vez o morno silêncio elucidativo a instalar-se, poderoso, inelutável.
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A memória e a culpa
Na letargia instalada no corpo lasso e adormecido dos Estudiosos, que era meio inconsciência, meio lucidez, Berlim bailava entre imagens, ora sombrias, ora luminosas, que se aproximavam, e logo se afastavam com a mesma fugacidade com que tinham surgido. A consciência das cidades é densa e funda, como o inconsciente humano que se peja e sedimenta de culpas e remorsos. As loucuras de Hitler e o seu Nacional Socialismo, o genocídio dos Judeus, os horrores do III Reich, as feridas da guerra, a cidade dividida em duas pelo muro… Embalado e absorto nestes pensamentos, que de mim faziam campo aberto, Berlim apareceu no horizonte, caíam já as sombras da noite: cidade longa, ampla, estendida, luminosa. Orvalhava-a, porém, uma chuva miúda e incómoda que reflectia revérberos na pista. Recolha das bagagens, procura do guia, instalação no autocarro. Depois, já com a noite de todo cerrada, o olhar atento, o perscrutar rápido, mas
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interessado, de ruas e edifícios por onde passávamos, na tentativa de lobrigarmos o Hotel Berlim, ao dobrar uma esquina da cidade. Por fim, na Praça Luetzow, ou Luetzowplatz, a ocupar toda uma ala, lá estava ele, na sua ampla imensidão, buliçoso, mexido e nunca silencioso, à nossa espera, pronto a acolhernos para descansarmos da espera, da viagem, da fadiga das horas, os ossos e o corpo mais moídos que picado. Comido o jantar, já as nove da noite tinham passado no girar dos ponteiros, o frio intenso – com temperaturas que chegavam aos quatro, cinco ou seis graus negativos – e a chuva, que continuava a cair esparsa, demoviam o projecto e a vontade de alguns em saírem numa pequena volta de reconhecimento pela cidade. Melhor continuar no recolhimento do hotel e entregar-nos aos lençóis e braços de Morfeu, quentes e retemperadores. Bem a propósito, que o dia 19 prometia emoções fortes de reencontro com um passado tenso de máculas e de mazelas, denso de arte e de beleza. E o dia, apesar de frio, acordou prazenteiro, com o sol a aquecer-nos por entre esparsas nuvens que por vezes sombreavam um pouco mais, talvez a sublinhar o negrume da história recente de alguns pontos por onde passávamos. Tanta sanha contra um
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povo! E fazer de uma parte da cidade uma prisão, alegando que a liberdade e felicidade ali moravam! As cruzes negras lá estão, por centenas, a assinalar simbolicamente os que encontraram a morte, na tentativa desesperada de abandonarem esse alegado paraíso de liberdade e felicidade. São bem conhecidos de todos os episódios mais salientes da implantação do nazismo por Hitler e da formação e queda do III Reich, com a vitória dos Aliados, divisão da cidade em quatro partes ou sectores, a que se segue depois a futura criação, dolorosa e traumatizante, das duas Alemanhas: a caminhada demagógica de Adolfo Hitler de desconhecido cidadão vienense até chefe todo poderoso do III Reich, em janeiro de 1933; a sua sanha irracional contra os Judeus, aos quais procura exterminar de forma implacável, cruel, impiedosa; a anexação metódica, organizada dos países europeus, uns após outros; a mortífera II Guerra Mundial, de 1939 a 1945, dolorosa, destruidora económica e psiquicamente; a derrota da Alemanha, a cidade de Berlim reduzida a escombros e ocupada pelas tropas soviéticas em 2 de maio de 1945; a rendição incondicional, assinada em 8 do mesmo mês e ano, e subsequente divisão de Berlim em quatro sectores confiados aos quatro aliados vencedores, Estados
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Unidos, Inglaterra, França e União Soviética; as divergências graves e insuperáveis entre os Aliados, os três primeiros, por um lado, e a Rússia, por outro, que levaram à criação das duas Alemanhas, a República Federal Alemã – com proclamação em 23 de maio de 1949 –, que agrupava as três partes que haviam ficado sob administração das três potências ocidentais, e a República Democrática Alemã que, com proclamação em 7 de outubro do mesmo ano e com capital em Berlim Leste, era constituída pela parte administrada pela quarta potência; a satelização política, social e económica da RDA pela União Soviética, de quem continuou próxima; o regime fechado e repressivo instaurado que leva à construção, a partir de 1961, pelas autoridades de Leste, do conhecido Muro de Berlim – o chamado ‘Muro da vergonha’ –, na tentativa de impedir a todo o custo a fuga dos habitantes para a parte ocidental. E assim, durante vinte e oito anos, a cidade se viu dividida em duas. Quantos não morreram quando, ultrapassado o muro, tentavam atravessar a clareira de cerca de cinquenta metros que o separava das casas de Berlim Ocidental. O único ponto de passagem entre Berlim Leste e Berlim Oeste encontrava-se no cruzamento da Friedrichstrasse com a Zimmerstrasse, o bem
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conhecido e tristemente célebre Checkpoint Charlie, imortalizado em filmes de espionagem. As cruzes negras de um lado e outro da rua continuam a recordar os que morreram, ao tentarem passar-se para Berlim Ocidental, e a assinalar o alto custo que tantas vezes se paga pelo desejo de liberdade. Por fim, em 1989, essa política de oclusão e segregação acaba, com a decisão histórica da RDA, de 9 de novembro, em reabrir as fronteiras entre as duas partes da cidade, encerrando uma das épocas mais sombrias da história de Berlim e da Alemanha. Quem não desdoba, no fio da memória, as impressionantes imagens da queda do muro que correram mundo e mostraram bem o afã, e raiva mesmo, com que os habitantes da Alemanha de Leste o derrubaram, pondo assim termo ao ‘paraíso’ em que tentaram enclausurá-los. Hoje, a recordar esses ominosos tempos de separação e terror, permanecem a Haus am Checkpoint Charlie e os restos de muro que sobreviveram ao afã destruidor de 9 de novembro de 1989, entre os quais os mil e trezentos metros ao longo do Spree que, pintados por artistas de todo o mundo, se transformou na chamada e já célebre East Side Gallery.
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Pinturas no Muro de Berlim (Fot. Abílio Queirós) Sancionada a reunificação das duas Alemanhas em 31 de agosto de 1990, Berlim é declarada capital em 20 de junho do ano seguinte e lança-se num frenético, afanoso, metódico processo de transformação, de modo a cauterizar mazelas, a eliminar diferenças, a disfarçar vestígios da divisão, a aproximar a parte leste da oeste, para que o fosso desapareça e tudo adquira nível idêntico. Os edifícios antigos, cinzentos e iguais são arranjados e pintados de novo; constroem-se novos, a substituir outros em precárias condições ou em locais vazios como a faixa ao longo do muro de separação. Oferecem bons exemplos as zonas de Kulturforum e de Potsdamer Platz. A primeira, que é paradigmática, confina com a segunda dessas duas partes da cidade, imediatamente a oeste, e marca significativamente a personalidade urbana com edifícios arrojados.
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Edifício Philharmonie (Fot. Abílio Queirós) Sobressaem a Philharmonie – sede da bem conhecida Berliner Philharmoniker –, construída entre 1960 e 1963 com base num projecto de Scharoun que joga com linhas assimétricas, tem um tecto em carpa, apresenta uma estrutura interior pentagonal e oferece uma espantosa acústica. Não menos emblemático é o edifício que se ergue à esquerda, a Kammermusiksaal, obra concebida por Wisniewski e construída entre 1984 e 1987 para concertos de música de câmara e para sede da chamada Kleine Philharmonie. Nesse complexo encontra-se ainda a construção em que está instalado o Musikinstrumenten-Museum que expõe centenas de instrumentos musicais, com critérios didácticos, que permitem perfazer a história da ciência musical a partir do séc. XVI. A região de Potsdamer Platz ou Praça de Potsdam caracteriza-se pelos seus edifícios
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modernos e ousados, criados por arquitectos, vindos de diversas partes do mundo. Construções volumosas, elevadas, mas esteticamente belas e bem conseguidas, formam um todo harmónico: o Edifício Mercedes, o Sony Center, a Daimler City, as Arkaden. Novos e diversificados volumes e formas que tornam aquele ponto da cidade uma verdadeira escola experimental de arquitectura; ou, dito de outra forma, o maior laboratório de arquitectura ao ar livre. Nos anos Vinte e Trinta, a Potsdamer era uma Praça cheia de vida, de comércio, de animação cultural e social, com os seus cafés, restaurantes e hotéis de luxo frequentados pelas mais elevadas personalidades do mundo artístico, político e dos negócios. Célebre também por motivos bem sombrios e tristes: nessa Praça estava sediada uma das instituições mais ferozes e cruéis do nazismo, o Tribunal do Povo ou Volksgerichtshof, nascido por vontade de Hitler; nessa mesma zona construiu Adolfo Hitler o seu búnker, o Führerbunker, onde se suicidou em 1945, pondo fim à ditadura nazista e confessando-se derrotado na política de anexações e de guerra que havia encetado. Essa Praça sofreu intensos bombardeamentos na fase final da guerra de 39-45 que a devastaram por completo e apagaram
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todos os traços da glória passada; continuou depois a sofrer os efeitos de ser posição central entre o sector ocidental e oriental de Berlim; corou durante anos com o ultraje que lhe fizeram, ao construírem um muro a separar as duas partes da cidade. Daí que, reunificada a Alemanha, de imediato a Potsdamer Platz foi a primeira das zonas e ser incluída entre as que deviam ser saneadas e requalificadas, com uma reconstrução quase do zero. Dado o custo excessivo do empreendimento resolveram as autoridades – não sem discussões, oposições e críticas azedas – vender lotes de terreno a investidores privados e, com os fundos dessa forma obtidos, lançaram um concurso para a reconstrução da restante parte, ganho por dois arquitectos de Munique, Hilmer e Stattler, cujo projecto foi considerado tradicionalista e pouco ousado pelos restantes investidores. Daí que estes – entre os quais se encontravam a Daimler-Chrysler, a Sony, a ABB, a Mercedes, a Hertie, a Haus Vaterland AG – resolveram entregar a outros arquitectos a urbanização dos lotes que tinham adquirido. Foi assim que a nova Potsdamer Platz ganhou forma e características próprias, graças aos arquitectos Richard Rogers, inglês – o que mais a marcou –, Rafael Moneo, Arata Isozaki, Helmut Jahn, Giorgio
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Grassi, Renzo Piano, que conceberam edifícios marcantes pela ousadia ou desenharam mesmo bairros inteiros: é o caso da Daimler City, um bairro destinado a actividades comerciais e a residências de luxo, em que se distingue o conhecido Grand-Hyatt Berlin de Rafael Moneo, as Arkaden de Potsdamer Platz e o Musical Theater de Renzo Piano; a não menos vanguardista área Sony com risco de Helmut Jahn, toda em vidro e com uma praça coberta por uma tela que subtende a parte do Hotel Esplanade que sobreviveu aos bombardeamentos da guerra – a célebre sala do Imperador Guilherme II. Saídos do hotel cerca das 9h00, subimos a Klingelhöfer em direcção à Praça da Vitória ou a Siegessäule (1873), uma artística e delicada coluna que, na sua imponência (69 metros de altura), se ergue na Grosser Stern – para aí transferida em 1939 da Praça da República, onde anteriormente se encontrava. É encimada por uma Vitória alada – tema que também aparece nos relevos que adornam a sua base, em que assenta, sustida por colunas – e contém no interior desse pedestal um mosaico que representa a fundação do império alemão. Antes de a atingir rodámos para a Tiergartenstrasse, apreciámos o magnífico parque Tiergarten, ainda em plena
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hibernação, mas onde se distinguiam, aqui e além, dispersos entre as árvores despidas, estátuas e monumentos vários: Goethe, Mozart, Haidn, Beethoven, Wagner, Bismarck, Frederico Guilherme III, rainha Maria Luísa. Não deixámos de notar os belos e diferenciados edifícios de algumas embaixadas. Lançámos um lance de olhos para o complexo monumental do Kulturforum, concebido pelo arquitecto Hans Scharoun: de longe algumas estruturas, de mais perto outras, por nós foram passando a Casa da Philharmonie, a Statsbibliothek, a Kunstbibliothek; a Neue Nationalgalerie que guarda obras de pintura, escultura e gráfica contemporânea; o Kupferstichkabinett (1994) e Gemäldegalerie (1998), onde estão expostas obras de grandes pintores, do séc. XIII ao XVIII, como Fra Angélico, Giotto, Dürer, Boticelli, J. Bosch, Cranach, Bruegel, Van Eyck, Ticiano, Rafael, Memling, Veronese, Rubens, Mantegna, El Greco, Rembrant, Murillo, Zurbarán, Goya, Poussin, Watteau, Van Gogh, Picasso. Depois virámos para a rua 17 de Junho, avaliámos a forma em arco e concha da Casa de Cultura do Mundo ou Kongresshalle que, projectada por Hugh A. Stubbings, Wernes Düttmann e Franz Mocken, construída em 1957 e adornada com
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escultura de Henry Moore, é uma obra prima da arquitectura do séc. XX. Mas logo o olhar se fixou no belo e harmonioso Reichstag, artístico e grandioso conjunto de dois edifícios de estilo neoclássico, ligados por um túnel; obra do arquitecto Paul Wallot, é erigida entre 1884 e 1894 e, depois de vicissitudes várias, é restaurada em 1995, sob a direcção de Norman Foster que lhe acoplou uma moderna e esplendorosa cúpula em vidro.
(Imagem Portas de Brandenburgo) Passámos ao lado das Portas de Brandenburgo, um elegante edifício neoclássico (1789), para cujo desenho o arquitecto Carl Gotthard Langhans se inspirou nos Propileus da Acrópole de Atenas.
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Deixando para trás essas emblemáticas portas, percorremos a Avenida Unter den Linden que, sombreada por frondosas tílias e ladeada por imponentes e históricos edifícios (o grandioso monumento equestre a Frederico o Grande, o elegante edifício da embaixada da Rússia, a estrutura neobarroca da Staatsbibliothek, a Universidade Humboldt, a Antiga Biblioteca, os edifícios neoclássicos da Staatsoper e da Neue Wache que é obra de Karl Friedrich Schinkel, Palácio do Príncipe Herdeiro, a volumosa estrutura barroca da Zeughaus), se estende até à Schlossbrüke e à Schlossplatz, quase quilómetro e meio de extensão. Passámos pelo Nikolaiviertel, belo bairro antigo de pequenas casas tradicionais, de ruas estreitas e sem trânsito, que se dispõem em volta da Nikolaikirche – igreja em estilo gótico tardio (séc. XV) – e que, com os seus cafés, salões de chá, restaurantes, casas de artesanato, se enchem de vida e de cor. E por fim admirámos a ampla Alexanderplatz, com as suas fontes e lagos, as suas esculturas de vanguarda, o seu Weltzeituhr ou ‘relógio do mundo’ (1969, obra de Erich John), o gigantesco Hotel Park Inn, a Marienkirche, o Berliner Rathaus (1861-1869, obra em estilo neo-renascentista do arquitecto H. F. Waesemann) que tem na frente a bela fonte de
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Neptuno e – a dominar tudo o resto na sua altura de 368m – a Torre da televisão ou Fernsehturm que, desenhada por Fritz Dieter e Günther Franke e inaugurada em 1969, oferece uma assombrosa vista panorâmica sobre a cidade.
Entrada do Pergamon Museum Chegados à Ilha dos Museus por volta das 10h30, começámos, como estava programado, pela visita ao Pergamon Museum, um edifício neoclássico, construído entre 1910 e 1930, a partir de um projecto de Alfred Messel e Ludwig Hoffmann. É assim chamado por albergar o célebre Grande Altar de Zeus, encontrado por arqueólogos alemães nas escavações realizadas nas últimas décadas do século XIX na cidade helenística de Pérgamo, sita na actual
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Turquia, e trazido, juntamente com outros achados, para Berlim e aí reconstituído pedra a pedra a partir de 1902. É a primeira obra com que deparamos, mal deixamos a bilheteira e transpomos a porta do Museu. Um deslumbramento e fascínio para os olhos. Quase sentimos suspensa a respiração por momentos.
Pérgamo: Grande Altar de Zeus Mas o Museu alberga muitos outros documentos arqueológicos e artísticos de primeira grandeza: contém a reconstrução de vários monumentos assírios, babilónios, gregos, romanos. Retenhamos, por isso, por agora as emoções e tentemos observar as obras expostas por ordem cronológica. Lá se encontra, retirado num recanto,
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parte de antigo palácio Assírio (séc. XII a.C.). Para aí aceder, temos de passar pela Porta de Isthar e Via Processional, da Babilónia (séc. VII a.C.), onde no fundo azul celeste, nítido, por nós passam os leões, estáticos, solenes, indiferentes, como se ali esperassem a concretização da eternidade.
Via Processional, Babilónia Poderíamos referir ainda achados da Pérsia, Síria e Palestina. Mas concentremo-nos nos elementos greco-romanos, tanto do domínio arquitectónico, como escultórico, como pictórico. Quanto à arquitectura, expõem-se partes do Templo de Atena, em Pérgamo, que pertence ao período helenístico (c. 180 a.C.); dos Templos de Atena Pólias, em Priene, e de Ártemis em Magnésia; do Templo de Zeus Sosípolis, de Magnésia do
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Meandro (II séc. a.C.); e a Ala norte da Ágora de Priene, também helenística (séc. II a.C.). Todos eles são de período helenístico. Já uma imponente porta da Ágora ou Mercado de Mileto (c.130-120 A.D.) e o Túmulo de Cartínia, dos Falérios (3º quartel do I séc. A.D.), são obras romanas. O Museu de Pérgamo alberga sobretudo abundante e excelente escultura grega e romana, desde o período arcaico. Deixamos aqui a enumeração de algumas das obras mais significativas: Grupo escultórico de Samos do 3º quartel do séc. VII a.C. Estátua da chamada deusa de Berlim (580-560 a.C.). Da Ática.
Deusa de Berlim
Mulher com galinha (?)
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Relevo tumular de 2 heróis mortos (550-530 a.C.). Encontrado na Lacónia. Estátua de mulher com galinha pedrês (?) (570-560 a.C). Proveniente de Mileto. Estátua da Ornithe (560-550). De Samos. Cabeça de rapariga (540-530 a.C.). De Dídima. Cabeça de homem com barba (c. 540 a.C.). Da Ática. Estátua de um portador de sacrifício (c. 530520 a.C). De Dídima. Leão deitado (3º quartel do séc. VI a.C.). De Mileto. Torso do chamado Apolo de Omphalos para completar um Antínoos. Cópia em mármore de um original grego de c. 460 a. C. Cabeça do Apolo de Omphalos. Transformação romana de um original grego de 460 a.C. Máscara do deus rio Aqueloo (c. 470 a.C.). Obra da Ática, proveniente de Maratona. Estátua de uma deusa sentada no trono (c. 460 a.C.). Proveniente de Tarento, há na escultura um certo hieratismo, alguma rigidez e arcaísmo formal (sobretudo na pose e no vestuário) que contrasta com o desenvolvimento que na altura já se verificava em outros locais. A face é espécie de máscara, cuja frieza
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de expressão sugere afastamento divino. Este distanciamento, vazio expressivo pode ser ainda considerado, como escreve Robertson, «vício da seriedade clássica, como o sorriso o é da alegria arcaica»1
Deusa sentada no trono A chamada Aspásia, com uma cabeça retrato romana (cópia romana de um original grego de c. 460 a.C.). 1
- A History of Greek Art(Cambridge, 1975), p. 176).
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Cabeça da chamada Aspásia (cópia romana de um original grego de c. 460 a.C.). A conhecida milésia que foi mulher de Péricles, possuía vasta cultura – era versada em retórica e diz-nos Plutarco (Per. 24) não haver rejeitado as suas discussões com Sócrates – e parece não ter tido pequena influência nas questões da cidade da deusa Atena, divindade das artes e da sabedoria. E esta cabeça (ou melhor, cópia) é bem o exemplo de uma mulher com ar concentrado e olhar distante. Retrato de Péricles com elmo coríntio. Cópia em mármore de um original grego de 429 a.C., da autoria do escultor Krésilas.
Cabeça de Aspásia (cópia) Busto de Péricles (cópia)
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Placa de friso iónico de Templo em Ilissos (c. 440-430 a.C). Obra ática. Relevo com representação de Medeia e as filhas de Pélias (cópia de um original grego de c. 420-410 a.C.). Mármore do Pentélico. Amazona ferida (cópia em mármore de um original grego que data de entre 440-430 a.C.).
Amazona ferida Segundo Plínio 34. 53, na segunda metade do séc. V a. C. (c. 440 a.C.), houve um concurso em Éfeso para esculpir uma amazona ferida, destinada ao
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Templo de Ártemis, em que participaram cinco escultores famosos de então, entre os quais se encontravam Fídias, Policleto e Crésilas. Decidiu-se que se daria o prémio àquele que os próprios artistas declarassem ali mesmo ser o melhor. Venceu a escultura que obteve mais segundos lugares, a de Policleto, já que cada escultor atribuiu à sua obra o primeiro. A segunda foi a de Fídias, a terceira a de Crésilas, a quarta a de Kydon e a quinta a de Frádmon. A que se encontra no Pergamon Museum é uma cópia, possivelmente da Amazona Ferida de Crésilas, um dos cinco escultores que participaram no concurso realizado em Éfeso. Cabeça do Discóforo de Policleto. Cópia em mármore de um original grego de c. 460 a. C. Mas uma excelente cabeça. É conhecido em duas cópias, ambas do começo da idade imperial.
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Discóforo de Policleto (cópia) Torso do Doríforo de Policleto. Cópia em mármore de um original de c. 440 a. C. Torso masculino vestido. Cópia em mármore de um original grego de c. 430-420 a. C. Estátua do chamado Narciso. Cópia em mármore de um original grego de c. 400 a. C. Afrodite com um sapo. Cópia romana em mármore de um original grego da segunda metade do séc. V a.C. Estátua de uma Afrodite (último quartel do séc. V a.C). Proveniente de Tarquínia. Mármore do Pentélico.
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Cabeça de jovem. Cópia em mármore de um original grego de fins do séc. V a. C. Relevo com Hermes e as Ninfas (c. 400 a.C.). Encontrado em Roma, no Quirinal. Diversas estelas funerárias, algumas de grande beleza e elegância, com data de 460 a 330 a.C. – Estela funerária com duas jovens (c. 460 a.C.). Chamada estela de Justiniano. – Estela funerária com um homem (c. 440-430 a.C.). – Estela funerária em relevo de Sósias e Cefisodoro (c. 410 a.C.). Da Ática. Mármore do Pentélico. – Estela funerária de uma mulher com a serva (começos do séc. IV a.C.). De Atenas. Na parte superior, relevo com Sereias.
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Estela funerária com mulher e serva – Estela funerária Silénis (de meados do séc. IV a.C.). Da Ática. – Estela funerária de Tráseas e Evândria (c. 350340 a.C.). Da Ática. – Estela funerária de um soldado e sua mulher (meados do séc. IV a.C.). Da Grécia continental. – Estela funerária de um casal (c. 340-330 a.C.). Obra ática, proveniente de Atenas. Cabeça de mulher de um relevo funerário (330320 a.C.). Obra ática, proveniente da necrópole de Erétria.
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Fragmento de monumento sepulcral de Nikarete (3º quartel do séc. IV a.C.). Ática. Encontrada entre o Pireu e Atenas. Rapariga triste (finais de do séc. IV a.C.). Obra ática, encontrada em Menidi, um demo de Acarnes. Relevo com reunião de deuses (380-370 a.C.). Obra da Ática. Proveniente de Mégara. Relevo com quadriga (inícios do séc.IV a.C.). Obra ática. Relevo dedicado a Cibele (380-370 a.C.). Obra ática, encontrada no Pireu.
Relevo de Cibele
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A deusa está sentada num trono, rodeada de leões. Na mão direita segura uma taça e a esquerda balança um timbale. Junto dela uma figura feminina sobraça uma tocha. Atrás parece encontrar-se uma figura masculina que tem na direita uma oinochóe. Relevo de Asclépios (c. de 325 a.C.). Obra ática Estátua de Ártemis Colonna. Cópia em mármore de um original de meados do séc. IV a. C. Cabeça feminina (meados do séc. IV a.C.). Obra ática, proveniente de Atenas. Cabeça feminina de estátua. Cópia em mármore de um original de fins do séc. IV a. C. Sátiro que deita líquido num chifre, da autoria de Praxíteles. Cópia em mármore de um original de Praxíteles de c. 360 a. C. Torso de Apolo Lykeios. Cópia em mármore de um original grego de c. 340-330 a. C. Estátua de Meleagro Cópia em mármore de um original grego de c. 340 a. C. Estátua de atleta (c. 340-330 a.C.). Obra da última fase do período clássico. Cabeça de Eros. Cópia em mármore de um original grego de 330-320 a. C. Estátua de um Tritão (terceiro quartel do séc. IV a.C.).
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Estátua em bronze de efebo (fins do séc. IV a.C). Retratos vários: de Anacreonte (cópia em mármore de um original grego de c. 450 a. C.); de Sófocles (cópia em mármore de um original grego de primeiro quartel do séc. IV a. C.); de Platão (cópia em mármore de um original grego de meados do séc. IV a. C.); de Epicuro (cópia em mármore de uma estátua grega de c. 270 a. C.); de uma estátua de Átalo I (helenístico, de inícios do II séc. a.C.). Encontrada na Acrópole de Pérgamo; fragmento de retrato helenístico de Átalo III (meados do séc. II a.C.). Com estes retratos e últimas esculturas referidas, entramos já no período helenístico que tem as suas escolas e características próprias, bem exemplificadas neste Museu. Na escultura, o Período Helenístico estende-se de 330 a 100 a. C. e nele se verifica um alargamento de temas, uma maior complexidade de formas, a tentativa de realismo na expressão do temperamento e da dor, representação de emoções fortes. O corpo humano aparece na multiplicidade dos seus planos, com movimentos em direcções opostas, contorções. Todas as idades são representadas, incluindo a infância e a velhice, não apenas a idade ideal da
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juventude e da maturidade, predominantes ou quase exclusivas nas épocas anteriores. Trata-se de um período que privilegia o realismo e o individualismo, que já vinham do século anterior. O sofrimento, a dor, a ira, o desespero, enfim as emoções, aparecem com frequência tratadas, bem como as diferenças raciais. Desenvolve-se a arte do retrato e surgem cenas rústicas. Dá-se corpo às alegorias. Acentuam-se as personificações de conceitos, ideias e entidades abstractas. As figuras são dispostas e trabalhadas para serem observadas de muitos lados, torcidas, em grupos complexos. Domina o dramatismo e preferese o movimento violento. Ou seja, como a designa G. Richter, é uma arte quase teatral1.
Plano da agora da cidade de Pérgamo 1- A handbook of Greek art (London, 81983), p. 170.
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As características acima referidas têm um paradigma excelente na escola de Pérgamo, caracterizada pala representação da tensão do combate, do sofrimento, da coragem, da dor, do desespero. Daí saíram esculturas de grande perfeição e de não menor dramatismo, de que este Museu de Berlim é o principal depositário. Pérgamo, como Estado independente, nasce das lutas entre os três grandes reinos helenísticos: Egipto ou reino dos Ptolomeus, o da Ásia ou reino dos Selêucidas e o da Macedónia. Começou por ser uma cidade integrada no reino dos Selêucidas, mas em 262 a. C. Ptolomeu II convence Êumenes (263-241 a. C.), o governador, a separar-se, e Antíoco I, que chefiava o Reino da Ásia ou dos Selêucidas, vê-se obrigado a reconhecer essa independência, após a derrota desse ano em Sardes. O sucessor de Êumenes, Átalo I (241-197 a. C), aparece como campeão do helenismo contra os bárbaros, ao vencer os Gauleses do interior em 230 a. C. — vitória que foi muito celebrada e ocupa lugar de relevo na arte helenística, através das representações escultóricas de Gauleses vencidos. Com o prestígio adquirido com essa vitória, dá-se a si próprio o título de rei; aproveita um momento de lutas e consequente
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fraqueza dos Selêucidas, cimenta o reino e estende o seu domínio pela Ásia Menor. Pérgamo transforma-se num centro cultural de primeira ordem, a ponto de se tornar rival de Alexandria. O pergaminho, como o nome sugere, será invenção sua, para fazer face — segundo uma tradição narrada por Plínio o Antigo (Nat Hist. 13. 70), talvez não fidedigna — à proibição, por parte dos reis egípcios, da exportação do papiro para o reino, por razões de rivalidade, para que a sua biblioteca não superasse a de Alexandria1. Graças às empresas públicas de têxteis e de pergaminho e a um hábil sistema de impostos, adquire prosperidade financeira. Com uma vida privada marcada pela simplicidade, os governantes mostravam a sua magnificência nas obras de interesse geral. Ao contrário dos outros três grandes reinos helenísticos, onde o elemento bárbaro, além de influenciar e complicar a evolução política, acaba também por ter alguma repercussão na expressão cultural, com a fusão de elementos não gregos,
1-
Sobre o assunto vide E. G. Turner, Greek papyri. An introduction (Oxford University Press, 1968), pp. 9-10; R. Pfeiffer, History of classical scholarship (Oxford University Press, 1968), p. 236.
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Pérgamo desenvolve o espírito helénico de uma forma mais pura, apoiado na antiga tradição iónica. O reino de Pérgamo torna-se, cerca de 200 a. C., o primeiro aliado dos Romanos na Ásia e é integrado no império destes em 133 a. C., por testamento do seu rei Átalo III (159-133 a. C.)1. É a partir de então que Roma cria a província da Ásia. A estação arqueológica de Pérgamo é extensa e impressionante: além de vários outros vestígios, sobressai a Acrópole que se ergue majestática sobre a cidade. Aí se podem visitar as ruínas de vários edifícios e monumentos. Os Palácios Reais, uma Basílica Romana e a Casa de Átalo com frescos. O Teatro, com uma vista panorâmica fascinante sobre a cidade e o vale, tem capacidade para dez mil espectadores sentados. O Asclepiéion, de que pouco resta, era um afamado centro de cura que, dirigido por Galeno – médico que viveu durante o Império Romano e que era procurado por muitos doentes –, se tornou conhecido por todo o mundo antigo e dele subsistem uma colunata de mármore, um teatro, quartos de doentes. O grande Altar de Zeus, um 1-
Quem desejar conhecer mais pormenores sobre o reino de Pérgamo consulte R. B. Mcshane, The foreign policy of the Attalids (Urbana, Illinois, 1964); E. V. Hansen, The Attalids of Pergamum (New York, 21971).
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monumental altar que embeleza actualmente o Museu de Berlim. Se bem que no local, na actual Bergama turca, exista um Museu Arqueológico e Etnográfico onde se guardam muitos achados da Pérgamo helenística, é no Museu de Berlim, no Pergamon Museum, que hoje está exposta a maioria das obras encontradas, de que sobressai o Grande Altar de Zeus, uma das principais realizações escultóricas do Período helenístico, de uma escola que nos legou diversas outras obras primas que se encontram em museus que não o de Berlim. É o caso do Gaulês Moribundo (cerca de 240200 a. C.), de que existe uma cópia de mármore nos Museus Capitolinos de Roma, uma escultura que representa o guerreiro gálata na nudez "heróica" (os Gauleses usavam calças), de face sem barba, mas com bigode, de cabelo em mechas cuidadosamente notado. Está sentado, com a perna direita dobrada e a esquerda estendida, de torso inclinado e a cabeça pendida, o braço direito, apoiado no chão, flecte e já não sustém o peso do corpo. O Gaulês a suicidar-se depois de matar a mulher (Palazzo Altemps, Roma), também de cerca de 240-200 a. C. e também representado na nudez heróica, manifesta todo o seu orgulho e amor à liberdade: para evitar a escravatura sua e da mulher, mata-a e segura-a ternamente com a
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mão esquerda, enquanto enfia, resoluto, a espada no próprio peito. Esta representação de Gauleses está ligada a factos históricos: em 279, uma invasão chegou até Delfos, depois de vencer a Macedónia. Foram repelidos por uma tempestade de neve e pela Simpolitia Etólia. Seguiram para a Ásia Menor, onde exigiram tributo de Antíoco. Nos anos 30, Átalo recusou pagar tributo e repeliu um ataque dos Gálatas. E assim o poder destes ficou quebrado, e Átalo e os seus sucessores fizeram de Pérgamo um grande centro cultural. A sua obra mais significativa, o grande Altar de Zeus (c. 180-150 a. C), encontra-se no Museu de Berlim, como vimos. O altar encontrava-se em plataforma elevada, a que se acede por uma escadaria monumental, rodeado por uma colunata iónica, como se fosse um templo períptero. Considerado uma das sete maravilhas do mundo, segundo algumas listas, foi realizado entre 180 e 150 a. C., embora tenha ficado por acabar. Em Pérgamo, ainda são visíveis os alicerces da plataforma. Trata-se de uma construção de mármore, dedicada a Zeus e a Palas Atena, obra de grande aparato, decorada por um friso exterior à volta da plataforma, que representa o combate entre deuses e
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gigantes, e um friso interior no pórtico iónico, que historiava o mito de Télefo. Tinha imagens nos acrotérios (algumas conservam-se). Nele trabalharam vários escultores que assinaram as suas obras.
Reconstituição do Grande Altar de Zeus De consideráveis dimensões, o Altar de Zeus retoma a prática arcaica de grandes altares, perdida na época clássica. Simplesmente, os arquitectos de Pérgamo pensaram-no como um templo períptero, cuja colunata foi transferida para o edifício do altar, como refere R.R.R. Smith (1993). O friso exterior que rodeia a plataforma, fascinante e espectacular, com cerca de 120 metros de extensão, representa a batalha de deuses e gigantes,
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em relevo tão alto que é quase escultura de vulto. As figuras, em que «as diversas linhas se cruzam numa complexidade barroca»1, têm inscrições e, na opinião de Susan Woodford, «quase rebentam do fundo. Músculos retesados e drapejamentos a voar, transmitem um tremendo sentido de energia explosiva». Num dos lados do friso sobressai o combate de Zeus e no outro o de Atena. Zeus tem o manto a cair e um corpo poderoso, luta com três gigantes e vai lançar o raio. A sua ave simbólica, a águia está omnipresente, tanto à sua direita, como a flanquear os os que o enfrentam. Estes têm pernas de serpentes, ou aladas, ou humanas. Há uma cuidadosa variedade de posições. Porfírion, o opositor principal do pai dos homens e dos deuses está de costas e o escultor pretendeu dar-lhe realce, ao representar o seu dorso saliente, vigoroso, musculado.
1- M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica I –
Cultura grega, p. 620.
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Grupo de Zeus Atena, escudo redondo na mão esquerda e armada com a sua característica égide, agarra pelos cabelos um gigante, Alcioneu, cujas asas preenchem o alto do espaço, e prepara-se para lhe aplicar o devido castigo. O sofrimento dele é sugerido pelos olhos fundos e revirados, pela boca aberta. Olha para Atena com olhos angustiados, à direita, a deusa Terra, mãe dos gigantes: com sobrancelhas erguidas, olhos fundos em súplica, cabeça voltada, pede a Atena que poupe os filhos. Mas Nike, a Vitória, à direita, já se prepara para coroar Atena.
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Grupo de Atena O motivo principal de Zeus e Atena, a mover-se em direcções opostas, mas voltando-se para olharem um para o outro, é o esquema (invertido) do pedimento ocidental do Pártenon. E Susan Woodford acrescenta que se trata de «uma esplêndida e criadora adaptação de uma grande obra do passado». As figuras têm inscrições. É de notar que Apolo e Hélios são divindades distintas. O friso existente na parte superior do Altar apresentava a história e mito de Télefo: Héracles encontra Télefo; companheiros de Télefo; Teutras e Auge e outras cenas do friso. Outras esculturas, além dos frisos do Grande Altar de Zeus, se guardam no Pergamon Museum. É o caso de
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Libertação de Prometeu (obra helenística, entre 159 e 137 a.C.). Grupo de três figuras em mármore. Estátua de uma flautista a dançar (cópia em mármore de um original grego de meados do séc. II a. C.). Estátua de Atena Parthenos (obra helenística, da segunda metade do séc. II a. C.). Encontrada no Templo de Atena em Pérgamo. Estátua de Atena com a égide que se cruza no peito (obra helenística de c. 150 a.C.). Bela cabeça de Pérgamo (obra helenística de c. 150-140 a.C.). Uma bela cabeça encontrada em Pérgamo.
Imagem da cabeça
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Estátua de Hera de Samos (meados do séc. II a.C.). Estátua de uma dançarina (segundo quartel do séc. II a.C.). Afrodite desatando a sandália (fins do séc. II a.C.). Estátua de mulher da Magnésia (obra helenística, de começos do séc. I a.C.). Estátua de um escravo (obra helenística, do séc. III a.C.). Estátua de um pescador (tipo Séneca). Cópia em mármore de um original grego de c. 200 a. C. Estátua do adolescente que tira uma espinha. Cópia em mármore de um original grego de fins do período helenístico. Métopa do Templo de Atena em Tróia, representando Hélios no seu carro (obra helenística de 300 a.C.). Relevos de estelas funerárias. Vários retratos e cabeças romanos, com destaque para o de Gaio Júlio César, de M. Vipsanius Agrippa, do Imperador Adriano, de Antínoos, do duplo Hermes de Sócrates e Séneca. Duas urnas funerárias romanas
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Relevo das Charites ou Graças (último quartel do séc. I A. D.). Alguns mosaicos: de não muito grande dimensão, mas com qualidade técnica. Mosaico pavimental, esplêndido que representa Orfeu (fins do séc. II a.C.). Mosaico dos Silenos (romano, séc. II A.D.). Mosaico do Centauro (romano, de entre 128 e 118 A.D.). Um belo mosaico. Fragmentos de friso e de sarcófago. O do sarcófago com representação de duas máscaras. Sarcófago com a representação do mito de Medeia (romano, meados do séc. II A.D.). Um belo relevo. Relevo de um sarcófago com as Musas (Romano, último quartel do séc. II A.D.). Sarcófago com cenas dionisíacas (Romano, último quartel do séc. II A.D.). Relevo de Mitra (Romano, séc. II A.D.). Estátua de bronze de adolescente (Romano, meados do séc. I A.D.). Estátua em bronze de Baco (romano, séc. II A.D.). No domínio da pintura, embora a mais volumosa, valiosa e representativa colecção de vasos
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gregos esteja exposta no Altes Museum, no Pergamon encontramos vários exemplares de variadas épocas, além de figuras de terracota: Placa de cerâmica com cena funerária, uma obra ática, de c. 530 a.C., de Exékias; uma taça ática com a representação da luta entre Peleu e Tétis, um belo vaso da autoria de Peithinos (c. 500 a.C.); uma taça ática de figuras vermelhas com a representação de uma Gigantomaquia (c. 490 a.C.), excelente obra pelo Pintor de Brigos.
Taça com Gigantomaquia pelo Pintor de Brigos Os olhos recaíram ainda numa oinochóe ática de figuras vermelhas que tem representado um atleta a ser coroado por divindade (c. 480 a.C.); um lécito ático de fundo branco, com cenas funerárias (c. 450 a.
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C.), pelo Pintor de Aquiles; um lécito polícromo de fundo branco (fins do séc. V. a.C.), proveniente de Alópece, na Ática, perto de Atenas; um cálice-kratêr de fundo branco, de Paestum, com cena de comédia (c. 350 a.C.), pintado por Asteas; um kratêr de volutas apúlio, que representa uma Gigantomaquia (terceiro quartel do séc. IV a.C.). De tarde, depois de almoço retemperador que aconchegou o corpo e serenou emoções excitadas e vivas, fizemos a visita ao Altes Museum e à Catedral de Berlim (Berliner Dom).
Frente ao Altes Museum Com estrutura neoclássica, o Altes Museum fica junto ao encantador jardim de Lustgarten, tem planta rectangular e foi mandado construir por Frederico
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Guilherme III entre 1823 e 1830, a partir de projecto de Karl Friedrich Schinkel, inspirado nos templos e pórticos gregos, com rotunda e cúpula interiores que imita o Panteão de Roma e exibe colunas coríntias. Como fachada, apresenta um majestoso pórtico de dezoito colunas iónicas, precedido por uma imponente escadaria, ladeada por duas estátuas equestres. Contém uma excelente colecção de antiguidades gregas e romanas, a Antikensammlung, que incorpora achados encontrados em diversos pontos, em especial Samos, Mileto, Priene, Atenas, Olímpia, Corinto, Esparta, Cíclades, Pérgamo, cujas datas se estendem dos tempos micénicos ao Império Romano. Destaque para a considerável colecção de cerâmica grega, cuidadosamente exposta, de modo a valorizar as imagens e cenas representadas, seguindo a ordem cronológica, conciliada com núcleos temáticos em determinadas vitrinas, ou realçando um ou outro pintor. É evidente que o Pintor de Berlim lá está em evidência, num plano central, a ocupar todo um expositor, com a sua ânfora – reproduzida na folha de rosto – que representa Hermes, um veado e um sátiro sobressaindo do negro intenso e brilhante que cobre todo o vaso: um grupo em que a tridimensionalidade se mostra com nitidez. Em realce também a excelente ânfora ática de figuras
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vermelhas do Pintor de Andócides, com a representação da luta de Héracles e Apolo pela posse da trípode délfica. Por trás de Héracles, Atena, armada de couraça, elmo, escudo e lança, está atenta à luta. A conhecida taça de Dúris, a que é costume dar o nome de “A Escola”, proveniente de Cerveteri na Etrúria. Mas lá se encontram também, entre muitos outros vasos, a taça de Sósias, em que Aquiles cuida de Pátroclo, ferido num braço (c. 500 a.C.). Enquanto este vira a cara e parece ter um ríctus de dor, o amigo põe no que faz toda a atenção.
Aquiles cuida de Pátroclo
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Não faltam outras obras significativas da Antiguidade greco-romana. Passam-me pelo fio inconsútil da memória a cópia romana da cabeça de Péricles – acima reproduzida –, cujo original grego (c. 430 a.C.) é da autoria de Crésilas; um conjunto significativo de armas (elmos, couraças, grevas, escudos, espadas); um Mosaico da Villa Adriana, em que um Centauro luta contra um leão e defende, com todo o empenho, a sua companheira que está em perigo.
Mosaico do Centauro A Catedral de Berlim é um edifício de estilo renascentista, mandado construir entre 1894 e 1905
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pelo imperador Guilherme II, a partir de projecto do arquitecto Julius Carl Raschdorff. Trata-se de um templo de grandes proporções: com 115 metros de comprimento, 73 de largura e 116 de altura, é encimado por enorme cúpula. Destaque para mosaicos com os quatro evangelistas; para os vitrais que representam a Ascensão; para o órgão de Sauer com mais de sete mil tubos. No entanto, olho-a de frente, observo-a, não me toca emocionalmente. Pelo seu gigantismo? Pelo negrume que cobre as suas pedras? Não sinto nessa ampla mole frontal a proporção e delicadeza da fachada do Altes Museum que lhe fica logo à direita. Aproximavam-se os ponteiros das cinco da tarde quando terminaram as visitas oficiais – com o guia, José de seu nome, muito engripado e proclamando-se guia de exteriores e não de museus, de interiores – e nos dirigimos ao hotel. Dado ao corpo breve mas merecido descanso, eis que um grupo – em que o relator se incluía –, ainda não repleto das emoções nesse dia, combina uma saída para um passeio rápido pela zona comercial e toda cheia de movida das Kurfürstenstrasse, Kleiststrasse, Tauentzienstrasse e Kurfürstendamm – a que os Berlinenses chamam
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mais simplesmente o Ku’dammm – e em visita à Igreja Memorial do Imperador Guilherme I, a Gedächtniskirche. Apreciámos a mescla de edifícios modernos, volumosos e monumentais, com as construções mais antigas, de fins de Oitocentos e começos de Novecentos, de que a elegante Iduna Haus é bom exemplo; os estabelecimentos comerciais, as butiques e suas artísticas montras; as pequenas lojinhas e os vendedores ambulantes, sempre atentos e apelativos; os artistas de rua, debruçados sobre o seu trabalho e parecendo alheios ao que os rodeia; os restaurantes e cafés, os hotéis e lugares de encontro, os teatros e salas de cinema; as modernas e ousadas obras de arte – cheias de simbolismo por vezes – que vão aparecendo pelas ruas; o tráfico intenso e não raras vezes incomodativo; as agências de viagem, as casas de cultura e livrarias, os ginásios para recuperação do físico ou eliminação de adiposidades adquiridas em refeições mais abastadas e não de todo comedidas. A meio deparámos com a KaDeWe e o grupo fraccionou-se: o Abílio e a Ana Maria, a Maria Miguens, a Mané, a Maria Franco por ali se quedaram às compras; mais tarde, reencontrados, já vinham providos de kispos e outros agasalhos, que o frio era intenso e o corpo solicitava consistente
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cobertura. Os restantes de que faziam parte a Zélia, a Zé Alves, a Zé Ferreira, a Elisabete, a Helena Morais, a Lídia Orestes e o José Filipe – e também o relator destas descosidas linhas – continuaram o seu destino, alheios ao frio que se infiltrava, agudo e implacável, e atingia em especial nariz e orelhas. Pararam aqui e ali e ficaram-se a olhar por momentos para o Magic Balloon. Lançaram um rabo de olho ao Café Kranzler, ao Teatro des Westens, à entrada do Jardim Zoológico. Apreciaram o Europa Center, obra de K. H. Pepper, construído entre 1963 e 1965, grandioso centro comercial que alberga lojas várias, butiques, cinemas, um teatro, o Hotel Palace, o famoso cabaret “Die Stachelschweine” e um relógio de água. Sentiram-se seduzidos pela Globe Fountain, ou Fonte do Mapamundi (1983), sita na Breitscheidplatz, uma bela e simbólica obra, toda em mármore avermelhado, que tem por motivo central um globo seccionado a jorrar água por diversos pontos que depois desce em cascata por degraus de um e outro lados; e todo o conjunto aparece ponteado de figuras humanas e animais, algumas delas exóticas, como é o caso de um estendido e negro crocodilo. Mas já os olhos fugiam para a Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche que se erguia mesmo ao lado, sem o pináculo da torre, esventrada, como a haviam
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deixado os bombardeamentos de 23 de novembro de 1943. Igreja construída em 1891-1895, em estilo neoromânico, da autoria de Franz Schwechten, a sua torre erguia-se a uma altura de cento e treze metros. Hoje, sem a parte superior, feita em estilhaços pelo bombardeamento, não ultrapassa os sessenta e oito. Regressados ao Hotel e jantados, um grupo lançou às malvas o cansaço, ainda arranjou forças e sentiu coragem para arrostar o frio intenso, agudo, penetrante: o desejo ou necessidade de satisfazer a curiosidade, o impulso irresistível de provar um pouco da vida nocturna de Berlim. Bem encapuçados e estofados no mais denso vestuário que possuíam, meteram-se no autocarro 100, ficaram fascinados com o Reichstag, as Portas de Bandenburgo, a avenida Unter den Linden, o Altes Museum iluminados. Saíram na Alexanderplatz, na intenção de se dirigirem às animadas ruas do Nikolaiviertel. Infelizmente, depois de algumas buscas sem sucesso e de verificarem e sentirem as transformações que os antigos blocos de apartamentos de Berlim Leste estavam a sofrer, acossados por um frio cada vez mais agreste, entraram num dos bares que encontraram abertos, um bar irlandês, onde foram recebidos por intensa estridência musical e por tal densidade de fumo que quase se não viam uns aos
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outros. Não eram passados um a dois minutos, o grupo fraccionou-se. Houve quem não aguentasse tão acolhedor ambiente. Uns tantos preferiram retirar para se acolherem num café que ficava defronte, um bar vietnamita mais calmo, onde a música rodava suave, em fundo, encostada aos tectos; onde o fumo de cigarro não existia, pelo menos não se sentia ou não era visível. Escolhida a beberagem desejada por cada um, as bebidas chegaram quentes: reconfortaram, suavizaram a noite, aconchegaram do frio que pesava sobre os ombros. Reunidos todos de novo, refizeram a pé o trajecto da Alexanderplatz até às Portas de Brandenburgo: olharam o céu estrelado, seguindo o piscar da luz vermelha na ponta da Torre da televisão; admiraram o grupo escultórico em honra de Marx e Engels, sito à sombra de robustas árvores na ampla praça quadrangular Marx-Engels Fórum, e leram no pedestal a inscrição que mão anónima escreveu: «Wir sind unschuldig» («Nós não temos culpa nenhuma»). Puderam ver com cuidado a beleza e realce que a iluminação dava aos edifícios de Unter den Linden; e, com o cansaço a pesar já como chumbo nos músculos das pernas e no ânimo de boa parte, foram todos surpreendidos pelo recorte soberbo, delicado, harmonioso de formas das Portas de Brandenburgo
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que as luzes faziam resplandecer no negrume da noite. E o alento voltou nos olhos espantados de quase todos. Já o dia 19 dava as mãos ao dia 20, quando regressaram ao Hotel, em táxi ou em autocarro, apanhados junto do Reichstag. A noite estava fria, o corpo pedia descanso e o dia seguinte, o dia vinte, prometia mais caminhadas e emoções fortes. Era um dia dedicado ao Palácio Charlottenburg, pela manhã e ao Museu do Holocausto, de tarde. Saídos do Hotel por volta das 9h00, percorremos de novo as Tauenzienstrasse, reencontrando o Europa Center, a Fonte do Mapamundi, a Gedächtniskirche; passámos pela Hardenbergstrasse, Ernst-Reuter-Platz e Ottostrasse Allee, onde sobrevivem edifícios antigos que escaparam à guerra, onde se nota uma mescla de construção e onde não faltam as lojas e o comércio. Chegados ao Palácio Charllottenburg, demos uma volta pelos extensos e artísticos jardins – dignos de serem vistos e apreciados –, uma vez que o horário de visita começava às dez horas. Destinado a simples residência de verão, encomenda de Frederico III a Nering, em fins do séc. XVII, para a sua segunda mulher Sofia Carlota, o
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Palácio Charlottenburg demorou, no entanto, cerca de um século a construir e tornou-se um dos edifícios mais sumptuosos de Berlim. Nele colaboraram, além de Nering, outros arquitectos: Grünberg, Knobelsdorff, Schinkel, Langhans. Além do mobiliário, da pintura, porcelanas que faziam parte do espólio e hoje constituem um magnífico conjunto museológico, o Palácio guarda o Museu de Pré e Proto-História, com destaque para o chamado “Tesouro de Príamo” ou colecção da antiga cidade de Tróia, doada em 1881 por H. Schliemann (boa parte são réplicas, porque desapareceram no fim da II Guerra Mundial e encontram-se actualmente em Moscovo). Durante a Segunda Guerra Mundial, os Russos tinham levado o espólio de Schliemann, fazendo cair o silêncio sobre o seu paradeiro. Encontrava-se recolhido e depositado no Museu Puschkin de Moscovo e só mais tarde, recentemente, se soube do seu secreto esconderijo. Depois de muita insistência, conseguiram estudiosos alemães, em 1994, ver de novo esses achados e verificá-los pela lista feita por Schliemann. Para isso levaram umas luvas brancas especiais que os especialistas russos louvaram, mas declinaram o seu uso, por terem mais confiança nas suas e com elas se fez o manuseio, verificação e
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estudo Uma exposição – que decorreu em Bona, de 16 de Novembro de 2001 a 1 de Abril de 20021 – patenteou de novo aos olhos surpresos dos visitantes os achados de Schliemann na colina de Hissarlik que tinham sido levados pelos Russos. Estamos perante manifestações do fenómeno cultural, mito ou realidade, que começa a ganhar corpo quando Schliemann, profundo conhecedor da Ilíada, inicia as escavações em Tróia — ou melhor, na colina de Hissarlik, para contentar os cépticos — e descobre várias cidades sobrepostas. Com uma localização geográfica muito favorável, à entrada do Estreito dos Dardanelos, única entrada marítima para o interior da Ásia, compreende-se que Tróia, desde muito cedo, mantenha contactos com diversas e distantes partes do mundo conhecido de então.
1
- Antike Welt 32, 5 (2001) 535.
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Contactos de Tróia1 E um dos contactos mais bem documentados, quer literária, quer arqueologicamente, parece ser o que Tróia manteve com os Micénios: nome moderno que lhes advém da cidadela mais opulenta, Micenas, já que o etnónimo antigo que eles próprios se dariam deveria ser Aqueus2, esse povo — também ele uma descoberta de Schliemann — aparece no continente grego por volta de 1600 a.C., já como Gregos, como resultado de um longo processo de formação a partir de grupos de indo-europeus, entrados na Península Balcânica por volta de 2000 a.C.; em consequência de 1
- Figura colhida em M. Korfmann, A Tour of Troia — Part B (Istambul, 1992), p. 22. 2- Vide José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos. I— Génese e Evolução de um Conceito (Coimbra, 1992), pp. 37-66 e 267268.
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uma evolução lenta, em que os Minóicos exercem um papel de relevo, em muitos aspectos, a ponto de se poder falar de minoicização pelo menos da aristocracia, que, no entanto, não chega para lhe sufocar a originalidade. Seduzidos pela cultura de Creta, os Micénicos adaptam-na profundamente à sua mundividência. Provavelmente sem unidade política e divididos em reinos mais ou menos extensos que se estendiam até às ilhas dos mares Egeu e Iónico e às costas da Ásia Menor1, os Micénios formavam uma sociedade 1-
Os Micénios não apresentavam, ao que tudo indica, unidade política: a lenda fala de ataques de Micénios contra outros Micénios (dos Pelópidas aos Perseidas em Micenas, dos Neleidas que tomam Pilos e combatem contra Héracles), a que devemos associar as destruições de cidadelas (por exemplo de Cnossos, nos inícios do séc. XIV, e de Tebas, em c. 1300 a. C.) e a construção de muralhas (séculos XIV e XIII a. C.) para sua defesa. Acresce que os dados arqueológicos não implicam essa unidade, nem as tabuinhas do Linear B lhe fazem qualquer alusão. Por isso, hoje, tende-se a falar em "grupos de Micénios" ou reinos micénicos. O recurso aos arquivos hititas — que falam de um poderoso reino dos Ahhiyawa em que muitos se apoiam — e às informações dos Poemas Homéricos, que se reportam aos tempos micénicos, de modo algum permite contornar e dilucidar a dificuldade. Sobre a unidade política dos Micénios e legitimidade para utilizar os dados dos arquivos hititas e dos Poemas Homéricos vide José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos, pp. 33-66.
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opulenta e poderosa, amante da guerra e da caça, com um comércio florescente e relativamente desenvolvido, por mar e por terra, que entra em declínio entre 1200 e 1100 a. C., com uma série de destruições a atingir os seus principais centros. E aos poucos cai lentamente sobre a Grécia uma obscuridade de alguns séculos. Atribuído pela tradição tal declínio à invasão dórica, deve ele ter uma origem mais complexa que não deve ser alheia à célebre Guerra de Tróia. Caímos na complexa questão da realidade e localização de Tróia e sua identificação com a que a arqueologia descobriu na colina de Hissarlik. Se até aos fins do século XIX não se acreditava na historicidade da Ilíada nem na da Guerra de Tróia, as escavações iniciadas por Schliemann nessa colina, continuadas depois por Dörpfeld, dadas por concluídas por Blegen e agora retomadas por Korfmann, puseram a descoberto nove cidades sobrepostas que cobre o espaço temporal de cerca de 3 000 a.C. ao período romano.
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Esquema temporal das camadas de Tróia A imagem dá um esquema temporal dos vários sedimentos ou camadas da colina de Hissarlik. Grosso modo, poderemos datar esses vários estratos como segue: a Tróia I estende-se de 3000 a 2500. A Tróia II preenche os dois séculos seguintes; as Tróias III, IV e V ocupam o tempo que vai de 2300 a 1700. A Tróia VI situa-se entre 1700 e 1250 e com ela se inicia uma nova civilização que aprende a domesticar e a utilizar o cavalo e trazia consigo novo estilo e nova técnica de olaria, a chamada cerâmica mínia cinzenta — inovações idênticas às que trouxeram os povos entrados na Península Balcânica por volta de 2000 e vieram a dar origem aos Micénios1. A cidade, com muralhas de 6 a 10 metros de altura e 4 a 4,5 metros de largura, adquiriu considerável opulência e ruiu, segundo vários especialistas, em consequência de um sismo. No ano 1300 a. C. 1
Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 12-28.
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Extensão de Tróia VI Tróia VI apresentava este aspecto: no alto, o palácio e a seus pés a cidade baixa fortificada. O rio Escamandro banhava as terras circundantes. Sem solução de cultura, aparece depois a VII que cobre os cento e cinquenta anos seguintes — geralmente dividida em VIIa e VIIb —, que parece ter tido uma vida acidentada e dura, e, segundo Blegen, muito provavelmente teria sofrido as consequências de um cerco e teria sido destruída por um violento incêndio que a teria reduzido a escombros por meados do século XIII. Com a destruição da Tróia VIIb, cerca de 1100, verifica-se uma quebra definitiva. A Tróia VIII — fundada por colonos gregos que aí chegam possivelmente já no séc. X a.C. — vai até 85 a.C e a IX, já romana, preenche o tempo que vai de 85 a.C. a 500 d. C.
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As camadas da Colina de Hissarlik As ruínas estendem-se por vasta área. As portas — Ceias, diz a Ilíada —, as grossas muralhas, de fortes blocos de pedra, consistentes. As camadas sucessivas indicam as diversas etapas de povoamento. Pedras e mais pedras. Pouco mais do que pedras, e números a indicar as camadas. O tempo deposita os estratos em que, secretos, pulsam emoções, anseios, gritos, dores. Espera e escuta o seu silêncio. Dele sobe e pulsa na memória tropear surdo e tinir de ferros. A partir das escavações e estudos de Blegen constituiu-se uma opinião generalizada de que a Tróia homérica corresponderia à VIIa. Mas ultimamente alguns factos e descobertas
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arqueológicas tornaram a avolumar as dúvidas. Dado o facto de, na colina de Hissarlik, não ter aparecido qualquer inscrição que permita a identificação sem margem para dúvidas, Finley desde 1964 (JHS 84, pp. 1-9) recusa a historicidade da Guerra de Tróia, ao considerar que a cidade aí descoberta não corresponde à Tróia da tradição épica – opinião vivamente contestada por outros especialistas – e ao defender a tese de que os acontecimentos descritos nos Poemas Homéricos devem ser situados na Idade das Trevas, nos séculos XI e X a. C. A questão voltou a merecer a atenção dos especialistas e instituições e, a partir da década de 1980, adquiriu de novo plano de evidência, com reuniões científicas especificamente dedicadas a tal assunto – o colóquio The Trojan War. Its historicity and context (realizado em Liverpool, em 1981, e patrocinado pelo Greenbank) e o simpósio Troy and Trojan War (em Bryn Mawr College, em outubro de 1984), cujas actas foram publicadas em 1984 e 1986, respectivamente1. E as escavações recomeçaram em 1
L. Foxhall and J. K. Davies (edd.), The Trojan War. Its historicity and context. Papers of the First Greenbank Colloquium —Liverpool, 1981 (Bristol, 1984); M. J. Mellink (ed.), Troy and the Trojan War. A symposium held at Bryn Mawr College, october, 1984 (Bryn Mawr, 1986).
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1988, agora dirigidas por M. Korfmann e pela Universidade de Tübingen, com uma numerosa equipa em que entram várias universidades e instituições e que, além de arqueólogos e historiadores, inclui também especialistas de paleobotânica, de paleozoologia, de paleopaisagem, de arqueologia metalúrgica, de química, de dendrologia. Essas escavações mostraram que aí sopravam, da primavera ao outono, ventos do noroeste muito fortes — o que curiosamente condiz com o epíteto «ventosa Ílion», dado pela Ilíada a Tróia —, e que os barcos que se dirigiam ao Mar Negro tinham de esperar na Baía de Besik, situada a 8 km de Hissarlik, que esses ventos amainassem, ficando à mercê da cidade que aí se erguia.
A força dos ventos na região de Tróia.
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Devido a esses fortes ventos e às correntes do noroeste, os barcos procedentes do Egeu eram incapazes de passar pelo estreito dos Dardanelos sem receber ajuda de terra, e a cidade beneficiou da sua posição estratégica. E a Tróia confluíam as rotas comerciais da Antiguidade, entre o oriente e o ocidente, entre o norte e o sul. Era um empório, onde se trocavam mercadorias de todo o mundo. As escavações comprovaram, por outro lado, que os vestígios arqueológicos dessas zonas costeiras da Tróade indiciam um florescente comércio marítimo micénico, talvez mesmo um domínio desse povo no mar, e que a considerável quantidade de cerâmica micénica aí encontrada testemunha certa familiaridade desse povo com os habitantes da cidade da colina de Hissarlik, o que o leva mesmo a afirmar que, com base na quantidade de cerâmica aí descoberta, o local teria sido declarado colónia micénica senão fora o nome de Tróia e a Ilíada. Korfmann chama a atenção ainda para a especial importância estratégica dessa cidade para os Micénios e sublinha, por outro lado, que o campo de batalha e o local de acampamento dos Aqueus, descrito por Homero na Ilíada, se adapta a essa
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região da Baía de Besik1. Pensa Korfmann que, dada a situação estratégica para o controlo da entrada dos Dardanelos, teria havido várias guerras em Hissarlik, entre o séc. XIV e o XIII a. C. As escavações, recorrendo a meios electrónicos modernos de prospecção, mostraram ainda que a cidade tem uma extensão dez vezes maior do que se supunha, a partir das muralhas da Tróia VI; e que a escrita já era conhecida (sinete de c. 1190-1040 a.C.)2. Em face do que se acaba de expor, não vê Korfmann motivos que impeçam que a Tróia VI seja a Tróia homérica nem encontra razões para duvidar que o autor da Ilíada conhecia bem os lugares que descreve. Todo este substrato cultural, parte do baú que a humanidade arrasta na memória, explica o interesse dos povos – e povos tão diferentes, quer no domínio político, quer no cultural. Foi também essa bagagem espiritual – que, inseparável de nós, sempre nos acompanha e é parte da nossa natureza – um dos
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- M. J. Mellink (ed.), Troy and the Trojan War. A symposium held at Bryn Mawr College, october, 1984 (Bryn Mawr, 1986), pp. 12-16. 2 - Sobre essa extensão e novas escavações vide Michael Siebler, «Troia. Geschichte, Grabungen, Kontroversen», Antike Welt 25 (1994), pp. 84-99 e figuras 119 e 129.
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grandes motivos da visita ao Palácio Charlottenburg. Hoje o Palácio, dos muitos achados encontrados na colina de Hissarlik, desde as escavações de Schliemann, contém armas, cerâmica, algumas jóias… De tarde visitámos o Museu do Holocausto que se impõe pela sua arquitectura. Dos edifícios mais modernos, mais audazes, quanto à forma, mas também mais discutidos da Nova Berlim, tem risco de Daniel Libeskind e está acoplado a construção mais antiga. Com uma estrutura labiríntica, em ziguezague, parte dela subterrânea, várias das suas salas contêm uma exposição que ilustra a história dos Judeus na Alemanha, desde os fins do Império Romano até à actualidade. Mas o que mais impressiona, são os espaços vazios, a obstrução de paredes, os ângulos e arestas, os corredores em diagonal e de piso inclinado ou em declive, uns sem qualquer saída, outros a dirigirem-se para locais que simbolizam horror ou exílio: o que dava para um espaço quadrado com sete filas de sete colunas rectangulares de cada lado, a que foi dado o nome eufónico de Jardim do Exílio e onde, ao passarmos por entre essas colunas, nos sentimos confusos, um tanto desnorteados, nauseados mesmo. Outro
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termina na Torre do Holocausto, uma câmara cinzenta em betão, para onde se entra por larga abertura em diagonal com espessa e pesada porta em ferro que sobre nós se cerra, mal lá entramos. A câmara é escura, de clausura total. As paredes, muito altas e lisas, apresentam apenas uma leve frincha no topo, por onde penetra, lateralmente, escassa luz coada. E a aumentar a ideia de aprisionamento, de inacessibilidade, de impossibilidade de fuga, um lanço de escadas que partia apenas de uma altura oito a dez metros acima do solo e se dirigia à débil claridade que provinha da frincha.
Jardim do Exílio
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Quando nos aproximávamos da Torre do Holocausto pareceu-nos pressentir, cada vez mais perto e mais nítidos, os soluços resignados de um violino. Afinámos os ouvidos. Nítida a sensação de que saíam de uma das vitrinas onde se expunha o violino que pertencera a um adolescente e que o seu pai, encarregado das arrecadações para onde iam os pertences dos presos de Auschwitz, encontrara juntamente com as roupas dele. Estaria o filho já morto? Seria ainda um dos muitos cadáveres vivos que continuavam a penar naqueles armazéns de dor, angústia, tortura? Os soluços do violino apenas choravam a angústia de pai. Não dava respostas. Não tirava dúvidas. Um choro denso, calado, miúdo. Saídos do Museu do Holocausto e de regresso às Portas de Bandenburgo e ao Kunturforum, observámos, de passagem, a polémica e controversa obra do arquitecto americano Peter Eisenman Monumento aos Judeus Assassinados na Europa que, aprovado pelo Parlamento Federal em 1999, já se encontrava pronto, mas só veio a ser inaugurado em maio de 2005. Situado entre um renque de edifícios e o Parque Tiergarten, perto das Portas de Brandenburgo, são 2711 peças, espécie de paralelepípedos de betão de altura variável que,
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assentes numa estrutura ondulante artificial, dão a ideia de túmulos em extenso cemitério. Um pequeno museu subterrâneo elucida sobre a política do Nacional-Socialismo em direcção ao holocausto, dá voz a testemunhos de vítimas… Contam-se histórias de famílias que não mais se recompuseram. E avoluma-se a sensação de exorcismo de um passado recente que parece ensombrecer de negrume a alma da cidade e pulsar no seu inconsciente. Ou somos pura e simplesmente manipulados por um grupo influente e economicamente poderoso? O homem é um animal social – zoon politikon lhe chamou Aristóteles – e com frequência deixa-se arrastar mais facilmente atrás das emoções do que submeter-se aos conselhos sensatos da razão. E hoje a ciência conhece bem essa sua fraqueza e sabe que cordas sensíveis harpejar.
Monumento aos Judeus assassinados da Europa
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O dia terminou com uma visita rápida ao Kulturforum onde, no Kupferstichkabinett, em exposição temporária, se encontrava o busto de Nefertiti, com mais de três mil anos, perfeito, bem modelado, que foi descoberto em 1912 pelo arqueólogo alemão Ludwig Borchatdt. Habitualmente a imagem da famosa rainha do Egipto oferece-se aos nossos olhos no Museu Egípcio que, situado junto do Palácio Charlottenburg, ocupa dois edifícios da Schlosstrasse, construídos para serem, na altura, quartel dos oficiais do Corpo da Guarda Real.
Busto de Nefertiti
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A noite foi dedicada ao descanso e a amena cavaqueira no bar do Hotel. Fora, o frio era forte e cortante, convidativo ao recolhimento interior, a uma bebida quente e aconchegante, a uma conversa serena e tranquilizadora, entre amigos, que aos poucos abriu as portas ao riso. No dia 21, segunda feira, com os museus de Berlim fechados, os Estudiosos dispersaram-se em pequenos grupos, conciliando os interesses de cada um. Um desses grupos, o mais numeroso, programou uma surtida rápida a Potsdam, que foi antiga residência dos reis da Prússia, uma cidade milenária cheia de história e de arte, com belas e movimentadas ruas, sempre bem pejadas de turistas. Muito destruída pelos bombardeamentos de 1945 e pelo após guerra, a cidade veio a ser palco da conferência que decidiu o destino da Alemanha vencida e local do tratado que assinou o seu futuro – a conhecida Conferência de Potsdam entre Truman, Churchill e Stalin, reunida em Cecilienhof, de 17 de julho a 2 de agosto de 1945. Acompanhados pela Berta, sempre atenta e disponível, saímos do Hotel pelas nove horas e quinze, tomámos o metro e depois o comboio, ao
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chegar a Potsdam o autocarro que ultrapassou a cidade e nos levou ao Parque de Sanssouci – um belo parque que mal começava a espreguiçar-se da longa hibernação e apenas em potência prometia densa sombra para o verão.
Jardins do Palácio de Sansouci (Foto de Abílio Queirós) Esplêndidos e artísticos lagos e fontes, os bancos repousantes, os palácios coloridos, rasgados de janelas e agaloados de estátuas convidavam a gozar momentos de despreocupação, de meditação, de silêncio. Como o palácio de Sansouci – 1745-1747, da autoria de Knobelsdorff e edificado por ordem de Frederico II – se encontrava encerrado, por ser segunda feira, visitámos o Neue Palais, também
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mandado construir por Frederico II da Prússia que entregou a sua realização aos arquitectos Büring, Manger e Gontard, executada entre 1763 e 1769. Embora actualmente ali funcione a universidade em parte das instalações, continua ainda a parte central como palácio museologizado, de que realço a Sala da Gruta, decorada com milhares de gemas, minerais, pedras coloridas, conchas, fósseis que a assemelham a uma maravilhosa gruta encantada; a Sala de Mármore, toda em mármore de cores várias; o gabinete de trabalho, a biblioteca e a sala de música de Frederico o Grande; o teatro do Palácio. Depois de rápido passear pelas ruas de Potsdam e de almoço ligeiro na Praça Luísa, junto de Porta de Brandeburgo, regressámos a Berlin, ainda a tempo de visitarmos o museu de arquitectura Bauhaus-Archiv de Berlim. À noite, após o jantar, um pequeno grupo foi ver um concerto musical no Staatsoper, de obras de autores portugueses contemporâneos: Lopes Graça, Viana da Mota, João de Freitas Branco. O dia 22 estava livre até às onze horas, momento em que devíamos deixar as malas às portas dos quartos, para às onze e meia abandonarmos o Hotel e nos dirigirmos ao aeroporto. E cada um
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preencheu esse tempo conforme seu gosto. O relator da viagem, tomado um rápido pequeno almoço, aproveitou-o para uma última visita ao Altes Museum e a sua considerável colecção de vasos gregos que, na ida do dia dezanove, não conseguira apreciar com a calma e vagares necessários, e sobretudo não detectara alguns espécimes que julgava pertencer a esse museu. Açodado e consciente de que teria de estar de volta ao Hotel às onze menos dez ou onze horas, acomodou-se no autocarro 100, foi revendo locais, edifícios, monumentos, percorreu toda a Unter den Linden e saiu em Lustgarten, com a magnífica fachada das 18 colunas iónicas do Museu na sua frente, batiam as nove e meia. Logo estranhou, porém, a calma solidão do largo todo deserto. A existência apenas de um casal, sentado nas escadas. O Museu afinal abria só às dez e foi necessário contar, pacientemente, os lentos minutos e, depois, estugar a visita, de novo sem os vagares que pretendia. Se da primeira vez não encontrara a taça do Pintor de Pentesileia, que representava a morte da rainha das Amazonas por Aquiles, agora também o não descobrira – confusão lhe ocupara o espírito, porque afinal a taça estava no Museu de Munique, não no Altes Museum. Reviu o Pintor de Berlim, as vitrinas sobre symposia e sobre
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jogos atléticos, admirou mais uma vez o busto de Péricles, parou diante de uma ou outra figurinha de Tanagra, o pequeno mas surpreendente mosaico do Centauro… E correu de novo para o autocarro 100, que as dez e meia já estavam ultrapassadas. Às onze e meia estávamos todos prontos para deixarmos o Hotel e dirigirmo-nos para o aeroporto, onde suportámos, com a paciência e estoicismo possíveis, uma longa, desesperante, desgastante, desnecessária espera de cerca de duas horas até à abertura dos balcões para o check-in. A tarde iniciara já o seu rápido curso de início de primavera, quando deixámos Berlim. Na retina e na memória gravados, o afã e o desejo de eliminar mazelas, de disfarçar cicatrizes, de adoçar arestas, de delir manchas, de exorcizar culpas. A dolorosa memória a desfiar actos, sons, imagens, angústias, remorsos.
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A valsa das formas e os sons das cores
A chegada a Viena e recolha das malas, o encontro com a Renata, a nossa eficiente e bem documentada guia de Viena, o acolhimento no Hotel Ananas ocupou a tarde até às 17h00. Gastos cinco minutos para levar as malas aos quartos, saímos ansiosos para uma visita, ainda que rápida e de passo estugado, à Catedral de Santo Estêvão e ao centro da cidade. Um apelo irresistível nos impelia. Viena pairava no nosso imaginário cultural com séculos de sedimentação: os seus monumentos e as suas ruas sempre buliçosas e cheias de promessas; as suas instituições culturais, os seus museus, as suas casas de espectáculo quase míticas que apelam à fruição auditiva só de lhes pronunciarmos o nome; o renomado relógio Ankeruhr, com as suas simbólicas e históricas figuras a cumprimentarem os transeuntes, metodicamente, todos os dias ao meiodia; a Fonte dos Desposados (1729-1732), obra da autoria de Josef Emanuel Fischer von Erlach, que representa os esponsais de S. José e
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da Virgem Maria; o famoso artesanato de Viena, com destaque para os objectos de porcelana Augarten e as peças de cerâmica artística, as bonecas feitas à mão, os esmaltes, os artigos de couro, a ourivesaria. Começámos a visita pela Catedral de Santo Estêvão, a alma pulsátil, densa e flamejante da cidade. Situada no núcleo primitivo, no canto sudeste do antigo Castrum Romano, inicia-se em 1359, com a construção da nave em estilo gótico flamejante – de 110 m de comprido, dividida em três por colunas –, e só termina em 1570, com a conclusão da cúpula da torre norte. Como símbolo da cidade, o campanário da torre sul, gótico, ergue-se a 137 metros e parece proteger do seu elevado trono a outras três torres: a norte que, durante muito tempo, esteve incompleta e já se concluiu em estilo renascentista; as duas que ladeiam a fachada que se ficam pelos 64 metros e são chamadas dos ‘Pagãos’, únicos vestígios, com o chamado Pórtico dos Gigantes, da primitiva igreja românica, do século XIII, que antecedeu a actual e que, por sua vez, havia substituído um antigo templo pagão. Muito destruída pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial e pelo incêndio que se lhe seguiu, foi cuidadosamente reconstruída por arquitectos, canteiros e massa anónima. Só os magníficos vitrais ficaram para sempre sem remédio. Não entrei, como
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antigamente, pela Porta dos Cantores, o tradicional acesso das visitas masculinas de outros tempos, mas não deixei de apreciar os magníficos relevos que encimam essa porta e representam cenas da vida de S. Paulo. A hora da missa de Terça Feira Santa impediu que circulássemos livremente pelo interior. Sentimos, porém, toda a emoção e toda a densidade religiosa desse amplo templo. Impressiona pela grandeza, pelo carácter acolhedor, pela arte que dá mãos ao recolhimento. Aí entrados, de imediato os olhos nos fogem, insensivelmente, para dois altares, indecisos entre privilegiar um ou o outro: ora se fixam na beleza e harmonia do Altar Mor, em que sobressai uma pintura do padroeiro, Santo Estêvão, a ser lapidado (obra de Tobias Bock (ou Pock); ora deslizam, fascinados, para o altar e retábulo que ficam à esquerda de quem entra e tem o sugestivo nome de “Altar dos novos cidadãos de Viena” – altar que aparece encimado pelas iniciais A.E.I.O.U. (Áustria est imperium orbis universalis), divisa de Frederico III que, na nave oposta, de frente, em magnífico túmulo, cinzelado com delicadeza e precisão (obra de N.G. von Leiden), olha a Virgem e o Menino, seguro da benévola intercessão dos dois.
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Mas aos poucos os olhos, talvez mais habituados à penumbra que enche a Catedral, vão notando outras obras e pormenores dignos de serem apreciados, alguns a recortarem-se e à procura de evidência entre baldaquinos, mísulas, altares: a Virgem do Manto Protector (1450-1500); a Virgem de Pötschen (de 1697) que veio da aldeia húngara de Pecs e à qual foi atribuída a vitória do Príncipe Eugénio sobre os Turcos. E as obras que são marca inconfundível de Anton Pilgram: a belíssima imagem da ‘Virgem do Serviço Doméstico’ (séc. XIV); o púlpito que é obra notável do mesmo artista, decorado com quatro Doutores da Igreja (representam quatro temperamentos fisionómicos). Sobretudo os olhos parecem atraídos por íman para os dois impressivos autoretratos também de Pilgram em que o escultor, de compasso na mão em um deles, assoma a uma janela entreaberta e olha atento e interessado o interior da Catedral e, de esquadro e compasso no outro, se debruça sob um pilar de suporte do primitivo órgão e, com todo o peso da mísula em triângulos nas costas, perscruta com minúcia volumes e pormenores. Só não consegui acercar-me – impedia-o a hora e a circunstância da solenidade religiosa que se vivia – do “Cristo com Dor de Dentes”, o irreverente nome
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dado a uma imagem do filho de Deus, situada no transepto esquerdo, que, segundo a tradição, castigava com dores de dentes os que dela escarneciam. De seguida, com a rapidez que o adiantado da hora exigia, percorremos algumas ruas e praças do centro de Viena: a Stephansplatz e a Kärtnerstrasse, uma rua cheia de lojas comerciais (a maioria toda enfeitada com os ovos e coelhinhos da Páscoa), com muita luz e cor, das mais elegantes de Viena; a movimentada e vistosa rua Graben, em cuja esquina com a Kärtnerstrasse se encontra o tronco de árvore, resto de um antigo bosque que até ali chegava, o chamado “Tronco de Ferro” ou Stock im Eisen. Cheirámos, em olhadela furtiva, o pequeno mas famoso Bar Americano, sito na rua Kärtner, cuidada obra de Adolf Loos (1870-1933), com ostentação de estrelas e barras, com interior revestido de ónix e mármore que reflectem uma luz suave, painéis de mogno, mesas iluminadas por baixo, espelhos que ampliam e multiplicam o espaço. Apreciámos a Coluna da Peste, situada também na Graben, em estilo barroco, com relevos e duas fontes, bela obra de arte consagrada à Santíssima Trindade e erigida em consequência de promessa feita por ocasião da mortífera e devastadora peste de 1679. Demos uma
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passagem rápida – espécie de aperitivo nocturno para a visita que faríamos no dia seguinte – pelo Palácio Hofburg, onde à entrada, uma majestosa fachada, apreciámos as monumentais esculturas que representam quatro trabalhos de Héracles, não sem antes olharmos os restos romanos que foram descobertos na praça de S. Miguel. O palácio iluminado tinha volumes, sombras, fascínios. Parecia que os rostos das imagens nos olhavam mais densas e concentradas, que as fachadas haviam perdido as marcas do tempo. Reconfortados com o jantar, essa noite foi de repouso e de descanso, em amena cavaqueira de grupo. O cansaço físico não fora muito, mas a viagem, a preocupação das malas e da altitude, sobretudo a espera, deixaram mossas que um bom e grato convívio cauterizava melhor e sarava mais rapidamente do que a mais consagrada mezinha farmacológica: as graças do Abílio, as anedotas da Zé Ferreira, os risos francos e espontâneos da Virgínia e da Zélia varriam sombras e rejuvenesciam e alegravam, tonificando o espírito para o dia seguinte. E o relator destas linhas, de invisível microfone assestado e ouvido atento, tudo registava e tudo guardava, zeloso e solícito, no fio da memória. Malhas que o tempo tece e o silêncio destece, ao
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desdobar o longo novelo do vivido, quando se vasculha o baú onde se foram acumulando passos, gestos, sons, cores, palavras. Só uma pequena sombra permanecia, pairando indelével no sentir colectivo do grupo, imperceptível quase mas larvar, subterrânea: o casal Patrício que, a contas com uma incómoda e persistente gripe desde os primeiros dias de Berlim, recolhera logo ao quarto. Nada é perfeito nem encontrei nunca a plena felicidade. De muros a dentro convivem incompletude e natureza humana. É a total perfeição incompatível com o homem, natureza imperfeita e sempre insaciada.
O Belvedere (foto de Abílio Queirós)
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O dia 23, depois de rápida passagem panorâmica por alguns pontos da cidade, iniciou-se com a visita ao Belvedere (ou ‘da Bela vista’), que num dos lados se revê em pacífico lago e no outro contempla, pensativo e extasiado, os jardins que lhe levam o olhar até à cidade, a estender-se mais abaixo monumental, solene, espraiada. Obra de estilo barroco concebida pelo arquitecto Johann Lukas von Hildebrandt, mandou-a construir, entre 1700 e 1725, para sua residência, o Príncipe Eugénio de Sabóia, que desempenhou papel proeminente na Guerra contra os Turcos. E, nas construções turcas precisamente, se inspira a forma dos telhados do palácio. Surpreendem a fachada harmoniosa, a monumental escadaria, a luminosa Sala de Mármore, onde, em 15 de maio de 1955, foi assinado o Tratado, pelo qual os países ocupantes concederam a independência à Áustria e esta se comprometeu a manter a neutralidade. Só o soldado soviético, do alto da sua coluna, continua a lembrar aos Vienenses esses tempos dolorosos.
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Esfinge dos Jardins de Belvedere Os jardins do Belvedere, simples mas artisticamente desenhados e dispostos, entrelaçavam mãos com geométricos lagos que reflectem efebos a lutarem com cavalos marinhos e crocodilos e de onde parecem sair esbeltas nereides. Adornavam esses jardins numerosas esfinges, todas elas de fácies e perfil diferentes, alguns assemelhando belos rostos de efebos. Que simbolizam ou representam? Porquê esses masculinos rostos adolescentes em corpos de míticas entidades femininas? Sempre a insaciável e
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doentia busca dos recessos da alma humana e suas intenções. Desses jardins e do Belvedere temos uma magnífica visão sobre parte da cidade. E, antes de entrar, ali estivemos um momento a relembrar e reconhecer edifícios e monumentos, a deleitar os olhos. O núcleo antigo e a Ringstrasse que marcou para sempre Viena. Graças talvez a essa circular, construída sensivelmente pelo perímetro das antigas muralhas e graças aos edifícios que ladeiam essa famosa artéria, em grande parte de uma época determinada (meados do século XIX, inícios do XX), a cidade apresenta uma grande harmonia arquitectónica e o ar festivo de baile de gala. É neste harmonioso Palácio barroco que se situa a Galeria Austríaca do Belvedere, com a arte dos séculos XIX e XX exposta no Belvedere Superior. Aí encontramos salas dedicadas ao estilo Biedermeier, que privilegiava o estilo neoclássico, ao Jugendstil ou Arte Nova, à época da construção da Ringstrasse. Nesse Museu e Galeria do Belvedere se recolhem abundantes colecções de pintores austríacos do fim de século, com saliência para Klimt, Schiele, Kokoschka. São três pintores contemporâneos, tão diferentes nas figuras que apresentam e nas cores que utilizam, se bem que
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alguns elementos há que os caracterizam como pertencentes à mesma escola. E os Estudiosos observaram-nos de frente, de lado, recuaram, aproximaram-se. Em todos se notava, pairava no olhar e no ríctus facial a sensação incómoda de inquietação, um misto de repulsa e atracção. Os quadros de Schiele são agressivos e duros, com um erotismo exposto e aberto. E as suas figuras, de contornos angulosos, esqueléticas, ossudas, dão a sensação de que, na generalidade delas, a doença lavrou e consumiu o corpo, nele deixando fundos estragos e sulcos irreparáveis. São bom exemplo o seu Autoretrato nu (de 1910), bem marcados os ossos do peito, do ilíaco e das pernas, as costelas, o abdómen e o pescoço totalmente chupados. E o Nu sentado (também de 1910), em que o corpo está todo sugado: ventre e peito exauridos, as costelas e os ombros salientes, os braços e pernas sem músculos, de ossos bem marcados, deixam a sensação dolorosa e inquieta de esqueleto, a que apenas a pele cobre e não consegue disfarçar.
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Nu Sentado de Schiele Impressão idêntica é a que se sente perante o quadro conhecido como o Homem e a rapariga ou A Morte e a rapariga (1915).
A Morte e a rapariga de Schiele
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Os mesmos perfis duros das figuras que, sobre um pano branco em desordem, se abraçam com desespero, embora sem força, numa paisagem desolada. As figuras de Klimt são significativamente diferentes, embora possamos encontrar afinidades, como acontece na Rua no Parque do Palácio Kammer em que há tensão e se privilegia o negro e despido dos troncos das árvores; em figuras do Friso Beethoven (1901-1902) da Secessão, como as três Górgonas e as representações da Doença, da Loucura e da Morte, que lhe ficam por trás; em As três idades da vida (1905), sobretudo a figura mais idosa. Nas obras de Klimt predomina o ouro, como acontece em Judite I (1901), em que essa figura do Antigo Testamento aparece representada como uma mulher fatal vienense, com o seu fácies orientalizado, cabelo negro e farto, olhos semicerrados e lábios entreabertos, profusão de ouro em fundo e a envolver o seu corpo semidesnudo. Há um recurso assíduo aos ornamentos geométricos, inspirados sobretudo na arte grega e egípcia (uma característica do Jugendstil), como se pode ver no Retrato de Fritza Riedler (1906) e em O beijo (1907-1908). Bem torneados e harmónicos, os corpos são elegantes, com frequência sinuosos, flexíveis, sugeridos por
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cores suaves e linhas muito finas, como acontece em Serpentes de água I e II (c.1904-1907), em que, no quadro I, uma figura feminina, de corpo jovem, com a cabeça muito inclinada, olhos cerrados e lábios entreabertos, abraça fortemente outra figura feminina, de costas para o observador; e no II, figuras femininas, de corpo ondulante e sensual, deslizam horizontalmente ao longo da tela.
Klimt, Serpentes de Água I Nas obras de Klimt observamos um contraste ou certa ambiguidade entre erotismo e moralidade, sensualidade e recato, com os corpos enlaçados, a sua forma levemente sugerida por finos traços ou por cores suaves. Embora Klimt se distinguisse pela pintura figurativo-simbolística, as paisagens exercem também significativo papel na sua obra, com o artista a privilegiar – como é o caso de Jardim campestre com girassóis (1905-1906) – as telas quadradas e a prestar especial atenção à escolha dos ângulos e das cores, de
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modo a criar uma atmosfera próxima do impressionismo O beijo ou Os amantes, como também lhe chamou Klimt, é a mais emblemática e conhecida obra do autor. O par amoroso que se estreita ternamente encontra-se num prado atapetado de flores, mas dá a sensação de que não o pisa, antes parece levitar acima dele, todo envolto numa espécie de dourada auréola fulgurante, qual redoma que com eles forma um todo e de onde descem ramos de hera também dourados. A figura feminina está de joelhos, traja um vestido ornamentado com desenhos florais geométricos de cores vivas, tem os olhos e os lábios rubros cerrados, lança o braço sobre o pescoço do homem e dele recebe terno beijo na face – dele que, profundamente inclinado para ela, enverga um hábito com motivos ornamentais rectangulares negros e dourados e todo a parece envolver com a sua protecção afectiva. Os dois corpos, de linhas imprecisas e sinuosas, estreitamente enlaçados, formam um todo, as cabeças e faces unidas, os braços direitos a envolver o pescoço um do outro, os cabelos negros enfeitados, com grinalda de hera os dele, com flores os dela. O par enlaçado encontra-se na orla de um precipício, alheio contudo ao perigo, protegido que está pela auréola de ouro que o rodeia. Assim o
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quadro não representa um beijo apaixonado mas algo de atemporal e eternamente válido – a ternura consistente e intangível do amor, incorruptível ao tempo e às circunstâncias. O Friso Beethoven – com 34 metros de comprido por dois de altura, aproximadamente – é outra obra emblemática de Klimt. Por ocasião da XIV exposição da Secessão, dedicada a Beethoven, o pintor executa esse famoso friso sobre o tema da Nona Sinfonia do referido compositor e da Ode à alegria de Schiller – o anelo à felicidade. A obra, concebida e executada à maneira de uma sinfonia, é uma sequência de claridade e sombra, de negrume e luz. Nela o dourado, o gesso negro, a grafite, a madrepérola predominam. No lado esquerdo, temos o “sofrimento da débil humanidade” que suplica ao “homem forte”, como força exterior – bem armado com espada e com uma armadura dourada e reluzente – que a dirija e guie para Deus. A humanidade é precedida por esse homem resplandecente que parece incitá-la a empreender a caminhada e a luta pela felicidade. Sobre e por trás dele, elevam-se a “Compaixão” e o “Orgulho”, como saindo da sua própria sombra, quais forças interiores. Este grupo fica separado da parte central por um espaço de estuque branco apenas pintado na parte
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superior, junto ao tecto, por um friso de figuras femininas, horizontais, sinuosas, flutuantes, que representam o anelo da humanidade à felicidade e ligam o grupo do homem dourado e armado ao grupo central das figuras hostis. Essa parte frontal, e painel central, representa os poderes opostos e maléficos que é necessário vencer para se conseguir a felicidade: o gigante Tifeu contra o qual os deuses olímpicos, neste momento, são ainda ineficazes – aqui figurado como um misto de gigante, de macaco e de serpente com olhos de madrepérola – que tem ao seu lado esquerdo as suas três filhas, as Górgonas, e por trás delas a personificação da Doença, da Loucura e da Morte. Do lado direito da cabeça de Tifeu, personificadas, as forças hostis da Lascívia, da Luxúria e da Incontinência, com o seu ventre proeminente, que parecem emanar do próprio corpo peludo e negro do monstro. O painel direito representa a realização do “anelo à felicidade”, através da poesia, da arte e do amor, realização essa simbolizada numa espécie de beijo universal que parece abraçar o mundo. O “coro dos anjos do Paraíso”, elevado e suspenso sobre o verde de um prado florido, canta como que em êxtase – possivelmente a Ode à Alegria de Schiller. Na
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frente do coro, envolto numa espécie de redoma dourada, como se fora um halo de luz que ofuscasse as sombras, um par amoroso, terna e densamente enlaçado – talvez o homem armado de dourada armadura –, funde-se, visíveis só os corpos: um par que tem muitos pontos de contacto com a posição do par que representa o beijo. Aqui, no entanto, a figura masculina, inclinada, musculosa, desnuda, está de costas e quase oculta a feminina que toda se estica para lhe abraçar o pescoço, o que o aproxima mais de Realização (1905-1909). E, junto do coro dos anjos e do par amoroso, a pobre humanidade, com o cabelo quase em círculo imitando o halo, eleva-se num veio dourado, qual coluna de fogo que ascende e purifica. Nessa parede direita, a separar ou ligar as figuras hostis do painel central deste grupo que simboliza uma espécie de beijo universal, o mesmo espaço de estuque branco apenas pintado na parte superior, junto ao tecto, por um friso de figuras femininas, horizontais, flutuantes, que representam o anelo da humanidade à felicidade. Aqui este fino friso sinuoso, a humanidade apetente e anelante da felicidade, liga-se a uma figura dourada, a tocar lira, que simboliza a poesia. É um friso que, pairando superiormente junto ao tecto, se inicia no painel esquerdo, parece ultrapassar, escondido, o grupo
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central de Tifeu e dos poderes hostis, reaparece no painel direito para, superando tudo através da arte e da poesia, obter a vitória longamente esperada: e, desejosa de felicidade, a humanidade atinge-a, a tudo se unindo em harmonia, identificando-se com a natureza e elevando-se até à divindade. E assim a superação das forças hostis – que, momento a momento, se cruzam connosco e com as quais dia a dia tropeçamos e encalhamos – conduz ao conforto da melodia do dos anjos, ao abraço universal e à elevação. É bem notória, neste Friso Beethoven, a presença de algumas características que marcam a pintura de Klimt: superabundância do dourado que aparece no Homem forte e bem armado, nas serpentes das Górgonas, no coro de anjos, no veio em que sobe a pobre humanidade, a envolver o par amoroso; predilecção pelos ornamentos geométricos que se encontram no vestuário da Compaixão e do Orgulho, nas jóias e desenhos da saia da Incontinência, junto ao par amoroso; corpos estilizados, sinuosos, sugeridos quase só por traços de grafite, levemente sombreados e coloridos; recurso ao uso simbólico dos mitos e figuras da Antiguidade grega. Esse pendor para utilização de figuras e temas helénicos está na origem de pinturas como Dánae
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(1907-1908), em que a figura feminina, de olhos cerrados e cabelo ruivo, o corpo enrolado, como que em posição uterina, recebe a união com Zeus na forma de chuva de ouro. Palas Atena (1898) que, armada de égide, elmo e lança dourados, apenas deixa entrever, por ligeira abertura do elmo, a face de lábios finos e rubros, os olhos tenuemente glaucos e leve sugestão do queixo; que deixa cair sobre a couraça os cabelos louros, saídos sob o elmo; e que tem por trás, como fundo, silhuetas de figuras de vasos gregos. A Higeia (1900-1907), deusa que simboliza a Medicina e aparece representada com fácies oriental – de sobrancelhas escuras densas, lábios grossos, cabelo negro adornado com grinalda de flores – e veste vermelha, sobre a qual caem filamentos dourados de hera, várias voltas de serpentes, também douradas, que se entrançam nos braços. A alegoria da tragédia, a negro e de máscara na mão. A representação de Atena (1890), no friso da escadaria do Museu de Belas Artes, que, na sua túnica vermelha, égide dourada, cabelos negros caindo em madeixas, fácies oriental, simboliza a cultura helénica.
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Klimt, Alegoria da tragédia O fresco do Burgtheater (1886-1888) que tem o título Tespiskarren e representa Téspis, segundo a tradição o primeiro autor e intérprete de uma tragédia grega. Cuidadosa e sabedora, a Renata, nossa guia em Viena, falou do palácio, explicou o papel do Príncipe Eugénio de Sabóia na luta contra os Turcos, a importância do museu e seu enquadramento temporal. Como o nosso objectivo incidia sobretudo em Klimt e Schiele, procurou mostrar, no Museu, a
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pintura e escultura que se relacionasse, no tempo ou na estética, com esses dois artistas: impressionismo francês, movimento Biedermeier, o Jugendstil ou Arte Nova. Situado na dobragem do século, este último movimento artístico – em que pontificavam, na pintura, Gustav Klimt e Egon Schiele – propunhase superar as formas historicizantes e o conservadorismo da época anterior e criar um estilo contemporâneo. Essa nova postura artística tinha o seu centro na Secessão e em Klimt o seu principal mentor ou um dos mais destacados guias. Dele arranca o expressionismo austríaco que, em vez de focar o exterior e a vida das grandes cidades, centra a sua atenção na interioridade do indivíduo. Os olhos e atenção do relator destas notas fugidias incidiram de modo especial em alguns quadros e estátuas: os quadros Triunfo de Ariadne e Cinco Sentidos de Hans Makart, o Julgamento de Páris de M. Oppenheimer; e as esculturas Amor e Psyche e Filoctetes de Theo Friedl e de J. Nepomuk Schadler, respectivamente. Todas de temas ou figuras das antigas Grécia e Roma? Talvez as canoas do relator frequentem, assíduas, essas úberes águas e subrepticiamente a deformação profissional lhe tenha penetrado e inundado os poros.
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Depois da visita, ao chegar à loja das recordações e reproduções do Museu, começamos a notar que O beijo era uma presença constante: ele estava no lenço de cabeça e no lenço de mão, cobria as camisolas e os chapéus de chuva, adornava os copos e respectivas bases; ele envolvia as canetas e as esferográficas, estendia-se pelos lápis e pelas borrachas, enfeitava as capas dos livros; ele sorria nos postais, acenava nas carteiras e nas caixas, abanava os leques, encimava os blocos de notas e os envelopes. Em tudo aparecia, em quanto se comprava e se vendia. A estranha sensação de que, aos poucos, se verificara uma verdadeira proliferação de O beijo, como se brotasse de tudo o que era vida, cor, forma ou movimento; em tudo nos acenasse. O beijo preservava os cabelos dos desmandos do vento ou protegia os ombros da brisa fresca da noite. O beijo sorria nos seios jovens da donzela apetitosa ou acenava no peito denso da mulher madura ou da matrona já entradota. O beijo, em abanico frenético ou compassado, minorava os calores das mais afogueadas. O beijo abrigava da chuva e resguardava dos ardores do sol. As pessoas levavam à boca O beijo, assoavam-se com O beijo, bebiam em O beijo, marcavam os livros com O beijo, enviavam aos amigos O beijo. Escrevia-se com O beijo, desenhava-se
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em O beijo, apagavam-se os traços ou figuras da folha com O beijo. Uma verdadeira pandemia, como se O beijo houvesse ocupado irresistivelmente espaços, formas, cores. O almoço foi comido perto da Ópera e do Museu Albertina, com o autocarro a deixar-nos na Albertinaplatz, onde se encontra uma sugestiva fonte, a Fonte do Danúbio, que representa o famoso rio e cujas esculturas em mármore branco de Carrara são da autoria de Johann Meixner. Cada um escolheu o sítio e a ementa que mais lhe convinha para almoçar. Curioso foi verificar que a maioria se veio a reencontrar no Café Mozart, de chávena na mão e copo de água na frente. Mera coincidência apenas ou talvez também manifestação de gosto e paladar? De tarde, visitámos a Hofburg, em especial o Museu de Éfeso e o Museu de Belas Artes. O primeiro, situado na Neue Burg, contém algumas das descobertas arqueológicas de Samotrácia, incluindo um friso da célebre Vitória que se encontra exposta no Louvre. Guarda sobretudo boa parte dos achados das escavações realizadas na antiga, famosa e cosmopolita cidade que lhe deu o nome, Éfeso, sita na Ásia Menor, cujas ruínas ainda hoje surpreendem e maravilham o visitante.
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Éfeso, a mágica cidade, cheia de íntimos apelos. Pronunciam os lábios o seu nome, e logo o pensamento desfila pelo baú das memórias acumuladas. Daí que hoje os turistas e visitantes acorram aos milhares. Sítio que foi sede de uma povoação micénica, Éfeso foi uma das cidades fundadas pelas chamadas Migrações gregas e sua ocupação da zona costeira da Ásia Menor, formando as três regiões designadas, de norte para sul, de Eólia, Iónia e Dória – colonização que estava realizada já no séc. X a.C.
Plano das ruínas de Éfeso
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A Éfeso arcaica estendia-se entre o estuário do Caístro e a encosta ocidental do monte Píon — hoje Panayir Dagi —, onde deveria estar situada a acrópole. A cidade – que teria sido fundada segundo as prescrições do Oráculo de Delfos, ao profetizar que o lugar apropriado seria revelado por um peixe e por um javali selvagem – cresceu e a um núcleo inicial, amuralhado, outros se juntaram. Daí que Heródoto fale em "cidade antiga". Segundo Estrabão, Creso teria conquistado Éfeso e colocado nela uma guarnição lídia (14. 1. 21, 640); para Eliano, deu-lhe autonomia plena, depois de expulsar o tirano local, Píndaro1. A localização mudou diversas vezes devido ao contínuo afastamento das águas do porto. Hoje as ruínas do antigo porto encontram-se a dez quilómetros da costa. O desenvolvimento económico, urbanístico e social de Éfeso foi poderosamente influenciado pelo culto da Ártemis Efésica e deve muito ao seu famoso templo, o Artemísion. O culto de Ártemis, deusa grega da pureza, dos animais selvagens e dos espaços exteriores, aí se deve ter misturado com o da 1-
Varia Hist. 3. 26.
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deusa asiática Cibele, transformando-se na famosa Ártemis Efésica, a tão adorada deusa da fecundidade, representada com inúmeros seios e rodeada de leões e veados. O seu templo, o Artemísion, cresceu e aumentou a sua esfera de influência, com o andar dos anos, tornou-se o factor mais importante do desenvolvimento da cidade: funcionou como banco, aceitava dádivas, emprestava dinheiro do tesouro do templo. Os sondáveis — mas nem sempre bem perceptíveis — caminhos do cruzamento de povos, de interesses, de crenças. Como a deusa asiática Cibele tinha a forma de Xoan, ou seja era esculpida ou gravada sobre madeira, a mais antiga estátua da Ártemis de Éfeso devia ser também, possivelmente, de tipo xoânico, traçada sobre madeira sem grande pormenor. Depois a representação iconográfica da Ártemis Efésica acompanhou a evolução da escultura grega. E a análise atenta das muitas estátuas que a representam – sitas no Museu de Éfeso ou em outros – dá-nos a prova de que a fusão Cibele-Ártemis obteve morada definitiva na Ásia Menor. As pernas não têm movimento, como se estivessem unidas, ou melhor, fundidas. Por outro lado, se os muitos nódulos que apresenta no peito, já foram por vezes considerados seios, não deixa de ser surpreendente a aparência que
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apresentam com os testículos de touro, os testículos dos touros que lhe são sacrificados – interpretação que também já tem sido avançada e que a liga à fertilidade da Grande Mãe, já que produzem sémen. Os leões, touros e esfinges que pendem das suas vestes indicam-na como protectora dos animais. Por outro lado, os leões, que encontramos nos relevos de um e outro lado da deusa Cibele, são nestas estátuas representados nos braços ou nas mangas.
Ártemis Efésica
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Famoso santuário dedicado à deusa de Éfeso, no período helenístico era considerado uma das sete maravilhas do mundo. Pausânias, um viajante da antiga Grécia, atento, sensível e bem informado, apelidou a sua esplendorosa estrutura como a «maior maravilha das sete antigas maravilhas» e a «mais bela obra jamais criada pela mente humana». Por isso os Efésios sentiam certa relutância em deslocarem-se para mais perto da costa. O mais antigo templo, que dataria talvez do séc. VII a. C., deve ter sido destruído pelos Cimérios, durante o seu ataque a Éfeso. O mais conhecido é, no entanto, o chamado Templo de Creso – nome que lhe advém pelo facto de este monarca lídio ter ajudado na sua construção em meados do séc. VI, antes de ter sido derrotado por Ciro da Pérsia, em 546 a. C. Segundo a tradição, nesse Templo teria depositado Heraclito, que era natural de Éfeso, o manuscrito do seu livro – assim ficava a sua obra sob a salvaguarda da deusa Ártemis. No primeiro quartel do séc. VI a.C., os arquitectos Rhoicos e Teodoro erigiram em Samos – ilha que se situa mesmo defronte da cidade de Éfeso
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– um grandioso templo em honra da sua deusa protectora, Hera. Esse Heráion, em estilo iónico, ganhou muita popularidade e incitou os Efésios a empreenderem a construção de um templo a Ártemis que superasse em magnificência o da cidade rival. Entregaram essa tarefa aos arquitectos Quérsifron (Chersiphron) e seu filho Metágenes, naturais de Cnossos, Creta. Mas, ao que parece, porque o local escolhido era pantanoso como o de Samos, foi também convidado Teodoro, um arquitecto de grande sabedoria e engenho que trabalhara no santuário rival, o Heráion de Samos. Conceberam um templo díptero – aliás o Artemision e o Heráion de Samos parecem ter sido os primeiros templos cercados por um períptero duplo – , cuja edificação não durou menos de 120 anos. Como foi totalmente destruído por um incêndio e as ruínas arrasadas para nova construção, apenas parcialmente se pode refazer os planos e dimensões1. De qualquer modo, como os construtores posteriores utilizaram blocos seus nos alicerces do novo templo muitos dos detalhes do edifício de Creso foram preservados.
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- Cf. D. S. Robertson, A Handbook of Greek and Roman Architecture, gravura 39.
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Parece que a plataforma do estilóbato se elevava dois degraus, em vez dos usuais três do dórico. O templo, com base apenas no perímetro do estilóbato, devia medir talvez 55,1m de largura e 109,2m de comprimento. Todavia, como parece ter possuído um áditon, na parte de trás, teria uma maior extensão. Mediria 125m por 60m. As paredes eram de calcário local, embora recobertas a mármore. Ao contrário do que é tradição nos templos gregos, não estava orientado para o nascer do sol, ou seja não tinha a fachada principal voltada para oriente, mas para oeste, talvez seguindo uma prática anterior da Ásia Menor1. Na frente do templo havia duas fiadas de 8 colunas. Assim a colunata exterior teria 8 colunas de frente, talvez 9 na fachada traseira e, embora o seu número seja incerto, possivelmente 21 (ou 20) nos lados. As colunas eram de mármore. Possivelmente havia mais dois renques de colunas no interior, quer no pronaos, quer no naos ou cela, que talvez formasse um átrio aberto em volta de outro templo primitivo mais antigo2. O total de colunas devia ultrapassar a centena (tal como em Samos). A 1
- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo, 1998), p. 91. 2 - A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo, 1998), p. 92.
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entrada no templo fazia-se por um pórtico com considerável número do colunas que devia causar profunda impressão no visitante. A altura total das colunas do Artemísion, segundo Vitrúvio, deveria ser oito vezes o diâmetro mais baixo do fuste, exceptuada a base que era acrescentada e tinha altura equivalente a metade do diâmetro do fuste. Este apresentava caneluras em estilo dórico em número de quarenta e quatro a quarenta e oito. Os capitéis eram refinados, longos, com certos pormenores pouco elaborados e as volutas a projectarem-se como simples nervuras e decoradas com rosetas, em lugar das habituais espirais – pelo menos algumas delas. Em consequência do volume e alcance dessas volutas, o ábaco, muito baixo, é mais longo do que largo, na proporção de dois para um, e tanto ele como o equino continham vários padrões de ornamentação. Parece ter havido um espaçamento graduado das colunas na fachada principal, de modo a realçar a entrada no templo: assim as duas colunas centrais estavam, de eixo a eixo, distavam 8,62m uma da outra; o par seguinte cerca de 7,4m e os dois pares das extremidades. O diâmetro das colunas do par central excedia o 1,72m, mas parece ter-se reduzido, lateralmente, por esta sequência: 12,5cm, 15cm e
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2,5cm. Assim os espaços dos intercolúnios eram diferentes: aos 5,5m do central seguia-se para cada lado a sucessão de 4,41m e 4,5m. As colunas, inteiramente de mármore, tinham bases que assentavam em plintos quadrados altos, pelo menos algumas delas, e que eram constituídas por toro e espira, mais ou menos elaborados, por vezes com caneluras horizontais feitas ao torno, tanto um como a outra. Em algumas colunas, em especial as do pronaos, o tambor inferior do fuste tinha entalhe em relevo (cf. Robertson fig. 42). O telhado do templo era de telha de mármore nos rebordos; no resto estava coberto de telha de terracota. Este templo foi destruído no séc. IV a. C. Depois de destruição parcial por incêndio em 395 a.C. (cf. Aristóteles, Meteor. 3, 371a30), esse grandioso templo foi completamente arruinado por um incêndio provocado por Heróstrato (356 a. C.), um pirómano louco que dessa forma buscava notoriedade. O fim do Templo de Creso em 356 a. C. é lembrado na última estância do Canto II de Os Lusíadas (2. 113): Queimou o sagrado templo de Diana, Do sutil Tesifónio fabricado, Horóstrato, por ser da gente humana Conhecido no mundo, e nomeado.
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No mesmo dia em que se verificou o incêndio, diz a tradição que nasceu Alexandre Magno. Teria sido por isso, diz a lenda, que Ártemis não protegeu o seu templo, ocupada que estava com a assistência ao nascimento da criança. Rapidamente os Efésios empreenderam a sua reconstrução, no mesmo local, de novo templo iónico que, segundo Plínio, teria demorado 120 anos a ser concluído – tempo que talvez se aplique melhor ao templo de Creso1.
Plantas dos Templos dos sécs. VI e IV a.C.
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- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo, 1998), p. 148.
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Os arquitectos originais desse templo parecem ter sido Paiónios de Éfeso e um escravo do templo chamado Demétrio, embora haja a possibilidade de acréscimo posterior de que se encarregou Dinócrates. Na sua construção, foram aproveitados os alicerces e os materiais e ruínas do edifício anterior, o que obrigou à elevação da plataforma. Assim, passou a ter mais do que dois degraus do templo arcaico e um plano sensivelmente igual ao do anterior, apenas com o acrescento de um opistódomo e de uma terceira fiada de colunas na parte da frente, embora seja possível essas inovações fossem já acrescento da restauração subsequente ao incêndio de 395 a.C. Além das dimensões, o projecto do séc. IV a.C. mantém também a peculiaridade das colunas com relevos no pronaos, embora neste Artemísion tardio as figuras, maiores do que o tamanho normal de uma pessoa, além de esculpidas em relevo nas bases cilíndricas, estavam também postadas sobre pedestais quadrados – duas formas talvez usadas em locais diferentes do pronaos ou do templo e não juntas na mesma coluna. Plínio (NH. 36.95), referindo-se talvez ao templo do séc. IV a.C., fala em 36 colunas de bases esculpidas e informa que a alturas dessas colunas era de 60 pés – ou seja, de 17,65m.
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O frontão – e parece ser novidade do último templo – apresentava três aberturas no tímpano. Possivelmente um expediente para reduzir o peso da pedra do grande vão central. É pouco provável que nessas aberturas, ou na sua frente, houvesse esculturas, como indicam algumas reconstituições1. Conta-se que, impressionado com a beleza e magnificência do santuário, quando por ali passou a caminho da Pérsia, Alexandre Magno manifestou o desejo de tomar a seu cargo e de financiar a prossecução dos trabalhos e seus custos (334 a.C.), com a condição de nele poder gravar o seu nome. Segundo Cúrcio Rufo, numa biografia de Alexandre, não teria agradado aos Efésios tal intenção e preferiram renunciar à sua oferta, mas para evitar afrontar o Imperador com uma recusa, com recurso à adulação, alegaram que um deus não podia erigir um templo a outro deus. Então Alexandre estipula que os impostos que os Efésios tinham pago até aí aos Persas fossem devolvidos para financiar a construção do novo templo. Primeira grande estrutura a ser completamente construída em mármore e o maior edifício do mundo
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- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo, 1998), p. 148
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grego antigo, o Templo de Ártemis superava o Pártenon, em superfície, quatro vezes.
Reconstituição do Artemísion As centenas de milhar de peregrinos que anualmente acorriam ao santuário aumentaram de tal modo a sua riqueza que o primeiro banco do mundo parece ter surgido aí. Hoje, infelizmente, dessa magnificente estrutura que era o Templo de Ártemis Efésica, apenas ruínas restam e, das cento e vinte e sete colunas que o rodeariam, apenas um fuste se mantém de pé, e em sítio alagado de água em boa parte do ano. O templo foi saqueado pelos Godos no século III, secundados depois pelos bizantinos. Podem observar-se algumas das suas colunas originais em Agia Sophia em Istambul.
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A solidão da única coluna do Artemísion Éfeso atingiu o seu apogeu depois de 129 a. C., quando os Romanos criaram a província da Ásia e estabeleceram na cidade a capital.
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Sítio arqueológico do tempo romano1 Tinha então mais de duzentos e cinquenta mil habitantes, número apenas superado por Alexandria. 1
- Os números do mapa correspondem aos seguintes monumentos: 3- Ginásio oriental. 4- Termas de Vário. 5Aqueduto e Ninfeu. 6- Agora pública. 7- Basílica. 8- Odeon. 9Templos imperiais. 10- Edifícios oficiais e Pritaneu. 11Monumento de Mémio. 12- Fonte. 13- Fonte de Polião. 14Templo de Domiciano. 15- Galeria das inscrições. 16- Fonte de G. Lecânio Basso. 17- Porta de Héracles. 18- Rua dos Curetas. 19- Fonte de Trajano. 20- Torre redonda. 21- Termas de Scholastika. 22- Latrina. 23- Templo de Adriano. 24- Casas em socalcos. 25- O Octógono. 26- Fonte bizantina. 27- Bordel. 28Porta monumental. 29- Biblioteca de Celso. 30 e 31- Porta e Agora de Mazeu-Mitridates. 32- Templo de Serápis. 33- Rua de mármore. 34- Teatro. 35- Fonte helenística. 36- Estrada do porto. 37- Ginásio do teatro. 38- Arena dos jogos de Verulano. 39- Ginásio e palestra do porto. 40- Termas do porto. 41- Igreja da Virgem Maria. 42- Termas bizantinas. 43- Acrópole. 44Estádio. 45- Ginásio de Védio.
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As ruínas que hoje se podem observar datam desse período. S. Paulo reconheceu o significado dessa impressionante metrópole e aí chega em 50 A. D. para converter um pequeno grupo de Efésios à nova religião, aos quais depois dirige uma epístola. Alguns Efésios viram na expansão do Cristianismo uma ameaça para o culto de Cibele e de Ártemis e forçaram S. Paulo a partir. As escavações de Éfeso foram iniciadas, para o British Museum, pelo engenheiro inglês J. T. Wood que descobriu a Porta de Magnésia e conseguiu encontrar a localização do Artemísion – o famoso Templo de Ártemis – cuja escavação foi concluída em 1904 por D.G. Hogarth. A Áustria, através do Instituto Arqueológico Austríaco, também faz escavações em Éfeso desde 1895, primeiro sob a direcção de Otto Benndorf, que adquire grande parte dos terrenos em que se situava a cidade antiga, e depois sob a supervisão dos Professores Keil, Miltner, Eicher e Vetters que revelam grande parte das ruínas e traçado dessa surpreendente e movimentada cidade greco-romana. A partir de 1954, também os Turcos realizam escavações no local, sob a superintendência do Museu de Éfeso que o Governo Turco – nacionalizada a terra em que estava implantada a estação arqueológica – criou para
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escavar, acolher os achados descobertos, proceder ao seu estudo e realizar os devidos restauros. Se esse Museu é o destino natural das mais recentes descobertas e se os achados encontrados pelos Ingleses até 1905 se encaminharam para o British Museum, grande parte do que a Escola Austríaca encontrou entre 1895 e 1923 – o grosso das escavações – foi para Viena. É com esse fundo que mais tarde, em 1978, se cria e abre o Museu de Ephesos da Neue Burg, uma das visitas que os Estudiosos privilegiaram.
Monumento Pártico. Reconstituição Além de maquetas, reconstituições e muitos fragmentos arquitectónicos, aí se expõem os
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excelentes relevos do colossal friso comemorativo da vitória de Lucius Verus sobre os Partos em 165 A.D., com uma reconstituição do monumento em gesso.
Cena do Monumento Pártico
Outra cena do Monumento Pártico
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O Museu de Belas Artes é um maravilhoso tesouro, tanto pela arquitectura do edifício (18711890, com concepção de Gottfrid Semper) como pela quantidade e qualidade das colecções aí expostas. Uma das grandes atracções de Viena, é visitado anualmente por mais de milhão e meio de pessoas. Entrada a porta os olhos irresistivelmente elevam-se pela sumptuosa rotunda e em seguida sentem-se atraídos para a monumental escadaria que leva aos andares superiores e para a bela escultura de Antonio Canova que, a meio dessa escadaria, representa Teseu em luta com um centauro (1805).
Teseu luta com Centauro, de Canova
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Depois, aos poucos, os pormenores e as cores impõem-se: as cores dos mármores e das pinturas decorativas da cúpula e dos frisos da rotunda e da escadaria – frisos da autoria de Klimt. E de novo me encontrei com as cores, ora fortes, ora suaves, com a profusão de dourados, com os esbatidos, com os traços finos e delicados, com os cabelos negros e rostos orientalizados que são característica desse famoso pintor. Os olhos demoraram-se insensivelmente – a formação profissional de cada um, ou mesmo deformação se se quiser, é quase segunda natureza – nas figuras que representam o Egipto e o classicismo helénico, Atena. A primeira, um nu feminino, com o seu característico cabelo e profusão de colares e pulseiras, segura na mão o símbolo da vida; por trás uma íbis de longas asas doiradas. Atena, com seus olhos negros e sobrancelhas densas, olha-nos de frente, conhecedora e íntegra. Usa Vestido rubro e a sua característica égide. Os cabelos negros caem em madeixas sobre a couraça e o vermelho da veste. Numa das mãos poisa a mancha negra de uma Nike sugerida e na outra, ornada de artísticas pulseiras, empunha a lança, braço estendido quase em paralelo à grega que sublinha a cor escura, raiada de veios claros, dos
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frisos de mármore e os separa da pintura cor de vinho do fresco, onde o verde de uma delicada hera serpenteia.
Klimt, Atena – Friso da escadaria O rés do chão do Museu apresenta escultura, artesanato e artes aplicadas, artes decorativas europeias (lado esquerdo); do lado direito, ficam as colecções gregas, romanas (com destaque para uma gema do tempo de Augusto em que o Imperador
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vestido de Júpiter se senta ao lado de Roma), egípcias e do Próximo Oriente. O primeiro andar recolhe a pinacoteca, com uma soberba exposição permanente de pintores, de quadros e de esculturas; o segundo andar guarda as colecções individuais e o gabinete de numismática; mas ainda a colecção de antigos instrumentos musicais. Foi uma bela e selecta visita, a correr, é evidente: os pintores eram muitos e substancial a obra representada. Serviu, contudo, para termos uma ideia geral e abrir o apetite para uma futura visita mais calma e dirigida. Evocou-se o passado, revivemos a cada passo a história, naqueles rostos, ora tensos e sisudos, ora prazenteiros e aliviados. A sensibilidade sentiu-se estimulada e voou através dos recantos da memória. De qualquer modo, vimos com mais cuidado Breughel, de quem o Museu possui a colecção mais completa das suas obras, em especial as Brincadeiras de Crianças (1560), o Transporte da Cruz (1563), a Torre de Babel (1563), os Caçadores na Neve (1565), a Matança dos Inocentes (c. 1566), a Dança de camponeses (1568), o Banquete nupcial (1568), As estações. Merecem-me algumas palavras mais Brincadeiras de crianças em que foram pintadas mais de duzentas e cinquenta crianças, a brincar às cavalitas, com arcos e tonéis, com bocados de
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madeira, de osso. O rosto dessas crianças, a sua expressão, não permite estabelecer a sua exacta idade. Será que o pintor pretendeu deixar um aviso para o perigo de desperdiçar a vida em brincadeiras ou passá-la como brincadeira de criança? O Transporte da Cruz apresenta uma multidão que conversa, brinca, discute, enquanto se dirige para o local da crucifixão. No meio dela, quase se perde Cristo caído sob o peso da cruz. Ao fundo, à esquerda, vê-se a cidade de Jerusalém e o Gólgota, à direita. No centro, em evidência, um rochedo encimado por um moinho. A Torre de Babel aparece numa zona costeira, em nítida adaptação ao comércio marítimo de que os Holandeses obtêm a sua riqueza. E desse modo o pintor introduz elementos e referências à realidade do seu tempo.
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Breughel, Torre de Babel Por essa época, afluíam a Antuérpia comerciantes estrangeiros, produtos diversos; estavam activos os novos grupos religiosos. Todo esse movimento desorientou os habitantes da cidade e criou-lhes problemas de convivência e entendimento. Daí que o conhecido episódio bíblico da Torre aparecesse como uma imagem do que estavam a viver. Os Caçadores na neve vive de duas cores frias – o branco da neve e o verde cinza do céu e do gelo –,
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nas quais se recortam as silhuetas negras das pessoas, das árvores, das aves, dos cães. O sol já se pôs ou está oculto pelas nuvens, a neve cobre o solo e a vegetação, até aos cumes gelados ao fundo. A Matança dos Inocentes, mais um quadro que retira o tema de outro episódio bíblico famoso: a ordem de Herodes para que fossem mortos todos os recém-nascidos do sexo masculino, naturais de Belém. A paisagem da cena é nitidamente flamenga e os cavaleiros têm as lanças na vertical, como era característica dos Espanhóis. O Banquete nupcial decorre numa quinta: a parede de fundo é constituída por medas de palha de cereais, dois milhos de trigo e um ancinho dependurados evocam o trabalho da ceifa. A noiva encontra-se sentada frente ao pano preto e por baixo da coroa nupcial, mas o noivo não aparece claramente identificado. Os pratos são transportados e servidos em cima de uma porta, ainda com as dobradiças. Duas pessoas têm a colher na boca, outras bebem por canecas, uma criança, em primeiro plano, lambe os dedos.
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Breughel, Banquete nupcial (pormenor) O terrível deus que é Cronos forçou-nos a uma visita necessariamente rápida. Olha um quadro aqui, mais atenção a um pintor ali, pára mais além e dois passos atrás para admirar e beleza expressiva de um rosto. Os olhos não deixaram todavia de se ir fixando em um ou outro quadro, à medida que tragávamos salas de pintor para pintor. Assim, irresistível íman os atraiu para contemplar a Virgem com S. João e o Menino de Rafael; Diana e Calixto, a Virgem cigana (1510) e o belo quadro Ninfa e Pastor (1570-1575) de Ticiano; a esplêndida Adoração da Santíssima Trindade de Dürer; e a exuberante Susana e os Velhos (1555) de
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Tintoretto, uma das maiores obras do maneirismo veneziano.
Tintoretto, Susana e os Velhos (pormenor) Merece também ser aqui recordado – mais uma vez a deformação profissional do relator – o excelente quando Vénus e Adónis de Bartholomäus Spranger.
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Bartholomäus Spranger, Vénus e Adónis (pormenor)
Rubens, Manto de peles
É evidente que se detiveram também na célebre série de quadros alegóricos de Giuseppe Arcimboldo que representam elementos da natureza e estações do ano, embora sem a admiração que muitos lhe dedicam. Já essa admiração toda se concentrou no Autoretrato (1652) de Rembrandt e no retrato da mãe do artista, representado na figura da profetiza Ana; em A Oficina do Pintor (c.1665) de Johannes Vermeer, em que o artista pinta um modelo que representa Clio – talvez para exaltar um acontecimento histórico
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qualquer. E a curiosidade da atenção não podia passar sem se deter – Rubens do meu fascínio não o permitiria – no corpo nacarado e polpudo que a mulher nua, no Manto de peles (c. 1635-1640) – o melhor Hélèna Foument –, tenta cobrir, enquanto fixa em nós os olhos brilhantes e promete os lábios carnudos. Em frente do Museu de Belas Artes, obra dos mesmos arquitectos (1871-1891) e com idêntico aspecto exterior, ergue-se o edifício que alberga o Museu da História Natural onde se acolhe uma das melhores e mais valiosas colecções de história natural da Europa: mineralogia, paleontologia, pré-história, botânica, zoologia. Às cinco horas regressámos ao Hotel Ananas. O resto do dia seria a gosto de cada um. Um grupo, não grande – casal Patrício, casal Ferreira, a Fernanda Requixa e a Helena Vieira – tinham conseguido, através de uma amiga das duas últimas, bilhetes para a ópera La Clemenza de Tito de Mozart que se apresentava na Volksoper, porque a Staatsoper tinha a lotação esgotada havia meses. Os primeiros acordes davam-se às oito horas, pelo que o tempo para cada um se arranjar e jantar não era folgado. Tínhamos de estugar o enfarpelamento e o garfo para estarmos prontos a horas condizentes. Viena
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não tem módico tamanho e o teatro ficava arredado do centro, em hora que não era a mais calma em trânsito A encenação, modernizada, fez de Tito um ditador do III Reich, mas os actores-cantores eram bons e a música pertencia afinal a Mozart. Desse modo, o grupo sempre conseguiu tomar o cheiro da ópera em Viena. No dia seguinte, 24 de março, pelas nove horas, com a Renata a dar os “Bons Dias”, estávamos todos prontos a entrar para o autocarro, almoçados, quartos abandonados e chaves entregues, malas no átrio. Já pela tarde partiríamos para Salzburgo. Saídos às nove, à medida que fazíamos o percurso panorâmico pela Ringstrasse, a Renata dava-nos informações sobre a Áustria: que oitenta por cento dos seus habitantes são católicos; que em Viena cada bairro tem os seus jardineiros e uma quantia para tratar dos seus jardins; sobre a educação e o apoio à cultura, sobre o sistema de saúde. E enquanto a escutava, a memória sobrepunha, impositiva e sem direito a resistência, as imagens e edifícios da característica Arte Nova de Viena, tão diferente da que encontrei em outras cidades, onde abunda; por exemplo, Barcelona. E o que a retina dos
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olhos atentos, extasiados, seduzidos, guardou na memória – cores e volumes, linhas e formas, contornos e pormenores, delicadeza e finura de desenho, cuidado e minúcia na ornamentação –, tudo nítido, bem nítido, o fio desdoba e passa o ecrã recordativo: o Edifício da Secessão ou ‘Couve Dourada’ – assim chamada devido à cúpula de filigrana dourada que a caracteriza –, que foi concebido por Joseph Maria Olbrich (1898) para receber exposições de arte da vanguarda e que contém, na sua cave, o famoso Friso Beethoven de Gustav Klimt e de onde três mochos nos olham, concentrados, seguros, insistentes.
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Edifício da Secessão Os Apartamentos Wagner (1899) – que tiram o seu nome do seu arquitecto Otto Wagner – revêemse, quais Narcisos, no rio Wien e um deles, a Casa Mayólica, apresenta decoração cerâmica a revestir a fachada, com desenhos florais coloridos, em que predomina o rosa, o azul e o verde; o outro, o nº 38 tem belos e delicados motivos dourados Jugendstil de Kolo Moser. Esse famoso arquitecto foi ainda autor da Postsparkasse, uma repartição da caixa
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económica que é obra prima com trabalho primoroso e cuidado até ao pormenor, dentro e fora; do Pavilhão Kaiser (1899), com a dignidade imperial das suas figuras sisudas. Foi autor das instalações da antiga estação ferroviária e actual estação do metro de Karlsplatz (1898-1899), uma obra famosa, em que se harmonizam as linhas simples do edifício com o verde cúprico da curvatura dos telhados, os girassóis que decoram as paredes e o dourado que ornamenta o mármore e as goteiras. Foi autor de duas atraentes villas, uma construída entre 1886 e 1888, que incorpora elementos clássicos, como colunas iónicas, e apresenta profusão de cor; a outra (construída cerca de vinte anos depois), ornamentada em estilo geométrico, com painéis azuis e cabeças de prego, e decorada com vidros de Kolo Moser. Autor também da Kirche am Steinhof (1905-1907), magnífica igreja concebida por si e decorada por Kolo Moser (18681918), foi projectada para ocupar os terrenos de um antigo hospital de doentes mentais nos arredores da cidade; apresenta exterior com ornatos de cabeça de prego e uma cúpula de cobre; contém pilares em espiral que, encimados por festões, suportam o pórtico; na fachada – em cujo topo duas figuras, esculpidas por Richard Luksch, se sentam comodamente em cadeiras desenhadas por Joseph
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Hoffmann – quatro colunas de pedra suportam sugestivos anjos de Othmar Schimkowitz (18641947), além de outros pormenores e curiosidades. O interior, com as suas capelas laterais, os seus frisos dourados e brancos, o seu tecto cravejado de pregos de ouro, iluminado pela luz coada dos vistosos vitrais azuis de Kolo Moser, todo se concentra num harmonioso altar de Remigius Geyling. E, entretanto, o autocarro percorria a Ringstrasse e os edifícios passavam por nós, num deslizar contínuo, em última despedida, uns mais solenes e hieráticos, mais alegres e coloridos outros, outros ainda, nas suas linhas clássicas ou medievais, a procurarem aparentar mais idade do que a sua real. E assim por nós passou a Igreja de S. Carlos Borromeu, de estilo barroco, erigida em consequência de um voto feito pelo Imperador Carlos VI por ocasião da peste de 1713, tem um pórtico a preceder a entrada principal com seis colunas iónicas e um frontão em relevos (de Giovanni Stanetti) que representam os padecimentos dos Vienenses durante a referida peste. A ladear esse pórtico, entre ele e as duas torres laterais – no topo delas olham-nos a Perseverança, da da esquerda, e a Coragem, da da direita –, erguem-se duas colunas, inspiradas nas de Trajano e Marco Aurélio em Roma e encimados por
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dois faróis. Os fustes das duas colunas contêm relevos em espiral que representam cenas da vida de S. Carlos Borromeu. O santo padroeiro oferece também o tema das pinturas da cúpula (1725-1730) e dos relevos em gesso do retábulo do altar mor, as primeiras a simbolizarem a Apoteose do Santo e os segundos a representarem a elevação de S. Carlos ao céu numa nuvem de anjos. A Ópera, a Staatsoper, de estilo neo-renascença, é uma harmonia de linhas e volumes, é cultural concentração musical de sons, cores, movimento; ladeiam-na duas graciosas fontes da autoria de Hans Grasser, uma delas representando a sereia Lorelei e, na parte inferior, as figuras da Dor, do Amor e da Vingança. Nesse denso edifício dourado se fixam os olhos com mais demora, possivelmente a passar no fio da memória, em rápidas cintilações, as suas cinco estátuas de bronze da fachada principal que simbolizam o Amor, o Humor, a Fantasia, o Drama, o Heroísmo; a recordar a sumptuosa escadaria em mármore e as muitas estátuas (sete artes liberais de Josef Gasser), relevos e pinturas que a ornamentam; talvez a rever imagens o Salão Schwind com a sua decoração de cenas de óperas (pintadas por Moritz von Schwind) e os seus muitos bustos de compositores e maestros, entre os quais um de
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Mahler por Rodin (1909). E a atenção recolhe-se na grande sala de representação. O Burggarten, com os monumentos a Goethe e Mozart (1896, obra de Viktor Tilgner) e as artísticas estufas (obra de Friedrich Ohmann), o volumoso complexo da Hofburg e da Neue Hofburg. E, à vista daqueles edifícios, a memória, que nos forma, nos faz sair da meninice e torna homens, com camadas sucessivas de sedimentação – de leituras, de imagens colhidas em postais e na televisão, de filmes, de fotografias e estampas, de palavras, de narrações de amigos –, a memória, irresistível, começa a desbobinar edifícios, fachadas, praças, instituições, obras de arte, pormenores: o palácio imperial, cuja solene e majestosa fachada abre para a Praça de S. Miguel, com uma artística porta em ferro forjado, ladeada por quatro grupos escultóricos e duas fontes que simbolizam “O poder do mar” e “O poder da terra”; o harmonioso pátio interior do Palácio com o seu relógio e a estátua do Imperador Francisco I, ao centro, na pose de imperador romano; a colorida Porta dos Suíços (1532-1552) que dá acesso ao Pátio dos Suíços e à Capela do Palácio, construída em 1296 e modificada em meados do século XV, com estatuária e relevos góticos; o Museu Imperial que guarda tesouro, famoso e sem preço, de obras de
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joalharia, quer religiosas, quer profanas; a Biblioteca Nacional (1723-1735) que, com uma exuberante mas harmoniosa arquitectura, frescos nas abóbadas (Daniel Gran) e possuidora de um fundo, em livros, em mapas e globos, de valor incalculável (mais de dois milhões e meio de espécimes), é fascínio para os olhos e para o espírito; o Museu Albertina, com rica e volumosa colecção de gravuras, desenhos e aguarelas, uma das melhores do mundo; o interior gótico da Igreja dos Agostinhos com o vigoroso e surpreendente túmulo neoclássico de Maria Cristina, obra de António Canova. E a memória, indomável cavalo à solta em campo aberto, não pára nunca a sua cavalgada, e já nos sentou na Escola Espanhola de Equitação, em cuja pista – com 46 colunas, decoração em estuque e tecto apainelado – imperam perícia, donaire e elegância de cavalo e cavaleiro. Este, com seu traje a rigor – calça de pele de gamo, botas a cobrir o joelho, barrete bicorne preto, jaqueta cor de café – forma com a sua montada um todo homogéneo que, nos movimentos, se harmoniza também com os outros pares, num só bloco que, sendo vário, actua uníssono e concertado, como se fora um todo único. Quedou-se agora o desdobar do seu fio vertiginoso, e a memória apurou os ouvidos e fixou-
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se nos sons cada vez mais nítidos que fascinam e, aos poucos, extasiam os sentidos tensos e expectantes. Anos sucessivos de audição sedimentada à escuta. E esses sons, suaves, que seduzem e despertam todos os poros da emoção, distingue-os bem essa sedimentação de anos que se sucedem: o coro dos Pequenos Cantores e a Orquestra Filarmónica de Viena que todas as manhãs de domingo, durante a missa das nove e meia, actuam na Capela do Palácio – uma das mais características e emocionantes manifestações estéticas da cidade. O balouçar do autocarro na Ringstraase, acorda-nos dessa escuta extasiada e desperta-nos para os edifícios que continuam a acenar-nos, mais perto ou mais distantes, mas impondo-se sempre na fita que desnovela. O Parlamento ou Reichstag (18741883, de Theophile Hansen), com uma fachada de oito colunas coríntias, encimadas pelo respectivo frontão que representa a promulgação da Constituição pelo Imperador Francisco José I; ladeiao uma balaustrada na qual se sentam pensativos sábios gregos e romanos e de onde quatro domadores de cavalos parecem querer domar e suster os sonhos; na frente do Parlamento, eleva-se uma fonte monumental, um harmonioso grupo escultórico, obra de Kundmann (1902), em que
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sobressai a deusa Palas Atena sobre um tronco de coluna. Defronte, do outro lado da Circular, o Volksgarten, ou Jardim do Povo – um dos mais belos parques de Viena –, onde se encontra o monumento ao poeta Franz Grillparzer e onde sobressai e se impõe, na simplicidade de linhas do seu neoclassicismo perfeito, o Templo de Teseu (1823), concebido por Peter von Nobile para acolher a estátua de Antonio Canova que representa o herói em luta com um centauro, que hoje se encontra na escadaria do Museu de Belas Artes e a que já aludimos. O edifício da Câmara ou Rathaus (1872-1883, obra do arquitecto Friedrich Schmidt), em estilo neogótico com elementos renascentistas, tem uma sumptuosa Sala de Sessões e eleva-se numa torre em agulha de cerca de cem metros, em cujo topo se exibe um soldado de arnês e estandarte, com cerca de 3,5 m – a que o povo significativamente resolveu apelidar “Homem da Câmara”. Na sua frente um exuberante jardim onde ponteiam monumentos a antigos autarcas. O Burgtheater (1888) ou Teatro Nacional, um dos mais antigos, tradicionais e célebres teatros do mundo, mostra uma bela fachada neoclássica e uma vistosa escadaria; as diversas estátuas que
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ornamentam as suas fachadas exaltam poetas famosos e personalidades relacionados com o teatro. A Universidade, ou Alma Mater Rudolfina, foi fundada em 1365 por Rudolfo IV; o actual edifício (1873-1883, de Henrich Ferstel) é de estilo neorenascentista. Perto, fica a “Casa das Três Raparigas” (Dreimäderlhaus, 1803) que é uma típica casa burguesa dos princípios do século XIX e está associada à biografia de Schubert: conta tradição lendária que o seu nome derivaria das três namoradas (“drei Mäderl”) que o compositor teria, embora a verdadeira razão de assim se chamar está na opereta dos anos vinte Dreimäderlhaus que utiliza canções de Schubert. O antigo Metropol que foi local e sede da Gestapo. Não se detém a memória, nem refreia o seu galope. Talvez procure ultrapassar as sinistras sombras que por momentos a assediaram. Projecta agora no ecrã imagens várias de edifícios religiosos: a Igreja Votiva, templo de estilo neogótico construído entre 1856-1879, segundo planos de Heinrich Ferstel, no local onde o Imperador Francisco José escapou a um atentado em 1853; é a consequência do voto então feito e salienta-se por setenta e oito pinturas
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nas janelas – vitrais da autoria de Geyerling. A Igreja de Maria am Gestade que, referida pela primeira vez em 1158, foi reconstruída em estilo gótico, nos séculos XIV e XV. A Igreja de S. Roberto, fundada em 740, documentada desde 1161 e remodelada várias vezes, é o mais antigo edifício sacro que se conserva em Viena: a capela mor é do século XIII, a abóbada da nave sul do XV; conserva vitrais barrocos nas janelas do coro. A imagem do patrono do templo, padroeiro também dos comerciantes de sal – e tem uma selha de sal de braçado – lá está atenta, junto à torre românica, a auscultar o Danúbio – agora Canal do Danúbio desde que o leito do rio foi desviado mais para oriente e regularizado – e a olhar os longes, como a querer afastar de vez os horrores e sevícias do nazismo e suas consequências. O autocarro percorria agora a zona moderna de Viena. Deixáramos a Ringstrasse e dirigíamo-nos a rápida visita à zona do Prater – em tempos coutada de caça da família real e da nobreza e aberta ao público por Francisco II em 1766 –, onde se encontra o famoso e conhecido estádio de futebol, o Estádio do Prater, as pistas de competição hípica, moderna piscina olímpica e outras instalações desportivas. Aí se situa o “Wurstelprater” ou tradicional parque de atracções de Viena, onde, entre outros divertimentos,
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pontifica a Roda Gigante, construída em 1896-1897 pelo engenheiro Walter Basset, que foi e continua símbolo da Exposição Universal de 1897. Ao lado fica a estação do combóio Liliput que permite aos mais comodistas e cansados gozar pachorrentamente os frescos verdes de relvas, árvores e jardins do parque do Prater, com uma extensão de cerca de quatro quilómetros desde a Roda Gigante ao Estádio. Visitámos a Uno City ou os cinco edifícios das Nações Unidas – a simbolizar os cinco continentes –, de diferente altura, uma zona bem vigiada, onde trabalham cerca de cinco mil pessoas. Passámos pela Torre do Danúbio com os seus restaurantes giratórios. De caminho, deleitámos os olhos no Parque da Cidade, com eles respirámos o ar puro que ali se sente e admirámos vários monumentos que nele ponteiam: a estátua a Bruckner, a dourada figura de Johann Strauss empolgado no seu violino e emoldurado no seu arco de mármore branco de ninfas e efebos. O recolhimento e concentração de Franz Lehár que se encaixilha nas colunas inclinadas. O hieratismo de Franz Schubert que, do alto do seu pedestal, olha ao longe e parece escutar algo que vem da distância – será o revolutear da truta e já compõe mentalmente o célebre quinteto para piano que desse
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peixe tem o nome? Só não consegui dar um passo de dança no Kursalon, por impedimento do tempo, também e sobretudo por perrice de pernas. Deu ainda o rápido percurso para observar a casa dos compositores, onde viveu Johann Strauss e compôs a valsa que mais tarde veio a tomar o nome de Danúbio Azul; e para apreciar o rio Danúbio, que atravessámos e que de azul já não tem muito, talvez por patine do tempo ou porque o céu não estivesse de feição nesse dia. Com os olhos fixos nesse mítico curso de água, deu a sensação que dele emergiam sons, uma música conhecida, insensível de início, depois envolvente, de todo irresistível, possessiva, uma melodia que se libertava da memória, se impunha. Parecia nascer do próprio rio e prendianos, atraía os ouvidos e os olhos, que se fixavam nas águas. As ondícolas, em revérberos, enlaçavam, deslaçavam, rodavam, rodopiavam, ora vertiginosas, ora calmas e hieráticas, como em baile de gala. Será que as ondas sentem os sons que secretamente a dourada imagem de Johann Strauss arranca do seu violino e um impulso interior as impele e agita em ondas e ondinhas? Ou são os peixes que ouvem e entendem essa música e todos se empolgam nas voltas da valsa? Ou apenas um baile, ou mero ensaio, no Kursalon, de onde distantes chegam os sons? Ou
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não mais do que construção da memória, puro arrebatamento seu?
Palácio de Schönbrunn: a Fonte de Neptuno A manhã terminou com a visita ao Palácio de Schönbrunn, o palácio de verão da família imperial que, no seu dourado, todo se recorta e sobressai no denso verde que o envolve. Local do antigo Moinho, depois Castelo de Kratter, Maximiliano II adquiriu essas propriedades em 1568, mandou transformar os antigos edifícios em pavilhões de caça e aí estabeleceu um jardim zoológico. O nome deriva da formosa e fresca fonte (Schöner Brunnen) que abastecia de água o palácio. O actual edifício, depois da destruição do anterior pelos Turcos, começou a
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ser construído, segundo desenho de Johann Bernhard Fischer (1692-1693), por encargo de Leopoldo I, mas só ficou concluído em 1775, depois de acrescentos e obras várias devidos a diversos arquitectos. É um belo palácio, com extensos jardins semeados de estátuas alegóricas e fontes (Fonte das Ninfas, fonte “Schöner Brunnen”, a artística e monumental fonte de Neptuno) e, na colina, o perfil esbelto e convidativo da Glorieta, com um salão central de grandes janelas e um terraço de onde se goza de esplêndida vista de Viena. Com capela e teatro, o Palácio estende-se por um total de 1441 aposentos, 390 dos quais salas de habitação e representação da corte, magníficos aposentos em estilo rococó, com realce para a Grande Galeria (pinturas a fresco de Guglielmi no tecto e sumptuosos candelabros); para a Pequena Galeria com decoração de Albert Boller e para a Sala dos Cavalos com cobres gravados; para o Salão de Porcelana, a Sala das Tapeçarias e o Salão Vermelho; para a Sala dos Milhões, o quarto de dormir e o escritório de Francisco José, onde se encontram os retratos do Imperador e da imperatriz Elisabeth.
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Palácio de Schönbrunn Hoje esses magníficos aposentos, salas e salões servem para as recepções oficiais. Não foi possível uma visita ao interior do palácio: o tempo escasso e obras em curso no edifício. Apenas uma volta atenta e interessada pelos jardins, aqui contemplando uma estátua, ali apreciando a arte e pormenor de uma fonte, além a cuidada disposição dos canteiros ou a geométrica colocação das árvores, mais longe as artísticas estufas. Atentos a esses pormenores e curiosidades, nem demos a princípio pela música em crescendo, ritmada e cadenciada, que se escutava e vinha nem se sabe de onde – das árvores? Dos canteiros? Da Fonte de Neptuno? Do sorriso, ora travesso, ora contido, das estátuas? Aplicados os ouvidos, essa atenta concentração começa a distinguir progressivamente os sons e a melodia da valsa do Imperador e vinha do interior do Palácio. Cada vez mais nítida, parece que todo o edifício ressoava e volteava na profundidade dos espelhos.
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Sem darmos por isso, o tempo escorrera na ampulheta dos minutos e o meio dia aproximava-se célere. E a Renata, metódica e pontual, como qualquer austríaco, marcara as doze horas para a despedida. Havia que estugar o passo, tanto mais que convinha atender à necessidade de muitos: precisavam de ir às ‘fisico-hidráulicas e ainda queriam aconchegar o estômago com uma bucha e uma bebida quente, porque seguia-se a autoestrada para Salzburgo e o almoço ainda vinha longe. E, pelas doze horas, nos despedimos da Renata – excelente guia, muito viva e boa conhecedora dos sítios e história de Viena. E, rumo a Salzburgo, da cidade abalámos, de olhos saudosos já e de todo insatisfeitos do pouco que dela levávamos.
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Salzburgo: Centro religioso e Fortaleza
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O corpo e o sabor dos sons
Levou-nos a Salzburgo um autocarro sereno e confortável que um conhecedor motorista conduziu por autoestrada não isenta de belezas naturais – um surpreendente percurso panorâmico ao longo do rio Danúbio até Linz, com passagem perto de povoações e locais carregados de história: a aldeia de Dürstein, com a sua igreja barroca e muito de medieval, com pitorescas ruelas junto ao rio, com o seu castelo em ruínas onde esteve preso Ricardo Coração de Leão, quando regressava da Terceira Cruzada; as grandes manchas de vinhedos de Rossatz, de Weissenkirchen, de Jochung e Wösendorf, de Spitz com o seu Muro do Diabo, a Teufelsmauer, uma célebre falésia sobre o Danúbio; Willendorf onde foi descoberta a famosa Vénus que ostenta o nome do local, símbolo da fertilidade; Aggsbachdorf que recebeu a sua fundação dos Romanos no século II. Aos poucos, porém, durante a viagem, fosse da lembrança dos vapores a produzir por todos aqueles vinhedos, fosse do insaciável torpor de quem sente o cansaço nas pernas e a paz no espírito, fosse da
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modorra ou do embalo do autocarro, alguns cochilos tomaram conta dos olhos e do corpo. E a memória, qual estômago de ruminante ou bossa, começa a repassar Viena na fieira do tempo e no ecrã da retina, numa dobadoira fina e imparável. E outros edifícios desfilam, outras cores, outros sons e formas, outras pessoas e instituições, evocados sem necessidade de serem vistos, de culturalmente tão conhecidos e ouvidos: o avermelhado do belo edifício da Sociedade Filarmónica e a sua célebre Sala Dourada, tão famosa pela sua acústica. Comparece a Antiga Câmara Municipal – com numerosas reconstruções do século XV ao XVIII – que se distingue pela sua fachada barroca (1700), em que figuras femininas encimam as duas colunas que ladeiam e guardam a porta, e por um harmonioso pátio interior em que pontifica a “Fonte de Andrómeda” (1741, de Georg Raphael Donner). Perfilam-se o Palacete Kinsky (1713-1716) e o Palácio Ferstel (1856-1860) – assim chamado pelo nome do seu arquitecto Heinrich von Ferstel – que hoje acolhe o Café Central. E o Palacete Pallavicini (1783-1784) com o seu duplo par de cariátides a fazer guarda de honra à porta. Ganha corpo o notável palácio barroco Liechtenstein (16911704, de Domenico Martinelli), hoje utilizado como Museu de Arte Moderna. E o imponente edifício do
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Arsenal (1849-1856), com seu ar de fortaleza e as suas muitas estátuas a espiar-nos, do alto, dos seus nichos. Enfeita-se e acomoda-se a imponente fachada do Hotel Sacher (1840), e sua, que tem o nome associado culturalmente ao facto de aí terem estado figuras da monarquia, da nobreza, políticos, artistas proeminentes (escritores, arquitectos, escultores, pintores, músicos, cantores, bailarinos); e apresenta como especialidade uma famosa torta de chocolate – a Sachertorte – irresistível mesmo aos indiferentes, que fará aos gulosos.
A casa de Hundertwasser
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A Casa de Hundertwasser (1983-1985) – o Hundertwasserhaus – assim chamada devido ao nome do seu criador, o pintor vienense Friedensreich Hundertwasser que, por princípios ecológicos renunciou ao material plástico e utilizou apenas ladrilhos, tijolos e muita madeira; a fuga, por opção estilística, às linhas direitas, inclusive os pavimentos, a verdura nas superfícies horizontais e intenso colorido das fachadas são características desta já célebre casa. Ia eu agora a pensar que bem gostaria de ter visitado a Biblioteca Nacional, de ter apreciado o seu edifício barroco (1723), o seu magnífico interior, a sua colecção de globos, os seus muitos livros e de ter consultado alguns, mas que o tempo – escasso e sempre implacável – o não havia permitido, quando a voz da Berta me acordou das cogitações e quebrou o fio das recordações. Passávamos pela deslumbradora região da abadia beneditina de Melk e da barragem de Ybbs. A abadia, em estilo barroco, imponente e dominadora, erguia-se numa colina, junto à cidade que, harmoniosa, tem restos da muralha medieval, casas renascença, ruelas estreitas e românticas. Alfobre de escultura, pintura e artes decorativas, esse renomado mosteiro possui uma
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magnífica igreja e uma famosa biblioteca que alberga uma preciosa colecção de manuscritos e códices, com data compreendida entre o século IX e o XV. Do terraço da Abadia alongou Napoleão o olhos extasiados pelos sucessivos meandros do Danúbio.
Abadia beneditina de Melk Pensava eu nos monges, nos Beneditinos, na sua divisa Ora et labora, no gosto estético na escolha dos locais, de que nunca ou raras vezes abdicam… Quase nem dei porque o autocarro abrandara a sua marcha e parava. Chegáramos à estação de serviço de Strengberg, local escolhido para as físicohidráulicas e para o almoço. Acabavam de bater as 13h30. E não é que o estômago, até aí sossegado e
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acomodado, começa em evoluções mais incontidas e insistentes?! Aliviados e recompostos com um almoço, mais ou menos módico, conforme os desejos e as necessidades de cada um, e retemperados também motores e motorista do autocarro, retomámos a viagem às 14h35 e continuámos a atravessar a Alta Áustria. Passámos ao lado de Linz, que se distinguia ao longe, na sua mole imensa de casario. Aí viveu Kepler e aí também Beethoven compôs a 8ª sinfonia. Em determinada altura, deixámos a autoestrada para passar pela zona dos lagos, com paragem em Gmunden e Traunkirchen para apreciar e contemplar o Lago Traun.
Casa da Câmara de Gmunden
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Gmunden, bela cidade, calma e quase parada nessa altura do ano, tem um histórico edifício da Câmara Municipal (século XVI), onde ainda se pode escutar um carrilhão de cerâmica. Aí viveu Schubert. Apenas, no lago, muito azul e sereno, os patos e cisnes nadavam alegres e irrequietos ou imponentes e majestosos, uns pretos e pinta branca na cabeça, outros de cores castanhas com laivos esverdeados, que o garbo superior dos cisnes observava. Sobranceiro e escalvado, a dominar tudo, com os seus salpicos de neve, o Monte Grünberg, até onde, de Gmunden, se sobe por um funicular.
No Lago Traun, em Gmunden Os patos continuavam nos seus mergulhos e nas suas evoluções, ora lentas e solenes, ora rápidas e vivas. Lentamente a memória começa a desfiar,
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vindo do íntimo de mim ou do fundo do próprio lago o alegre saltitar e volteio do Imprompto de Schubert A Truta. Parecia que os peixes saltavam, revolteavam, em nítida compita com os patos e gansos. A alegria vivaz e andante dos patos a saracotearem de lado para lado, em contraste com a pose majestática dos cisnes. E a melodia do violoncelo a acompanhar a alegria do piano. Andante, o revolutear parece subir degrau a degrau e vai ganhando inquietação até atingir melancolia e resignação. Depois, o retomar da alegria ondeante que várias vezes se repete até à calma dançante e saltitante do final. Com esta melodia a ressoar no fundo da memória, continuámos viagem e começámos a ver os contrafortes dos Alpes ainda com laivos de neve nesta altura do ano. A paragem seguinte foi em Traunkirchen, uma povoação sem outros atractivos – pelo menos não os detectei – que não seja um belo relógio de sol (onde, por mais que olhasse, não pude comprovar as horas, porque o sol entrara de fazer negaças), a continuação das águas serenas do lago; um cemitério mesmo sobre o Traunsee, parecendo até que as campas e jazigos se olham narcisicamente no espelho claro e calmo das águas; e sobretudo a sua igreja (como aliás o testemunha o nome).
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Distingue essa igreja um belo altar mor, com profusão de imagens, e um púlpito em forma de barco, também ornamentado com imagens de Santos, de Anjos, de Cristo a salvar Pedro de se afundar nas águas, de peixes e crustáceos… Será que alude à pesca no lago? Testemunha saudade do mar que longe ficou, para lá dos montes? Ou é símbolo de outras pescas?
Púlpito da Igreja de Traunkirchen Retomada a viagem, deixámos o Lago Traun. A neve torna-se mais intensa e tudo branqueja, com
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manchas castanhas e o verde negro dos abetos. Passámos por Bad Ischl (as termas de Ischl), onde o Imperador Francisco José e a Imperatriz Elisabeth gostavam de veranear. Marginámos e rodeámos o Wolfgangsee (o Lago de Wolfgang) e o Mondsee (o Lago da Lua), no meio do qual um cisne se passeava no prateado das águas: solitário, majestoso, exibia os seus ademanes, em voltas e gestos lentos, seguros, estudados. Que espera ou pensa? Serão os sentimentos calmos como aparenta a pose? Ou sob o alvo das penas luzidias algo se entrechoca? A certa e segura harmonia dos contrastes. Declinava o sol e estendia-se pelos montes e encostas a magia da luz coada e dourada – o que o meu Amigo Walter de Medeiros chama «o sortilégio do entardecer» – quando aportámos a Salzburgo, chamada a Roma do Norte, com cerca de cento e cinquenta mil habitantes, ladeada por duas montanhas, a dos Capuchinhos e a dos Monges, na qual S. Roberto funda um mosteiro beneditino, e daí o nome que hoje distingue o Monte. É a cidade de Mozart, que nela nasce em 1756, e tem como monumentos principais o Palácio Mirabell, a Catedral, a Fortaleza.
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O sol esconde-se, rubro, e a lua começa a erguer-se, no lado oposto, ainda muito empalidecida. As sombras ganham cada vez mais espessura e avançam pelos vales, insensivelmente dobram as esquinas, preparando-se para ocupar e encher as ruas, as praças, as vielas, tudo o que é espaço e recanto. As luzes começam a iluminar edifícios, árvores, desvãos, pessoas. Uma neblina fria e fina, que sobe do rio Salzach, percorre as ruas e em tudo se insinua, penetrando nos cantos, espaços, vãos de escadas. O silêncio cúmplice de todos trai a expectativa, antecipa a surpresa que reserva a chegada, denuncia a emoção de pisar terras míticas, há muito imaginadas, antevistas. O ponteiro dos minutos aproximava-se das 18h30 quando chegámos ao Hotel Mercure com os sentidos despertos e todos a vibrar interiormente: a terra de Mozart e da música; a terra dos Trapp e de Música no Coração; a terra do imaginário e de míticos festivais – Salzburgo. Todas as emoções à escuta, predispostas, atentas para os sinais e os sons. Salzburgo, já habitada no tempo dos Romanos – de acampamento aos poucos se fizera cidade –, tinha-se transformado em autêntica ruína com o decorrer do Império e fora reduzida praticamente a
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escombros pela chagada dos Hunos. É por isso mais tarde refundada por S Ruperto, monge beneditino que aí chega em 696 e por volta de 700 estabelece o Mosteiro de S. Pedro – o mais antigo dos Beneditinos em todo o espaço de língua alemã –, nos primeiros lanços da encosta do Monte que, depois, dos monges tomou o nome – Mönchsberg. E assim é nesse mosteiro que afinal se pode encontrar o berço de Salzburgo. A igreja, construída em estilo românico entre 1130 e 1143, adquire um aspecto barroco com a reforma que recebeu no séc. XVIII – o seu interior (onde Mozart apresentou pela primeira vez a sua missa em dó menor) é mesmo considerado uma preciosidade do estilo rococó, com belo altar de Johann Martin Schmidt. É famoso o seu cemitério a que chamam o mais belo jardim de Deus. Famoso também pela lenda que envolve os Crucifixos dos Sete Túmulos: seriam das sete mulheres do canteiro Sebastian Stumpfegger, torturadas por ele com cócegas nos pés até à morte. Afinal apenas manto diáfano da fantasia que se estende sobre realidade um pouco diferente e cobre afinal as tumbas do próprio canteiro, do filho e das cinco mulheres de ambos.
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Fachada do Mosteiro de S. Pedro Ao lado, numa ligeira plataforma, em Nonnberg, fica o convento de beneditinas, iniciado por Erentrudis, sobrinha de Ruperto, que ao chamamento do tio acorre, aí o funda e dele é a primeira abadessa – o mais antigo convento de freiras no norte dos Alpes, que por causa da sua localização ostenta o nome de Mosteiro de Nonnberg. A cor vermelha da sua cúpula, estilo imperial, da igreja é um marco inconfundível no verde acobreado dos telhados dos outros edifícios. Destruído por incêndio o edifício românico inicial, reconstrução da igreja começou em 1463 e concluiuse em 1507. Nela distinguem-se o altar que é
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trabalho em madeira, talvez de Veit Stoss, e os famosos frescos do “Paraíso de Nonnberg”, com influência bizantina.
Mosteiro de Nonnberg E assim mais uma vez se cruzaram comigo os Beneditinos e me reencontrei com o seu espírito pioneiro, arroteador, fundador. Um grupo, não muito encorpado, abalançou-se a uma visita nocturna ao centro da cidade: depois de passagem rápida junto do Palácio Mirabell e do Hotel Sacher, atravessaram a Ponte Makart (a Makart-Steg) e percorreram as ruas estreitas da cidade antiga, que a cada passo não iam além do parcamente iluminadas, mas nos surpreendiam a cada esquina e recanto com maravilhas e verdadeiras obras de arte que atraíam os olhos e nos retinham os passos: as passagens sob as casas – espécie de túneis – e pátios interiores; a Getreidegasse (“Rua dos
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Cereais”) que – estendendo-se da Praça Herbert von Karajan, onde se situam as instalações do Festival de Salzburgo, à Praça de Mozart, cheia de esplanadas e de vida – é constante caixinha de surpresas, com as suas artísticas indiquetas em metal sobre as lojas e estabelecimentos comerciais; uma plácida Virgem com o Menino, na esquina de um prédio da mesma rua; uma sugestiva pietá, em relevo, à entrada de uma porta, cuidadosamente iluminada, na Philharmonikegasse. E com esta visita a tão vetustas ruas, em que reinou a alegria e boa disposição, terminava um recheado dia que nos encheu os olhos da harmónica grandiosidade do Palácio e organização dos jardins de Schönbrunn, que nos propinou a beleza e sedativa calma dos Lagos; que agora nos oferecia no azul espesso e intenso da noite a carga cultural e a densa tradição de Salzburgo. O dia 25 estava aos cunhais da porta e prometia atingir o corpo, a alma, os sentidos, até às fibras mais íntimas e vibráteis da nossa emoção. Até por parecer que canto suave e harmonioso nos acompanhava os passos, havia tempo, e ainda não identificáramos, de tão suave e delido que era. Dava a sensação de brotar das próprias pedras da calçada, vinha do lado da colina dos Capuchinhos (a
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Kapuzinerberg). Em crescendo que ganhava corpo e nitidez, os acordes e palavras tornavam-se perceptíveis, familiares: Noite feliz! Noite feliz! O Senhor, Deus de amor, pobrezinho nasceu em Belém. Eis na lapa Jesus, nosso bem. Dorme em paz, ó Jesus. Dorme em paz, ó Jesus. O célebre canto de Natal “Noite Feliz” (Stille Nacht) de Joseph Mohr (letra) e Franz Xaver Gruber (música) – este último recordado em museu e túmulo ao lado da Igreja de Hallein, onde a melodia nasceu. Compreende-se esta vibração das pedras, ou da nossa desgovernada memória. Ao pé da colina dos Capuchinhos, no beco Steingasse, encontra-se afinal a casa onde nasceu o autor da letra, Joseph Mohr, e aí, no número nove, é lembrado em pequeno museu. Foi ao som dessa suave melodia e na companhia do cintilar da paz das estrelas que o sono se acomodou no espírito, que em surdina vai repetindo, já ou quase inconsciente: Noite de paz! Noite de amor! Tudo dorme em redor,
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entre os astros que espargem a luz, indicando o Menino Jesus. Brilha a estrela da paz. O acordar do dia 25 foi madrugador, com o sol, envergonhado, a entrar pela janela e com o vozear indistinto que subia do parque de carros e autocarros logo ao lado. Ou seria Salzburgo a chamar, sedutora, convidativa, irresistível, um peso cultural de séculos acumulados? A saída do hotel, às 9h00, para visita à cidade, deu-nos a incomodativa surpresa de um céu carrancudo, carregado de nuvens, apenas com o sol a luzir a espaços, de tempos a tempos, por uma ou outra ligeira nesga. Começámos pelos Jardins e Palácio Mirabell, ou “Bella Vista”, como lhe chamou Markus Sittikus, em substituição do originário Altenau, que lhe dera o seu antecessor Wolf Dietrich, ao construí-lo em 1606 para a sua amante Salomé Alt. Com diversas remodelações e reconstituições – a última das quais, depois de um incêndio em 1818, deu-lhe um cariz classicista –, é actualmente sede da Administração municipal. Dos vários aposentos e partes do Palácio, sobressaem o Salão de Mármore e a Escadaria dos Anjos (obra de Rafael Donner) que, não afectada pelo incêndio de 1818, mantém o estilo
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barroco que era o do edifício. Na frente do Palácio, um cavalo alado fere a rocha, enquanto se lança em voo, o fogoso e divino Pégaso (bronze de Kaspar Gras) no momento em que arranca da terra e faz brotar a Fonte Pirene.
Os Jardins despertaram a atenção e pediram um passeio calmo. Construídos em 1689, no reino do Príncipe Arcebispo Johann Ernst Thun, segundo planos de B. Fischer von Erlach, receberam o artístico risco geométrico que actualmente os caracteriza – descontadas as alterações do séc. XIX – em 1730, graças a Franz Anton Danreiter. Os Jardins estão orientados em eixo norte/sul e na linha da Fortaleza Hohensalzburg e da Catedral.
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Jardins de Mirabell E ao entrarmos nos jardins, recebe-nos jovem em bronze que, no meio de pequeno enquanto equilibra na cabeça uma pomba, artística flexão de pernas nos saúda e, concentrada, se remira nas águas.
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uma lago, com toda
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Em que se concentra? Procura admirar, nesse líquido espelho, a imagem a despontar, sinuosa e flexível? Contempla o passado ou pensa no futuro? No tempo das flores, deve ser um fascínio para os olhos, gulosos, o diverso colorido das flores dos canteiros, em belas circunvoluções barrocas e figuras geométricas. Agora os olhos apenas em potência reconstruíam esse mosaico de cores, nos desenhos e no verde que desponta, idas as neves e entrada a primavera. Nas balaustradas, um conjunto de estátuas de deuses greco-romanos – Júpiter, Marte, Vulcano, Hércules, Hermes, Apolo, Diana, Flora, Pomona, Minerva, Ceres, Vénus, Vesta, Baco, Juno e Cronos (1689, obra de B. van Opstal) – observam e admiram o artístico desenho dos canteiros.
Fonte central dos Jardins de Mirabell
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À volta da fonte central dos jardins, dispõem-se quatro grupos escultóricos (obra de Octavio Mosto, em 1690) que, pelo recurso a figuras ou cenas mitológicas, talvez a assinalar os quatro elementos da natureza. Um par escultórico representa o Rapto de Helena é constituído por uma figura masculina, armada (Páris), que agarra vigorosamente uma jovem, a segura nos braços e a transporta sobre uma base que representa o mar revolto com âncoras e peixes. O grupo Hércules e Anteu capta o momento em que o filho de Zeus ergue nos braços vigorosos o seu opositor, para o separar da Terra-Mãe e impedir desse modo que rejuvenesça em contacto com ela.
O Rapto de Helena Símbolo da água?
Héracles e Anteu Símbolo da terra?
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A Fuga de Eneias de Tróia é outro dos grupos, e nele o herói carrega o pai Anquises sobre os ombros e leva o filho Ascânio pela mão, enquanto o fogo toma conta de Ílion e a cidade se desmorona. Por fim, no quarto grupo, Rapto de Prosérpina, um jovem forte e musculado – Plutão, é evidente – sopesa uma figura feminina e leva-a pelo ar, pairando sobre uma base de árvores, flores e arbustos. Não simbolizarão esses quatro grupos os quatro elementos da natureza – a terra, o fogo, a água e o ar, respectivamente – com que Empédocles explicou a origem do Mundo? Passámos pela casa natal de Herbert von Karajann e junto ao Hotel Sacher, atravessámos o rio Salzach mais uma vez na Makartsteg, passámos pela rua dos Cereais, enfiámos por um dos vários corredores-túneis que furam o renque de casas de lado a lado – autênticas catacumbas de quarteirão –, fomos cheirar o mercado diário na Praça da Universidade, para onde dão as traseiras da Casa de Mozart. O que de fruta, guloseimas, tentações várias por lá havia! Os olhos todos se fixavam nas coisas que a cada um mais condizia e apetecia. Voltámos à Getreidegasse e entrámos na Casa Mozart para visita. Trata-se de uma morada modesta, ou não vistosa, em cujo terceiro andar
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habitava o pai Leopoldo Mozart, então vice-director da orquesta ao serviço do Arcebispo. Aí nasceu Wolfgang Amadeus, em 27 de Janeiro de 1756, e aí viveu até aos 17 anos, já que em 1773, a família se transferiu para uma casa maior na margem direita do rio, sita na Makartplatz, a sua casa até 1780. A vivenda, destruída durante a II Guerra Mundial, foi recuperada e fielmente reconstruída. Acolhe agora o Museu Mozart adicional. Apesar de não lhe ter concedido, de início, grande acolhimento e aceitação, a cidade vive hoje do nome e culto a Mozart. Só a casa onde nasceu recebe diariamente milhares de pessoas que aí vão em peregrinação, cuja maior parte passa pelo terceiro andar, onde estão expostos móveis, o trem de cozinha, objectos vários, partituras, quadros, instrumentos originais, cartas. E, no entanto, para que o compositor tivesse uma praça ou rua com o seu nome foi preciso que o escritor Julius Schilling, em visita à cidade em 1835, tivesse incitado à construção de um monumento a Mozart. Sete anos depois, em 1842 – com cerimónias solenes e oficiais de que a música não podia andar arredada –, essa estátua era inaugurada no meio de ampla praça, que tomou o seu nome. É nesses festejos, no programa musical preparado para a ocasião – e também na tradição
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teatral que sempre teve expressão na cidade – que é usual encontrar os primeiros passos do Festival de Salzburgo, ainda esporádico, de início, e sem regularidade anual de hoje. É evidente que se encontra nele também a ideia de união de povos através da arte. O segundo degrau da sua institucionalização regular foi a criação da Sociedade do Festival de Salzburgo, por Max Reinhardt, de que eram sócios fundadores outras personalidades culturais austríacas, entre as quais Hugo von Hofmansthal, Richard Strauss, Franz Schalk. É precisamente com a peça Jedermann – que desde Gil Vicente tem a tradução consagrada de Todo o Mundo – deste último que, em 1920, se dá início à celebração regular e anual do Festival Internacional de Salzburgo. E a obra dramática Jedermann passou, a partir de então, a abrir todos os anos o Festival e sempre na Praça da Catedral. Com excepção dessa peça, actualmente o Festival decorre em edifícios próprios – Grande Teatro, Teatro Menor e antigo Picadeiro de Verão do Conde Arcebispo – situados no chamado Bairro dos Festivais (Praça Max Reinhardt e na Rua Hofstalla ou Hofstallgasse). O Grande Teatro – inaugurado em 1960 e obra do arquitecto Clemens Holzmeister – tem capacidade para mais de duas mil pessoas e o seu
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palco foi escavado na rocha do Monte dos Monges (o Mönchsberg) Saídos da Casa Mozart, passámos pelo Alter Markt, onde fica a Casa Fürst dos chocolates originais, que de Mozart açambarcaram o nome – os famosos chocolates Mozart. A guia, que fala excelente português, ao explicar a confecção, para designar os conservantes neles utilizados, usou a palavra “preservativos” – com gargalhada geral e subsequente explicação do sentido ‘técnico’ da palavra. As subtilezas, encruzilhadas e traições da língua. Demos uma vista de olhos à Catedral, um edifício barroco, amplo, solene e cheio de luminosidade. Rodeada pelo Castelo-Residência do Conde Arcebispo e pela Abadia de S. Pedro, teria sido construída num local sagrado e palco de rituais e sacrifícios desde os tempos celtas e romanos – com começos talvez em 767, por iniciativa, primeiro do Abade S. Ruperto e depois de S. Virgílio (monge de origem irlandesa que o nomeado bispo de Salzburgo em 749) e consagração em 24 de setembro de 774, dia de S. Ruperto e dia em que o seu corpo é sepultado na nova basílica. Sofreu vários incêndios (842, 1167, 1598) e reconstruções diversas, até ao edifício barroco actual – iniciada em 1614 e terminada em 1655. Os
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seus cinco órgãos fazem jus à cidade da música que é Salzburgo. Sentados nos bancos da nave central, a memória escuta as explicações da guia e os olhos percorrem abóbadas, altares, janelas e imagens. E fosse do cansaço que o anda que anda pára e ciranda de toda a manhã provocou, fosse do ambiente aconchegado e calmo, aos poucos cai sobre nós uma sedativa modorra que nos envolve por inteiro – como se subisse dos mármores do pavimento, entrasse pelas janelas, descesse das arcadas das naves, saísse das paredes, viesse dos altares e retábulos – e por inteiro nos toma a música cadenciada do Requiem de Mozart: «Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris». É sempre bom este chamamento à realidade, a quem por sistema e natureza tem tendência a contemplar narcisicamente o seu umbigo. Bem o recorda também, no seu estilo desassombrado e torneado mas vigoroso, o Padre António Vieira num famoso sermão do Quarta Feira de Cinzas, proferido em Roma, Santo António dos Portugueses: «Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais; ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. […] E que duas coisas são estas? Pó e pó. O pó que somos: pulvis es, e o pó que havemos de ser: In pulverem reverteris». Música e palavras parecem que se unem e revezam na sua
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salutar e sensata pedagogia. Palavras e música, que tomaram toda a Catedral, ainda ressoavam em ecos repetidos quando abandonávamos o templo. Fora, a chuva caía, fértil, fecunda, transformadora. Tamborilava nos guarda-chuvas e cruzava a Praça da Residência, num rugir denso, monótono. E com essa aspersão celeste, incómoda e desagradável, para quem anda de visita a uma cidade, tivemos tempo livre para almoçar, cada um se acomodando, cosido com os beirais e toldos das ruas, aos restaurantes e locais que os olhos ou o faro seleccionaram. E muitos e variados havia por aqueles lugares. Um grupo, em que o relator se incluía, foi ao Nortzee. De tarde, subimos ao Castelo-Fortaleza – mais precisamente Fortaleza de Hohensalzburg –, a fortaleza medieval maior e mais bem conservada da Europa. Trata-se da residência do Conde Arcebispo que foi recolhendo acrescentos e transformações de várias épocas. Na igreja gótica de S. Jorge, na fachada esquerda, lá está o retrato de Leonhard von Keutschach (1495-1519) que, antes de morrer, aí quis deixar, em relevo, a sua imagem. No meio do pátio, junto à cisterna, ergue-se a copa centenar de verde e
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densa tília, com vários séculos de sombra, ampla e acolhedora. O aposento emblemático da Fortaleza é a Câmara do Príncipe, mandada construir pelo arcebispo Leonhard von Keutschach, em 1498-1502, com ricos relevos nas portas e janelas, quatro colunas espiraladas em mármore vermelho – uma delas com uma falha, a meio, provocada, segundo a tradição, por uma bala lançada durante os tumultos e lutas de 1525, conhecidos como ‘Guerra dos Camponeses’. Não conseguiram os rebeldes tomar a Fortaleza de Hohensalzburg, mas reduziram a escombros a de Hohenwerfen. O tecto da Câmara do Príncipe, com os seus três mil botões doirados a simbolizar as estrelas do firmamento, procura representar a cúpula celeste e é atravessado, de lado a lado, por uma trave de uma só peça (17 metros de comprido), toda decorada com escudos do Império.
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Fortaleza de Hohensalzburg. Câmara do Príncipe Do elevado ponto de observação que é a Fortaleza, gozámos do belo panorama da cidade e arredores.
Salzburgo observada da Fortaleza de Hohensalzburg
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A sensação cómoda, mas estranha, de aves sobrevoando o verde acobreado dos telhados e o verde tenro dos campos. No meio, a inconfundível cúpula vermelha da igreja do convento das beneditinas de Nonnberg. Desagradável, a chuva, que entretanto recomeçara a cair, tirou-nos o prazer das compras, da fruição da tarde na cidade, do gozo da harmonia das suas ruas e praças, cujos poros respiram séculos de história, cultura, memória: ruas medievais, ruas renascentistas, ruas barrocas e modernas com os seus artísticos anúncios ou indiquetas comerciais, com seu recanto aqui, surpresa de obra de arte ali, escultura acolá, praça ampla e bem lançada mais além.
Rua Getreidegrasse. Artísticos anúncios
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À noite, um grupo resolveu ir ao Concerto da Fortaleza de Salzburgo – na Fortaleza Hohensalzburg, é evidente – com a peripécia do bilhete esquecido pela Albertina no Hotel. Que susto e preocupação os da nossa Albertina, que se desfez em desculpas e perdões, como se do imo de si culpa ancestral brotasse com séculos de sedimentação concentrada. Felizmente tudo se dispõe nos caminhos da vida. E nessa noite tudo se concertou nas calhas do funicular que, na sua subida vagarosa e contemplativa da cidade, nos levou a horas até à Fortaleza. O concerto decorria na Câmara do Príncipe. Com os seus ricos relevos nas portas e janelas, as suas quatro colunas espiraladas em mármore vermelho, os seus três mil botões doirados no tecto, a simbolizar as estrelas do firmamento, a sua trave central de uma só peça, decorada com escudos do Império – esse aposento é o palco ideal para um concerto que tem Mozart por autor principal. Nela nos sentámos para escutar a Mozart Kammerorchester Salzburg que actuava nesse dia e tinha no programa Mozart (a serenata Uma pequena Noite de Música e o divertimento opus 160), Haydn (o Concerto para piano XVIII:11) e Dvorak (Dança Eslava e duas valsas). E a música, que aí estava à
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nossa espera, nos levou por sendas e recantos “nunca dantes navegados” ou poucas vezes trilhados. E nos sons da música nos partimos, suspensos nas asas da fantasia, arrastados no rodopio e valsas da vida, embalados no desfiar da memória. Harmoniosa despedida, antes da azáfama de preparar as malas para a partida matutina, bem matutina, do dia seguinte. À harmonia aliou essa despedida elevação, que a vista nocturna, a partir da Fortaleza, é impressionante: o feérico das luzes a demarcar ruas, praças e jardins. As torres, igrejas e palácios salientes e bem recortados na paisagem nocturna, em volumes e formas. E os sonhos partem nos voos das luzes que levantam no sopé do Monte dos Monges e, delidas quase, desaparecem nos longes do horizonte. E os sonhos embalam-se nos sons que tomam arcadas e recantos e regressam aconchegados de memórias. Entretanto, os restantes Estudiosos constituíram o grupo dos Trupe que, sob a maéstrica batuta do Abílio, animou o silêncio do átrio do Hotel Mercure que, todo divertido, desperta da sua pesada modorra de pacatez nocturna.
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Aleluia do regresso
26 de Março foi o dia de retorno a Coimbra. E alguns dos Estudiosos – cansados talvez de estudoviajar – já suspiravam pelo regresso, a entoarem intimamente «ai quem me dera na minha alegre casinha, tão modesta quanto eu». O desejo da paz, do sossego, da calma do lar. O mesmo que assaltou o aventureiro, insatisfeito e astucioso Ulisses. A impressão cómoda do conforto do hábito a invadir os poros, a ocupar os recantos, a instalar-se nas sensações! A partida para o aeroporto de Salzburgo verificou-se às 8h45. Os últimos olhares de despedida às ruas, às silhuetas dos edifícios, aos volumes dos monumentos, às torres das igrejas. Despedida reiterada nos olhos cabisbaixos e saudosos que muitos lançaram sobre a cidade, quando o avião descolou, sobrevoou Salzburgo, seguiu por momentos o curso do Salzach e deixou-nos com os laivos alvacentos dos últimos flocos de neve que a primavera ainda não digerira. E aos poucos
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Salzburgo empequenecera, delira-se na distância, envolta em névoa e ocultada no alvor da toalha de nuvens que substituíra as neves dos cumes dos montes. A descolagem do avião com um atraso de quarenta e cinco minutos tornou providencial a espera de cerca de duas horas que tínhamos em Frankfurt – próvida folga que, desse modo encurtada, se ofereceu menos cansativa e saturante para quem cirandava de país em país, de cidade em cidade, de hotel em hotel, de museu em museu, de monumento em monumento. Passavam poucos minutos das 16h00 quando, libertadas as malas da passadeira rolante, deixámos o aeroporto de Lisboa. Feitas as despedidas a quem a Lisboa pertencia ou por lá se quedava, os Estudiosos foram empobrecidos da Berta, do Casal Orestes, da Meximiana e, este ano, também da Zélia que, no aeroporto, tinha as filhas a aguardá-la, bem como da Zé Alves, da Virgínia e da Albertina que suas indefectíveis damas de companhia preferiram continuar. Por volta das 19h00 estávamos em Coimbra, ao som de alegre toque de sinos. E aos olhos interrogativos dos regressados assaltou a narcísica
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dúvida se as torres saudavam a nossa chegada ou chamavam para a missa vespertina de Sábado de Aleluia: a aleluia do regresso. Insondáveis arcanos da alma humana e a incorrigível centração ou concentração no próprio umbigo!
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ÍNDICE
Claridades e sombras na hora da partida ………. 8 A memória e a culpa ……………………………
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A valsa das formas e os sons das cores ………… 86 O corpo e o sabor dos sons ……………………… 158 Aleluia do regresso ……………………………… 190
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