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ISBN 972 46 0955 3 © Eduardo Geada Direitos reservados por Editorial Notícias Rua Padre Luís Aparício 10 1.° 1150-248 Lisboa Capa: 3designers gráficos Revisão:
A. Miguel Saraiva Edição n.° 01 408 003 1.° edição: Novembro de 1998 Depósito legal n.° 127 424/98 Pré-impressão:
Textype — Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento:
Rolo & Filhos — Artes Gráficas, Lda.
COLECÇÃO ARTES E IDEIAS
OS MUNDOS DO CINEMA MODELOS DRAMÁTICOS E NARRATIVOS NO PERÍODO CLÁSSICO
Obras publicitins nesta colecção: A GUERRA COLONIAL E O ROMANCE PORTUGUÊS — 2 edição Rui de Azevedo Teixeira MÁGICO FOLHETIM — LITERATURA E JORNALISMO EM PORTUGAL Ernesto Rodrigues OS MUNDOS DO CINEMA MODELOS DRAMÁTICOS E NARRATIVOS NO PERÍODO CLÁSSICO
Eduardo Geada
EDUARDO GEADA
OS MUNDOS DO CINEMA MODELOS DRAMÁTICOS E NARRATIVOS NO PERÍODO CLÁSSICO
MenZícias
Vivemos num mundo fechado e mesquinho. Não sentimos o mundo em que vivemos tal como não sentimos a roupa que trazemos vestida. Voamos pelo mundo como as personagens de Júlio Veme através do espaço cósmico no ventre de um raio. Mas o nosso raio não tem janelas. Os pitagóricos afirmavam que não ouvimos a música das esferas porque toca incessantemente. Aqueles que vivem perto do mar não ouvem o rumor das ondas, mas nós nem sequer ouvimos as palavras que pronunciamos. Falamos uma miserável linguagem de palavras não assumidas. Olhamo-nos na cara e não nos vemos. As imagens não são janelas que dão para outro mundo, são objectos do nosso mundo. VIKTOR SKLOVSKI
Literatura e Cinema, 1923
Nickelodeon americano nu princípio do século.
INTRODUÇÃO É conhecida a reacção dos primeiros espectadores de cinema na célebre sessão inaugural do Cinématographe Lumière no Grand Café de Paris no dia 28 de Dezembro de 1895. Perante as imagens de um único plano do comboio que entra na estação (L'Entrée du train en gare de ia Ciotat), tomado de pânico com a sensação de que a locomotiva se aproximava e o podia esmagar, o público abandonou as cadeiras e correu para a saída. A simples figuração do mundo tornado espectáculo, graças à ilusão do movimento, à duração do tempo do evento e à apreensão do sentido das imagens no presente, provocou um extraordinário efeito de realidade que é, simultaneamente, um dos mais fortes efeitos de ficção de que o cinema é capaz. A aclamação foi semelhante em toda a parte: o cinema restituía a vida com um grau de realismo que nenhum outro meio de reprodução ou de representação consegue atingir. As imagens em movimento preservam a memória das pessoas, das coisas e dos acontecimentos com uma autenticidade que parece desafiar a usura do tempo. Cumpria-se um dos mais persistentes sonhos do homem, aplaudido 9
à luz da crença positivista no progresso contínuo. Ao realizar a ilusão perfeita do mundo sensível, o cinema tornava-se o inventário universal das criações e das aspirações do ser humano, de que as próprias imagens projectadas constituíam um testemunho exemplar. Não eram só as maravilhas da paisagem natural e monumental, os usos e costumes de povos distantes que deslumbravam os espectadores nos quatro cantos do mundo, mas a descoberta de um sem-número de objectos, ordenados em contingentes de mercadorias, até então apenas expostas nos armazéns e nas galerias da especialidade, que inaugura a civilização da imagem e a era do consumismo. Se é certo que o homem teme ou ambiciona aquilo que vê, então o olhar fascinado do cinema, convertido à hipótese da total visibilidade dos mundos exterior e interior, abre novos horizontes aos limites do seu desejo. Desde cedo, os teóricos mais perspicazes intervieram na afirmação do cinema como arte, sublinhando que o filme «apresenta o mundo não só objectivamente mas também subjectivamente. Cria novas realidades, em que as coisas podem ser multiplicadas; pode inverter os seus movimentos e acções, distorcê-las, atrasá-las ou acelerá-las. Dá vida a mundos mágicos onde não existe a gravidade, onde forças misteriosas fazem mover objectos inanimados e onde objectos partidos voltam a ficar inteiros. Cria relações simbólicas entre acontecimentos e objectos que não têm qualquer ligação na realidade» (Arnheim). Enquanto modo de partilha da dimensão estética, a ficção narrativa é um relato de acontecimentos imaginários que não têm correspondência no mundo real mas que se organizam a partir do entendimento humano e da recriação simbólica da vida. A ficção cria mundos possíveis, alternativos aos da nossa experiência quotidiana, que só existem nos jogos da linguagem que os enuncia. Porém, a inteligibilidade da narrativa exige que as personagens e o curso dos acontecimentos ofereçam pontos de analogia com as propriedades do mundo empírico, tais como a observância dos princípios da coerência cognitiva e a lógica das deslocações espácio-temporais. No cinema a articulação entre o mundo real e o mundo da ficção é particularmente sensível, na medida em que a matéria significante do filme reproduz e amplia com bastante precisão os referentes da representação audiovisual, criando assim uma forte impressão de realidade que é um dos fundamentos ontológicos da estética do cinema.
A ilusão de que os espectadores se encontram em contacto directo com a realidade representada, sem mediação, como se o mundo se organizasse em discurso e nos desse uma visão transparente dos fenómenos, é um ideal do cinema clássico, ensaiado de diversas formas, justificado por diferentes posturas teóricas e ideológicas, quase sempre na convicção de que o carácter supostamente objectivo das imagens produz uma verdade a que ainda não tivéramos acesso. Essa ilusão é, em si mesma, um extraordinário efeito de ficção, na medida em que potencia a atenção, a memória e a imaginação do espectador para a sequência dos eventos dramáticos estruturados pelo acto da narração. Como a percepção humana tende a encontrar um sentido na sucessão das imagens e dos sons, a impressão de realidade torna naturais os factos mostrados, justifica a previsão narrativa e aumenta a expectativa acerca do que pode vir a acontecer. Daí que os modelos dramáticos e narrativos dominantes no cinema clássico evitem as extravagâncias visuais, as piruetas técnicas e as marcas de enunciação, a favor de uma relação imediata e afectiva com o mundo da ficção, como se a história se contasse sem interferências alheias ao nível da imanência. Há porventura uma atitude propedêutica na aplicação dos modos de fazer mundos no cinema clássico. Primeiro, na escolha e na ordenação dos seus materiais narrativos, dentro de um quadro de referência definido pela dramaturgia aristotélica e pelo romance do século XIX. Depois, na clarificação e na hierarquização dos recursos formais e expressivos que instituíram uma linguagem específica. Se é certo que a intencionalidade artística desobriga as obras de qualquer uso prático no mundo real — a não ser que se assumam como discurso de propaganda —, assiste-se no período clássico à emergência de uma estratégia de apropriação funcional dos filmes em pólos complementares que a indústria cultural preservou como um dos pilares da sua eficácia ideológica: o espectáculo tanto se pode exibir como exaltação eufórica da natureza e da técnica como perfilhar uma consciência crítica da sociedade. Em ambos os casos, o automatismo da reprodução fotográfica, da percepção visual e da difusão em massa emprestaram às fantasias colectivas um teor de sedução e de credulidade que abriu novas pontes para a nossa relação com o mundo. O período clássico no cinema, entre 1915 e 1955, corresponde à fase de maturação e supremacia da longa metragem de ficção resultante do modo de produção baseado no sistema de estúdios. Embora 11
alguns autores prefiram marcar as balizas temporais de 1908, data de estreia de Griffith como realizador, e de 1948, data da liquidação legal do oligopólio vertical dos estúdios americanos, há por certo, entre os anos dez e meados dos anos cinquenta, razões de coerência formal e orgânica para considerar que o cinema americano e, por analogia, outras cinematografias, desenvolveram um núcleo de preocupações estéticas, narrativas e económicas que marcam uma época. Há no classicismo cinematográfico ambições de experimentação formal, a par da obediência às normas da indústria, e ambições de transmissão de valores éticos, a par do conformismo ditado pelas leis do entretenimento, que são afirmativas de uma vitalidade disposta a assimilar todas as contradições. Que essa vitalidade tenha procurado na unidade, na regularidade e na completude dos modelos dramáticos e narrativos o esteio da sua afirmação industrial é sem dúvida um sinal da confiança no presente e do equilíbrio consciente entre uma tradição sólida — herdada do teatro e da literatura — e a originalidade das primeiras gerações de cineastas. A exigência do respeito pelos preceitos formais, que transformou muitos filmes em simples variações sobre temas e regras aceites, não anula a aceitação poética do primado dos conteúdos, determinados pela excelência dos assuntos, pela suposta fidelidade à natureza das coisas e pelo sucesso de bilheteira. O cinema clássico admite com modéstia a emergência da sua condição artística, disponível à comunicação e à recriação de significados preexistentes que se encontram consignados na escrita do argumento ou na evidência do mundo. No apuro de uma linguagem específica, que marcou a cultura do nosso século, o cinema clássico gerou os seus próprios cânones, com os quais tiveram de se defrontar os movimentos de ruptura, os ciclos, os géneros, as modas e as imitações que se lhe seguiram. As obras dos cineastas, dos argumentistas, dos produtores e dos actores incluídos neste estudo não perderam a capacidade de surpreender as novas gerações de espectadores nem de interpelar a prática do cinema contemporâneo, embora, obviamente, não sejam os únicos a partilhar o estatuto canónico. São, no entanto, no campo da história do cinema, artistas que fundaram ou consolidaram estilos, métodos ou discursos que possibilitaram as regras de formação de outros filmes que não apenas aqueles em que estiveram envolvidos. No centenário da consagração da sétima arte, os modelos dramáticos e narrativos que encon12
tramos na indústria, bem como nas séries da ficção televisiva, praticamente em toda a parte, continuam a ser prioritariamente determinados pela influência de uma tradição que se consolidou nesse período. Há efeitos de ficção a que nenhuma narrativa se furta, mesmo quando se trata de organizar uma exposição de carácter histórico ou didáctico. O primeiro consiste em suscitar a ilusão de que nos encontramos perante um encadeado lógico de acontecimentos, temas e personagens que esgotam o conhecimento do assunto circunscrito. O efeito resulta de um paciente trabalho de selecção das matérias e das figuras tratadas, bem como da supressão de pormenores que não se revelam pertinentes na articulação dos pontos de ancoragem discursiva. O conjunto adquire assim uma aparência homogénea, como se estivesse completo e fechado sobre si mesmo. O segundo efeito é provocado pela ênfase dada às origens do conjunto, vincando o momento fundador da narrativa e dos seus propósitos. Ao disfarçar as contingências da história, o desenvolvimento da exposição perfila-se de acordo com a regra teleológica da fábula aristotélica, na qual tudo deve ter um princípio, um meio e um fim. O terceiro efeito de ficção — os factos do passado seriam factos históricos mesmo sem a intervenção do historiador — complementa os anteriores reforçando a sensação de objectividade e de distanciamento com que a narrativa histórica refere a evolução das personalidades, dos acontecimentos e das teorias do passado. A selecção, a concentração e a conexão semântica entre ideias e eventos separados no tempo e no espaço fazem parte do trabalho de construção histórica, mas são também alguns dos processos típicos de dramatização das estruturas narrativas. A consciência desta ambiguidade é sensível na estratégia de exposição de Os Mundos do Cinema, onde tentei conciliar o rigor da interpretação histórica e da análise teórica com a caracterização de situações a que a montagem do texto confere a hipótese de sugestão narrativa. No entanto, procurei tornar manifesto, na passagem de cada sequência, o carácter fragmentário, lacunar e aberto dos segmentos de análise, de modo a indiciar, no interior do próprio texto, a articulação entre as situações que reconstituem o vivido da época e os tópicos de reflexão teórica. Tratandose de um trabalho que procura questionar o fascínio da efabulação cinematográfica, simultaneamente ao nível da escrita do argumento, da encenação fílmica e da vivência do mundo do espectáculo, pareceu-me um método particularmente adequado de composição. 13
The Great Train Robbery ( /903), Edwin Porter.
2 O GESTO DO REALIZADOR Naquela manhã cinzenta de 1907, D. W. Griffith levantou-se mais cedo do que era seu hábito. Faltavam poucos dias para o início do Inverno e não havia rasto de sol no horizonte. Em Nova Iorque eram frequentes dias como aquele, em que a luz natural teimava em despontar antes do fim da manhã. Griffith saiu de casa sem tomar o pequeno almoço. Sabia que no local de filmagens encontraria assistentes de produção com café quente e pão fresco à sua espera. Era o seu primeiro dia de trabalho como actor num filme de Porter e não queria, de modo algum, chegar atrasado. Edwin S. Porter era, justamente, considerado o mais importante realizador americano em actividade, sobretudo depois de dois filmes decisivos estreados em 1903: The Life of an American Fireman e The Great Train Robbery. Porter começara a trabalhar para uma das companhias do célebre inventor Thomas Edison ainda antes da primeira exibição pública do cinema nos Estados Unidos, em 23 de Abril de 1896, na qual participou como projeccionista. Depois de ter batido o mercado sul-americano como caixeiro viajante, em representação dos primitivos projectores patenteados por Edison, Porter regressara 15
a Nova Iorque onde ficou encarregado do departamento mecânico da fábrica de câmaras e projectores de Edison. Não tardou muito que Porter começasse ele próprio a produzir, fotografar e realizar a maior parte dos filmes que saíam do estúdio, construído a céu aberto, situado no n.° 41 da East 21st Street de Nova Iorque. Pela viragem do século, a exibição cinematográfica desenvolviase com uma rapidez prodigiosa. Pequenas salas e espaços reconvertiam-se às necessidades da projecção de filmes que, entretanto, se tinham tomado um complemento praticamente obrigatório nos espectáculos de vaudeville. De 1902 a 1912, os filmes em questão, em película de 35 mm projectada à velocidade média de 16 fotogramas por segundo, limitavam-se a uma bobina e não duravam mais do que oito a doze minutos. Apesar de uma obsessão voraz pelo negócio, Thomas Edison nunca acreditou que o cinema pudesse ultrapassar a fase inicial da curiosidade do público e viesse a tomar-se uma verdadeira indústria. A sua ambição, repetida vezes sem conta pela imprensa, consistia fundamentalmente em aperfeiçoar as imagens documentais registadas em película, numa espécie de fonógrafo para a vista que pudesse testemunhar da realidade e da preservação de outras formas de espectáculo já existentes, como seria o caso da ópera, na qual o sincronismo entre a imagem e o som era da máxima importância. Daí, porventura, o seu completo desinteresse pelo cinema como veículo de ficção narrativa autónoma. A colecção dos guiões de filmagem da produtora de Edison, conservada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, indicia que grande parte da concepção dos filmes era deixada à consideração dos operadores de câmara e dos actores. Na página da primeira cena do argumento do filme Ali Cooked Up (1915) pode ler-se «dois cozinheiros preparam comida e discutem». No filme, esta rubrica transforma-se em seis cenas. Se o argumento serve para delinear a orientação geral da história, é óbvio que a riqueza dos pormenores depende sobretudo da capacidade de improvisação do realizador e dos actores no decurso da filmagem, tanto mais que a rodagem de cada filme de uma bobina não durava mais do que um ou dois dias e o trabalho de montagem era irrelevante. Ao contrário das câmaras concebidas pelos irmãos Lumière, suficientemente leves para poderem ser utilizadas pelos operadores em 16
exteriores sem grandes complicações, o equipamento de filmagem produzido pela empresa de Edison revelava-se excessivamente pesado. As câmaras eram colocadas em pontos marcados no estúdio e todo o movimento era feito pelos actores no interior dos planos fixos em função das posições da máquina de filmar. A herança do espaço do palco domina por completo o cinema primitivo. A cada plano corresponde um quadro completo de acção cuja definição visual é equivalente ao ponto de vista do espectador da plateia. O espectáculo de pantomima e o melodrama são os géneros teatrais que mais influenciam os filmes da época. No fim do século XIX o melodrama tinha já ensaiado alguns dos dispositivos narrativos e cénicos que iriam impulsionar a popularidade do cinema nos primeiros tempos. As mudanças dos quadros e dos telões, feitas à vista do público, para concretizar passagens de tempo e de espaço, ou para sugerir acções paralelas simultâneas, com o objectivo de aumentar a tensão dramática, tinham emprestado ao melodrama teatral uma certa eficácia narrativa, reforçada pela maquinaria do palco na execução dos efeitos cenográficos realistas. Muitos destes efeitos prefiguravam o dinamismo visual da câmara de filmar e as primeiras experiências de montagem cinematográfica que viriam a ser sistematizadas com carácter normativo até 1915. A caminho da baía de Nova Iorque, banhada pelo rio Hudson, na margem do qual iriam decorrer dentro de momentos as primeiras filmagens dos exteriores de Rescued from an Eagle's Nest (1907), Griffith recordava porventura o equívoco que o tinha levado a aceitar ser o protagonista do filme de Porter. Não que o convite para ser actor o tivesse surpreendido. Na verdade, Griffith trabalhava como actor de teatro desde 1897, tendo percorrido boa parte dos Estados Unidos em digressão com companhias de repertório popular. Mas agora o seu maior desejo era ser argumentista de cinema. Já tinha escrito contos, poemas e dramas, mas com escasso êxito. A desilusão ocasionada pela estreia da sua última peça, produzida no ano anterior numa grande sala de Washington, levou-o a interessar-se cada vez mais por esse novo meio de expressão que, em poucos anos, conquistara o coração da América. Dirigiu-se então aos estúdios de Edison para falar com Edwin S. Porter, a quem propôs uma adaptação cinematográfica de La Tosca. Porter recusou o argumento de Griffith por considerar que tinha demasiadas cenas, o que tomaria o filme muito longo para o 17
gosto da época. Em contrapartida, Porter convidou-o para ser o protagonista do seu próximo filme. Griffith acabou por aceitar: precisava do emprego e não quis desperdiçar a oportunidade de ver trabalhar o realizador que até à data mais contribuíra para a maturidade narrativa do cinema. De acordo com a crítica da época, The Life of an American Fireman ( 1903) foi um dos primeiros filmes a tornar evidente a consciência de que uma cena não tinha de ser necessariamente filmada num único plano, podendo construir-se a partir de vários planos separados e articulados entre si. Porter tinha filmado casualmente algumas imagens reais de bombeiros numa operação de salvamento e extinção de um incêndio. Tinha ainda, no estúdio, imagens de arquivo que reproduziam várias fases do trabalho de diferentes corporações de bombeiros em exercício. Considerou então que seria proveitoso construir uma situação dramática na qual pudesse utilizar o material filmado de que dispunha. Anos de melodrama deram-lhe a resposta imediata: uma criança e a respectiva mãe seriam salvas in extremis pelos destemidos bombeiros municipais. Segundo a cópia original do filme, depositada na Biblioteca do Congresso em Washington para efeitos de copyright, com a duração de seis escassos minutos, vemos, sucessivamente, o comandante dos bombeiros sonhar com a família, o interior do quartel com diversos equipamentos de ataque ao fogo, o alarme que mobiliza os homens, a correria dos veículos da corporação pelas ruas da cidade, e o combate ao incêndio que ameaça destruir uma casa de madeira. A última sequência do filme é construída a partir de três cenas com diferentes posições de câmara: a primeira, no exterior, mostra a chegada dos bombeiros; a segunda, num interior de estúdio, mostra um quarto com fumo onde a criança e a mãe se debatem contra as chamas, até que a mulher desmaia em cima da cama e um bombeiro entra pela janela para salvar as duas vítimas, regressando depois com outro bombeiro para combater o fogo; a terceira, novamente no exterior, mostra os dois bombeiros a subirem a escada mecânica e a entrarem pela janela para salvar a criança e a mãe, que entregam aos cuidados de outros intervenientes. A cena no interior do quarto e a cena da escada dos bombeiros no exterior são, cada uma delas, dadas na íntegra, repetindo sucessivamente a mesma acção de salvamento. Apesar do enorme avanço 18
que representou a fragmentação do espaço, no sentido de sugerir as acções simultâneas que concorrem para a mesma situação dramática, Porter ainda não conseguira libertar-se da concepção do espaço cénico unitário que caracteriza o modo de representação primitivo. Em The Great Train Robbery (1903) Porter vai mais longe. A mobilidade da câmara em momentos de acção e em cenários naturais, nomeadamente na sequência da fuga dos assaltantes do comboio, e a montagem alternada, entre cenas de interior e cenas de exterior, que fazem progredir a narrativa em duas linhas de acção, esboçam sem equívoco algumas das propostas básicas que anunciam o modo de representação institucional do cinema clássico. Primeiro, a multiplicação dos pontos de vista implicando o poder de ubiquidade visual da narrativa fílmica; depois, o envolvimento da subjectividade do espectador no mundo da ficção, graças, em parte, ao princípio do prazer estimulado pela ilusão do poder de ubiquidade. Griffith reparava, no entanto, que Porter tinha pouco cuidado com a iluminação e colocava a câmara de filmar muito longe dos actores, a ponto de, por vezes, os espectadores terem dificuldade em identificar os personagens. A adesão emocional do público tinha, forçosamente, de sair prejudicada. Um dos raros grandes planos até então filmados por Porter, em The Great Train Robbery, não tinha sido montado por não ter cabimento num sistema de escalas que privilegiava a dominância do plano geral herdado da moldura teatral. Esse celebérrimo grande plano, no qual se vê um pistoleiro disparar um tiro para o público, era enviado aos distribuidores num rolo de película à parte, de modo que os exibidores podiam escolher entre colocá-lo no início ou no fim do filme. Consoante o plano era colocado no início ou no fim, as reacções do público mudavam, e as implicações narrativas também, mas na altura ninguém parece ter ligado ao assunto. Não se tratava apenas de ponderar as eventuais consequências significantes do mais elementar efeito de montagem obtido pela mudança de escala das imagens e pela ruptura da linearidade narrativa, mas, sobretudo, de reflectir acerca da prioridade e da autonomia a dar à concepção do plano no contexto de cada cena. Os guiões dos filmes de uma bobina eram normalmente simples alinhamentos de situações filmadas num único plano. Os realizadores que, como Porter, acumulavam as funções de operador de câmara, depressa se aperceberam das vantagens de proceder à escrita detalhada 19
das cenas, por forma a poderem filmar fora da ordem lógica da história, agrupando os locais de rodagem segundo os dias de trabalho, para pouparem tempo e deslocações repetidas. Filmar fora de ordem implicava, porém, tomar precauções acrescidas para manter a ilusão de continuidade da narrativa e do mundo físico que lhe servia de fundo. O triunfo do filme de ficção junto do público, a partir de 1903, constituiu um factor decisivo para o desenvolvimento industrial do cinema. De acordo com o número oficial de registos de copyright, entre 1907 e 1908, os títulos dos filmes narrativos aumentaram de 67 para 96 por cento, reduzindo os títulos dos documentários a 4 por cento da exibição comercial. Não havia dúvidas de que era preciso encontrar quem soubesse escrever histórias em imagens, com quanto menos legendas melhor, uma vez que a maior parte do público popular, constituída por emigrantes, era praticamente analfabeta ou não sabia inglês. Além da companhia de Edison, outras produtoras deram um contributo fundamental para o desenvolvimento do filme primitivo de ficção, em particular a Biograph, que foi das primeiras a construir um estúdio totalmente equipado com iluminação artificial. O assistente de realização corria de um lado para o outro dando os últimos retoques na colocação dos actores secundários. A ausência de nuvens transformava o céu cor de chumbo num enorme ciclorama natural contra o qual se recortava a silhueta da rudimentar águia empalhada que dava azo ao título Rescued from an Eagle's Nest. O protagonista, atento ao que se passava à sua volta, concentrou-se no seu papel. Tudo estava pronto para começar a filmar, apesar da aparente desorganização instaurada pela entrada dos figurantes no local de filmagens. O sonho de Griffith agora já não era apenas escrever filmes mas também realizá-los, como se as duas actividades fizessem parte indissociável do mesmo movimento criador que o animava. Griffith levantou-se com determinação, pousou as lacónicas folhas do guião na cadeira de lona onde estivera sentado a tomar café e foi-se colocar discretamente junto ao praticável de madeira onde estava instalada a câmara de filmar, pronto a entrar em cena a um simples gesto do realizador, antes que qualquer dos assistentes tivesse oportunidade de pegar no megafone e chamar pelo seu nome.
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Anúncio de antestreia de um estúdio de Hollywood.
3 ADMIRÁVEL MUNDO NOVO Billy Bitzer tinha acabado de jantar quando ouviu uma voz decidida chamar por si. Foi à varanda e ficou surpreendido por ver Griffith na rua, sorridente, perguntar-lhe se podia subir. Apesar de não ser habitual receber visitas àquela hora, sobretudo em período de filmagens em exteriores, que começavam de madrugada, Bitzer concordou quando Griffith lhe disse que precisava de ajuda. Tendo começado a trabalhar como maquinista, electricista e depois operador de câmara, praticamente desde o início da existência do cinema, Bitzer tornara-se o mais solicitado técnico de fotografia da produtora Biograph. Conhecia Griffith há pouco tempo, desde que este se apresentara no estúdio como argumentista e actor, e, francamente, não ficara entusiasmado ao vê-lo representar. Mal sabia Bitzer que, nessa noite, ia começar uma longa amizade e uma colaboração invulgar que, ao longo de dezasseis anos consecutivos, o iriam projectar na profissão como um dos mais prodigiosos directores de fotografia do período mudo. Griffith tinha conseguido que a Biograph o aceitasse à experiência como realizador. Achava-se capaz de fazer melhor do que tinha 21
visto, mas não estava seguro acerca de alguns pormenores técnicos que Bitzer dominava. Releram em conjunto a história que tinha sido atribuída ao novel realizador e esquematizaram numa folha de papel os principais ingredientes narrativos considerados indispensáveis a qualquer filme de sucesso: a componente amorosa, o conflito dramático, as personagens em perigo, os momentos de comédia e o salvamento da vítima que conduz ao final feliz. Para um filme de uma bobina, com cerca de cinco minutos, não estava mal. The Adventures of Dollie foi filmado nos dias 18 e 19 de Junho de 1908, tendo sido estreado no dia 14 do mês seguinte no teatro Keith and Proctor de Nova Iorque. É um filme semelhante a tantos outros produzidos pela Biograph nesse ano. Cada cena está fotografada em plano geral, com a câmara colocada num ponto fixo, e as entradas e saídas de campo dos actores processam-se lateralmente como se estivessem a representar num palco. No entanto, os planos de exteriores têm um dinâmica e uma coerência espacial que revelam, desde logo, o domínio do meio. A intriga, simples e directa, anuncia um dos arquétipos temáticos da obra de Griffith: a ameaça da harmonia familiar devido à intromissão de um marginal. Dollie, uma jovem burguesa, é raptada por um cigano. Quando o pai de Dollie revista o acampamento do cigano à procura da filha, o malvado esconde-a num barril que acaba por cair ao rio. O barril flutua até que Dollie é salva e restituída à segurança da família. A protagonista, Linda Arvidson, que fora contratada pela Biograph a pedido de Griffith, acompanhou-o na estreia e pôde testemunhar o agrado com que o público recebeu o filme, garantindo assim a continuidade da carreira do realizador. À medida que foram trabalhando juntos, Bitzer reparava que Griffith solicitava opiniões a toda a gente, dos actores aos electricistas, mas acabava sempre por fazer como muito bem entendia. O usual na época, durante as rodagens, era os realizadores dedicarem-se apenas aos actores, deixando aos operadores de câmara todos os detalhes técnicos do filme. A pouco e pouco, Griffith foi-se ocupando de tudo: da escolha das histórias, do elenco, dos cenários, dos adereços, do guardaroupa, da maquilhagem, da iluminação, das posições da câmara. Nada era escolhido e colocado no local de filmagem sem a aprovação prévia do realizador. Ciente dos resultados obtidos com os actores durante o seu percurso teatral, Griffith aumentou o número de ensaios praticados antes 22
das filmagens. Experimentava vários actores em cada papel antes de decidir a distribuição, criando assim no interior da companhia uma competitividade e uma flexibilidade que estimulavam a qualidade do trabalho e a iniciativa individual na composição das figuras. Durante os ensaios, que se arrastavam pela hora das refeições e pela noite dentro, Griffith apurava não só a mecânica de cada cena, mostrando como entendia o comportamento dos personagens, como ia improvisando alterações nas histórias, enriquecendo os pormenores de representação e de clareza das intrigas. Exaustos pelas horas de trabalho em excesso, os actores e os técnicos não se atreviam a protestar porque reconheciam no entusiasmo e na obstinação daquele homem incansável o desejo da perfeição. Depois dos ensaios ou das filmagens, Griffith ainda ficava no estúdio para ver o material filmado na véspera, para acompanhar o trabalho de montagem e de colagem da película, ou para verificar o andamento das construções de carpintaria. Aos fins-de-semana desafiava os operadores de câmara para irem com ele escolher locais de filmagens em exteriores e à noite convidava os actores a verem os filmes nas salas da cidade, a fim de observarem as reacções do público. O sistema de trabalho de Griffith não favorecia a promoção de vedetas, o que se coadunava perfeitamente com a estratégia de poupança da produtora. O grupo funcionava como uma companhia de repertório, na qual o protagonista de uma peça se podia tornar num simples figurante na peça seguinte. No entanto, a popularidade crescente dos filmes de Griffith tornou conhecidos dos espectadores os rostos das suas actrizes favoritas antes mesmo de saberem o seu nome. A aposta em actrizes cada vez mais jovens e talentosas, como Mary Pickford, Blanche Sweet, Mae Marsh, Dorothy e Lillian Gish, entre outras, só parece ter incomodado Linda Arvidson, que teve a paciência de manter o seu casamento com Griffith secreto até se separarem. Durante o período em que trabalhou para a Biograph, entre 1908 e 1913, Griffith dirigiu cerca de quatrocentos e cinquenta filmes, a partir de argumentos de cinquenta e sete escritores diferentes. Mesmo tendo em consideração que se trata de curtas metragens, é um nível de produção extraordinário. Grande parte das histórias utilizadas eram baseadas em situações típicas e em personagens característicos, abertamente inspirados nos clássicos da literatura e do teatro, bem como em faits-divers noticiados pela imprensa. A legislação dos direitos de 23
autor para as adaptações cinematográficas de obras publicadas só entraria em vigor em 1919, pelo que o recurso a narrativas conhecidas era uma prática corrente nos anos dez. A necessidade de encontrar mais histórias originais, directamente concebidas para filme, foi uma preocupação comum às várias produtoras em actividade. Esta questão tornou-se premente quando alguns jornais especializados começaram a incluir rubricas dedicadas ao cinema, exigindo inovação, inteligibilidade e realismo aos novos filmes. O esquema da comédia de perseguição, repetido vezes sem conta, estava a esgotar o interesse do público, e as adaptações de obras romanescas e teatrais revelavam-se demasiado complexas e palavrosas para serem condensadas em filmes de cinco minutos. Embora a maior parte das salas de estreia contasse com a presença de conferencistas, que iam explicando aos espectadores as teias mais complicadas do enredo, os produtores e os exibidores preferiam filmes que dispensassem a necessidade de comentários verbais durante as sessões, de modo a poderem ser projectados sem problemas nos recintos mais modestos que não dispunham de conferencistas profissionais. A rápida expansão do público dos filmes de ficção veio criar, ao nível da recepção, um quadro de referências culturais extremamente diversificado que só uma linguagem visual, directa e universal, permitia contemplar. Parte substancial das crónicas da época denuncia ainda os filmes pela sua falta de realismo. O enquadramento sistemático em forma de proscénio e a representação herdada da escola de pantomima corriam o risco de tomar o cinema num mero sucedâneo do teatro. Tudo o que nos filmes quebrasse a ilusão de realidade, impulsionada pelo ritmo hipnótico das imagens em movimento, começava a ser criticado. Um dos jornalistas que mais se destacaram na formulação pertinente dessas críticas foi Frank Woods, que assinava uma coluna regular no New York Dramatic Mirror. A questão fulcral, assinalada por Woods, consistia em saber como é que o cinema, reproduzindo, por meios fotográficos, acontecimentos encenados que sabemos não serem reais, consegue dar-nos a ilusão de realidade que é, em si mesma, uma virtualidade dramática sem paralelo com as outras artes de representação. A resposta de Woods, formulada ainda com alguma hesitação, inaugura no entanto uma das problemáticas centrais na história das teorias do cinema. Em primeiro lugar, Woods sugere que a ilusão realista do filme deriva da integridade física da própria imagem cinematográfica e da 24
sua capacidade plástica em criar um mundo coerente, alternativo ao mundo real. Em segundo lugar, Woods defende que as mudanças dos planos sejam feitas de modo a evitar rupturas na continuidade narrativa e a assegurar uma ligação lógica entre as cenas. Não é por acaso que Frank Woods vai encontrar nos filmes de Griffith os exemplos mais estimulantes das suas concepções. Com efeito, uma das primeiras preocupações de Griffith, tanto nas mudanças de cena como na divisão da cena em planos, foi precisamente a de assegurar, através da relação visual entre os ângulos de filmagem, uma lógica interna do espaço de representação. Se o actor saía de campo pela esquerda num plano, entrava em campo pela direita no plano seguinte. Esta simples regra de continuidade, mais tarde designada raccord de direcção, visava manter a unidade espácio-temporal da cena e, simultaneamente, disfarçar a natureza artificial da técnica cinematográfica, criando assim a sensação de colagem à realidade. Mas Griffith fez mais do que isso. Depressa compreendeu que o corte de uma imagem para outra imagem permitia manipular o tempo e o espaço sem quebrar a ilusão de continuidade. O que convencia o público de que dois planos, ou dois fragmentos de espaço, eram contínuos, ou contíguos, não era a relação que eles tinham na realidade, mas o efeito preceptivo produzido pela natureza retórica do raccord. Griffith foi explorando as consequências da sua constatação, aumentando o número dos planos, encurtando a sua duração, criando focos de interesse no interior da composição visual através da redução da profundidade de campo, variando a escala e o ângulo dos enquadramentos, mobilizando a câmara, definindo outros parâmetros do raccord para o corte e a junção das imagens, como sejam o movimento dentro do plano, o olhar dos actores, o salto no eixo de filmagem, a posição relativa dos objectos e o tom da iluminação. O espaço fílmico não é, portanto, uma mera reprodução fotográfica do real, mas um espaço imaginário construído pela fissura cavada entre as imagens — entre aquilo que é visível em cada plano (in) e aquilo que, não sendo imediatamente visível por se encontrar fora de campo (off), se reflecte no interior do plano. A montagem alternada (intercutting) estabeleceu-se como o mecanismo elementar da funcionalidade narrativa no interior do mesmo espaço dramático. O corte de um personagem para outro, de um grupo para outro, em simultaneidade, variando as escalas e os ângulos, permite 25
redistribuir a importância dos personagens no interior de cada cena bem como organizar os espaços contíguos e o tempo linear de acordo com as necessidades da linha de acção. É com a exploração formal das potencialidades da montagem paralela entre cenas diferentes, aliada à regra da alternância no interior de cada cena, que Griffith vai demarcar o cinema como uma linguagem capaz de desenhar figuras do pensamento. Pode considerar-se que existe montagem paralela ( cross cutting) sempre que se verificarem os seguintes factores no desenvolvimento unitário de uma sequência narrativa: articulação de duas linhas de acção separadas ou não convergentes; relação narrativa de dois espaços dramáticos não adjacentes; ordenação sequencial de tempos não lineares. São fundamentalmente os cortes produzidos pela montagem paralela que vão permitir o confronto entre espaços e tempos não homogéneos, suspendendo o desenrolar de cada cena e permitindo criar associações de imagens que são rigorosamente associações de ideias. O efeito expressivo intencional da montagem paralela, obrigando as imagens a significar mais do que aquilo que mostram, abriu uma nova era ao discurso cinematográfico. Nos filmes produzidos em 1909, Griffith começou a cortar os planos antes dos actores saírem de campo, interrompendo a acção para mostrar, em alternância, outros personagens em locais diferentes. Este dispositivo básico de montagem paralela, particularmente eficaz em situações de perigo e de salvamento no último instante, permitiu estabelecer relações inusitadas entre as imagens, aumentando a tensão dramática e a participação do espectador no desenvolvimento da narrativa. A repetição constante das cenas em montagem paralela, através da economia dos mesmos eixos de filmagem, permitia ancorar os pontos básicos de referência visual e, simultaneamente, estimular a ansiedade do público, que imaginava a situação dos personagens mesmo quando não os via. A suspensão, provocada pelo corte na imagem, tornava-se assim uma unidade estrutural de construção dramática, uma vez que remetia constantemente o processo narrativo não para o que era visível de imediato em cada plano mas sobretudo para o que o espectador adivinhava e desejava que acontecesse na relação entre os planos. A singularidade de Griffith apoia-se, com um equilíbrio notável, em duas figuras de estilo aparentemente contraditórias: a elipse e a amplificação. A elipse que, em cada mudança de plano, elimina 26
inexoravelmente os tempos mortos da narrativa, e a amplificação que reforça e dá ênfase à corrente emocional desencadeada pela associação entre as imagens. O fundo moralista da maior parte dos filmes de Griffith, apelando à unidade da família, à caridade cristã, ao castigo ou à redenção dos transviados, é servido pela dinâmica de uma poética visual da persuasão sem precedentes. A mais celebrada das inovações atribuídas a Griffith talvez tenha sido a do grande plano. Foi no rosto das actrizes que ele encontrou a exteriorização natural do pensamento e das paixões. No rosto mora o olhar e, por conseguinte, o vértice da intenção expressiva e das relações intersubjectivas, no fundo tudo o que na representação do ser humano remete para o espiritual e para o invisível. O que Griffith procurava nas estrelas de cinema era algo que não se podia aprender nem ensaiar e que, à falta de melhor, ele próprio apelidava de luz interior revelada pelo poder enigmático da câmara de filmar. Como se aos actores eleitos a câmara concedesse o estado de graça. Ao dirigir o elenco, Griffith não se cansava de dizer que a força da representação não se media pela sinceridade do actor, que considerava um dado adquirido, mas sim pelo efeito emocional provocado no público. Lillian Gish chegou ao apuro técnico de colocar um espelho ao lado da câmara para poder ver o alcance da sua expressão no próprio momento da filmagem. Atento a todas as inovações provenientes da Biograph, Frank Woods não tardou em elogiar as potencialidades do grande plano e em chamar a atenção para o modo inconsequente como começou a ser utilizado por realizadores de menor talento. Woods critica sobretudo a maneira como, em certos filmes, os actores oferecem o rosto à câmara dando a sensação nítida de se colocarem a jeito para serem filmados, arruinando assim a invisibilidade da técnica que é o pressuposto essencial da impressão de realidade no cinema. O actor não só fica interdito de olhar para a câmara, como deve evitar todos os movimentos que denunciem ao espectador que tem a consciência de estar a ser filmado. Tudo o que impeça a transparência entre o mundo da ficção e o mundo real deve ser suprimido. A aproximação da câmara aos actores tornou inadequada a actuação baseada no recorte exagerado do gesto declamatório, que fora predominante no quadro do cinema primitivo. Assistimos com Griffith à passagem gradual do código histriónico, reflexivo, estilizado, 27
convencional, ao código de naturalidade, contido, discreto, fundamentado na imitação imperceptível do quotidiano vivido. A autenticidade dos actores nos melhores filmes de Griffith, de que Lillian Gish foi porventura o exemplo mais brilhante, antecipa outro traço decisivo da formulação realista do cinema que se iria revelar fundamental na mitologia do star system — a crença mágica de que a naturalidade das estrelas, em papéis maiores do que a vida, advém da sua múltipla identificação com os personagens que são chamados a interpretar. Em Dezembro de 1913, antes de partir definitivamente para a Califórnia, onde tinha começado a localizar alguns exteriores dos seus filmes desde a Primavera de 1910, Griffith autorizou a publicação de um anúncio no Dramatic Mirror no qual lhe eram atribuídas as principais inovações que revolucionaram a técnica do cinema. Independentemente do seu valor promocional, numa altura em que o realizador abandonava a Biograph para investir na produção de longas metragens, é sintomático que o texto do anúncio reivindique o nome de Griffith como o autor dos principais filmes produzidos pela Biograph, pondo assim termo à estratégia de anonimato que a produtora impunha aos seus contratados. Mais sintomático ainda é o facto do realizador se assumir como autor no seio de uma actividade profissional em que a divisão do trabalho colectivo é uma regra de ouro. Griffith introduzia assim no cinema algumas das características que marcam a função de autor: a atribuição da propriedade intelectual, o estatuto de discurso artístico, a paternidade formal e ideológica, enfim, a autenticação individual dos filmes a partir da assinatura. Griffith pode não ter inventado tudo o que o anúncio quer, provavelmente congratulou-se apenas em ser o mensageiro do tempo na emergência de uma linguagem híbrida em constante mutação. Era um homem com as ideias do passado e a sensibilidade do futuro. Pode mesmo não ter inventado nada, mas cada vez que se dirigia para o local de filmagens Griffith descobria um admirável mundo novo.
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4 OS PASSOS EM VOLTA Havia pelo menos uma hora que Adolph Zukor passeava, sozinho, de um lado para o outro, no seu escritório de Nova Iorque. De vez em quando aproximava-se da janela e olhava para os pombos que esvoaçavam em redor do pórtico da biblioteca do edifício Astor. Conservava o charuto apagado, meio gasto, roído entre os dentes, para evitar ter de acender outro — sabia que andava a fumar de mais. Dera instruções precisas à secretária para não ser incomodado, excepto em caso eventual de urgência com alguma das produções em curso, cujos títulos e respectivos nomes dos directores ela sabia de cor. Zukor passara a manhã a fazer contas e não tinha dúvidas de que não podia perder Mary Pickford para a concorrência. Em pouco mais de dois anos de actividade no financiamento directo de filmes, aquele homem, agora sentado a examinar novamente as folhas de bilheteira das principais cidades do país, tinha constituído a maior empresa mundial de produção e distribuição cinematográficas. Adolph Zukor desembarcou em Nova Iorque em 1888, com 16 anos de idade. Para trás deixara uma infância triste na Hungria. Reza a lenda, fomentada pelo próprio, que ao chegar à América trazia 29
apenas quarenta dólares cosidos no forro do casaco remendado. Quem o conheceu pessoalmente afirma que, no caso de Zukor, a realidade é bem mais complexa e fascinante do que qualquer das lendas com que a imprensa do mundo do espectáculo foi pródiga em descrevê-lo. Tudo leva a crer que estamos perante uma das personalidades que influenciaram com maior incisão e persistência a estrutura do negócio do cinema na América. Depois de ter trabalhado no comércio de peles, Zukor investe numa pequena sala de cinema, em 1903. É então que os filmes de Porter conhecem um êxito assinalável e a popularidade do cinema de ficção faz desvanecer o cepticismo inicial acerca do futuro da nova forma de espectáculo. Zukor vai comprando salas cada vez maiores até que, em 1912, decide fundar uma produtora de longas metragens, baseadas em adaptações de célebres romances e peças de teatro. A Famous Players Film Company, cuja divisa publicitária era actores famosos em peças famosas, anunciava todo um programa de acção que se veio a revelar fundamental na consolidação económica do cinema narrativo. Zukor decidiu-se a fundar a produtora depois de, em sociedade com Porter, que entretanto abandonara o estúdio de Edison, ter ganho imenso dinheiro com a importação do filme de arte francês Queen Elizabeth, interpretado por Sarah Bernhardt. O Filme de Arte — assim se chamava a produtora francesa — era a resposta europeia à necessidade de emprestar prestígio cultural ao espectáculo cinematográfico, ainda muito associado ao entretenimento de feira. A táctica consistia em contratar actores da Comédie Française para representar peças de repertório que tinham feito carreiras triunfais no palco. O resultado era puro teatro filmado, estático e pretensioso, que, passada a novidade, depressa desapareceu dos ecrãs. Mas Zukor e os seus sócios, entre os quais se contavam Jesse Lasky e Cecil B. De Mille, acreditavam na capacidade de autonomia do espectáculo cinematográfico e, portanto, na necessidade de produzir filmes de média e longa metragem que pudessem ser exibidos fora dos circuitos de vaudeville. A questão residia na urgência em encontrar histórias que se adaptassem com facilidade ao novo meio de expressão e tivessem a duração adequada para preencher uma sessão de cinema. A resposta imediata consistiu, obviamente, no recurso à literatura e ao teatro. 30
Zukor criou então, dentro da sua produtora e distribuidora, consagrada com o nome de Paramount Pictures Corporation, as películas de Classe A, com maiores recursos de produção, adaptadas dos clássicos e realizadas por Porter, e as películas de Classe B, escritas para o gosto popular, na sua grande maioria interpretadas por uma jovem actriz que ele tinha ido buscar à Broadway e que se notabilizara numa produtora rival: Mary Pickford. O que as folhas de bilheteira agora tão claramente mostravam é que os filmes da pequena Mary faziam mais receitas do que todos os outros juntos, fossem de que classe fossem. Zukor lembrava-se perfeitamente da observação casual de um dos seus vendedores: «enquanto tivermos Mary Pickford em carteira podemos vender em conjunto todos os filmes da Paramount». Destes factos retirou Adolph Zukor algumas conclusões que iriam determinar a sua estratégia e o modo de funcionamento do filme comercial praticamente até aos nossos dias. Em primeiro lugar, a consagração da longa metragem de ficção como sendo o núcleo essencial da actividade lucrativa do cinema industrial. Em segundo lugar, a concepção de que o valor mercantil dos filmes assenta sobretudo no nome dos actores capazes de estabelecer uma forte relação afectiva com o público. Em terceiro lugar, a ideia de que a melhor maneira de proteger comercialmente todos os filmes da mesma produtora consiste em distribuí-los em conjunto — prática designada por block booking — impondo os produtos menores ou imprevisíveis no mesmo pacote obrigatório onde se incluem os filmes que apresentam a mais-valia mítica das estrelas da companhia. Eis a razão porque Zukor não podia deixar escapar Mary Pickford para a concorrência. Mary tornara-se uma vedeta incontestada com os filmes que fizera sob a direcção de Griffith na produtora Biograph a partir de 1908. Agora, era a actriz mais bem paga do cinema americano e os seus filmes atraíam mais espectadores em todo o mundo do que os de qualquer outra estrela, incluindo Chaplin. Não era, pois, de estranhar que, no termo do seu contrato, Pickford tivesse marcado uma reunião com Zukor para reivindicar novo aumento de salário. Quando a secretária anunciou a chegada de Pickford às instalações Adolph Zukor guardou zelosamente os relatórios de exploração, esmagou o resto do charuto no cinzeiro de mármore que tinha em cima da mesa e levantou-se para ir receber a estrela à porta. Como de costume, Mary Pickford fazia-se acompanhar pela mãe, Charlotte 31
Smith, a quem todos chamavam Mrs. Pickford. Cumpridas as formalidades da ocasião, a mãe de Mary foi directa ao assunto e estendeu ao produtor uma carta de intenções onde estavam descritas, em pormenor, as novas exigências contratuais da actriz: — salário de mil dólares por dia, mais benefícios de 50% nos lucros dos filmes em que entrasse; — participação como protagonista em apenas seis filmes por ano, de modo a melhorar as condições de produção de cada filme e a valorizar, pela escassez doseada, as películas de Pickford no mercado de exibição; — distribuição separada dos filmes de Pickford, de maneira a impedir a contratação em block booking dos produtos Paramount e dos produtos Pickford; — direito de veto na escolha dos realizadores, dos argumentistas e do restante elenco de cada filme de Pickford; — escrita em exclusivo de argumentos adequados às particularidades da actriz e da sua carreira; — controlo pessoal da sua imagem pública através do departamento de publicidade da produtora; — apresentação do nome de Mary Pickford, tanto nos genéricos como nos cartazes, em primeiro lugar e em letra maior do que a dos outros participantes; — direito de aprovação da montagem final dos filmes; — acesso aos registos de contabilidade, quer da produção quer da distribuição dos seus filmes; — carros e camarins privativos, para si e para a sua mãe, sempre acompanhadas, no mínimo, de uma criada e de uma secretária pagas pela produção. Por brevíssimos instantes, Zukor fez girar a cadeira em torno do eixo metálico, sem que a sua face indicasse a mínima contracção de Contrariedade. Ele tinha fama e proveito de ser um negociador duro, mas aquele papel ultrapassava tudo o que podia esperar. Levantou-se e começou a explicar, com imensa delicadeza, em voz excessivamente baixa, carregada de sotaque, as dificuldades criadas pela proposta radical da família Pickford. Os salários das estrelas, dos actores e dos criativos em geral, iriam disparar em flecha, os aumentos dos custos de produção iriam certamente repercutir-se no preço dos bilhetes de cinema, os riscos da produtora iriam, portanto, crescer de uma maneira 32
difícil de controlar. Embora fosse, em parte, responsável pelo culto de vedetismo dos seus actores contratados, o produtor não se enganava nas previsões. Entre 1913 e 1920, o aumento do custo de produção dos filmes americanos multiplicou por sessenta, arrastando para a falência muitos dos pequenos produtores independentes e favorecendo a concentração da actividade em poucas empresas de grande envergadura, mais tarde ditas Majors. Enquanto Zukor e Mrs. Pickford trocavam polidamente de razões, elevando a fasquia do confronto negociai, a pequena Mary observavaos com um misto de ironia e admiração — estava de facto perante dois actores admiráveis. Mas agora era a vez de ela representar o seu próprio papel de estrela e empresária. Mal começou a falar, a mãe e o produtor calaram-se e assestaram o olhar em uníssono, como se ambos estivessem à espera de ouvir a revelação final pela voz da própria pitonisa. Mary limitou-se a reafirmar sem hesitação a evidência de todos os pedidos, pois, em seu entender, o público estaria sempre na disposição de pagar aquilo que fosse preciso para ver na tela aqueles que ama. Não houve mais divagações. O contrato com Mary Pickford foi assinado a 21 de Novembro de 1914, depois renovado em 24 de Junho de 1916 com novo aumento de salário, abrindo perspectivas inéditas ao futuro da indústria cinematográfica. Implícito na atitude de Mary Pickford estava o conceito, há muito compreendido e posto em prática por Zukor, de que a matéria-prima do cinema não são os cenários, nem os efeitos especiais, ou as maravilhas da técnica, mas sim as pessoas. Produtores, escritores, realizadores, directores de fotografia, cenógrafos, técnicos, todos eles são fundamentais, mas são os actores que o público conhece e venera, é prioritariamente para ver as estrelas brilhar no ecrã que se compram bilhetes. O passo seguinte consistiria, portanto, em aperfeiçoar o star system de maneira a poder monopolizar e rentabilizar ao máximo os circuitos de exibição. Zukor desenvolveu então um laborioso sistema de estreias em exclusividade — chamado first run — no qual, esquematicamente, os filmes de Classe A, com estrelas de primeira grandeza, eram lançados nas melhores salas do país, portanto as mais caras, e só depois eram distribuídos nas salas de bairro ou de reprise. Quem controlasse as estrelas, controlava simultaneamente o parque de exibição, que não podia dispensar os títulos de maior êxito comercial. 33
Arrumado o contrato com a estrela, Zukor mandou chamar B. P. Schulberg, assistente pessoal da sua inteira confiança e responsável pelos argumentos de alguns dos filmes de maior êxito interpretados por Pickford. Fora ele o coordenador da astuta campanha publicitária que fizera da pequena Mary a namorada da América. B. P. Schulberg era seguramente um dos homens mais bem remunerados da Paramount, visto que se orgulhava de ter uma folha de salário de quinhentos dólares semanais. Tal como muitos outros, Benjamin Percival Schulberg — B. P. para os amigos — chegou ao cinema praticamente por acaso. Tendo começado a trabalhar como jornalista aos 16 anos, com a secreta ambição de se tornar escritor, depressa se encontrou a fazer crónicas sobre os filmes que apaixonavam os leitores. Um dia, em 1912, abordou Porter com a intenção de angariar um anúncio para o jornal e acabou por ser convidado a escrever histórias para o cinema. Porter tinha deixado a empresa de Edison e precisava de quem lhe escrevesse dois argumentos por semana, para pequenos filmes de duas bobinas. B. P. Schulberg aceitou a tarefa, incomparavelmente mais bem paga do que a de jornalista, e encarregou-se de coordenar um departamento literário cujas funções iam desde a aquisição de direitos autorais de obras já publicadas até à descoberta de novos talentos da escrita rápida. Quando Porter foi convidado para executivo da produtora de Zukor, B. P. acompanhou-o, assumindo um cargo de responsabilidades acrescidas, que incluía a definição da estratégia comercial e publicitária da empresa. A sós, Zukor informou B. P. acerca dos termos do novo contrato de Mary Pickford. Perante a exorbitância do salário da actriz B. P. achou que podiam utilizar esse facto para criar notícias de sensação e, desse modo, capitalizar mais uma campanha publicitária gratuita. A estratégia daria resultados diversos, todos eles, de resto, extremamente eficientes. Os outros actores e restantes profissionais passaram a aferir os seus proventos em função do novo padrão conquistado por Pickford, formando-se assim, na comunidade cinematográfica, uma espécie de cotação de bolsa dos comediantes de mais elevado estatuto salarial. Por outro lado, a divulgação pública dos cacheis fabulosos contribuiu, sem dúvida, para atrair os espectadores e reforçar ainda mais a imagem olímpica das estrelas. Ao nível dos próprios filmes, a visibilidade ostensiva dos valores de produção tornou-se uma das 34
componentes essenciais do espectáculo: quem quiser, ou souber, pode ver no ecrã os milhões e milhões gastos em cenários, guarda-roupa, adereços, viagens, destruições, efeitos e proezas técnicas, e pode sempre sonhar com a vida privada das estrelas, cuja riqueza incalculável a imprensa não deixará de mencionar em cada oportunidade. No fim de mais um dia de trabalho, Zukor não deixou de se mostrar extremamente afável com B. P., perguntando-lhe pelo seu filho Budd, de oito meses de idade, a quem frequentemente oferecia prendas. B. P. agradeceu a amabilidade do patrão, acrescentando, depois de breve reflexão, que estava na altura de falarem do seu aumento de ordenado. Zukor sorriu, apertou a mão do colaborador dilecto e prometeu pensar no assunto. Depois de B. P. Schulberg sair do escritório, Zukor dirigiu-se novamente até à janela, de onde observou os ardinas, quase crianças, na rua, apregoarem a proclamação do Presidente Wilson em manter a neutralidade dos Estados Unidos perante a guerra desencadeada na Europa. Decididamente, o produtor tinha muitos imprevistos a preocupá-lo. Nessa tarde, a fim de ganhar tempo e movimento para pensar melhor, Adolph Zukor dispensou os serviços do motorista da Paramount e fez uma longa caminhada pelo Central Park até casa.
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Filmagem em exteriores nos anos dez.
5 AS RECEITAS E OS COZINHEIROS Linda Arvidson estava a ler a coluna semanal de Frank Woods no Dramatic Mirror quando soube que o jornalista estava no estúdio para falar pessoalmente com Griffith. A insistência e a seriedade postas por Woods nas críticas aos filmes da Biograph tinham convencido a empresa a publicar meia página de publicidade no seu jornal com as estreias da semana. Agora, Woods vinha apresentar três sugestões para filmes de Griffith. O realizador não só comprou os argumentos como acabou por convidar Woods a organizar um departamento de histórias na produtora. Woods aceitou a proposta de bom grado, tanto mais que era muito melhor remunerado do que no jornal. Frank Woods chegou a escrever mais de trinta filmes para a Biograph, supervisou a colaboração de outros escritores, adaptando as histórias às exigências da continuidade fílmica, e tornou-se o responsável pelo trabalho de pesquisa das produções com carácter histórico ou etnográfico, introduzindo numa profissão muito dada à fantasia e à efabulação um mínimo de respeito pela fidelidade aos factos e aos costumes. No início dos anos dez, a necessidade da indústria responder ao entusiasmo do público e arranjar histórias originais para cinema levou 37
várias produtoras a colocarem anúncios nos jornais e a organizarem concursos de argumentos. Qualquer tipo de história servia, desde que tivesse o mínimo de originalidade. Alguns apelos eram mais específicos, como aquele da Biograph que solicitava histórias de problemática social de forte contraste entre ricos e pobres. Outras companhias preferiam comédias, filmes de cowboys, temas ligados aos caminhos de ferro ou, simplesmente, cenas passadas ao ar livre. Uma das leitoras que responderam aos anúncios da Biograph foi Anita Loos. Actriz desde os 5 anos, filha de um empresário de vaudeville de San Diego, Loos enviou a sua primeira ideia pelo correio. Na volta, recebeu um envelope com vinte e cinco dólares —a sua história tinha sido comprada por Griffith, o filme chamava-se The New York Hat e era interpretado por Mary Pickford, Lionel Barrymore, Dorothy e Lillian Gish. Estávamos em 1912 e Anita tinha apenas 19 anos. Nos meses seguintes Loos foi enviando mais histórias pelo correio e todas foram aceites. Em 1913 Anita Loos vendeu à Biograph cerca de quarenta argumentos originais para filmes de uma bobina, recebendo, além dos respectivos cheques, o convite de Griffith para ir trabalhar com ele como argumentista residente. Infelizmente, raríssimos foram os candidatos a argumentistas que revelaram o talento de Anita Loos. Na opinião generalizada dos editores de argumentos das produtoras, a quem cabia a responsabilidade de ler e seleccionar as histórias recebidas, solicitar textos a desconhecidos redundava em pura perda de tempo. A esmagadora maioria dos amadores não fazia a mínima ideia do que fosse um enredo dramático, limitando-se a copiar artigos de revistas e a relatar, quase sempre em mau inglês, reminiscências de carácter vagamente autobiográfico sem nexo nem continuidade. Os melhores argumentistas americanos do período mudo vieram, pois, do jornalismo ou do teatro. Antes de 1915 o prestígio artístico do cinema era tão reduzido que tanto os actores como os escritores não se importavam de trabalhar praticamente no anonimato. Com a publicação nos Estados Unidos, em 1919, do código de direitos de autor para o cinema, a indústria do espectáculo tornou-se, para muitos escritores e imitadores, uma fonte de receita superior à de qualquer outra actividade profissional baseada na escrita. Um dos argumentistas a recordar com algum humor e rigor o espírito pioneiro dos anos dez é William De Mille, 38
irmão mais velho do célebre realizador, que em 1939 publicou as suas memórias com o título Hollywood Saga. Cecil B. De Mille começara a sua carreira como actor e empresário na Broadway, ao lado de William. Aliciado por Jesse Lasky a tornar-se produtor e realizador de cinema, Cecil partiu em 1913 para a Califórnia, à procura de exteriores com bom clima e paisagens diversificadas. Nos arredores de Los Angeles, num local chamado Hollywood, alugou um velho celeiro que transformou em estúdio de cinema. The Squaw Man foi rodado em dezoito dias, com a duração de seis bobinas, facto invulgar para a época. O enorme êxito comercial do filme contribuiu para lançar a voga da longa metragem e atrair outros produtores a Hollywood que, em poucos anos, se tornou o maior centro mundial de produção cinematográfica. William De Mille chegou a Hollywood em 1914, com a incumbência de inventar, descobrir e adaptar histórias para a produtora de Lasky e De Mille, cujos planos consistiam em estrear todos os meses uma nova longa metragem de ficção. Dramaturgo com muita tarimba de palco, William escreveu os seus primeiros argumentos estruturados em cenas longas, como se fossem peças de teatro. Verificou, com grande mágoa, que tanto Cecil como os outros realizadores da companhia não respeitavam as suas indicações e cortavam os argumentos num número enorme de cenas curtas, fragmentando as unidades de espaço e utilizando uma maior variedade de locais de acção. William ficou admirado com os resultados: eram melhores do que esperava. Paciente e esforçado, aprendeu a nova técnica de escrita para cinema, adoptou as regras e os procedimentos que gradualmente se instituíram como dogma: a unidade narrativa do cinema não é, forçosamente, a cena, como no teatro, mas a sequência de imagens, que deve ser concebida e montada de modo a que o espectador não se aperceba dos cortes dos planos nem das mudanças de espaço, entretido que está com o movimento, a lógica e a continuidade da acção. Outra norma que William rapidamente acatou, tomando em consideração a estratégia comercial de Cecil, foi a de que há assuntos e tratamentos que não se adequam à indústria cinematográfica por interessarem um número reduzido de espectadores. O bom argumento de cinema é aquele que lida com valores humanos básicos e universais, tratados ao nível da psicologia e do grau de instrução do mais modesto 39
espectador. Neste particular, os irmãos De Mille espelham um dos conceitos tenazes de Hollywood desde a sua fundação. A imposição do menor denominador comum para os argumentos de sucesso não impediu que Hollywood desse à luz alguns dos melhores filmes jamais produzidos. Foi esse trunfo comercial que mobilizou os grandes investimentos financeiros nos anos vinte, quando se tratou de padronizar e rentabilizar o negócio através das estrelas, dos géneros, dos temas e dos valores de produção. Apesar da evidente boa vontade em se integrar no trabalho de equipa, William continuou a ter conflitos esporádicos com os realizadores, por achar que os textos nem sempre encontravam a sua expressão ideal nas imagens. Não lhe foi difícil aceitar que os pontos de vista do argumentista e do realizador não são coincidentes, mesmo se ambos visam o mesmo fim. Quando assistia às rodagens, William era levado a admitir que nenhum texto escrito, por mais minucioso que fosse, podia dar a dimensão completa do que é a direcção de actores, a composição do plano, a vibração da luz ou a espantosa energia humana resultante do contágio entre os elementos que integram uma filmagem. Mas também sabia que nada daquilo era possível sem o argumento. Em jeito de parábola, para quem gostava de o ouvir, William De Mille passou a comparar a relação entre o argumento e o realizador com a relação entre a receita e o cozinheiro. Por mais antiga e conhecida que seja a receita, é ao cozinheiro que compete dar-lhe o gosto inconfundível e sempre renovado. A receita pode ser excelente mas só adquire o seu verdadeiro sabor depois de ser preparada por um cozinheiro competente. Uma boa receita nas mãos de um mau cozinheiro... A palestra é banal e não tem por certo um grande alcance teórico, mas ajudou a apaziguar a ira do argumentista contra os realizadores. De facto, pouco tempo depois, William De Mille decidiu que só havia uma maneira segura de entrar na cozinha para preparar os ingredientes, os temperos, a confecção e o paladar dos pratos — além de argumentista, tornou-se também realizador e produtor. Em 1915 Griffith junta-se a Mack Sennet e a Thomas Ince para formarem a Triangle, produtora exemplar que, apesar da sua curta duração de dois anos e meio, prefigura uma tendência irreversível no cinema americano: a vontade dos realizadores-produtores controlarem melhor a execução dos seus filmes, em parte devido ao aprofun40
damento do modo de escrita dos argumentos. À medida que os filmes se apresentam mais longos e espectaculares, a estrutura narrativa mais complexa e os custos de produção mais elevados, toma-se necessário criar instrumentos fiáveis de previsão de despesas e de gestão de recursos que passam pela avaliação minuciosa e atempada de todos os meios indispensáveis à rodagem. Na prática, esses elementos de previsão e cálculo — do orçamento ao mapa de trabalho, das localizações à fotografia, do elenco à equipa, da cenografia aos adereços, dos transportes à figuração — dependem, em rigor, de uma análise técnica altamente especializada do argumento. A figura tutelar na formulação consequente deste novo tipo de postura face ao argumento é Thomas Ince. Actor esporádico desde 1910, realizador e produtor desde 1912, Ince fez fortuna com uma série de filmes de cowboys, dos quais as vedetas principais eram William S. Hart e uma companhia de circo que incluía índios e cavaleiros sempre disponíveis para as filmagens. Quando o número de produções aumentou para além da capacidade de Ince poder assegurar pessoalmente a sua direcção, contratou realizadores que dirigiam os filmes de acordo com as suas indicações. Ince construiu os primeiros estúdios modernos em Hollywood, apostou nos valores de produção como forma de espectáculo, insistiu na fluidez visual da narrativa e formalizou a distinção prática entre a história literária descrita no argumento ( story script) e o guião de filmagem (shooting scrípt), planificado até ao mínimo pormenor técnico. O mais usual na época era os argumentistas entregarem às produtoras o conteúdo narrativo escrito em prosa corrida, eventualmente dividido em cenas, com uma descrição breve dos personagens. Depois de escrever ou comprar os argumentos, Thomas Ince distribuía-os pelos editores de argumentos e pelas unidades de produção cujos técnicos de continuidade e assistentes de realização elaboravam os guiões finais, com o respectivo desgloso (script breakdown), no qual se procedia ao levantamento dos locais de rodagem, dos adereços, do guarda-roupa, dos transportes, dos actores e de todos os elementos necessários à execução do orçamento e do mapa de trabalho. No guião de continuidade dividiam-se as cenas em planos, indicando o ângulo e â escala de cada plano, bem como a acção, o diálogo e as diversas rubricas de produção, de cenografia e de efeitos de fotografia. Antes dos filmes entrarem em produção Ince voltava a examinar os guiões, corrigia-os 41
cena por cena, anotava-os com sugestões precisas e carimbava-os com a indicação expressa de que o realizador devia filmar como está escrito. Os orçamentos, os prazos e as planificações eram escrupulosamente cumpridos. Os pormenores da rodagem eram resumidos pelos chefes de produção em relatórios diários que permitiam analisar a eficácia, a disciplina e a rentabilidade do sistema. A fase de montagem era também acompanhada e aprovada por Ince, que distribuía e estreava alguns desses filmes como se tivessem sido dirigidos por ele próprio. Esta estratégia dominada pela figura do produtor, considerada por diversos historiadores como o primeiro passo para a futura política orgânica dos grandes estúdios de Hollywood, limitava seriamente a liberdade de improvisação, de decisão e de autoria dos realizadores contratados. Em 1915, a padronização do guião de filmagem é um dado adquirido. A complexidade da produção do filme narrativo de longa metragem obriga à rescrita das histórias em termos de continuidade planificada, por forma a poderem ser facilmente analisadas e quantificadas pelos vários sectores dos estúdios. Uma vez que nenhum projecto é aprovado sem orçamento, a rescrita do argumento em termos de continuidade torna-se uma prática industrial obrigatória, alienando os escritores de um trabalho onde a qualidade da prosa original é constantemente ameaçada pela tirania dos números e do jargão dos especialistas. Os departamentos de argumentos, e os respectivos editores, que escolhiam, adaptavam e rescreviam o material de ficção adquirido, passaram a ser o centro nevrálgico do poder dos produtores. O editor de argumentos da Triangle, colaborador inseparável de Ince e guionista da maior parte dos seus filmes, foi Charles Gardner Sullivan, outro nome vindo do jornalismo. Depois de ter escrito para Ince, em menos de dois anos, cerca de sessenta argumentos para filmes de aventuras de duas bobinas, nos quais afinou o protótipo do mau e bom rapaz do Western, Sullivan tornou-se o mais bem pago e célebre argumentista de longas metragens do cinema mudo americano, estabelecendo, depois da morte de Ince, ocorrida em 1924 em circunstâncias misteriosas no iate de Hearst, uma proveitosa aliança profissional com Cecil B. De Mille. Por enquanto era William De Mille que continuava a assegurar a coordenação do departamento de argumentos da produtora de Cecil e Lasky em Hollywood, mais tarde integrada na Paramount. Os fracos 42
resultados obtidos com os concursos de argumentos de amadores convenceu os editores de cinema da necessidade de continuarem a procurar as boas histórias onde era natural que elas estivessem — na imprensa, em particular nas revistas de ficção, nas peças de teatro, nos livros de contos e romances. O esquema parece óbvio: na impossibilidade de lerem tudo o que se publica, os produtores e editores de argumentos contratam colaboradores, justamente chamados leitores, cuja função é pesquisarem as fontes de publicação de ficção e redigirem relatórios de leitura que são basicamente sinopses das histórias reduzidas a meia dúzia de linhas, com a indicação dos eventuais valores dramáticos e de produção contidos nos originais. William depressa se apercebeu das limitações implícitas no julgamento de valor de uma história a partir da sua condensação feita por alguém que, nesse tempo, provavelmente nem sequer era escritor. Mas não encontrou outra solução para a sobrecarga de leituras e de rescritas em que se viu envolvido. O método manteve-se, foi aperfeiçoado e consolidou-se como moeda corrente na indústria. Há várias razões para explicar a preferência dos produtores pela adaptação de material literário previamente publicado. A principal liga-se ao facto da ficção já ter sido testada pelos leitores, público potencial das salas de cinema. A corrida à aquisição dos direitos de autor dos best-sellers reflecte a preocupação dos produtores apostarem em histórias que oferecem um certo grau de aceitação prévia, uma espécie de mais-valia imaterial, sobretudo numa actividade em que os resultados comerciais podem ser muito aleatórios e a concorrência joga permanentemente na escalada dos custos de produção. Depois, a propriedade literária está isenta, em princípio, dos processos legais de acusações de plágio que ocorrem com frequência com as histórias de autores desconhecidos. Uma vez registada e adquirida, a propriedade literária pode ser adaptada, deturpada, transaccionada, exportada, refilmada, arquivada, tornando-se um investimento permanente da produtora, nomeadamente quando o título do livro se torna famoso. Graham Greene, um dos romancistas ingleses mais vezes adaptado ao cinema, dá o seguinte testemunho da estratégia literária dos produtores americanos: «Quando vendemos um livro a Hollywood é de vez. Os extensos contratos de Hollywood — folhas e folhas em letra miudinha, tão longas como o primeiro tratamento do romance que é vendido — garantem que ficamos sem quaisquer direitos de autor. O produtor do
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filme pode alterar o que quiser. Pode transformar a nossa tragédia passada num bairro popular londrino numa comédia musical passada em Palm Springs. Nem precisa de conservar o título original, embora o título seja praticamente a única coisa que lhe interessa conservar». Ao contrário da maior parte dos escritores que assinaram contrato com Hollywood, Graham Greene nunca se queixou: «É uma perda de tempo ficar ofendido. Sacamos o dinheiro e continuamos a escrever durante mais um ou dois anos, sem justa causa para qualquer recriminação. Somos os últimos a rir, porque o livro tem a vida mais longa». Em 1919 Samuel Goldwyn ensaiou uma estratégia singular. Em vez de comprar os direitos de livros editados, resolveu comprar directamente os escritores, garantindo em exclusivo para a sua produtora os direitos das obras que esses autores viessem a escrever. No anúncio de trinta e duas páginas, publicado em dois jornais de Hollywood, o produtor apelidava a sua iniciativa de Autores Eminentes e explicava que ao capricho dos actores-estrelas preferia o prestígio dos autoresestrelas. A euforia durou pouco tempo porque os escritores, incapazes ou desinteressados de escrever a pensar nas imagens cinematográficas, foram unânimes em queixar-se do modo aviltante como o departamento de argumentos, ao passar a prosa a pente fino para estabelecer as folhas de visualização e de continuidade fílmicas, destruía o que de mais precioso existia nos textos. O célebre trocadilho de Bernard Shaw em declaração aos jornalistas, depois de ter desistido de fazer parte dos Autores Eminentes, insinua o fundo da questão: «só há uma diferença entre o Sr. Goldwyn e eu, é que enquanto ele anda à procura de arte eu ando à procura de dinheiro».
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Douglas Fairbanks: a simpatia da estrela.
6 O ESPÍRITO DO MAL A febre dos argumentos, que contaminou Nova Iorque nos anos dez e Hollywood nos anos vinte, reflectiu sem dúvida o esforço das produtoras em demanda de novos talentos da escrita, alimentado por um número inesperado de publicações que vinham explicar aos leigos como se devia escrever com êxito para o cinema. Muitos pareciam de facto livros de receitas, inventariavam os truques mais batidos da dramaturgia popular do século XIX, em particular o melodrama e a comédia, outros procuravam sensibilizar a audiência para as virtualidades do novo meio de expressão visual que conciliava a emoção do drama com a progressão da narrativa e a velocidade da montagem. Alguns dos responsáveis por esses manuais eram jornalistas da especialidade que aproveitavam a moda para se verem revestidos de uma nova autoridade perante a indústria e os leitores. Os mais prestigiados tornaramse argumentistas profissionais ou passaram a colaborar como assessores nos departamentos de histórias das produtoras. Outros títulos eram assinados por individualidades bem instaladas na indústria, como Frederick Palmer, grande dinamizador da Palmer Photoplay Corporation, que ministrava cursos de formação profissional para técnicos de cinema.
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Um dos livros que teve a fama e o proveito de ser dos mais lidos chama-se How to Write Photoplays, foi publicado pela primeira vez em 1920 e trazia a chancela de Anita Loos e John Emerson. Os autores conheceram-se no escritório de produção de Griffith em 1915, quando este procurava formar equipa para lançar Douglas Fairbanks, até então notado sobretudo como actor de teatro. Emerson, que ensaiava os primeiros passos na realização cinematográfica, descobriu por acaso nos arquivos da produtora um argumento de Anita Loos que Griffith comprara mas não chegara a filmar por achar que tinha legendas a mais. Emerson insistiu no projecto e Anita Loos recebeu autorização para desenvolver o argumento que iria proporcionar a Fairbanks o filme que o lançou no estrelato. His Picture in the Papers , estreado no Roxy Movie Palace na Primavera de 1916, consagrou um novo tipo de herói, descontraído, optimista, atlético, sedento de fama e glória, impecavelmente vestido, sempre em acção, fervoroso defensor das damas, do consumo conspícuo e da democracia imperial, contra a ameaça larvar da sociedade industrial e burocrática — a monotonia. Nos filmes que fizeram com Douglas Fairbanks, actor capaz de dosear como poucos os ingredientes de que era feito, John Emerson revelou-se um cozinheiro atilado, discreto, sem carregar nos temperos, e Anita Loos uma hábil inventora e recriadora de receitas. No celebrado livro acerca de como escrever filmes, depois de reconhecerem que a escrita para cinema é a mais lucrativa que se pode imaginar, Loos e Emerson afirmam, sem rodeios, que o único tipo de histórias susceptível de interessar os produtores e originar um bom filme é o que oferece potencialidades dramáticas. Convidam-nos a imaginar a história do Capuchinho Vermelho sem o Lobo Mau. A inocente menina atravessa a floresta, entrega os bolos à avozinha e volta para casa na paz dos anjos. Eis o exemplo típico da história sem potencial dramático. Há, sem dúvida, uma narrativa, composta pela sucessão de acontecimentos interligados e organizados pelo percurso da menina. Mas nesse percurso não acontece nada que provoque a reacção ou a adesão emocional do espectador. Com a entrada do Lobo na história o caso muda de figura, porque o Lobo Mau representa a mais forte configuração de conflito que um protagonista pode enfrentar — o perigo físico da morte iminente. O drama caracteriza-se, em primeiro lugar, pela intensidade do conflito e da crise que forçam os personagens a agir em defesa da sua 46
integridade. Não é obrigatório que o conflito seja sempre cristalizado em torno de confrontos de natureza física, como lutas, perseguições e duelos, embora estes sejam obviamente mais propícios às cenas de agitação privilegiadas pelo cinema-espectáculo. Loos e Emerson defendem que certas histórias sejam construídas com base em acções mentais, sem que a resolução do conflito implique qualquer tipo de violência física. Imaginam, por exemplo, que o Lobo Mau possa ser um perverso corrector da bolsa que ameaça lançar na ruína a avozinha para depois poder salvar da miséria a menina do Capuchinho Vermelho e comê-la à vontade. Num caso como noutro, o essencial é que aconteça qualquer coisa que desequilibra a harmonia do mundo, coloca os heróis em risco e desencadeia o envolvimento emocional do espectador. Na versão de Perrault, depois de sair de casa da mãe, que lhe entrega um bolo e um pote de manteiga para dar à avó, que vive noutra aldeia, a menina do Capuchinho Vermelho encontra o Lobo quando atravessa um bosque. Noutras versões o Lobo aparece num cruzamento da estrada, no momento em que a menina tem de escolher qual o caminho a seguir. A opção do caminho e a atitude a tomar perante o Lobo são fundamentais para o desenrolar da história porque obrigam a protagonista a escolher o seu destino. É o ponto narrativo que alguns manuais de argumento designam por nó da intriga ( plot point). O nó da intriga, equivalente à peripécia na dramaturgia clássica, é o acontecimento imprevisto, normalmente um obstáculo físico ou uma causa de sofrimento, alheios à vontade da personagem, que a obrigam a tomar uma decisão que compromete a evolução da narrativa e a faz desenvolver-se numa direcção inesperada. O aparecimento de qualquer Lobo Mau, enquanto figura simbólica do espírito do mal, constitui quase sempre um nó da intriga na ficção do cinema clássico.
Não há, portanto, uma boa história sem um antagonista forte, decidido e ameaçador, que possa perturbar o desejo do protagonista e criar-lhe barreiras aparentemente intransponíveis. O perfil moral do opositor é determinante na definição da história, tanto que, na maior parte dos casos, forma com o herói um par conceptual indissociável, como no exemplo agora utilizado. Em muitas versões do Capuchinho Vermelho, nomeadamente na dos irmãos Grimm, a menina é advertida no início para os perigos que corre ao afastar-se do caminho 47
indicado pela mãe. Suspeitamos, desde logo, que é exactamente isso que vai acontecer. Quanto mais o leitor, ou o espectador, souber acerca das intenções das personagens e do que pode ocorrer se elas transgredirem o interdito ou se desviarem do percurso da normalidade, maior efeito surtem os nós da intriga, que, justamente, vêm confirmar, pelo impacto da surpresa aguardada, a expectativa do pior. E a técnica narrativa que os teóricos do argumento canónico apelidam de antecipação (foreshadowing). O espectador receia e deseja os perigos que se avizinham, porque sem eles não há história nem excitação. Os géneros mais populares do cinema, como o horror e a comédia, assentam no sábio doseamento do dispositivo da antecipação: o horror confirma, nas peripécias de acção violenta, as catástrofes prováveis enumeradas nas cenas de exposição; os gags invertem e destroem sistematicamente as iniciativas do herói cómico. Em ambos os casos, a antecipação encaminhou o desenvolvimento da narrativa, deu credibilidade aos acontecimentos e preparou a eficácia do resultado previsto (pay off). O bosque onde a menina encontra o compadre lobo representa o desconhecido e a multiplicidade de itinerários que espreitam por detrás de cada árvore. O caminho indicado pela mãe é seguro e virtuoso, orientado pelo princípio da realidade, mas não responde ao impulso da curiosidade nem ao desejo da descoberta. A floresta pode ser perigosa mas é lá que se encontram as tentações e o princípio do prazer de que são feitas as histórias. Se a materialização do mal assusta e fascina no mesmo estremecimento emocional é porque toca fundo no enigma da natureza humana, doutro modo não se compreenderia que fosse capaz de mobilizar e comover tantos públicos. Depois do Capuchinho Vermelho ter dito ao Lobo Mau que vai a casa da avó, e de o ter informado do local onde mora a avó, o Lobo propõe-lhe irem por caminhos diferentes e ver quem lá chega primeiro. «O Lobo pôs-se a correr com todas as suas forças pelo caminho mais curto e a menina foi pelo caminho mais longo, divertindo-se a apanhar avelãs, a correr atrás de borboletas e a fazer ramos com as florinhas que encontrava» (Perrault). O movimento das duas personagens por caminhos diferentes permite, num filme, desdobrar as sequências em montagem paralela e introduzir pontos de vista diferenciados para cada uma das personagens. O resultado prático, ao nível da estrutura do argumento, é facilitar a manipulação da informação e do tempo 48
narrativo de modo a intensificar os efeitos dramáticos sugeridos pela antecipação. Enquanto o Lobo corre, a menina demora-se pelo caminho, aumentando, pelo contraste dos comportamentos, o temor pelo que o Lobo Mau possa fazer. O modo como se conduz o processo de retardamento de um acontecimento antecipado — o lobo vai ou não comer a menina? — é decisivo na composição da narrativa. O Lobo Mau chega mais depressa a casa da avó: a avó não sabe o perigo que lhe bate à porta, mas nós sabemos. O Lobo Mau devora a avó, disfarça-se e deita-se: a menina não sabe o perigo que a espera na cama, mas nós sabemos. Podíamos suprimir o episódio em que a menina se demora pelo caminho a apanhar avelãs, a correr atrás das borboletas e a fazer ramos de flores. A história seria basicamente a mesma mas a intriga não seria igual. A distinção entre história ou fábula (story) e intriga ou enredo ( plot) é das mais pertinentes nas teorias da narrativa. Para os Formalistas Russos a intriga caracteriza-se pela estratégia de apresentação dos eventos que constituem a história. A intriga pode introduzir digressões subsidiárias na progressão linear da história, acelerar ou retardar a acção, suprimir ou adiar informações através de elipses e lacunas, alterar a ordem lógico-temporal dos episódios, enfim, distribuir o curso sequencial dos eventos da história segundo padrões estruturais que interpelam a sensibilidade do espectador. Não basta, portanto, dizer que a intriga é a maneira de contar a história. O romancista inglês E. M. Forster, várias vezes adaptado ao cinema, notou num ensaio célebre (Aspects of the Novel, 1927) que a diferença entre história e intriga radica numa subtil mudança de perspectiva, crucial para a manutenção do interesse do leitor. Enquanto a história coloca a questão de sabermos o que vai acontecer, a intriga coloca a questão de compreendermos porque é que as coisas acontecem daquela maneira. «Definimos história como sendo uma narrativa de eventos relatados na sua ordem temporal. Uma intriga também é uma narrativa de eventos, mas a ênfase recai na causalidade. "O rei morreu e depois a rainha morreu" é uma história. "O rei morreu e depois a rainha morreu de desgosto" é uma intriga» (Forster). A intriga propõe uma dimensão de mistério, associada ao elenco das motivações humanas, que a simples exposição da história, por si só, não contém. Enquanto a história responde apenas à curiosidade da audiência — o quê? e depois? — a intriga estimula a inteligência, a memória e a imaginação — porquê? e se? Para 49
Forster é a intriga que torna uma história interessante. Ao organizar de determinada maneira a nossa percepção da história e ao interpelar simultaneamente a razão e a emoção do espectador, a intriga é um elemento de tensão indispensável do processo de dramatização da narrativa. Loos e Emerson, como tantos outros, apontam o idílio de amor como o tema de maior interesse humano para o público em geral. Que história pode haver entre dois namorados que atravessam as pequenas vicissitudes do quotidiano sem problemas, alugam casa, pagam o carro, educam os filhos e cumprem a rotina do emprego? Pode haver, porventura, neste caso vulgar assunto sério para um romance sobre o espírito do tempo e o estudo da psicologia humana, mas não há material dramático para um filme. Porém, se os apaixonados forem bruscamente separados um do outro por um acidente, pela intransigência de pais autoritários, por uma crise económica, por uma injustiça social gritante ou por uma declaração de guerra, então temos aqui material de primeira água. Em poucas palavras, não há heróis de cinema tranquilos, porque no paradigma do Lobo Mau só existe a promessa da conquista da felicidade ao cabo de infinitas tormentas. Um idílio pode ter amor mas não tem argumento. A segunda característica do drama cinematográfico prende-se com a rapidez e a unidade de acção. Aconteça o que acontecer, a fim de se criarem obstáculos plausíveis ao desígnio dos protagonistas, deve acontecer o mais depressa possível, desenhando expectativas crescentes quanto ao desfecho da história. Tudo o que na acção não contribua para revelar os personagens principais, que conduzem a narrativa e ilustram o tema, tudo o que não faça progredir a intriga no sentido da resolução final, deve ser, pura e simplesmente, eliminado. Ao contrário, eventualmente, do texto escrito para a leitura, o argumento de cinema deve evitar a digressão. Na opinião de Loos e Emerson, são estas estruturas de concentração emocional que tornam a ficção dramática ideal para o cinema. Pelo contrário, o romance, que vive fundamentalmente de estruturas narrativas de expansão, de descrição e de distensão de pormenores não dramáticos, apresenta-se por vezes difícil, se não impossível, de adaptar ao cinema sem se trair precisamente a dimensão do específico literário. Esta observação, feita de passagem por quem teve de enfrentar várias vezes o problema da adaptação de livros, pode contribuir 50
para explicar em parte o fracasso de muitos romancistas como argumentistas deste modelo de cinema. A terceira questão de fundo que Loos e Emerson realçam com insistência tem a ver com aquilo a que chamam, justamente, a simpatia das estrelas, sem a qual não há argumento exequível no cinema industrial. Desde logo porque a política de produção dos estúdios é determinada pelo perfil das estrelas que têm sob contrato. É natural que os executivos se sintam inclinados a comprarem histórias que favoreçam os seus actores e a imagem de marca de que eles desfrutam junto do público, normalmente resultante da tipologia dos géneros adoptada pela indústria. Daí que as histórias com protagonistas marcantes ou invulgares, que permitam aos actores interpretações de mérito visível no seio de uma estratégia comercial assente na repetição, sejam mais fáceis de vender, embora não sejam fáceis de escrever. O destaque colocado na importância das estrelas de cinema na concepção do argumento leva os autores a tocarem por diversas vezes no núcleo duro da dramaturgia teatral: o herói. Seria talvez demasiado simples atribuir exclusivamente à ideologia exibicionista de Hollywood a explicação para a excessiva valorização dos actores populares. E inútil negar que grande parte dos espectadores vai ao cinema para ver, numa escala monumental, heróis jovens e belos que, passados os maiores sofrimentos, triunfam no ecrã como na vida. As leis do drama cénico europeu do período clássico são peremptórias quanto ao lugar central do herói na estrutura interna da peça. O protagonista não só deve aparecer o mais cedo possível como deve estar sempre presente, seja fisicamente, seja através dos diálogos dos outros intervenientes. O herói que aparece pouco não só corre o risco de não conduzir a acção, desperdiçando assim a oportunidade de provar o espírito de iniciativa e o carácter determinado que são a marca dos seres elevados, como pode frustar o público que deseja ver o seu herói pôr ordem no tumulto das paixões. Que esta tradição teatral, ajustada deliberadamente ao culto dos actores-vedetas desde o século )(vil, tenha encontrado um lugar de privilégio na arquitectura dramática do cinema industrial não é caso para admirar. Só que Hollywood não se limitou a criar personagens e heróis à medida dos actores com apelo de bilheteira, fez deles o maior e o mais visível valor de produção, transfigurou literalmente a identidade desses actores projectando-os num plano mítico. Como notou Morin, as figuras 51
do Olimpo contemporâneo não podem deixar de ser estrelas, seja qual for o seu estatuto social, venham elas do cinema, do desporto ou de qualquer outro sector da vida pública cuja matriz de divinização entronca na energia, no fascínio e no risco de exposição às leis do espectáculo, que, como drama que se preza, tem sempre os seus comparsas, os seus conflitos e os seus heróis trágicos. A fortuna de Anita Loos como argumentista é fruto da invulgar percepção que tinha dos actores para quem escrevia. Não só Douglas Fairbanks, mas Norma e Constance Talmadge, Jean Harlow ou Clark Gable devem-lhe personagens, situações e diálogos talhados à medida dos seus talentos. Não há dúvida que, na carreira profissional, Loos pôs em prática os conselhos que dava aos candidatos a argumentistas. Um desses preceitos inevitáveis, que a autora sempre satisfez com grande naturalidade, graças a um notável sentido de humor, diz respeito à maneira como o desfecho das histórias deve ser preparado e rematado, de modo a garantir a satisfação do público, sem a qual nenhum filme conhece o êxito. A acção acaba quando o protagonista não tem mais obstáculos para enfrentar. Atingido o seu objectivo, vencidos os inimigos, o herói e os espectadores descansam. Na dramaturgia teatral clássica não é suficiente que o desfecho seja rápido, é preciso também que seja necessário e completo, isto é, não podem ficar conflitos por resolver nem nós da intriga por desatar. Na célebre expressão de final feliz, o final é mais importante do que o feliz, porque se trata, fundamentalmente, de traçar o arco de um mundo coerente, estável e inteligível que se fecha sobre si mesmo. Para a certeza desse mundo não ser desfeita é imprescindível que o desfecho da história resulte da intervenção dos personagens envolvidos e não seja obra do acaso. Os teóricos do classicismo viam no acaso e na coincidência a sombra suspeita do deus ex machina que eram unânimes em condenar. Seja qual for a estratégia de retardamento e de dificultação do desenlace, a história supõe sempre a alegria do fim, quando tudo ganha sentido e nos serve de advertência para os imprevistos da vida. A sensação de finitude prometida pela estrutura do mundo da ficção é uma garantia indispensável da gratificação narrativa. Loos e Emerson escrevem que o momento da revelação, quando se desvendam os fios da intriga, é a parte mais importante do argumento. E dão três regras canónicas. Primeira: a história deve atingir 52
o ponto mais alto de interesse no clímax, imediatamente antes da resolução. Segunda: a revelação deve coincidir com a explicitação do tema estruturante da ficção. Terceira: os desfechos baseados no acaso e na coincidência retiram credibilidade aos acontecimentos porque não fazem parte da lógica da realidade quotidiana. Os autores admitem que a coincidência possa ser um bom ponto de partida para a ficção dramática, mas nunca um ponto de chegada. Se o acaso e a coincidência são vulgarmente explorados na comédia é porque esta inverte os parâmetros da axiologia existencial e coloca o mundo às avessas. Exactamente porque é construído, o universo da ficção não se pode revelar arbitrário, pois obedece ao raciocínio de uma arte secular que pretende, através do mais completo artificialismo, atingir a imitação da vida. Depois da grande cena, que é o momento da revelação, só há lugar para o final feliz. Loos e Emerson são categóricos: as histórias que não acabam bem dificilmente arranjam produtor porque estes sabem melhor do que ninguém que o público não vai ao cinema para ficar deprimido. No final feliz de Hollywood o feliz é mais importante do que o final. Os heróis de sucesso podem sempre regressar numa sequela que dá razão a quem pensa que a história está condenada a repetir-se, mas o que eles não fazem é contrariar as expectativas de consolação colectiva para que foram concebidos. O herói simpático confunde-se com a simpatia da estrela: ambos mergulham de um modo quase providencial nessa corrente de imortalidade, abundância e felicidade que inunda a mitologia da cultura de massas. Vale a pena voltar, por um instante, ao Capuchinho Vermelho. Na versão de Perrault, a história acaba com a avó e a menina mortas na barriga do Lobo. É um final impensável em Hollywood. Na versão dos irmãos Grimm, pelo contrário, os caçadores da floresta chegam a tempo de salvar a menina e de ressuscitar a avó abrindo a barriga do Lobo. Nesta versão, a menina encarrega-se de punir o Lobo, enchendo-lhe a barriga de pedras, e de confirmar o desfecho gratificante. Tal como o Capuchinho Vermelho, também em muitos outros contos de fadas os pequenos heróis se vêem obrigados a lutar contra gigantes e dragões, enfim, a aprender que a vida é feita de enormes dificuldades às quais não podem virar as costas. E, no entanto, vivem felizes para sempre, como se a ansiedade provocada pelas fronteiras do desconhecido e pelos impulsos contraditórios da natureza humana 53
tivesse sido adormecida na dimensão simbólica da fantasia. Não quer isto dizer que, ao invocarem a fábula do Capuchinho Vermelho, Loos e Emerson estejam a sugerir que o cinema industrial americano é dirigido a espectadores que têm a idade mental de uma criança. Quer apenas dizer que, para além das regras e das receitas que visam o benefício comercial, há uma preocupação genuína em estabelecer laços afectivos com o público, e desses laços fazer nós que nos unem na imensa escuridão que cerca a clareza do espectáculo.
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O Nascimento de uma Nação (1915), Griffith.
7 O TEMA AMERICANO Entre 1908 e 1915, a transformação do cinema como espectáculo de massas fazia-se a partir da reconversão e da expansão do parque de salas. Os pequenos recintos (nickelodeons), adaptados do circuito de vaudeville, começaram a dar lugar aos palácios de cinema, agora frequentados pelas classes médias dispostas a pagar o aumento do custo dos bilhetes introduzido pelas longas metragens (features) que ocupavam uma sessão de cinema completa. As recentes condições sociais e económicas de exibição e recepção dos filmes levaram a uma preocupação sensível, por parte dos principais produtores, em filiar o cinema nas grandes tradições culturais. A fim de poder ser publicitado como o espectáculo ideal para a família, era vantajoso que o cinema fosse legitimado pela crítica e pelo público como uma arte por direito próprio e, se possível, reconhecido como um veículo cultural de inéditas possibilidades, eventualmente capaz de educar milhares de espectadores com mais facilidade e eficácia do que os livros, as escolas ou os museus. Daí a preocupação em adaptar ao cinema os clássicos da História, da literatura e do teatro, recuperando da pintura as composições pictóricas em contraluz e em 55
contraste de claro-escuro que as lâmpadas de mercúrio dos novos projectores permitiam na filmagem de interiores. Em 1908 mais de metade dos filmes estreados nos Estados Unidos era proveniente da Europa, em 1913 a percentagem tinha caído para menos de dez por cento. O desagrado da imprensa pela importação de filmes estrangeiros coincidia perfeitamente com os interesses dos produtores americanos que progressivamente ocuparam o mercado nacional, antes de se lançarem à conquista do mundo. Enquanto os argumentos dos filmes populares continuavam a aproveitar as situações típicas do melodrama, da comédia ou do western, os filmes de maiores ambições artísticas recorriam sobretudo à adaptação de histórias da antiguidade ou de obras literárias do velho continente. A tal ponto que um jornal chegou a perguntar se não haveria temas originais para se fazerem filmes clássicos americanos. A resposta a esta questão seria dada por Griffith em dois filmes monumentais que mudaram a face do cinema: The Birth of a Nation ( 1915) e Intolerance (1916). Os manuais de argumento da época — e não só — batem todos na mesma tecla: o tema é a componente essencial do filme sério. O livro de Anita Loos e John Emerson dedica o capítulo quinto ao tema cinematográfico. Aí se afirma que, sendo compreensível teremse produzido filmes curtos de pura acção física no tempo do cinema primitivo, alguns praticamente sem história nem tema, é inaceitável conceber um argumento sólido de longa metragem sem tema, isto é, sem uma ideia central que seja considerada uma verdade universal. Embora admitam a possibilidade de se escrever uma boa história sem tema, os autores acrescentam de imediato que a existência de um tema prévio torna a escrita do argumento muito mais fácil, uma vez que lhe dá um objectivo definido, evitando assim a dispersão e a ambiguidade de que nem os produtores nem o público gostam. O tratado de Frederick Palmer sobre a construção de argumentos ( Palmer Handbook of Scenario Construction, 1922) também reserva o capítulo quinto ao tema, que define, através de comparações aparentemente óbvias, como sendo o objectivo, o incentivo e a identidade do filme, o que lhe permite dizer, sem fazer ironia, que um filme sem tema é como uma pessoa sem carácter. A observação não é despropositada se considerarmos que Eustace Hale Ball, autor de outro manual muito em voga no final dos anos dez (Cinema Plays: How to Write 56
Them How to Sell Them, 1917), sustenta que os temas fortes têm sempre um fundamento moral, assente nos ensinamentos da realidade e nos valores perenes do ser humano. Em praticamente todos os teóricos do argumento clássico o tema surge como a espinha dorsal que sustenta a coerência e a integridade da história, evitando o perigo da desagregação narrativa e da gratuitidade. Quando passam aos conselhos práticos, antecipando a pergunta dos leitores acerca das fontes temáticas, os autores dos manuais citados estão de acordo quanto à resposta a dar àqueles que não querem recorrer ao património das outras artes: o mundo está cheio de histórias e de temas, basta folhear os jornais. Daí, porventura, a fácil transferência de tantos jornalistas para argumentistas no percurso do cinema americano. O traço funcional comum a todas as definições — o tema é indispensável à organização dramática do filme — deixa entender que, enquanto unidade de conteúdo, o tema tem uma autonomia semântica estável que atravessa a escrita do argumento e a realização do filme sem problemas nem resistências, como se o sentido da obra estivesse sobredeterminado no mundo das ideias que a linguagem transmitiria de um modo meramente instrumental, como se o trabalho formal do filme fosse destituído de matéria significante. Os filmes de Griffith, sem dúvida fruto desta ideologia, são no entanto a melhor prova de que a fruição estética do cinema é irredutível à mera formulação e à pretensa fixação dos seus significados. No alvor da sociedade de massas o cinema mudo apresenta-se simplificado à dimensão de um dos seus mitos fundadores, o de uma linguagem supostamente espontânea, neutra e universal, apta a comunicar de imediato com os indivíduos, para além das diferenças de nação, classe ou cultura. Griffith acreditava piamente na natureza ecuménica do cinema e no poder redentor da arte. É essa crença, transmitida aos actores pelo calor da sua voz enquanto a câmara rodava, que nós ainda hoje podemos ver estampada no rosto sublime de Lillian Gish, ela própria autora de ensaios nos quais defende o carácter universalista e reformador do cinema. Porém, na prática, o que Griffith fez foi explorar a dinâmica exponencial do cinema numa época de rápidas transformações, mostrando que as imagens reorganizam a visão da realidade segundo padrões sensoriais complexos, alguns imprevisíveis, que são tudo menos neutros ou espontâneos. 57
Frank Woods escreveu o argumento de The Birth of a Nation a partir de dois romances medíocres de Thomas Dixon intitulados The Clansman e The Leopard's Spots. Basicamente, é a história de um soldado confederado, filho de uma família abastada da Carolina do Sul, que regressa a casa depois do Sul ter perdido a guerra civil. Desolado com a situação da família e do país, o ex-soldado ajuda a fundar o Ku Klux Klan para pôr fim à anarquia negra introduzida pela nova ordem social. Preparado no maior secretismo, dadas as implicações racistas do tema, o filme contou com seis semanas de preparação e ensaios, nove semanas de rodagem e doze semanas de montagem, tempos de produção excepcionais para a época. Durante todo esse tempo, ninguém viu Griffith usar o guião, embora o realizador tivesse resposta pronta para cada pormenor das diversas fases de trabalho. Mas o que mais surpreendeu os actores e a equipa técnica durante as filmagens de The Birth of a Nation e de Intolerance foi o número extraordinariamente elevado de planos que o realizador fazia em cada cena. Griffith filmava primeiro a cena completa em plano geral (rnaster shot), equiparando%spaço do plano ao espaço cénico tradicional, como era habitual na época e nos seus filmes anteriores. Depois repetia a acção e aproximava a câmara dos actores, mudando de ângulo e de escala. Em 1915 um filme americano de longa metragem tinha, em média, cerca de 100 planos, havendo em geral uma diferença reduzida entre o número de planos de filmagem (takes) para cada posição de câmara (set up) e o número de planos de montagem (shots). Quando Griffith deu o trabalho por concluído, a cópia zero de The Birth of a Nation tinha 1544 planos de montagem e um número incalculável de restos dos planos de filmagem que não chegaram a ser utilizados. A noção de cinema-espectáculo associada às primeiras longas metragens está prioritariamente relacionada com o tamanho e o volume dos cenários, a riqueza do guarda-roupa, a quantidade de figurantes e a simulação de destruições, desastres ou batalhas que arrebatavam o público e de que os filmes de Thomas Ince, e mais tarde Cecil B. De Mille, foram os exemplos típicos. Porém, a excessiva grandiosidade cénica e figurativa corria o risco de se perder na distância do plano geral. Em The Birth of a Nation e em Intolerance, Griffith utilizou todos os recursos do espectáculo — mais acção, mais peripécias, mais emoções — e outro que passaria a ser a imagem de marca do cinema americano — mais planos. 58
O aumento do número de planos nos filmes de Griffith não se ficava agora a dever apenas à rapidez dos cortes na montagem alternada e paralela, era também o resultado de uma judiciosa fragmentação do espaço fílmico no interior de cada cena. A dissecação da cena em vários planos de pormenor permitia ver melhor os cenários, imprimir densidade à representação dos actores, valorizar a presença das estrelas, clarificar as zonas de confronto dramático, estabelecer pontos de vista diferenciados na progressão narrativa, enfim, estimular a percepção visual do espectador. No período histórico da exibição de curtas metragens, até 1915, o público via diversos filmes de géneros diferentes numa única sessão, pelo que a variedade de assuntos e de imagens era um dado adquirido. Na exibição de longas metragens a variedade visual tem de estar no interior do próprio filme. A pouco e pouco, nos manuais de argumento e de realização da indústria americana, o plano geral sem dissecação de cena e o plano longo sem cortes tornam-se interditos por serem considerados sinónimos de tédio. A estreia de The Birth of a Nation em Los Angeles, no dia 8 de Fevereiro de 1915, desencadeou não só o entusiasmo febril e o orgulho dos profissionais de cinema — nunca se tinha visto um filme tão bem feito — como uma tempestade política sem antecedentes no mundo do espectáculo — nunca se tinha feito um filme tão racista. A América dividiu-se na apreciação ideológica da película, embora ninguém pusesse em causa a virtuosidade estilística e técnica do realizador. A separação entre forma e conteúdo foi a resposta da opinião pública da época a uma obra incómoda, considerada tanto mais perniciosa quanto maior era o talento evidenciado. A agravar a excitação daqueles que pediam a intervenção da censura, acusando a obra de propaganda racista e de incitamento ao crime, o filme tomou-se o maior êxito comercial de todo o período mudo americano. Griffith saiu em defesa do filme, depois da sua exibição ter sido impedida em vários Estados, nomeadamente num panfleto que ficou célebre com o título The Rise and Fall of Free Speech in America. Em vez de responder às acusações de racismo que lhe eram dirigidas, visto o filme eleger nitidamente como tema central do conflito a exclusão dos negros da identidade nacional americana, Griffith preferiu reivindicar a liberdade de expressão como um dos direitos inalienáveis do discurso artístico e dos meios de comunicação garantidos pela Constituição. Instado a pronunciar-se, o Supremo Tribunal declarou 59
que o cinema era pura e simplesmente um negócio e um espectáculo que não podia ser equiparado a outros meios de formação da opinião pública abrangidos pela Primeira Emenda da Constituição. Esta decisão só seria revogada em 1952, deixando entretanto a porta aberta à institucionalização da censura cinematográfica. Não era, portanto, por acaso que uma em cada duas páginas do panfleto de Griffith trazia no cabeçalho a seguinte palavra de ordem: a intolerância é a raiz de todas as formas de censura. A intolerância seria também o tema e o título do próximo filme de Griffith. No panfleto, que obviamente constituía uma inteligente manobra de diversão quanto à origem dos tumultos raciais provocados pela exibição de The Birth of a Nation, anunciava-se já o programa ideológico de Intolerance e a filosofia da história subjacente à obra de Griffith: uma vez que o ser humano é fruto das suas experiências anteriores, também as nações do presente seriam o resultado das experiências e dos exemplos das nações do passado, pelo que o ensino da História devia contribuir fundamentalmente para evitar no presente a prática dos erros e dos malefícios do passado. O cinema teria um papel fundamental a desempenhar nesta tarefa reformadora, uma vez que se podia aprender mais em meia dúzia de bons filmes do que em anos de estudo de História na escola primária. Se The Birth of a Nation tinha sido uma visão comprometida da História da América e da cisão insanável que está na origem da constituição plural do seu povo, Intolerance propunha-se ser nada menos do que uma perspectiva parcial da História Universal vista à luz do progresso e da democracia americana. O filme Intolerance, realizado a partir de argumentos de Frank Woods, é constituído por quatro narrativas distintas, passadas em locais e em épocas históricas diferentes. A narrativa contemporânea passa-se na América e descreve a luta de um jovem casal contra o paternalismo capitalista, os bandos organizados e a injustiça do sistema penal. A narrativa francesa tem lugar em 1572, quando uma família de Huguenotes, na véspera do casamento da sua filha, é massacrada no Dia de S. Bartolomeu pela facção católica de Catarina de Médicis. O terceiro episódio mostra alguns quadros da paixão de Cristo. A última narrativa ocorre durante a queda da Babilónia, no ano de 538 a.C., quando o rei Belshazar, atraiçoado pelo Alto Sacerdote, enfrenta a invasão do exército persa comandado por Ciro. As diferentes histórias cruzam-se em forma de teia através de um dispositivo de monta60
gem paralela cujo sistema combinatório nem sempre é claro. Além das quatro narrativas, o filme contém ainda algumas imagens e legendas de carácter alegórico que não podem ser integradas em nenhum dos universos de ficção sumariamente referenciados e que pretendem ilustrar o tema e o subtítulo da obra: a luta do amor através dos tempos. A primeira versão de Intolerance tinha oito horas de duração, o que tornava o filme virtualmente impossível de distribuir. Griffith pediu a Woods e a Anita Loos para escreverem legendas adicionais que ilidissem os cortes que foi obrigado a fazer para reduzir a película ao tempo normal de uma sessão de cinema. O filme estreou em Nova Iorque no dia 5 de Setembro de 1916 e, apesar da boa recepção inicial, revelou-se um estrondoso fracasso comercial, tendo em conta os custos de produção — com o orçamento de Intolerance podiam fazer-se na época cerca de oitenta longas metragens de formato corrente. Têm sido adiantadas várias explicações para a aparente rejeição do filme, desde a teimosia de Griffith não querer promover o nome das estrelas a que o público certamente não deixaria de corresponder até ao excesso de experimentalismo formal que tornou o filme demasiado difícil para o público do circuito comercial. Há uma razão plausível para Griffith ter evitado o lançamento publicitário baseado no nome das vedetas — é que o projecto conceptual de Intolerance mina o desenvolvimento narrativo assente na psicologia individual dos personagens, premissa indispensável à imersão dos espectadores na ficção e na aura dos actores-estrelas que a conduzem. Ao desenhar o filme em tomo de uma unidade de tema altamente problemática, se não abstracta, que justifica formalmente o entrelaçado das diferentes histórias na montagem paralela, Griffith põe em causa a naturalidade do fluxo narrativo que é um dos garantes essenciais da credibilidade do espectador no mundo da ficção. Os cortes na passagem de uma para outra história fazem sentir em demasia a intervenção do autor implícito, quebrando assim os mecanismos da transparência narrativa que Griffith foi dos primeiros a sistematizar e a impor como modelo. A dificuldade de Intolerance prende-se, portanto, com a recusa do realizador repetir os processos dramatúrgicos e estilísticos que fizeram de The Birth of a Nation um êxito comercial e artístico sem equivalente. Não obstante, a ambição de Griffith era levar mais longe a ideia de História que tinha concebido para legar ao cinema americano o seu tema clássico e uma identidade inconfundível. 61
Em The Birth of a Nation os acontecimentos históricos que abrem a cicatriz nacional da guerra civil são filtrados pela consciência individual dos personagens. Influenciado, como muitos intelectuais da sua geração, pela filosofia da História divulgada nos ensaios de Emerson e de Thoreau, Griffith sugere um paralelismo simbólico entre o desenrolar da História geral e o destino particular dos indivíduos que a reflectem, ao nível de uma correspondência intuitiva entre a cadeia do tempo, a força da natureza e a vitalidade do ser humano. Na arena dos conflitos sociais só são visíveis os indivíduos que os protagonizam. Daí a ideia romântica de que a História é feita pelos homens excepcionais que em cada momento lideram os acontecimentos. Um aforismo célebre de Emerson, que os manuais de argumento e os produtores de Hollywood subscrevem sem hesitação, sintetiza bem a questão: não há História, só há biografias. A dramatização mítica da biografia histórica dos homens eminentes, e a sua articulação com personagens inventados no interior do mesmo tecido ficcional, tal como Griffith faz em The Birth of a Nation e em Intolerance, corresponde a uma estratégia típica do cinema-espectáculo: a de colocar ao mesmo nível de representação o factual e o imaginário, de modo a que a apropriação da História se faça através da ficção, de modo a que a legitimação da ficção se faça através da História. A célebre sequência do assassinato de Lincoln em The Birth of a Nation constitui um exemplo magistral desta estratégia: o crime no teatro é reconstituído através do olhar inocente mas premonitório da personagem criada por Lillian Gish que segue alternadamente os gestos do Presidente e do assassino sem se aperceber da tragédia iminente que o espectador já conhece mesmo antes de ter visto o filme. Os personagens de ficção vivem assim à margem dos grandes acontecimentos sem deixarem de ser representantes típicos da situação histórica, tanto mais que a solução dos seus problemas pessoais é orquestrada para coincidir com o desfecho dos conflitos sociais e políticos, deixando entender que a intriga não passa afinal de um pequeno eco do som e da fúria da História. Em Intolerance a relação entre os indivíduos, a ficção e a História ganha outros contornos. Griffith atenua deliberadamente a caracterização psicológica a favor de uma leitura alegórica dos personagens, a maior parte dos quais nem sequer tem nome próprio. Desta vez, o espectador não é solicitado a identificar-se com pessoas mas com con62
ceitos trans-históricos condensados na fórmula popular da luta do amor contra a intolerância. A montagem paralela radical, entre ficções separadas, visa suscitar ideias abstractas entre imagens díspares em vez de ligar espaços narrativos que concorrem para a unidade dramática, como acontecia nos filmes anteriores, subordinados ao princípio da alternância lógica. O resultado é uma descontinuidade narrativa que não favorece a adesão emocional do espectador. Ao entrelaçar no mesmo tema narrativas de épocas históricas diferenciadas Intolerance propõe uma visão instantânea de verdades universais que retornam ciclicamente ao longo da História das nações: na Babilónia, na Judeia, em França, na América, ontem como hoje, a intolerância e o ódio aparecem sempre na origem do impulso do mal. Com uma diferença de monta: enquanto as narrativas do passado acabam à beira da catástrofe, anunciada pela morte das pessoas e pelo declínio das civilizações, a narrativa do presente tem um final feliz, indiciando a confiança de que a América é a nação que aprendeu com as outras nações. Porque aprendeu com os erros dos outros e com os seus próprios erros, o presente da América é o futuro da humanidade, pois neste imaginário o fracasso não é alternativa. Cada uma das quatro histórias de Intolerance é filmada num estilo diferente, de acordo com os géneros artísticos cinematográficos então dominantes, cumprindo a proposta de elaborar um ensaio enciclopédico do cinema do seu tempo. A paixão de Cristo segue o modelo de outros quadros bíblicos em que tanto o cinema europeu como o americano eram férteis. O massacre dos Huguenotes decalca a solenidade teatral do filme de arte francês. A queda da Babilónia inspira-se na pompa do filme histórico italiano baseado em episódios da antiguidade. A história contemporânea segue o esquema do drama social urbano popularizado por Griffith no período da Biograph. Tal como muitos outros filmes de Griffith, a história contemporânea acaba com um salvamento no último minuto. O rapaz está prestes a ser enforcado, devido a um erro judicial, enquanto a mulher corre desesperada com o indulto que lhe pode salvar a vida. É graças ao automóvel e aos modernos meios de comunicação da sociedade industrial que a mulher chega a tempo de impedir a injustiça e a desgraça. A teologia da redenção, tornada explícita pela montagem paralela entre a subida do rapaz para o cadafalso e a ascensão de Cristo ao Gólgata, é redobrada pela fé no progresso tecnológico de que o 63
telefone, o automóvel e o comboio são os objectos materiais mais evidentes. Outro artefacto, contemporâneo dos inventos que marcam a modernidade quotidiana na viragem do século, está omnipresente: o próprio cinema, objecto imaterial cuja total visibilidade no écrã oculta a densidade da sua realidade física e discursiva, sem a qual não teria sido possível mostrar a superioridade histórica do presente cristalizado no modo de vida americano. Além da relação temática entre as quatro narrativas, um dos efeitos surpreendentes da montagem paralela em Intolerance é a comparação formal que se vai desenhando entre os quatro tipos de cinema. Griffith trabalha cada um dos momentos da ficção com indiscutível apuro e sentido plástico. No entanto, o impacto dramático do filme contemporâneo não deixa lugar a dúvidas. A teatralidade do filme de arte francês ou a grandiosidade cénica da epopeia à italiana, encenadas como curiosidades históricas e artísticas do passado, não conseguem competir com a extraordinária eficácia narrativa do filme americano. O final feliz evidencia não só o triunfo do progresso, da democracia e da tolerância, que as outras sociedades não souberam conquistar, como representa a supremacia técnica e estilística do cinema americano. Porque o cinema americano é o cinema que aprende com os outros cinemas, o presente de Hollywood é o futuro do espectáculo.
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Gloria Swanson: as jóias verdadeiras.
8 ESTRELAS QUE CHORAM Passavam alguns minutos das nove horas do dia 5 de Novembro de 1918 quando os dois detectives entraram no camarim de Gloria Swanson. Transportavam três cofres de jóias que Cecil B. De Mille tinha encomendado para as filmagens de Don't Change Your Husband. Atencioso e deslumbrado, o aderecista explicou porque é que Mr. De Mille insistia em alugar jóias verdadeiras, escolhidas pelas próprias actrizes que as iam usar em cena — para as comediantes se sentirem mais à vontade com jóias que apreciam, sem deixarem de ter a sensação de riqueza que lhes cobre o corpo. Gloria Swanson achou a ideia magnífica, colocou os brincos, o colar e a pulseira que gostaria de possuir e foi conduzida para o estúdio onde o realizador, rodeado de assistentes, examinava o cenário em profunda meditação. Sob a vigilância constante dos detectives, à distância, os olhos claros de Gloria Sawnson brilhavam como nunca. Era o seu primeiro filme com o realizador mais poderoso da Paramount e um dos mais prestigiados na indústria. Estava a um passo de se tornar uma grande estrela. Apetecia-lhe chorar de alegria. Gloria começou a frequentar os estúdios de cinema aos 15 anos, como figurante. Os primeiros papéis de relevo foram-lhe oferecidos 65
quando integrou a companhia de Mack Sennett, um comediante de vaudeville que, depois de trabalhar como actor, argumentista e realizador na Biograph, fundou a mais famosa produtora do burlesco americano. Foram tempos inesquecíveis os que Gloria Swanson passou com os cómicos da Keystone. Apesar de Sennett pedir argumentos detalhados aos seus escritores, por se preocupar com o desenvolvimento narrativo das situações cómicas, por vezes caóticas, e com o acréscimo de despesas inerente à improvisação durante a rodagem, os testemunhos disponíveis vão no sentido de sustentar a ideia de que grande parte dos gags era inventada na altura das filmagens, numa eufórica anarquia de colaboração entre argumentistas, realizadores e actores, sobretudo na fase de ensaios que precedia as tomadas de vistas. Swanson não se lembrava de alguma vez ter visto um guião escrito circular entre os actores da Keystone. Agora, no meio do sumptuoso cenário do filme de Cecil B. De Mille, decorado ao pormenor com adereços funcionais, Gloria Swanson notava até que ponto tudo tinha sido minuciosamente preparado de acordo com as indicações do realizador, transcritas no guião de filmagem ou nas folhas de serviço de que se serviam os membros da equipa técnica. Não obstante, De Mille não entregava o guião aos actores, preferindo explicar-lhes pessoalmente o conteúdo e o significado de cada cena. A estratégia da direcção de De Mille consistia em deixar os actores entregues a si próprios, forçando-os a encontrar pontos de contacto com os personagens, porventura com o objectivo de contrariar a estilização da dramaturgia e das imagens, procurando assim no comportamento humano um eco de realismo espontâneo, tão ilusório e valioso como aquelas jóias autênticas, coladas ao corpo da estrela, que os detectives não perdiam de vista. Na extravagância dos cenários e na complicação dos enredos é o corpo da actriz que garante a autenticidade da dimensão humana do espectáculo. Esquecemo-nos de que é tudo a fingir, menos as roupas, os penteados e os adereços pessoais dos intérpretes, que devem ser impecáveis. As paisagens, as paredes, as portas e as janelas podem ser armadas em papel pintado mas as jóias têm de ser verdadeiras. Esta aparente contradição entre a máquina de ilusão da cenografia e a obsessão fetichista pelos objectos autênticos é uma componente essencial do realismo de estúdio. A ficção de Hollywood é concebida em função das estrelas e dos grandes planos que imortalizam esses rostos 66
onde tudo tem de ser belo, perfeito e convincente. O gosto do público popular pela fantasia e pela idealização do mundo, como meio de escape aos problemas do quotidiano, corre em paralelo com a ilusão das personagens poderem ser pessoas com existência própria, materializada na vida fascinante dos actores. Os filmes que Cecil B. De Mille fez com Gloria Swanson nos anos dez e vinte, na sua maioria escritos com a colaboração de Jeannie Macpherson, contribuíram para romper com a moral vitoriana típica dos filmes de Griffith, de Pickford e de Chaplin, cujas raízes culturais entroncam ainda no melodrama popular do século XIX. Antes de se celebrizar com as epopeias bíblicas, De Mille preocupou-se em mostrar de que modo a rotina do casamento pode liquidar os impulsos do desejo, tornando a tentação do adultério não só divertida como indispensável à revitalização da vida sexual do casal. O esplendor dos cenários, a riqueza dos adereços, o culto dos objectos na moda, o elogio do consumo ostentatório, enquanto parâmetros visíveis dos valores de produção dos filmes, e a estimulação dos prazeres sensuais, dentro e fora do matrimónio, em que vivem os personagens, aparecem como factores essenciais da felicidade individual, abrindo portas a uma ética social hedonista e a uma noção do espectáculo como evasão que não deixariam de influenciar a cultura americana até aos nossos dias. Provavelmente, nenhum outro realizador americano, à excepção de Griffith, contribuiu tanto como Cecil B. De Mille, no período do filme mudo, para a consolidação industrial e narrativa do cinema. Ele seguia e antecipava os gostos do público criando, antes de mais, produtos calibrados para o êxito comercial que, às vezes, eram também grandes filmes. Nos anos vinte o perfil do espectador de cinema sofreu uma profunda transformação. A rentabilidade do vasto circuito de salas que Zukor adquiriu, ou mandou construir, com a participação e o controlo do capital bancário no negócio da distribuição, só foi possível graças à adesão massiva das classes médias ao espectáculo cinematográfico. A respeitabilidade social do cinema estava consolidada e a maioria dos espectadores passou a ser constituída por mulheres. As heroínas de De Mille, entre 1915 e 1925, irradiam, sem meias medidas, a obsessão pelo luxo e pelo erotismo que consagra a aurora de uma nova era, marcada pela prosperidade económica, pelos tempos de lazer e pelo advento da sociedade de consumo. 67
Quem nessa altura passava os dias metido nas salas de cinema, como Budd Schulberg, nunca mais se esqueceu do exótico universo de De Mille e daquelas descomunais casas de banho, profusamente iluminadas, de cujas banheiras imaculadas, cintilantes como jóias, cheias de água leitosa e sais misteriosos, saíam mulheres nuas envoltas em sedentos flocos de espuma, deixando atrás de si odores contraditórios de higiene e pecado. Budd Schulberg tinha 4 anos de idade quando entrou pela primeira vez num estúdio de cinema. O motorista de Adolph Zukor fora buscá-lo a casa, como fazia frequentes vezes, sempre que o miúdo precisava de sair acompanhado, e tinha-o conduzido pelos portões da Paramount, como se de um pequeno príncipe se tratasse. Budd olhava deslumbrado para os figurantes, que se passeavam pelas ruas da produtora vestidos com as diferentes farpelas fornecidas pelo guarda-roupa. Eram índios, aventureiros, odaliscas, aristocratas, militares, pobres, todos eles falsos. Não, os pobres não eram falsos: eram figurantes exactamente por serem pobres. O fascínio do cinema, em particular a aura das estrelas, atraía inúmeros jovens, de ambos os sexos, na esperança de virem a ser ricos e famosos. Todos os dias, milhares de figurantes, com ou sem emprego garantido, dirigiam-se para os locais de filmagem das companhias de cinema com a secreta ambição de serem descobertos como novos talentos, na terra prometida de todas as oportunidades, ou então, simplesmente, ficavam ao relento à espera da refeição diária gratuita e do magro salário ao fim do dia. Os mais afoitos ou impacientes aceitavam arriscar o corpo e a vida trabalhando como duplos dos actores famosos em cenas perigosas, enquanto as raparigas que não tinham acesso às entrevistas com os produtores acabavam, muitas vezes, na prostituição. B. P. Schulberg estava à espera do filho para o conduzir ao interior do estúdio onde decorria a rodagem do mais importante filme em produção. Quando as portas metálicas do edifício se abriram para os deixar passar, Budd não pôde deixar de ficar impressionado com a grandiosidade do espaço, porventura reforçada pelas zonas de semiobscuridade que permitiam adivinhar uma profundidade sem fim. Apertou a mão do pai e avançou, a par e passo, por entre aquela multidão de estranhos que cumprimentavam B. P. e o olhavam por detrás dos projectores. As luzes centravam-se todas numa única pessoa, uma mulher 68
franzina, de cabelo encaracolado caído em madeixas, toda vestida de branco, que ele não teve dificuldade em reconhecer, por já ter visto centenas de fotografias nas revistas que o pai levava para casa (Budd Schulberg, Moving Pictures: Memoirs of a Hollywood Prince, 1993). O assistente pediu silêncio, o realizador gritou acção e, sem mais, Mary Pickford começou a chorar. A respiração e o gesto da actriz eram tão intensos, e simultaneamente tão naturais, que o pequeno Budd ficou confuso e comovido, ao ponto de perguntar ao pai porque é que a vedeta estava a chorar. B. P. explicou em poucas palavras que Mary não estava a chorar, estava apenas a representar que chorava. De facto, assim que o realizador disse corta, a actriz estancou as lágrimas e perguntou, em voz perfeitamente convencional, se o plano tinha corrido bem. Apesar do realizador se mostrar satisfeito, Mary pediu para repetirem uma vez mais. O perfeccionismo de Pickford, para além do que os realizadores e os produtores consideravam razoável, valeu-lhe a alcunha de retake Mary, de que ela, aliás, não se arrependia. O plano foi repetido dezenas de vezes, aparentemente sempre da mesma maneira. Senhora de uma técnica exímia, Mary Pickford chorava com pequenas variações que permitissem uma escolha judiciosa na mesa de montagem. A cada repetição a actriz conseguia convencer Budd da sinceridade da sua profunda mágoa, até que a voz do realizador, seca e profissional, interrompia a magia do choro. O grande plano revelava as mínimas vibrações da respiração de Mary. A perfeição dos adereços, do penteado e do guarda-roupa era submergida pelo realismo das motivações psicológicas da personagem, numa cena típica em que a exibição dos sentimentos comovia os espectadores e satisfazia as suas expectativas emocionais. No cinema clássico, a força da caracterização humana determina e dá credibilidade aos outroselementos dramáticos, narrativos e cénicos. Aquela foi a primeira lição de Budd na arte de representar, tanto no cinema como na vida, porque se representar era, afinal, fingir, mas fingir de um modo tão perfeito que emociona quem assiste, então os bons actores e actrizes não estavam só nos filmes, encontravam-se também nos interstícios do quotidiano, sobretudo no seio de uma comunidade que se habituara rapidamente a pautar o comportamento público e privado pelos valores do espectáculo. Mary Pickford cimentou a glória da sua personalidade mítica na figura ambígua da mulher-criança, inocente e desprotegida, que vin69
cou a primeira década do século no cinema americano. Pickford nunca se conseguiu livrar dessa imagem. Já depois de ter dobrado a casa dos 30 anos, os admiradores continuavam a pedir-lhe para interpretar os papéis de Cinderela, de Heidi ou de Alice no País das Maravilhas. Apesar dos milagres operados pela maquilhagem e pela iluminação, Mary sabia que não podia, nem queria, continuar indefinidamente a ser o símbolo de um tipo de mulher em contradição com o espírito da época. Afinal, fora o enorme êxito profissional de Mary Pickford que contribuíra para divulgar na imprensa a imagem da mulher bem sucedida e auto-suficiente que seria o protótipo dos anos vinte. A melhor escritora de filmes de Mary Pickford foi Frances Marion, uma presença marcante na forma e na prática do argumento de Hollywood. Autora e adaptadora de cerca de cento e cinquenta guiões de longa metragem entre 1915 e 1937, data de publicação do seu tratado How to Write and Sell Film Stories, um dos mais interessantes manuais de escrita de argumento do período clássico, Marion foi jornalista, correspondente de guerra, modelo e actriz antes de enveredar pela carreira de argumentista, na qual foi galardoada com dois Óscares. Ingressa na Paramount e, em meados dos anos vinte, passa para a MGM, onde desenvolve o conceito dos filmes de mulher (women's pictures) tornando-se uma das colaboradoras preferidas de Irving Thalberg, a quem o livro é dedicado em homenagem à sua visão e génio. Da exaustiva tipologia de enredos que Frances Marion descreve em How to Write and Seul Film Stories (semelhante à que encontramos nos manuais de Anita Loos e de Frederick Palmer), há três que se destacam por serem recomendados ao lançamento das estrelas femininas e à consagração dos filmes de mulher. O primeiro é o enredo da difícil ascensão e triunfo da rapariga modesta e bonita que acaba por casar com o herói abastado, cujo modelo Marion aponta como sendo a história da Cinderela. O encanto sexual da mulher funciona na mitologia do cinema e da sociedade de consumo como o arquétipo da história de sucesso, equivalente ao do self-made-man no homem. O segundo é o enredo do sacrifício familiar, desinteressado e gratificante, no qual a mulher abdica das suas aspirações pessoais para ajudar o marido, o amante, os pais, os irmãos ou os filhos. O exemplo típico é Bionde Venus (1932), de Sternberg, ou o famoso Stella Danas (1925), escrito por Frances Marion para Henry King e refeito em 1937 por King Vidor com Barbara Stanwyck na protagonista. O terceiro é 70
o enredo das relações domésticas que dizem respeito à luta da mulher pela manutenção do lar e pela sobrevivência da família num mundo conturbado por problemas quotidianos de toda a ordem. Se cada um destes tópicos promete surtir efeito no universo dos filmes de mulher, uma história que reúna todos os ingredientes é, segundo Marion, um êxito infalível junto do público feminino. Atenta às exigências e às flutuações do mercado, que lhe proporcionaram grandes sucessos comerciais, Marion constata uma aparente contradição entre os factores dominantes de certas conjunturas históricas e a apetência do público. Nos períodos de maior prosperidade económica e paz social o público inclina-se para os melodramas e as situações comoventes, nos momentos de crise e depressão os espectadores preferem as comédias e as fantasias musicais. Num caso como noutro, Marion sintetiza a regra de ouro da ideologia de Hollywood: «Os espectadores americanos preferem gastar o dinheiro a ver filmes com raparigas bonitas, homens elegantes, personagens espertos, humildes ou pitorescos de ambos os sexos, roupas na moda, casas finas, lugares onde iriam se fossem ricos, lutas e, apesar do uso frequente, perseguições de todas as espécies, perigos emocionantes e ternas cenas de amor. Em vez do lado feio da vida, preferem os aspectos mais atraentes. As mulheres — e é preciso não esquecer que a maioria dos espectadores são mulheres —gostam de ver interiores bem decorados e estilos de vida de pessoas de cultura e posses superiores às suas». Tocou a outra actriz, além de Pickford e de Swanson, encarnar à perfeição a fragilidade e as contradições da mulher típica da era do jazz. Clara Bow foi contratada por B. P. Schulberg em 1923, depois de ter ganho um concurso de beleza, organizado por uma revista de fans, que a contemplou com um teste de cinema, a fim de, eventualmente, vir a integrar o elenco de filmes em preparação. Nascida em Brooklyn, em 1905, filha de pais pobres, Clara cresceu praticamente na rua, habituada a acompanhar os rapazes do bairro numa vida sem horizontes mas recheada de expedientes. A sua descontracção e desenvoltura davam-lhe imenso charme e magnetismo, apesar de não cativar nem pela inteligência nem pela cultura. Clara Bow introduziu um novo tipo de sensualidade no cinema, irredutível à malícia criada pelas situações do argumento e aos atributos físicos da mulher escultural. Ao contrário da pose de olhar lânguido, cheio de promessas por cumprir, característico das mulheres fatais do 71
cinema dos anos dez, Clara fixava o olhar jovial andando à volta dos homens, como o predador em torno da presa. À dinâmica do movimento, no qual o olhar e o corpo faziam parte da mesma iniciativa existencial, juntava a actriz a surpresa cativante do toque, nas mãos, na cintura, no rosto, nos ombros, com o qual desconcertava e seduzia quem dela se aproximava. Este comportamento, patente nos filmes, sugeria que a sedução à distância, mantida pela iconografia tradicional que alimentava a mera contemplação cultual das deusas do sexo, podia ser substituída, com eficácia e simplicidade, por uma outra poética do namoro e da convivialidade, assente na proximidade, no contacto informal e na camaradagem. Nos anos vinte, milhões de raparigas adoptaram o estilo de Bow e ela tornou-se, por isso, uma estrela indiscutível. O fascínio de Clara Bow — conhecida na época como a It girl — foi descrito pela escritora Elinor Glyn, autora do argumento que celebrizou a actriz ao lado de Gary Cooper, nos seguintes termos: «O feliz possuidor do It deve ter o estranho magnetismo de atrair ambos os sexos; ele ou ela deve possuir confiança em si mesmo e estar completamente inconsciente e indiferente ao efeito que provoca e à influência dos outros». A dádiva de naturalidade sensual, tão procurada pelos caçadores de talentos e pelos fabricantes de Cinderelas, confirmase como um valor inalienável do espectáculo. O êxito efémero de Bow, como de tantas outras raparigas antes e depois dela, assentou na ideia insustentável de que não é preciso ter talento para ser estrela de cinema. Este mito, alimentado durante muito tempo pela própria indústria, criava a ilusão nos grupos de fans de que qualquer deles, com sorte e oportunidade, podia tornar-se também uma estrela de um dia para o outro, favorecendo assim uma intensa idolatria em torno dos actores, que passava não apenas pela imagem fabulosa dos filmes e da respectiva publicidade como pela esperança de uma verdadeira mudança de vida na monótona realidade de muitos espectadores. O equívoco resulta porventura da natureza do trabalho do actor de cinema, menos dependente do domínio da técnica do que o actor de teatro e mais propício ao aproveitamento de qualidades espontâneas de presença e de personalidade que a câmara de filmar revela e amplia. A transformação de uma desconhecida em estrela de cinema configura o modelo de uma das mais antigas peripécias do conto popular 72
e da dramaturgia clássica, vulgarmente atribuída aos reveses de fortuna, quando uma personagem descobre a sua verdadeira identidade ou muda de condição social passando da pobreza à riqueza, ou vice-versa. A peripécia da súbita ascensão ao estrelato, devida a um aparente golpe de sorte e insistentemente publicitada, é uma figura dramática indispensável aos mitos de Hollywood e uma simulação fabulosa da versão mais ingénua do sonho americano, na qual o sucesso não é devido ao esforço nem ao trabalho, mas ao talento natural e às infinitas oportunidades oferecidas pelo sistema. Budd Schulberg tinha 11 anos quando conheceu Clara Bow no escritório do pai. Ela passou-lhe a mão pelos cabelos loiros antes de o beijar e, sempre a sorrir e a mastigar pastilha elástica, convidou-o a ir assistir às filmagens. A cena desse dia mostrava a personagem interpretada por Clara, sozinha num quarto, abandonada pelo marido, a chorar. O assistente de realização pediu silêncio, fez sinal para a orquestra do estúdio começar a tocar a música escolhida, e todos ficaram à espera que a actriz chorasse. Clara Bow parecia nervosa, distante, perdida. O negativo rodava na câmara havia já alguns instantes quando o director de fotografia e o realizador trocaram olhares. Budd estava prestes a desviar a atenção daquela situação penosa quando Clara começou a chorar, primeiro lentamente, depois com as lágrimas a caírem em cascata, como se a sua vida dependesse daquele momento. O realizador mandou cortar e foi de imediato felicitar a actriz por aquela espantosa interpretação que não precisaria de ser repetida. A orquestra interrompeu a melodia, os electricistas começaram a preparar o plano seguinte e a maquilhadora aproximou-se com o algodão e os pós em riste. Clara Bow continuava a chorar convulsivamente, pelo que foi conduzida pelas costureiras ao camarim para descansar um pouco. Só mais tarde Budd soube que, para conseguir chorar, Clara Bow não pensou na situação dramática da personagem abandonada pelo marido imaginário, como estava escrito no guião, antes concentrou-se na memória da sua infância real, miserável e dorida, da qual tinha conseguido salvar-se, contra a vontade e a ameaça dos pais, graças à frivolidade de um concurso de beleza que lhe abrira as portas do paraíso artificial. A música que ela tinha pedido à orquestra do estúdio para tocar naquele dia era a mesma música que uma vizinha, na ausência da mãe, lhe cantava ao ouvido para adormecer quando era criança. 73
Aquela foi a segunda lição de Budd na arte de representar. Era então preciso a actriz ser sincera consigo mesma para conseguir convencer os outros de que estava a fingir. Na verdade, enquanto foi actriz, Clara Bow nunca deixou de ser criança.
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Stroheim: o homem que gostamos de odiar.
9 A FICÇÃO E A MENTIRA Chegavam às centenas em autocarros e camionetas. Vinham sobretudo dos bairros pobres de Los Angeles, muitos desempregados, prontos a acatar a ordem dos generais que os iam lançar sem dó nem mercê contra as muralhas da Babilónia. Eram mais de dois mil, arranjados todos os dias às oito da manhã, com as suas fardas solenes de guerreiros, lança e escudo numa mão e a sanduíche do pequeno almoço na outra. O pior era o frio, depois de mudarem de roupa. Tinham de se aguentar de braço e perna ao léu, agrupados em esquadrões, até o realizador, impecável no seu inconfundível sobretudo de pele de camelo, horas passadas, emitir as primeiras vozes de acção. Siegmann, Henabery, Clifton, Walsh, Fleming, Van Dyke e Stroheim, todos assistentes de Griffith, corriam misturados entre os figurantes, levantando a moral da gentalha e dando ordens de última hora, de acordo com os sinais das bandeiras e dos tiros de aviso que chegavam da plataforma onde se encontrava a câmara de filmar. Griffith não poupou esforços nem despesas para a batalha final do episódio da queda da Babilónia em Intolerance. Em vez do guião trazia na mão um caderno de reproduções de gravuras da antiguidade 75
organizado por Henabery a partir de livros de história e de arte. Tinha contratado pintores e escultores para darem a patina do tempo ao trabalho dos carpinteiros de Hollywood. O realismo histórico tornara-se um valor de produção. Às formalidades da narrativa Griffith sobrepunha agora o puro prazer visual do espectáculo, alimentado pelo volume e o exotismo da cenografia, pela acumulação dos figurantes e do guarda-roupa, pelo movimento e violência da luta, pela destruição de partes do cenário no fragor dos combates. O cinema-espectáculo depressa aprendeu uma logística militar de produção que tem de fornecer soluções para a necessidade de transportar, alimentar, abrigar, coordenar e tratar de milhares de pessoas em poucas horas, antes, durante e depois do período de rodagem em exteriores. A insistência de Griffith em fazer do cenário da Babilónia, por si só, um espectáculo grandioso, corresponde porventura a um gosto típico da era de prosperidade em que a América vivia e que se reflecte também na decoração das nova salas de cinema, chamadas templos e palácios, decoradas com um luxo asiático. O recurso a modelos de ornamentação clássicos e orientais filiava as salas de exibição de longas metragens numa tradição histórica e arquitectónica bem diversa do populismo dos circuitos do cinema primitivo. A experiência do cinema, agora partilhada por todas as classes, incluindo o exército de emigrantes e desempregados que engrossava as fileiras de figurantes à porta dos estúdios, unia os espectadores diante do mesmo ecrã no qual o sonho americano se estampava no rosto e na mitologia das estrelas de cinema. Há sem dúvida um desígnio imperial neste fascínio pelas civilizações antigas ou distantes como forma de espectáculo e pela sedução universal do público a que o cinema americano sempre foi sensível. O apelo ao passado como estratégia de interpretação do presente anima não apenas a escrita da História como a escrita dos argumentos que nela se inspiram. Como se Hollywood, no papel de nova Babilónia, quisesse partilhar a nostalgia europeia da era colonial sem ter de suportar os custos do respectivo complexo de culpa. A expansão e o domínio do cinema americano são inseparáveis da integração de outras cinematografias e de outras culturas na sua própria identidade cultural. É essa estratégia que leva os produtores a convidarem alguns dos mais importantes actores e realizadores europeus para 76
consolidarem Hollywood como o centro mundial de produção de filmes nos anos vinte. Quando Stroheim se apresentou nos serviços de emigração do porto de Nova Iorque, no dia 25 de Novembro de 1909, proveniente de Bremen, ninguém o tinha convidado. Era apenas um entre o milhão de emigrantes que as estatísticas oficiais registaram nesse ano. Apesar do ar modesto e da penúria em que vivia, Stroheim apresentava um currículo distintíssimo. Dizia-se nascido em Viena, em Setembro de 1885, filho de uma baronesa alemã e de um conde austríaco. Teria sido educado na Academia Militar da Áustria como oficial de cavalaria e condecorado pelo próprio Imperador por ter sido ferido na guerra da Bósnia em 1908. Os biógrafos mais rigorosos, de resto admiradores incondicionais dos seus filmes, são categóricos em afirmar que, à excepção da data de nascimento, nada no passado divulgado por Stroheim corresponde à verdade. Filho de um modesto comerciante judeu da Silésia, é provável que a sua ida para os Estados Unidos tenha sido precipitada por ter desertado do exército prussiano na qualidade de soldado raso. Seja como for, o admirável argumento que é o currículo oficial de Stroheim — e que ele sempre representou à perfeição — de pouco lhe valeu durante os anos em que trabalhou nas mais diversas actividades até chegar a Los Angeles em 1914. Tudo leva a crer que a primeira batalha em que Stroheim participou foi a da guerra civil americana no filme de Griffith. Perdido entre os figurantes de The Birth of a Nation, Stroheim passou a frequentar o estúdio de Sunset Boulevard na esperança de arranjar trabalho regular como figurante. O cinema cativara-o e tomara-se uma obsessão. Além do magro salário, muitos dos figurantes rondavam os estúdios para poderem ver de perto estrelas como Pickford ou Gish; Stroheim estava ali para poder trabalhar com Griffith, o cineasta que tinha dado beleza e poesia a uma forma barata de entretenimento. A oportunidade surgiu na Triangle com um realizador que trabalhava sob a supervisão de Griffith. John Emerson preparava um filme intitulado Old Heidelberg (1915), adaptado de uma peça alemã, cuja acção decorria entre os estudantes da Universidade de Heidelberg. Ao saber que procuravam um assistente com conhecimento dos usos e costumes dos estudantes alemães, Stroheim perfilou-se como sendo o homem ideal uma vez que garantiu de imediato ser licenciado por 77
aquela universidade. A coincidência era incrível mas ninguém pôs em causa o voluntarismo e as maneiras requintadas do novo assistente. A primeira geração de cineastas não podia deixar de ser uma geração de amadores e fantasistas — o que contava eram os resultados. Anita Loos, que acompanhou as filmagens de perto, não pôde deixar de ficar espantada com a eficiência do trabalho de Stroheim, verificando os adereços, corrigindo as roupas e as fardas dos actores, descobrindo exteriores apropriados ao ambiente germânico, dando indicações de cena que poupavam o tempo e o esforço do realizador. Em suma, Stroheim soube tornar-se indispensável e Emerson contratou-o como seu assistente permanente. Quando John Emerson e Anita Loos se lançaram na série de filmes que fizeram de Douglas Fairbanks o actor mais popular da América, Stroheim acompanhou-os como assistente de realização, aproveitando a oportunidade para interpretar pequenos papéis de vilão, nomeadamente o seu preferido: o alemão tenebroso. A pouco e pouco, enquanto personagem de ficção, Stroheim assume a imagem do homem que gosta de ser odiado. E, com a paciência e o cálculo de uma autêntica encenação, faz passar essa imagem da ficção para a realidade: em pleno período de guerra mundial, Stroheim deliciava-se a passear de fiacre entre o Hotel Plaza e o Central Park fardado com o uniforme prussiano do guarda-roupa do estúdio, suscitando a ira e os insultos dos transeuntes que o tomavam por oficial alemão. A primeira grande criação de Stroheim foi a sua própria lenda, no seu caso indissociável da obra cinematográfica. Ele assumiu a encarnação do ódio como um princípio mediador do mal, fornecendo ao público e à profissão um tensor emocional de grande impacto dramático, no qual os factos e a ficção se dissolvem na turbulência dos sentimentos. Se aceitarmos que a ficção invoca uma arte retórica que tenta persuadir os leitores e os espectadores da existência de um mundo imaginário, temos de reconhecer em Stroheim a pompa da eloquência que intuiu a natureza mítica de Hollywood mas não conseguiu adaptar-se às normas e aos métodos da produção industrial dos estúdios, com as consequências que adiante veremos. O homem que passou a vida a mentir ambicionava ser o mais realista dos cineastas. Ou talvez devêssemos dizer o mais persuasivo, na medida em que os seus filmes procuram tocar o espectador pelo excesso passional sem abandonarem as categorias da psicologia popular. 78
A ficção não é a verdade mas também não é a mentira. Digamos que a mentira tem um carácter utilitário — pretende deliberadamente enganar os outros ao nível do discurso primário — enquanto a ficção procura falar de uma verdade outra inteligível através do processo secundário de simbolização estética. A mentira só faz sentido quando aferida com os factos que deturpa. A ficção não pode ser testada no confronto com factos reais pela simples razão de que não existem outros factos senão os que são criados pelo seu discurso. A verdade poética da ficção não deve pois ser avaliada pela hipotética relação de fidelidade entre o mundo da narrativa e o mundo real, mas apenas pelo eco de aceitação, de deslumbramento e de vibração emocional que desperta nos espectadores. Depois de ter acrescentado ao seu currículo o estatuto de assistente de realização, director artístico, conselheiro militar e actor de Griffith, Stroheim convenceu Carl Laemmle, patrão da Universal, a produzir os seus primeiros filmes, Blind Husbands (1918) e The Devil's Passkey (1919), de que foi argumentista, realizador, cenógrafo e actor. Os bons resultados comerciais e a prova do domínio técnico permitiram-lhe levar o estúdio a arriscar numa produção mais ambiciosa: o projecto de Foolish Wives (1921), novamente escrito e protagonizado por Stroheim, previa a duração original de quatro horas de projecção, pelo que o filme teria de ser dividido em duas partes a exibir em sessões separadas. Durante a rodagem o orçamento inicial foi várias vezes reforçado, devido à insistência do realizador em ter os cenários da rua e da fachada do casino de Monte Carlo construídos em escala natural, decorados ao mínimo pormenor, à avultada quantidade de película gasta, aos métodos morosos dos ensaios com actores e figurantes, pouco compatíveis com os horários e os limites do mapa de trabalho aprovado. Apesar dos serviços de publicidade da Universal se vangloriarem do filme de Stroheim ser o primeiro filme a custar um milhão de dólares, revelando assim uma aposta ambígua na excentricidade do realizador, o novo produtor executivo Irving Thalberg não esteve pelos ajustes, suspendeu a produção ao fim de dez meses consecutivos de filmagens, quando lhe pareceu que havia material mais do que suficiente, e controlou a montagem até o filme ficar com a duração de uma sessão de cinema, passando o negativo original de 24 para 10 rolos. Irving Thalberg começou como secretário pessoal de Laemmle em Nova Iorque, em 1917. Tendo passado a maior parte da sua infância 79
metido na cama, devido a uma febre reumática que não lhe augurava muitos anos de vida, Thalberg tornou-se um leitor compulsivo de romances, peças, jornais, o que apanhava à mão. Apesar de raramente ter posto os pés na escola, Thalberg sentia-se mais preparado do que muitos dos seus colegas. Decidiu começar a trabalhar para enriquecer antes de chegar aos 30 anos, se lá chegasse. Carl Laemmle tinha prosperado no negócio da exibição cinematográfica no período dos nickelodeons e lançara-se na produção, desafiando o monopólio de Edison. Em 1915 criou o maior estúdio de cinema da Califórnia, situado no vale de San Fernando, a que chamou Universal City. Equipado com laboratórios, armazéns de guarda-roupa e adereços, oficinas de carpintaria, reserva de animais, restaurantes, lojas e um corpo policial privado, o estúdio da Universal tinha capacidade para produzir mais de duzentos filmes de longa metragem por ano, além de curtas metragens e jornais de actualidades. Devido às características do parque de exibição da Universal, na sua maioria situado em zonas de província e em cidades de pequena dimensão, Laemmle apostava em produções baratas e em filmes de série B que pudessem renovar rapidamente a programação de salas frequentadas por um público pouco exigente. Os relatórios e as opiniões do jovem Thalberg depressa o tornaram indispensável, de tal maneira que, dois anos depois da sua admissão, Laemmle encarrega-o da supervisão da produção da Universal. Thalberg acabara de fazer 21 anos, mas depressa se tornou o produtor mais falado e respeitado de Hollywood. Foolish Wives completa a trilogia de Stroheim sobre a personagem da inocente esposa solitária que se deixa seduzir por um estrangeiro canalha, o falso aristocrata alemão interpretado pelo próprio Stroheim, agora publicitado nos cartazes como o homem que amamos odiar. De facto, o achado promocional corresponde a uma imagem obstinadamente reafirmada pelo actor-realizador, tanto no comportamento profissional como na ficção dos seus filmes. Contra a hipocrisia institucional, que circunscrevia os limites daquilo que o cinema podia mostrar em termos de moral sexual, Stroheim povoou o mundo do cinema de maridos cegos e mulheres levianas que representavam o verniz quebrado de uma humanidade vergada aos mais baixos instintos e perversões. O surpreendente na estratégia de Stroheim é ele ter conseguido cativar a imaginação do público com sugestões eróticas muito claras de 80
sedução sadomasoquista, que instigaram e desconcertaram grande parte da imprensa da época, sempre atenta aos desvios morais introduzidos por Hollywood. Ao escrever, na sua edição de 20 de Janeiro de 1922, que Foolish Wives era um insulto aos americanos e, em particular, à mulher americana, o Variety dava o tom. O êxito do filme não deu para pagar os elevados custos de produção mas projectou a figura iconoclasta de Stroheim nas margens da mitologia de Hollywood. A compaixão e o ódio pelo vilão são das mais fortes experiências emocionais despertas pela imaginação melodramática. O próprio meio ambiente se anima em tempestades inexplicáveis contra as vítimas perseguidas pelo destino ou condenadas pela natureza incorrigível do seu carácter. A visão paranóica ganha sentido perante as forças da adversidade que o vilão polariza à sua volta, como se todos os sinais do mundo conduzissem ao exagero dos sentimentos. É esta dimensão do melodrama que Stroheim convoca nos filmes e, através dos filmes, dissemina na sua própria carreira profissional. Os conflitos com Thalberg agravaram-se na película seguinte, Merrygo-round (1922), na qual Stroheim acabou por ser substituído por outro realizador após seis semanas de rodagem, a pretexto de incumprimento das cláusulas e dos prazos contratuais, uma vez que o orçamento foi ultrapassado antes das filmagens chegarem a meio. Como era seu hábito, Stroheim continuava a improvisar com os actores em estúdio, deixando a numerosa equipa técnica a contabilizar horas extraordinárias, e acrescentava novas cenas, não respeitando o argumento escrito que tinha sido aprovado pelo produtor. Thalberg impedira desde início Stroheim de intervir como actor neste filme, de modo a poder despedi-lo na qualidade de realizador sem ter de interromper ou recomeçar as filmagens. O desprezo de Stroheim pelos executivos levou-o a avaliar mal a determinação e a autoridade de Thalberg a quem desafiou e ameaçou várias vezes. Irving Thalberg não era um simples burocrata, preocupado apenas em satisfazer as vedetas e garantir um lugar bem remunerado. Thalberg tinha de facto uma estratégia global de gestão, na linha inaugurada por Thomas Ince, que consistia em deslocar o poder decisório sobre os filmes do realizador para a organização do estúdio, representada pelo produtor central e delegada nos respectivos assistentes no interior de cada equipa. Ninguém melhor do que Thalberg aplicou os princípios industriais do fordismo ao processo de produção de filmes, 81
quase sempre com excelente proveito comercial, mas por vezes com resultados desastrosos do ponto de vista artístico. Os estúdios da Universal, sob a orientação de Thalberg, tornaram-se uma fábrica de fazer filmes, na qual a liberdade do realizador era estritamente circunscrita ao desempenho técnico de dirigir os actores, no cumprimento das indicações escritas no guião, a não ultrapassar as verbas inscritas no orçamento e a respeitar as datas fixadas no mapa de trabalho. Thalberg nunca interferia nas filmagens, mas nada se concretizava no estúdio sem a sua aprovação por escrito, nada saía das mesas de montagem sem ele anuir ao último corte. A carta de despedimento de Stroheim, assinada por Thalberg, não deixa dúvidas, quando refere, entre acusações de actos de insubordinação, de insistência em ideias extravagantes e de desrespeito pelas recomendações da censura, que o realizador está enganado se pensa que tem mais poder do que a organização para a qual trabalha. A clivagem entre a estratégia de normalização centrada na figura do produtor, de que Thalberg foi o protagonista decisivo, e a autonomia discursiva do realizador contra a padronização estética imposta pela indústria atingiu aqui um ponto de ruptura cuja importância simbólica e histórica não é de mais sublinhar. Thalberg despediu Stroheim no dia 6 de Outubro de 1922. Em 20 de Novembro do mesmo ano o realizador assinava contrato com a companhia de Samuel Goldwyn para adaptar ao cinema o romance naturalista de Frank Norris intitulado McTeague, cujo filme se viria a chamar Greed. O prestígio artístico de Stroheim, apesar dos factos, das ficções e das mentiras que o envolviam, mantinha-se, por enquanto, incólume. Assim ele conseguisse livrar-se de produtores autocratas como Thalberg. No universo de Stroheim havia lugar para vários ódios e seduções, para o cinismo, a ambição, a decadência e a megalomania, mas não havia lugar para mais de um ditador de cada vez.
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A montagem das atracções: A Greve (1924),
Eisenstein.
10 DOMINAR, DESTRUIR, REINVENTAR O mecanismo de rotação parou e, por instantes, a ponta da fita ficou ainda a bater nos pratos da enroladeira fazendo um ruído que lhe era familiar. Horas e horas passadas na mesa de montagem, algumas vezes acompanhado por Esther Shub, com quem tinha aprendido o rigor, a capacidade de descoberta e o virtuosismo da prática, outras vezes só, rodeado de pontas de película suspensas em réguas de madeira e do papel espalhado pelas mesas, onde desenhava e tomava notas para os seus artigos teóricos, tinham-no feito esquecer o tempo do mundo lá fora. Sergei Eisenstein arrumou os rolos de filme nas caixas metálicas, guardou os apontamentos e saiu. Mal chegou a casa, pôs-se a escrever sobre aquela obra invulgar que lhe abria pistas para o entendimento do cinema. Se um dia fosse à América gostava de conhecer o cineasta burguês que teve a ousadia de fazer Intolerance. O filme de Griffith foi importado para a Rússia antes da revolução, em 1916, mas ninguém quis exibi-lo por ser demasiado complexo para um público com grande percentagem de analfabetos, habituado aos folhetins de aventuras e aos melodramas de alcova. A estreia de 83
Intolerance, patrocinada pelo Comissário da Educação do governo
soviético, Anatoly Lunatcharsky, teve lugar no dia 17 de Novembro de 1918, em S. Petersburgo, e foi repetida em Moscovo em Maio do ano seguinte. O êxito foi de tal ordem que, em 1921, o Partido Comunista organizou uma digressão do filme pelo país a fim de angariar fundos para as vítimas da fome provocada pela guerra civil. Salvo nas primeiras sessões, Intolerance não foi exibido na União Soviética na sua versão original. Desde a estreia que os elogios da imprensa apontavam o filme como um modelo de perfeição técnica, que devia ser seguido pelo cinema revolucionário, mas repontavam também tratar-se de um filme que pregava a conciliação das classes, o humanismo cristão e uma concepção cíclica da história. A solução encontrada para transformar Intolerance num filme adequado à fé no materialismo histórico passou por duas operações típicas do contexto cultural que o país então vivia. A primeira consistiu em remontar a película, reduzindo os quadros bíblicos e reforçando a componente da contestação operária ao patronato capitalista na história moderna. A segunda intervenção, mais original, passou pela apresentação ao vivo, no palco de algumas salas de cinema, de quadros satíricos que serviam de prólogo e orientavam a conclusão do filme no sentido da revolução proletária. A primeira operação esteve a cargo de Esther Shub, porventura uma das mais extraordinárias montadoras da história do cinema, a segunda inspirou-se na prática de Meyerhold, que encenou vários clássicos com colagens de textos preparados para alterar a leitura ideológica das peças. O entusiasmo de Eisenstein pela obra de Griffith, na qual detectava o dinamismo da América industrial moderna a par do conservadorismo ideológico da América provinciana, não o impediu de escrever uma severa mas brilhante análise do filme, da qual, aliás, extraiu conclusões pertinentes para o seu próprio trabalho. Partindo da constatação de que o método de montagem é o factor emocional mais forte do cinema americano, Eisenstein demonstra que a construção do filme em acções paralelas é uma ideia decalcada do processo narrativo dos romances de Dickens, onde as descrições espaciais com mudanças de escala entre os parágrafos prefiguram a planificação cinematográfica, e onde a progressão da narrativa é organizada através da montagem de cenas paralelas interligadas umas às outras. A passagem do paradigma teatral, dominante nos filmes primitivos de ficção, ao modelo 84
literário, na articulação dos espaços narrativos, representa para Eisenstein uma mudança decisiva nas formas do cinema. A ampliação dos efeitos emocionais provocados pela montagem paralela mostrava à evidência que, pela simples junção dos planos, o realizador fazia o todo maior do que a soma das suas partes — a montagem tornava-se o factor mais produtivo e específico da criação cinematográfica. O erro de Griffith estaria em não ter sabido dar o salto qualitativo que lhe permitiria passar da mera representação dos acontecimentos à construção de um sentido crítico latente na justaposição dos planos, ou seja, passar do naturalismo plástico à elaboração de um tropo retórico de implicação social. O defeito de Griffith não era portanto de ordem técnica mas de natureza estético-política. Para Eisenstein os limites do conceito de montagem de Griffith decorrem da sua aceitação das estruturas da sociedade burguesa e de uma visão dualista do mundo, já que uma das consequências ideológicas da montagem paralela em Intolerance é assumir uma visão linear e idealista da História, como se todas as épocas se equivalessem, é contrastar os ricos e os pobres em linhas paralelas de evolução social, como se a luta de classes não existisse, é tratar as imagens como elementos de unidade e de continuidade, como se o conflito, a contradição e a ruptura entre os planos estivessem excluídos do cinema. Desde a alvorada da revolução que o cinema esteve na ordem do dia. É conhecida a declaração de Lenine — de todas as artes o cinema é para nós a mais importante — no contexto de um país atrasado, depauperado pela guerra civil, pela fome e pelo bloqueio económico. A importância do cinema era dupla: como meio de entretenimento colectivo de uma população a viver em condições muito árduas, e como máquina de propaganda dos ideais e das realizações do comunismo. Depois do decreto da nacionalização das actividades cinematográficas, com data de 27 de Agosto de 1919, no qual se previa o financiamento do filme soviético a partir das receitas comerciais da exibição dos filmes estrangeiros, Lenine recomenda a Lunatcharsky, em carta de 17 de Janeiro de 1922, um equilíbrio rigoroso entre a percentagem de filmes de ficção e espectáculo, após censurada qualquer indecência ou provocação reaccionária, e a percentagem de filmes subordinados ao tema da solidariedade operária internacional, grande parte dos quais eram documentários. Porém, tanto os espectadores anónimos como os intelectuais continuavam a preferir o cinema americano a todos os outros. Os filmes 85
policiais e de aventuras despertavam o entusiasmo do público, votando o filme de arte europeu e o drama russo à indiferença. O primeiro grande teórico e cineasta soviético a analisar as razões da popularidade do cinema americano foi Lev Kulechov, que publicou os primeiros artigos em 1917 e, em 1919, com 20 anos apenas, foi nomeado director da Escola de Cinema do Estado, onde desenvolveu um magistério incontestado, que iria influenciar a nata do cinema soviético até aos anos sessenta. Para Kulechov a eficácia do americanismo cinematográfico residia na energia dos heróis capitalistas, sempre em movimento, sempre vitoriosos, sempre felizes, numa linha de acção dramática que privilegia a competição individual e as recompensas afectivas, afastando por completo o mundo de fantasia do filme de qualquer realidade social. Estes pressupostos ideológicos, tipificados nos filmes que Anita Loos escreveu para Douglas Fairbanks, eram intensificados ao nível formal pelo prodigioso ritmo da montagem, resultante dos inúmeros planos exigidos pelo método da dissecação das cenas aperfeiçoado por Griffith. À lentidão e ao psicologismo chato do drama russo, opunham os americanos a velocidade e a variedade da acção, o que levou Kulechov a aceitar o princípio da supremacia do filme feito de planos curtos (Kulechov on Film, 1974). A fim de exemplificar a diferença entre o método russo, usual no filme de arte europeu, e o método americano, Kulechov propõe a seguinte situação. Um homem está sentado à secretária, a pensar, estático, depois tira uma pistola da gaveta, aponta-a à cabeça e suicidase. Se a cena for filmada num único plano geral, de modo a vermos o homem e o décor, é provável que o espectador não se envolva na intenção do personagem, se aborreça e se distraia, pois tem vagar para reparar em zonas inertes do enquadramento. Como é que os americanos filmariam a mesma cena? Numa série de grandes planos, cada um dos quais com informação diferente e a mostrar só o essencial da situação dramática. Plano do rosto do homem com o olhar vazio. A gaveta a abrir. A mão na pistola. O rosto do homem. O dedo no gatilho. Os olhos. O tiro. A clareza da acção, a concentração visual e o respectivo impacto emocional são agora muito maiores do que no plano geral filmado em continuidade. Deste e de outros exemplos muito simples retirou Kulechov algumas conclusões que contribuíram para alterar o modo de fazer cinema na União Soviética. Primeira, o plano de cinema não reproduz a realidade mas um determinado 86
fragmento de realidade que é transformado em signo. Cada plano é concebido como uma unidade mínima de significação na definição global da cena, que assim se constrói tijolo a tijolo. Segunda, a relação entre os planos é mais importante do que o seu conteúdo, uma vez que o significado deste pode ser alterado consoante a colocação das imagens na estrutura do filme. Terceira, o actor deve ser um modelo humano destituído de interioridade psicológica, de preferência escolhido em função da imediata legibilidade da sua morfologia física e da respectiva tipagem social, pois a sua representação, tal como os restantes elementos da iconologia cinematográfica, depende bastante do contexto criado pela montagem. O exemplo mais célebre destes postulados, conhecidos por efeito Kulechov, relata a experiência levada a cabo num seminário da Escola de Cinema. Kulechov fez seguir o mesmo plano do rosto do actor Mozhukin de vários outros planos, filmados em alturas diversas e sem qualquer relação real com o olhar do actor: um prato de sopa, uma mulher nua, uma criança morta. De cada uma das vezes o rosto do actor parecia exprimir fome, desejo, tristeza. O famoso raccord de olhar, pedra de toque do cinema americano, fixava uma ponte semântica entre o olhar para fora de campo e a imagem subsequente que vinha inevitavelmente satisfazer a expectativa desse olhar. Quer dizer, no cinema o actor não precisa de representar, é a montagem do filme que representa por ele. Outra consequência do efeito Kulechov consiste na hipótese da geografia criativa, ou seja, na configuração de um espaço fílmico virtual a partir da colagem de fragmentos de vários espaços reais: um homem caminha da esquerda para a direita numa rua de Washington, outro homem caminha da direita para a esquerda numa rua de Moscovo, há um aperto de mãos em grande plano — ficamos com a sensação de que os dois homens se encontraram no caminho, graças à aplicação judiciosa das regras da ilusão de continuidade baseadas no raccord de eixo e direcção. A montagem permite fazer e refazer o mundo representado, bem como alterar e reconstruir os próprios materiais do filme. A estas lições acrescentou Kulechov muitas outras, como a de concretizar a imagem de uma mulher a partir de fragmentos de diferentes actrizes, com a finalidade de demonstrar que o momento decisivo da arte cinematográfica reside na organização do material filmado e não na escrita do argumento até então entendida como a trave mestra da arquitectura do filme de ficção. 87
A luta contra o argumento nos anos vinte na URSS faz parte de uma polémica cultural mais vasta, protagonizada pelos futuristas russos, cujo expoente no campo do cinema foi Dziga Vertov. Tanto os futuristas italianos como os russos viam no cinema um prodigioso meio de oposição às artes do passado e, em particular, à literatura e ao drama teatral, de que o argumento escrito seria ainda um resquício. Propunhamse autonomizar o cinema como meio de expressão a fim de o converter no mensageiro da época industrial: o cinema apresentava-se não só como a arte da era das máquinas, era ele próprio uma máquina capaz de acelerar a imaginação e as sensações através do ritmo, da velocidade e da proliferação das imagens. «O cinematógrafo é uma arte em si mesma. O cinematógrafo não deve copiar o argumento. O cinematógrafo, sendo essencialmente visual, deve completar, antes de mais, a evolução da pintura: distanciar-se da realidade, da fotografia, do gracioso e do solene. Tornar-se antigracioso, deformado, impressionista, sintético, dinâmico, livre das palavras. É preciso libertar o cinematógrafo como meio de expressão para o converter no instrumento ideal de uma nova arte imensamente mais vasta e mais ágil do que todas as já existentes» (Marinetti, Manifesto do Cinema Futurista). Embora os futuristas italianos e russos apostassem nos mesmos princípios gerais de subversão, que consistiam em liquidar as tradições estéticas consagradas e em subtrair a nova arte simultaneamente à tirania do mercado e do museu, só os cineastas russos souberam extrair desses princípios uma prática socialmente pertinente, uma vez que a influência do futurismo em Itália, em França e na Alemanha conduziu quase sempre à perspectiva rítmica e abstracta do cinema puro. O tom provocatório dos manifestos de Vertov não deixa lugar a dúvidas: «Chamamo-nos Kinoks para nos distinguirmos dos realizadores, rebanho de trapeiros que mal conseguem disfarçar as suas velharias... O cine-drama psicológico russo-alemão, estafado pelas visões e pelas recordações de infância, é para nós uma inépcia... Nós afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente». O presente do cinema exibido nas salas era, obviamente, o filme narrativo de ficção, que Vertov considerava uma infame falsificação da vida, um ópio do povo. O entusiasmo pela máquina, pelo cinema documental e pelo homem novo anunciado pelo comunismo temperavam o mesmo caldo frenético: «Mediante a poesia da máquina, passamos do cidadão antiquado ao homem eléctrico perfeito... O homem novo estará livre da imperícia e da 88
torpeza, terá os movimentos exactos e leves da máquina, será o tema nobre dos filmes... Viva a poesia da máquina que se move e faz mover, a poesia das manivelas, rodas e asas de aço, o grito de ferro dos movimentos e o esgar inebriante dos jactos incandescentes» (Vertov, Articles, Journaux, Projects, 1972). Os famosos jornais de actualidades Kino-Pravda (1922-1925), bem como algumas reportagens semanais de propaganda que dirigiu desde 1918, eram montados por Vertov a partir dos rolos de película que lhe chegavam de todos os cantos da URSS, filmados por uma vasta rede de operadores de câmara. Lenine atribuía grande importância aos documentários rodados no seio do proletariado porque sabia que era a única maneira de tornar visíveis os progressos do comunismo e de permitir aos operários e camponeses verem-se e reconhecerem-se num ecrã de cinema, já que o espectáculo da ficção, nos primeiros anos da revolução e no período da Nova Política Económica, continuava dominado pelas histórias da burguesia. O experimentalismo da prática de Vertov, sustentado por um talento de montador inexcedível, contou assim com um apoio político ao mais alto nível que contradizia, em parte, a postura radical esquerdista dos seus pressupostos teóricos. Vertov assumiu a câmara de filmar como uma máquina de olhar mais perfeita do que o olho humano, isenta de miopia e de preconceitos, apta a explorar o caos dos fenómenos visíveis e a estar em vários locais ao mesmo tempo, capaz de arrastar consigo os olhos dos espectadores para os pormenores indispensáveis, graças a uma montagem meticulosamente calculada. Chamou ao seu cinema cine-olho, em busca de cine-sensações, e proclamou-o liberto dos limites do espaço e do tempo, em confronto com todos os pontos do universo: «deste modo eu decifro, de uma nova maneira, um mundo que vos é desconhecido». Na mesa de montagem, perante imagens que em muitos casos não tinha captado e que via pela primeira vez, Vertov decifrava o mundo da revolução e organizava-o em filme de acordo com intervalos, ritmos e associações de que só ele detinha o segredo. Desde a escolha do tema até à opção dos planos filmados, tudo era filtrado por uma noção abrangente de montagem colectiva, antes mesmo dos cortes definitivos. As actualidades de Vertov não precisavam de guião, produto da cozinha literária, eram literalmente escritas com as imagens impressas em película no acto da montagem, uma vez que antes das colagens só existia a selecção do olhar mecânico sobre o acaso do visível: a câmara 89
vê, a montagem pensa. O cine-olho seria uma máquina de rescrever o
real e de o revelar sem a aparente intromissão da subjectividade. A sua invulgar habilidade de cineasta insinua o modelo acabado da arte impessoal — o mesmo não é dizer objectiva — subordinada à poesia das formas e à mística do trabalho colectivo. A desvalorização da noção de autor, que percorreu as vanguardas dos anos vinte em consequência do reconhecimento do poder dos meios técnicos de reprodução, mas também como forma de acabar com os mitos burgueses da criação, da subjectividade e do individualismo, polarizando a atenção do público na complexidade partilhada do texto e não na psicobiografia do autor, encontrou em Vertov uma figura emblemática. Sergei Eisenstein tinha 22 anos quando chegou a Moscovo, no Outono de 1920. Nascido em Riga, no seio de uma família burguesa abastada, de origem judaica, tivera o privilégio de aprender alemão, francês e inglês na companhia de aias que zelaram em poupá-lo às frequentes discórdias entre os pais. Estudou engenharia e arquitectura na Universidade de S. Petersburgo, embora manifestasse mais interesse no desenho e na leitura dos clássicos. Depois da revolução de Outubro, quando estala a guerra civil no início de 1918, Eisenstein alista-se no Exército Vermelho, enquanto o pai opta pelas tropas brancas da contra-revolução. Trabalha como sapador em fortificações, desenha cartazes políticos, alinha em colectivos teatrais que percorrem o país em comboios de propaganda. Na turbulência desses meses apaixona-se pela cultura japonesa, pelo que, quando é desmobilizado, em vez de retomar os estudos de engenharia, decide ir para Moscovo, onde se inscreve no departamento de Línguas Orientais da Academia Militar. Depressa, porém, o encontramos a trabalhar como estilista, cenógrafo e encenador de teatro nas fileiras do Proletkult, onde se manteve até 1924. Fundado pouco antes da revolução, por iniciativa de Lunatcharsky e de Bogdanov, o Proletkult era uma autoproclamada organização cultural de massas, independente do Partido Comunista, cujo programa apontava como objectivos a rejeição de qualquer herança cultural do passado e a criação de uma cultura proletária essencialmente fundada no espírito do colectivismo. A ideia bizarra de inventar uma nova cultura a partir do nada, fazendo uma política de terra queimada em relação à cultura burguesa, não agradava a Lenine que não se cansava de explicar a tese marxista da assimilação crítica do passado, sem 90
a qual não havia presente nem futuro: afinal, a filosofia da revolução tinha saído da cabeça de intelectuais burgueses e as máquinas que os futuristas tanto apreciavam eram fruto da tecnologia capitalista. Em suma, era preciso aprender com os inimigos de classe. Lenine tinha um país para reconstruir e estava mais interessado na elevação do nível cultural dos trabalhadores e na democratização dos valores sólidos da cultura burguesa do que no experimentalismo formal incompreendido pelas massas. A concepção utilitária da arte seguiu uma rota previsível nas circunstâncias — da educação à agitação, da solidariedade à propaganda. Apesar das críticas de Lenine e da consequente moderação de Lunatcharsky, que teve dificuldade em refrear a energia de Bogdanov, inovação e ousadia não faltavam no Proletkult. Eisenstein foi testemunha activa desse clamor generalizado contra as histórias de ficção, a favor do documento em bruto, contra a arte figurativa, a favor do construtivismo e da excentricidade, como se tudo estivesse por descobrir e reinventar, como se a ilusão da arte mais não fosse do que uma arte da ilusão. Nas Reflexões de um Cineasta (1945) recorda o fervor de um momento que se faria sentir toda a vida: «Primeiro, dominar. Depois, destruir. Aprender os segredos da arte. Arrancar-lhe todos os véus». Viktor Sklovski, escritor e crítico, amigo de Eisenstein e argumentista de dois dos melhores filmes de Kulechov, gostava de contar, a propósito, uma anedota de origem grega: numa exposição de pintura, perguntam ao pintor porque não tira o véu que cobre determinado quadro, ao que o pintor responde que não pode porque aquela pintura representa exactamente um quadro coberto por um véu. Começou então a dupla vida de Eisenstein, como aprendiz e criador de um mundo de fábula que se tomou um dos mais espantosos documentos artísticos do nosso século, e como prestidigitador e arrancador de véus da sua própria obra, num corpo analítico que é porventura o maior legado teórico da história do cinema.
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O deserto de Greed (1924), Stroheim.
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CONTRA FACTOS NÃO HÁ ARGUMENTOS Não obstante o fracasso da contratação dos autores eminentes, Goldwyn não desistira de uma política de produção escudada por textos literários de sólida reputação. Convencido de que o respeito pelo livro podia disciplinar os devaneios do realizador e que a proposta deste filmar apenas em locais naturais, fora dos estúdios, impedia a eventualidade de gastos excessivos com a cenografia, Goldwyn deu carta branca a Stroheim para iniciar a produção de Greed antes mesmo de haver um guião, já que a ideia do realizador era filmar o livro de Norris de fio a pavio, a partir da edição publicada. Havia, no entanto, um contrato no qual Stroheim se comprometia a respeitar a duração prevista para o filme, o orçamento proposto e os prazos estipulados de rodagem. Stroheim lançou mãos à obra mas não cumpriu nenhuma das cláusulas mencionadas. Estava enfim livre do policiamento de Thalberg e apostado em fazer a obra-prima que iria abrir novos caminhos ao cinema, custasse o que custasse. Os objectivos de Stroheim podem resumir-se num ataque cerrado às convenções comerciais de Hollywood que, em sua opinião, apenas 93
serviam para fazer filmes de chocolate e sacarose, sem a substância da vida real. Em vez de estrelas ia convidar actores pouco conhecidos que não estragassem com a aura do vedetismo a autenticidade dos personagens — queria homens e mulheres reais, com amor e ódio, os vícios e as ambições humanas, e não personalidades míticas cuja tarefa essencial é despertar artificialmente a simpatia do público. Em vez de um guarda-roupa de luxo, desenhado para dar espectáculo, ia comprar roupas usadas, discretas e gastas como os personagens. Em vez de cenários estilizados, fabricados por técnicos habilidosos mas desligados da vivência quotidiana do país, queria ruas reais com eléctricos e carros sujos de lama a sério. Em vez do esplendor da iluminação artificial, recheada de falsos contrastes, ia aproveitar a luz do dia e reconstituir as fontes naturais de iluminação. Em vez do final feliz, que adultera a experiência árida da luta pela vida, ia concluir com um dos finais mais sórdidos e deprimentes jamais vistos no cinema americano. Em suma, Stroheim estava disposto a desafiar as normas da indústria e os valores cinematográficos em voga na época. Como escreveu Bazin, o cineasta «vai criar um cinema da hipérbole e da realidade; contra o mito sociológico da vedeta, herói abstracto, ectoplasma de sonhos colectivos, vai reafirmar a incarnação mais singular do actor, a monstruosidade do individual. Se fosse preciso caracterizar numa só palavra, forçosamente aproximativa, o contributo de Stroheim, veria nele uma revolução do concreto». Stroheim acreditava no cinema como o único meio artístico capaz de atingir o realismo absoluto, de reproduzir a vida tal como ela é. Este programa estético conheceu dois momentos altos na história do teatro, cuja influência pairou de modo intermitente na corrente realista do cinema mudo. Primeiro, o drama burguês do século )(VIII tal como aparece teorizado em Diderot: a perfeição do espectáculo consiste na imitação tão exacta da acção que o espectador acredita estar a assistir à própria acção. Este princípio de transparência discursiva, que o cinema clássico haveria de fazer seu, corresponde ao período histórico da decadência da tragédia e da liquidação dos heróis míticos. O teatro burguês apresenta um mundo sem heróis, povoado exclusivamente por seres banais e medíocres cuja única tragédia é a que se prende com os conflitos familiares, os dramas conjugais e os reveses financeiros. A ascensão histórica da burguesia justifica o desaparecimento do palco dos seres excepcionais, filhos de deuses e de aristocratas, cujo sistema de valores não se coaduna com as aspirações do novo público formado 94
pelas classes médias. O realismo da representação não se assumia como um fim em si mesmo, mas como um dispositivo retórico ao serviço da persuasão dos espectadores na criação do patético: o drama é tanto mais comovente quanto mais credível for o universo representado. O teatro naturalista do fim do século XIX vai mais longe. Embora aceitando que a ilusão está na base da emoção, Zola defende a verdade cénica como sendo a única força capaz de dar à arte dramática a intensidade do real. Verdade ao nível da vulgaridade das histórias que devem evitar as peripécias demasiado construídas e as intrigas perfeitas típicas da peça bem feita. Verdade ao nível dos actores, que em vez de representar devem viver em cena os papéis que encarnam. Verdade ao nível dos cenários, dos adereços e das roupas, que devem ser compostos por objectos reais de uso quotidiano. A questão do décor na estética naturalista é de extrema importância na medida em que o seu postulado ideológico determina que o carácter e o comportamento dos personagens são fruto do meio ambiente em que vivem. Se o romance de Frank Norris é o exemplo acabado da opção naturalista em literatura, o filme de Stroheim ergue-se como a grande tentativa de incorporar aqueles pressupostos estéticos no único meio de expressão capaz de os concretizar. Ao abordar especificamente a questão central dos décors e dos adereços, Zola reconhece as limitações físicas do teatro, pois se é possível recorrer a objectos verdadeiros colocados em cena, não é exequível transpor para o palco a natureza, ou seja, os locais da realidade incompatíveis com os limites da moldura teatral e que são fundamentais para a compreensão social e psicológica dos personagens. Não é outra a preocupação de Stroheim quando decide filmar integralmente Greed em locais naturais, sejam interiores sejam exteriores. Consciente da originalidade da sua experiência, Stroheim anuncia que Greed é, até à altura, o único filme de Hollywood que não utilizou qualquer cenário de estúdio. Se não é verdade que Greed tenha sido o primeiro filme de ficção americano a ser inteiramente rodado em locais naturais, pode dizer-se que ele é talvez aquele que tira dessa circunstância as conclusões mais pertinentes. A ênfase melodramática da intriga e a tentação simbólica das imagens são subjugadas pela crueza da encenação. A noção cinematográfica de cena, enquanto princípio básico da organização dos materiais narrativos e da relação entre os actores, o décor e a câmara de filmar, é obviamente herdeira de uma longa tradição 95
teatral. Encenar, no sentido mais simples do termo, significa interpretar e dirigir uma acção dramática em termos de espaço e de tempo. Pode portanto definir-se uma cena a partir dos constrangimentos que ela impõe à representação. A proposta radical de Stroheim consiste em mostrar que no cinema há limites que podem ser desafiados — mais do que tentar criar a ilusão da realidade através da verdade cénica, o projecto de Stroheim implica a encenação da própria realidade. Os personagens principais de Greed são McTeague, um mineiro de carácter primitivo, com impulsos à flor da pele, que abre um consultório de dentista em S. Francisco e casa com Trina, uma avarenta patológica contemplada com um prémio de lotaria. A deterioração do casamento acentua a obsessão sensual de Trina pelo dinheiro, enquanto McTeague fica brutalizado pelo álcool. Depois de assassinar a mulher, McTeague foge com o dinheiro para o deserto onde é perseguido por Marcus, ex-amante de Trina. McTeague mata Marcus mas ficará para sempre nas areias escaldantes preso por algemas ao cadáver do seu rival. O relato das filmagens de Greed, feito pelos actores e técnicos que nelas participaram, dão a medida da obstinação do realizador mas também uma parcela dos equívocos que ela comporta. A rodagem teve início em S. Francisco no dia 13 de Março de 1923. Antecipadamente, a produção alugara as casas onde iriam decorrer as filmagens e nas quais, por imposição de Stroheim, os actores ficaram a viver durante algum tempo para se habituarem ao ambiente. O edifício onde foi filmada a maior parte da acção na cidade é o próprio edifício onde anos antes ocorreram os crimes que estão na origem do livro de Norris de que o filme procura ser a transcrição fiel. Dada a exiguidade do espaço e a exigência de Stroheim em recorrer à profundidade de campo e em evitar a colocação de projectores que falseassem as fontes naturais de iluminação, o director de fotografia William Daniels foi obrigado a fazer prodígios para equilibrar a iluminação do interior do apartamento, onde se passa a acção com os actores, com a luz do exterior visto através das janelas abertas, onde continua imponderável a actividade da rua. O resultado são algumas das cenas mais belas do cinema americano. Outro episódio contado por Daniels revela até que ponto a obsessão de Stroheim pelo realismo integral podia conduzir a uma atitude feiticista, porventura sem consequências visíveis quanto à garantia de autenticidade reconhe96
cida pelo espectador. Para filmar a galeria de uma mina, a equipa desceu a três mil pés de profundidade, correndo sérios riscos de segurança, quando a cena podia ter sido filmada, aparentemente com os mesmos resultados, numa galeria idêntica situada a cem pés da superfície. A intransigência de Stroheim é indissociável da fé na captação do real pelo cinema, porque confia em que o perigo da filmagem não pode deixar de se reflectir na tensão da equipa técnica e na atitude dos actores, por certo análogas às que sentem aqueles que são obrigados a trabalhar na mina, em circunstâncias idênticas. A sequência do deserto foi rodada em pleno Verão no Vale da Morte, onde a equipa ficou acampada durante duas semanas, longe da povoação, com sete camiões de equipamento e mantimentos. A temperatura era insuportável e as condições tão precárias que, dos quarenta e um membros da equipa, catorze tiveram de ser retirados do local e hospitalizados. John Hersholt, um dos figurantes que Stroheim promoveu a actor por ter o tipo físico idealizado para o papel de Marcus, recorda como, após repetidos ensaios sob um sol abrasador, quando os dois intervenientes na luta final se encontravam à beira do colapso, Stroheim filmou a cena aos gritos exaltando os actores a odiarem-se tanto um ao outro como ambos o odiavam a ele próprio. Os métodos podem ser discutíveis mas o resultado da escolha do elenco, da direcção de actores e da definição dos décors é extraordinário. A lei da selva, preconizada pelas teorias do darwinismo social subjacente à ideologia do drama naturalista, surge estampada no rosto das pessoas. A força do instinto e o excesso da paixão, supostamente determinados pelo meio ambiente e pela fatalidade biológica, parecem enraizados na atmosfera visual do filme e na morfologia dos actores. O célebre axioma de Zola acerca da dupla influência dos personagens sobre os factos e dos factos sobre os personagens encontra em Greed o seu momento de plenitude no cinema. A proliferação dos pormenores descritivos do livro de Norris, própria do romance naturalista, adequava-se perfeitamente ao estilo de Stroheim cujo propósito sempre fora aprofundar e ultrapassar as notações realistas da escola de Griffith. Para tanto, Stroheim adoptou uma técnica de composição dos planos em profundidade, de modo a deixar visível a materialidade dos décors bem como o recorte dos objectos que servem para definir os personagens. A distensão das cenas e a acumulação dos planos, fundamentadas na mesma estratégia descritiva, 97
travam o progresso da narrativa a favor de uma construção meticulosa da espessura dos espaços habitados. São estes pormenores, aparentemente inúteis em termos de funcionalidade narrativa, cuja autenticidade é garantida pelo estatuto de objectividade da imagem cinematográfica, que reforçam o efeito de real justamente tão apreciado nas obras da modernidade. Enquanto Stroheim esteve ocupado a montar o filme, a companhia de Goldwyn foi integrada na Metro-Goldwyn-Mayer, administrada por Louis B. Mayer e pelo seu supervisor de produção, Irving Thalberg, que entretanto abandonara a Universal para se transformar no verdadeiro executivo da MGM. A fatalidade deste inesperado reencontro com Thalberg bem podia ter saído de um dos filmes do próprio Stroheim, nos quais os personagens parecem sempre condenados a cumprir um destino confrangedor. Quando Stroheim acabou a primeira montagem, Greed tinha quarenta e duas bobinas, ou seja, cerca de dez horas de projecção. Mayer e Thalberg exigiram que o filme fosse reduzido à duração comercial prevista no contrato, mas o máximo a que Stroheim conseguiu chegar foi às vinte e quatro bobinas, o que era manifestamente incompatível com os padrões vigentes da exploração cinematográfica. Depois de várias montagens atribuladas, na tentativa de chegar a uma versão satisfatória, o filme foi brutalmente reduzido a dez bobinas por um montador do estúdio por imposição de Thalberg. Se compararmos a versão existente da película com o minucioso guião original que Stroheim foi ditando à secretária durante a preparação das filmagens, podemos porventura avaliar alguns dos pressupostos normativos do sistema comercial de produção de Hollywood na época. Os cortes incidiram fundamentalmente no seguintes pontos: — supressão da exposição inicial que ocupava quase um quinto da versão de dez horas. Este segmento, que não consta do romance, fazia a apresentação dos personagens e dos temas mas sem introduzir acontecimentos consequentes para o desenvolvimento da narrativa; — concentração da estrutura narrativa em torno da intriga principal e dos protagonistas, eliminando ou reduzindo todos os episódios da descrição da vida quotidiana dos personagens, de modo a acentuar a tensão dramática que prepara e justifica o desfecho; — contenção das imagens de carácter alegórico quando destituídas de valor narrativo evidente; 98
— redução das cenas e planos longos que, no entender do estúdio, corriam o risco de aborrecer os espectadores; — rescrita dos intertítulos de maneira a apagar o vestígio dos cortes e as quebras de continuidade narrativa. Se nos lembrarmos dos preceitos do manual de argumento de Anita Loos e John Emerson, publicado três anos antes das filmagens de Greed, verificamos que também ao nível da dramaturgia Stroheim violou sistematicamente as regras estabelecidas: a exposição dificultava a rapidez das peripécias, foi cortada; as digressões e as personagens secundárias contrariavam a unidade de acção, foram cortadas; os pormenores descritivos e as imagens alegóricas não faziam progredir a intriga principal, foram cortados; os planos longos, cuja duração exprimia a impaciência, o tédio e o vazio dos personagens, foram cortados; não há simpatia de estrelas nem final feliz, logo os produtores tomaram precauções para que o filme fosse um fracasso. Em suma, toda a estratégia de proliferação na base do projecto foi liquidada. Em sentido lato, é a rejeição do prazer da deriva estética como forma de dispersão e de reinvenção das linguagens que está em causa e que vai circunscrever durante muito tempo o terreno da prática do cinema em Hollywood. A versão integral de Greed entrou para a mitologia do cinema no dia em que Thalberg mandou queimar o negativo para recuperar as partículas de prata da película, cujo valor irrisório não deu sequer para pagar aos três mil figurantes do filme seguinte de Stroheim, The Merry Widow (1925). Apesar da fricção permanente, Thalberg foi o único produtor a fazer mais do que um filme com Stroheim como realizador. Reconhecia-lhe o talento mas não suportava a indisciplina e o desperdício. The Merry Widow é um bom exemplo da ideia de cinema que Thalberg e Mayer consagraram na MGM. Adaptação de prestígio literário, totalmente rodada em estúdio, com o elenco principal composto só de actores de primeiro plano, iniciando a estratégia publicitária de haver mais estrelas na Metro do que há no céu, e todo o esplendor da cenografia e das luzes sugeridas pela opereta de Franz Lehar, trata-se do entretenimento de luxo para o público das salas das grandes cidades, que Thalberg pretendia conquistar a fim de garantir a liderança do mercado mais lucrativo dos filmes de classe A. Na MGM Thalberg leva finalmente a cabo a política de produção que não conseguira concretizar na Universal: preponderância do cinema-espectá99
culo, distinção individualizada dos produtos, subordinação absoluta dos departamentos artísticos à visão do produtor, que determina a identidade do mundo do estúdio e os filmes padronizados que são a expressão imaginária desse mundo. Apesar dos intermináveis conflitos entre Stroheim e Thalberg, os actores e os técnicos — que chegaram a trabalhar em três turnos ao longo de vinte e quatro horas ininterruptas de filmagens —, The Merry Widow é um filme brilhante, tendo obtido um enorme êxito de bilheteira. Stroheim nunca se orgulhou do êxito deste filme, também reduzido e remontado segundo as indicações pessoais de Thalberg, agora apostado em vergar o realizador às normas contratuais do sistema dos estúdios. Sempre que podia Stroheim denegria nos produtores e nas estrelas da Metro-Goldwyn-Mayer, que o tinham forçado a abandonar a arte do realismo para dirigir fantasias de encomenda que ele só aceitava para poder sustentar a família. Foi pois com algum entusiasmo que, terminado o seu contrato com a MGM, Stroheim aceitou o convite de B. P. Schulberg para integrar as fileiras da Paramount a fim de realizar e interpretar The Wedding March, que seria estreado em 1927. O décor é Viena antes da guerra de 1914, ou seja, a Viena que Stroheim conheceu e que vai reanimar através da ilusão criada pela ficção histórica e pela minúcia cenográfica. Apesar do cenário estar construído por secções, nos terrenos dos estúdios da Paramount em Hollywood, o perfeccionismo da carpintaria e da decoração, ao nível do pormenor, convencem o olhar de quem se aproxima. Foi pelo menos essa a sensação que teve o jovem Budd Schulberg quando, movido pela curiosidade acerca da terrível fama de Stroheim, entrou discretamente no local de filmagens de The Wedding March. O pai de Budd tinha tomado a iniciativa de convidar Stroheim a filmar para a Paramount e era agora o produtor executivo responsável pela prestação de contas a Zukor. Budd testemunhara várias vezes o entusiasmo do pai ao afirmar, contra a opinião dos seus colegas produtores mais conservadores, que o homem que dirige dois filmes tão diferentes e tão bons como Greed e The Merry Widow é seguramente um génio. Budd mal podia esperar que as filmagens começassem: queria lá estar para ver como era um génio em acção. A despeito dos seus 12 anos, Budd Schulberg já tinha visto um número suficiente de realizadores a trabalhar para saber distinguir 100
entre aqueles que cumprem a rotina da planificação e os que transfiguram os espaços e as pessoas para criarem obras pessoais. As filmagens começaram no dia 2 de Junho de 1926 e ao fim da primeira semana ninguém tinha dúvidas acerca do génio incontrolável de Stroheim. Era raro o dia em que a actriz principal, Fay Wray, não ficasse histérica e exausta com a direcção autoritária do realizador, por vezes muito perto da ameaça e da agressão. Mas os resultados, como sempre, eram surpreendentes, pelo que o executivo foi fingindo ignorar os relatórios de produção até os atrasos em relação ao mapa de trabalho, aos gastos de negativo e às despesas das horas extraordinárias da equipa atingirem proporções fora do comum. Stroheim exigia horários de vinte horas de trabalho consecutivas, com duas equipas técnicas a trabalharem por turnos, a fim de poder repetir cada cena trinta ou quarenta vezes, até os actores e os figurantes ficarem literalmente prostrados. Mas quando é que aquele homem dormia? Após vários meses de rodagem, Stroheim encomendou ao chefe do guarda-roupa da Paramount mil peças de roupa interior em seda natural para uso dos figurantes que faziam de convidados nas festas da corte do Imperador. Stroheim prontificou-se a esclarecer que a roupa interior não seria vista pela câmara de filmar mas que era indispensável ao realismo da cena — só assim os figurantes teriam a sensação de conforto e riqueza própria da condição dos aristocratas austríacos. O famoso fetichismo de Stroheim acerca do pormenor realista adquire aqui um duplo sentido cuja ambiguidade sexual é, em si mesma, esclarecedora. Budd Schulberg ficou confuso ao ver como o entusiasmo do pai se transformou em cólera: Stroheim já não era um génio, era um louco, ou ambas as coisas. B. P. Schulberg interrompeu as filmagens no dia 8 de Outubro, quando o orçamento, a película e o mapa de trabalho estavam há muito ultrapassados sem que o realizador desse a rodagem por concluída. Tinha de reconhecer que o material filmado era excelente, mas não podia deixar a produção arrastar-se indefinidamente. Stroheim foi autorizado a fazer uma primeira montagem que, como vinha sendo habitual, durava mais de quatro horas e fora concebida para ser projectada em duas partes. B. P. Schulberg recusou esta versão e afastou definitivamente Stroheim do filme. Em vez de entregar a remontagem de The Wedding March a um técnico anónimo do estúdio, B. P. Schulberg ensaiou outra alternativa. 101
Acabara de contratar para a Paramount um admirador incondicional de Stroheim, que também tivera problemas com Thalberg na MGM e que era apontado como um dos mais promissores realizadores de Hollywood: Josef von Stemberg. Os dois primeiros filmes de Stemberg, The Salvation Hunters e The Exquisite Sinner, ambos estreados em 1925, eram nitidamente influenciados pelo naturalismo cinematográfico de Stroheim, pelo que a escolha parecia lógica. Se Stemberg aceitou a ingrata tarefa por uma questão de cortesia para com Stroheim, como afirmou, ou se quis, pura e simplesmente, executar pelas próprias mãos, na moviola, o seu pai simbólico, é o que nunca saberemos, tantas são as versões acerca deste lamentável episódio. O egocentrismo e o talento dos dois austríacos parecia não conhecer limites. A admiração de Stemberg por Stroheim era genuína: considerava o autor de Greed o maior realizador americano em actividade, depois dele próprio, evidentemente.
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William Hart: o herói determinado.
12 A SITUAÇÃO, A DECISÃO, A TRANSPARÊNCIA «Blaze Tracey representa o melhor e o pior do Oeste primitivo, é um homem capaz de matar, cuja filosofia de vida se resume na crença em disparar primeiro e discutir depois». Esta simples rubrica de um argumento de Gardner Sullivan, escrito para Thomas Ince e interpretado por William Hart, condensa todo um programa de acção. Perante uma situação dramática o herói americano não hesita, age. Por vezes, a decisão está tomada antes dos problemas surgirem, pois ele sabe o que quer e para onde vai, tem objectivos concretos e ninguém vai impedi-lo de os realizar, custe o que custar. Esta imagem do herói determinado é sem dúvida a mais frequente na indústria americana, aquela sobre a qual se moldam os protagonistas dos filmes de acção e, de um modo geral, os estereótipos humanos do cinemaespectáculo. Actores de excepção, como Douglas Fairbanks, James Cagney e Gary Cooper, souberam dar uma dimensão mítica ao herói determinado ao criarem padrões de representação que seriam imitados vezes sem conta, o primeiro convertendo a teimosia numa parada de humor, o segundo impondo uma intransigência sem 103
contemplações, o terceiro adoptando uma atitude lacónica à beira do paradoxo. Se o herói determinado se encontra definido desde o primeiro momento do filme, em oposição a valores que a exposição da premissa dramática deixa antever, o herói relutante, pelo contrário, faz do seu processo de decisão uma componente essencial do desenrolar da narrativa. O herói relutante é uma configuração humana típica das oposições binárias características da ficção americana e do espírito individualista que move os seus personagens. O herói relutante hesita o tempo suficiente para pôr em questão os dados do conflito, semear algum suspense e formar uma opinião que só o compromete a ele próprio, mesmo quando a sua condição social ou situação profissional envolve a participação de um grupo ou de uma instituição. O personagem concebido por Sullivan, acima descrito, apesar de ser um protótipo do herói determinado, pela maneira decidida e radical como enfrenta as contrariedades, assimila na mesma definição de personalidade toda a ambivalência que macera o herói relutante: Blaze Tracey representa o melhor e o pior do Oeste primitivo. Da mesma natureza compósita são feitos personagens como o soldado pacifista, o padre inconformista, o polícia corrupto, o juiz assassino, o bandido justiceiro e muitos outros. O Humphrey Bogart de Casablanca (1943) é o exemplo acabado do herói relutante, entre a memória do passado e a promessa do futuro, entre a política e o amor, entre a amargura e a generosidade, toda a intriga gira em tomo dos seus sentimentos contraditórios e das suas decisões. Iremos encontrar no Marlon Brando de On the Waterfront (1954) outra figura cristalina do herói relutante, frequente no filme de problemática social do pós-guerra. Determinado ou relutante, o herói tem de acreditar na sua capacidade de acção e nos objectivos que a impulsionam. Na melhor tradição do pragmatismo americano, a dúvida surge como um estado intolerável de preocupação, de insatisfação e de instabilidade. A indecisão paralisa não apenas a vontade do protagonista como o próprio andamento da intriga, tomando-se por conseguinte um factor acrescido de tensão narrativa que é preciso ultrapassar. Em termos dramáticos, é preferível tomar uma decisão errada do que não tomar decisão nenhuma: o erro pode-se corrigir, dar azo ao arrependimento e à redenção, mas a inércia é fatal. A passagem da dúvida à crença é um momento decisivo na estrutura deste tipo de ficção; não interessa que 104
a crença seja boa ou má, justa ou não, desde que dê credibilidade ao comportamento do personagem e justifique a sua meta de intervenção. A passagem da dúvida à crença nem sempre é indolor, pode requerer uma longa investigação — a verdade não é um dado adquirido — ou um percurso pessoal que o personagem cumpre em sintonia com o próprio itinerário narrativo do filme. A crença é algo de que o personagem está consciente, que lhe dá confiança em si próprio, que se incorpora naturalmente no seu modo de ser como uma regra de acção. Daí o carácter voluntarioso e simpático destes heróis que aprendem à sua custa, decidem nos momentos mais difíceis e poupam-nos o esforço das grandes opções. Sejam quais forem as razões que levam o herói a ponderar antes de agir, não deve mostrar qualquer vestígio de desânimo ou de autocomiseração. A organização da narrativa em três actos — exposição, confronto, resolução — dá clareza, ordem e completude à estrutura interna do argumento. Depois da apresentação dos personagens e da definição da premissa dramática, que anuncia o tom, o tema e os termos do conflito, a entrada na segunda parte é justamente marcada pela tomada de decisão do protagonista, que se vê compelido a confrontar-se com as questões introduzidas pelo antagonista. O ponto de transição entre cada acto deve ser assinalado por uma peripécia que altera o curso dos eventos e cria novas dificuldades ao protagonista; na prática, é a determinação do herói em encontrar soluções para todos os problemas que pontua o ritmo e o fluxo dramático da ficção. O exemplo mais espectacular da tomada de decisão, ou da passagem à crença positiva, assenta na cena de transfiguração, comum no melodrama, mas de efeito garantido em qualquer género. Na cena de transfiguração assistimos ao sacrifício e à redenção instantânea de um personagem, que muda de opinião, de moral ou de personalidade: é o mau que se arrepende e se torna bom, é o vício feito virtude, é o traidor que acaba por salvar os ideais da comunidade, é o filho transviado que regressa a casa e pede perdão aos pais, é a mulher perdida que recebe no peito a bala destinada ao herói. Dudley Nichols, especialista neste tipo de cenas, argumentista preferido de John Ford — fizeram juntos catorze filmes — resume com propriedade o fundamento ideológico desta respeitável tradição narrativa: «Jesus podia ter escolhido expressar-se simplesmente através de preceitos morais; mas, como grande poeta que era, escolheu a forma da parábola, ou seja, pequenas 105
histórias maravilhosas que entretêm e revestem os preceitos morais de uma forma eterna. Não é suficiente despertar a atenção do homem, é preciso despertar também as suas potencialidades de imaginação». Porque acredita no poder dos homens transformarem o mundo e de progredirem com a experiência do quotidiano, o herói americano assume uma atitude pragmática perante os desafios da vida. Ele não está interessado em reflectir sobre a essência das coisas, os limites da existência ou o destino do universo, mas em pôr em prática ideias que funcionem e sirvam para melhorar a sua condição. Esta fé na realidade como material em bruto, susceptível de ser moldado às necessidades sociais do ser humano, tem por corolário uma concepção moralista da obra de arte, também ela adequada à ilustração de lições proveitosas. Mesmo o filme de mais puro entretenimento, como a comédia musical, descarta qualquer veleidade de arte pela arte para sugerir conclusões utilitárias recheadas do maior optimismo e alegria de viver. Desde muito cedo que os cineastas americanos assumiram a tarefa e a responsabilidade de erguer os mitos determinantes da cultura de massas do nosso tempo, tentando conciliar valores incompatíveis, através de personagens contraditórios mas de carácter positivo, mostrando que o sonho americano radica fundamentalmente numa cultura de afirmação e de integração. É na situação dramática que os personagens se revelam, que os nós da intriga ganham forma e substância, na medida em que se toma premente dar-lhes um contexto narrativo com antecedentes — as indispensáveis motivações do passado — e consequências — a inevitável conclusão moral do desfecho. No influente manual de escrita de argumento de Frederick Palmer (Photoplay Plot Encyclopaedia, 1920), entende-se por situação dramática a conjuntura da acção narrativa em que os personagens, portadores de interesses diferentes e conflituais, são colocados perante um dilema, são forçados a fazer uma escolha e a tomar uma decisão, ou são confrontados com dificuldades e obstáculos que têm de vencer. Estes momentos de crise, acrescenta Palmer, devem ser preparados de maneira lógica e natural, de modo a parecerem inevitáveis. Eis uma subtil precaução retórica que justifica a progressão da narrativa em sucessivos lances de causa e efeito, e que decorre da premissa liminar da universalidade das situações dramáticas: dos tempos da Grécia antiga aos tempos da América moderna, do Pólo Norte ao calor dos trópicos, os conflitos emocionais seriam 106
constantes e idênticos, pela simples razão de que a natureza humana não muda. É esta concepção idealista do ser humano, onde não existem clivagens históricas nem geográficas, onde a evolução das mentalidades e os constrangimentos sociais e culturais não pesam, que autoriza realizadores como De Mille a pôr na boca de personagens bíblicos alguns diálogos que podiam ser proferidos pela burguesia contemporânea de Los Angeles. Quando Howard Hawks convidou William Faulkner para escrever os diálogos de Land of the Pharaohs (1955), o escritor respondeu que não sabia como falava um faraó. Hawks também não sabia, mas Faulkner acabou por arranjar uma solução do agrado do realizador: pôs o faraó a falar como se fosse um coronel do Kentucky com a inclinação trágica de um personagem de Shakespeare. Os anacronismos podem ser discutíveis mas são também — temos de reconhecê-lo — uma hipótese elementar da capacidade de persuasão do cinema americano em toda a parte. A preocupação, que começa na escrita do argumento, de preparar situações que pareçam lógicas, naturais e inevitáveis visa criar uma ilusão de realidade altamente codificada que apague os vestígios de arbitrariedade que toda a ficção comporta. Entre o acaso e a necessidade dos acontecimentos, o filme clássico escolhe a necessidade, porque arvora um mundo habitável, homogéneo e fechado, onde tudo faz sentido, onde todos têm lugar, onde não há caminhos sem saída, onde cada situação se sucede a outra situação fazendo progredir a intriga de acordo com a ordem imperturbável das leis da causalidade e da continuidade. Para concretizar e tomar eficaz esta estratégia da invisibilidade das convenções narrativas, o cinema americano desenvolveu um estilo visual e sonoro igualmente apostado em garantir a transparência discursiva do sistema de representação. A subordinação sistemática das imagens ao melhor ponto de vista dramático, em cada instante, cria a sensação de omnisciência do olhar narrativo do filme, acabando por rasurar as múltiplas opções da colocação da câmara, da escala dos planos, da incidência da luz, da posição dos actores e, de um modo geral, dos restantes elementos da direcção cinematográfica. Na opinião do cineasta inglês Karel Reisz, autor de um dos melhores e mais divulgados manuais de montagem (The Technique of Film Editing, 1953 e 1967), «c, objectivo do director é representar a cena de um modo ideal, situando a câmara sempre em posição tal que ela registe do modo mais 107
eficaz a parte específica da acção ou o detalhe de maior importância dramática. O director transforma-se, por assim dizer, num observador ubíquo, oferecendo à plateia a cada instante o melhor ponto de vista possível. Selecciona as imagens que julga mais sugestivas, independentemente do facto de que uma única pessoa jamais poderia ver a cena daquela maneira na vida real». A concepção da câmara de filmar como sendo o duplo virtual de um observador invisível foi popularizada nos livros de Pudovkin, um dos teóricos russos a explicitar a eficácia dos efeitos de identificação provocados pela planificação clássica. A planificação não só selecciona e hierarquiza de modo imperceptível os focos de atenção do espectador como permite que o ritmo da montagem acompanhe e estimule o seu interesse e excitação. Por norma, os enquadramentos dão uma perspectiva centralizada e frontal dos elementos essenciais da cena, o tamanho das imagens varia consoante a importância atribuída a cada pormenor ou interveniente, os actores deslocam-se em conformidade com os movimentos de câmara, de modo a não chamarem a atenção para o dispositivo envolvido no registo técnico, as luzes reforçam a instabilidade das oscilações emocionais, atribuindo a cada zona do espaço cénico uma hierarquia de intensidades expressivas. No real a luz é indiferente aos nossos estados de alma, no cinema clássico a luz é uma vibração indizível do espírito dos personagens e um íman eloquente da sensibilidade dos espectadores. A luz e os enquadramentos organizam os volumes, orientam os olhares, circunscrevem os locais da acção, tomam claras e inteligíveis as ambiguidades da história, dão forma e sentido às paixões humanas, tomam óbvio o sentido da ficção, marcando a sua intencionalidade. Embora o discurso narrativo do filme funcione como um todo aos olhos do espectador e como tal deva ser apreciado enquanto obra de significação e de fruição estética, existem duas estruturas indissociáveis na constituição material e imaterial do filme. A primeira, a que chamarei estrutura interna, engloba os parâmetros de ordem dramatúrgica que se prendem com a concepção do argumento. O percurso narrativo da ficção, as peripécias da intriga, o esboço dos personagens, a construção dos diálogos, a determinação dos locais de acção, a divisão entre cenas (unidades de espaço e de tempo) e sequências ( várias cenas organizadas em unidades narrativas), enfim, tudo o que depende da fase de preparação literária, remissível às indicações do 108
argumento e, posteriormente, do guião técnico de filmagem, incluindo os desenhos de planificação (storyboard), formam a estrutura interna do filme, potencialmente desdobrada nas várias etapas da escrita para cinema. A segunda, a que chamarei estrutura externa, engloba as fases da concretização do filme ao nível da realização e da montagem. A realização começa pela organização do material pró-fílmico, ou seja, pela disposição de tudo aquilo que se coloca à frente da câmara para ser filmado, tanto em interiores como em exteriores. A escolha dos locais naturais, a construção dos cenários, a selecção dos adereços, a iluminação, a constituição do elenco, o guarda-roupa, a caracterização, são decididos em função de um estilo visual do espaço e da direcção de actores, que se aproxima da encenação teatral (mise-en-scène). Sobre esta camada primária de encenação, que pode ser mais ou menos forte, mais ou menos evidente, mas está sempre presente, a realização desenha a composição dos enquadramentos, os movimentos de câmara, os tempos e a intensidade da representação de acordo com a planificação da cena, isto é, de acordo com a sua organização dramática, narrativa e plástica em termos de divisão de planos. Cada imagem é, em si mesma, uma nova camada de encenação, especificamente cinematográfica, tão pertinente por aquilo que inclui como por aquilo que exclui do campo visual do enquadramento (mise-en-cadre). Finalmente, na montagem reside o último nível de intervenção do processo de realização, na medida em que existe uma estreita relação entre a maneira de filmar e a maneira de encadear e delimitar os planos (mise-enchaine). A ideia, muito espalhada na profissão, de que se resolve na montagem o que não se conseguiu resolver na rodagem é pacientemente contrariada pelos montadores mais experientes, para quem a articulação entre a realização e a montagem é um dado inquestionável: não se deve filmar sem pensar na montagem. Por mais convencional ou notável que um filme se apresente, a estrutura externa nunca é uma mera ilustração da estrutura interna, pela simples razão de se tratar de duas operações e de linguagens de natureza completamente distinta. Assim como a estrutura externa ( realização) assimila e recria os elementos estéticos e narrativos da estrutura interna (argumento), também as sucessivas intervenções que constituem o trabalho de realização, desde a leitura do argumento até aos cortes na montagem, passando pela rodagem e pela intervenção 109
dos actores, vão integrando e transformando as camadas anteriores da prática cinematográfica. A encenação pode atenuar ou reforçar as linhas narrativas do argumento, como a planificação pode minimizar ou exagerar os dispositivos de cenografia, como a montagem pode reorganizar o sistema da rodagem ou alterar o resultado do trabalho dos actores. Se é certo que o texto do argumento contém o projecto do filme, também é certo que não está completo sem a sua realização. O filme não é apenas uma interpretação do argumento, é a produção de um novo texto cujo modo de existência se fundamenta na relação imaterial da performance fílmica com o espectador. Não havendo, na passagem do texto escrito ao texto fílmico, um efeito linear de equivalência discursiva, a última fase do processo é decisiva na restruturação da matéria significante do filme. É sem dúvida por esta razão que, ao longo da história do cinema industrial, foram mais os realizadores que se preocuparam em adquirir e conservar o direito à montagem final (last cut) do que aqueles que pretenderam garantir contratualmente a autoria do argumento. A escrita do filme, enquanto acção produtora de sentido ao nível específico da linguagem cinematográfica, não pode pois confundir-se com a escrita do argumento. Se a noção da escrita do filme tem sido, em larga medida, recalcada nos grandes centros de produção, tal devese à urgência de rentabilização dos ofícios do cinema e à estratégia dos produtores, privados e públicos, que exercem o primeiro controlo económico e ideológico dos filmes a partir do argumento. O anseio de produtores exemplares, como Ince, Zanuck, Thalberg e Selznick, ao consagrarem o método de controlo dos realizadores a partir da célebre palavra de ordem filme-se como está escrito, deixou marcas indeléveis até aos nossos dias. A ideia de que a passagem do argumento ao filme possa ser uma simples transcrição da história — do suporte do papel para o suporte das imagens — só pode ocorrer por ingenuidade ou no contexto de uma indústria cultural dominada pelo fabrico em série. A anterioridade do argumento em relação ao filme, a multiplicidade das tarefas colectivas e a estrita divisão do trabalho no processo de produção contribuem por certo para diluir a noção de que o filme narrativo é rescrito pelos meios próprios da linguagem cinematográfica, não sendo esta, portanto, um mero instrumento neutro ao serviço da mensagem eventualmente formulada pelas intenções do argumento. O paradoxo do cinema consiste, justamente, em precisar 110
de uma reserva permanente de ficção, que preexiste às imagens e aos sons, e que é, ao mesmo tempo, transfigurada pelo gesto discreto da escrita do filme. O elogio da transparência narrativa no cinema clássico, como se o mundo captado pela câmara se transformasse naturalmente em história, sem intervenção da equipa nem da técnica, aparentemente sem ponto de vista nem subjectividade, sem marca nem corpo, cumpre também um desígnio profissional muito apreciado na orgânica económica do cinema-espectáculo: o da mutabilidade imperceptível dos cineastas contratados, como se as competências técnicas fossem equivalentes entre especialistas com o mesmo estatuto. Não é raro, nos sistemas de produção industrial, os argumentistas, os realizadores e outros membros da equipa serem substituídos pouco antes ou durante a rodagem de um filme. O exemplo lendário é Casablanca (1943), cujo elenco, argumentistas e realizadores indigitados foram mudando durante a preparação do projecto. Michael Curtiz começou a trabalhar a menos de uma semana das filmagens, iniciadas sem que o guião estivesse completo, sem que os actores soubessem que sentimentos exteriorizar em cada cena em relação a outros personagens, uma vez que ninguém conhecia ao certo como a história iria acabar. Desta hesitação, criada pelas particulares condições de produção do filme, compuseram Ingrid Bergman e Humphrey Bogart das intervenções mais brilhantes da arte de representar no cinema americano dos anos quarenta. Apesar das atribulações da filmagem, Casablanca foi contemplado nesse ano com três Óscares capitais: melhor filme, melhor realizador, melhor argumento. A intensidade dramática das situações, a segurança da miseen-scène e a solidez dos actores possibilitaram às suturas da montagem ilidirem por completo os problemas verificados durante a escrita do argumento e a realização do filme. O sistema dos estúdios americanos, que conheceu o apogeu entre os anos vinte e os anos cinquenta, subordinava a participação criativa dos elementos da equipa técnica à imagem de marca das companhias, favorecendo a ideia de uma arte impessoal e de uma indústria do entretenimento sem outras ambições que não fossem a popularidade e o êxito. A uniformização e a estandardização foram uma tentação permanente, pois é preciso não esquecer que dos trezentos e tantos filmes produzidos em cada ano nos Estados Unidos nesse período, de pouco mais se lembram as histórias do cinema do que de uma
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pequena percentagem de obras excepcionais. Depois da vigilância exercida sobre os argumentos, rescritos várias vezes, era na montagem que os executivos moldavam os filmes aos padrões considerados comerciais. A estratégia de produtores como Thalberg e Selznick, exigindo que cada cena fosse filmada e refilmada de diversos ângulos e em diferentes escalas, repetida à saciedade com material impresso em excesso, de maneira a poderem eles próprios refazer o filme na moviola, confirma o papel decisivo da montagem na cadeia de controlo da produção. Regressando à atitude pragmática que caracteriza o modo de ser americano, poder-se-ia dizer que também há produtores determinados e produtores relutantes, às vezes ora uma coisa ora outra conforme as circunstâncias e as conveniências. À semelhança dos heróis imaginários que patrocinam e que lhes dão a glória e o lucro, os executivos no topo da hierarquia pretendem reservar para si, em todas as situações, por vezes dramáticas, que atravessam o processo de produção de um filme, as várias alternativas que lhes permitam, com razão ou sem razão, serem eles a tomar a última decisão.
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As escadarias de Odessa em Potemkine (1925), Eisenstein.
13 OS EXCITANTES ESTÉTICOS A primeira encenação de Eisenstein para o Proletkult, estreada em Janeiro de 1921, partiu de uma adaptação feita por Arbatov de uma novela de Jack London intitulada O Mexicano. Apesar do êxito do espectáculo, aclamado como uma original tentativa cubo-futurista na qual a ruptura da unidade de espaço e o desenvolvimento de acções simultâneas deixavam antever um desejo de cinema, Eisenstein não perde a oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos com um dos maiores encenadores da época e, em Setembro desse ano, inscreve-se num curso dirigido por Vsievolodov Meyerhold, a quem haveria de chamar pai espiritual e com quem teria uma relação difícil, marcada pela ambivalência. Discípulo de Stanislavski no Teatro Estúdio de Moscovo antes da revolução, Meyerhold sistematizou e pôs em prática um conjunto de princípios teóricos que destronaram a hegemonia do teatro psicológico e naturalista do mestre, influenciando de modo decisivo as concepções do teatro moderno. Meyerhold entendia que a reprodução cenográfica da natureza em palco transformava o cenário numa espécie de exposição de objectos de museu, retirando ao teatro o mistério da transformação e da interpretação da realidade. 113
Na lógica do naturalismo cabia aos actores a tarefa do retrato da interioridade e dos sentimentos, centrados na expressão do rosto e num tipo de maquilhagem concebida para imitar a banalidade do quotidiano. Meyerhold defendia um teatro estilizado e assumia o sistema de convenções estéticas como uma forma de estimular a imaginação do público sem o fazer esquecer a realidade material e artificial do espectáculo. Os actores deviam ter uma presença despersonalizada, isenta de matizes psicológicos, capaz de dar a entender que os diálogos não dizem toda a verdade e que as relações humanas são determinadas pelos gestos, pelas poses, pelos olhares, pelos silêncios, pelas vibrações comportamentais irredutíveis ao império da palavra. Daqui decorre uma concepção da plástica estatuária do actor em cena, quebrada pelo virtuosismo da linguagem corporal que o liberta da subordinação ao texto escrito e dos constrangimentos dos estados de alma típicos do regime naturalista. O cenário e os adereços eram desprovidos de referências realistas, ou subvertidos na sua funcionalidade, de modo a obedecerem a uma dinâmica construtivista que reconduzia o interesse do público para a biomecânica do movimento dos actores. Em suma, o teatro teatral de Meyerhold, influenciado pela estrutura aberta do palco isabelino, pela caracterização dos tipos sociais, pelo humor e pela improvisação da commedia dell'arte, pelas acrobacias de circo e pelas canções de music-hall, afirmava-se na convenção consciente dos processos técnicos de encenação e opunha-se a todas as formas de ilusão naturalista até então triunfantes na cena burguesa. A influência do magistério de Meyerhold, durante os quase dois anos em que trabalharam juntos, foi enorme, como o próprio Eisenstein sempre reconheceu. A par do teatro, o cinema interessava-o cada vez mais. Em 1923 Eisenstein assiste a algumas aulas de Kulechov, que o impressionam pela clareza com que são exploradas as potencialidades da linguagem cinematográfica, colabora em actos de mímica com o grupo dos FEKS (Fábrica do Actor Excêntrico), e torna-se amigo de Esther Shub com quem partilha durante períodos intensos um ecrã e uma moviola onde são remontados alguns dos filmes estrangeiros que Moscovo tem oportunidade de ver. É na mesa de montagem que Eisenstein desvenda pacientemente a perícia de Griffith, é aí que, em Março de 1924, entusiasmado pela curiosidade, o atrevimento e a admiração, ajuda Shub a remontar a versão soviética de Dr. Mabuse, de Fritz Lang. 114
A reflexão sobre o teatro e o cinema percorrem agora um caminho comum no pensamento de Eisenstein, seriamente apostado na elaboração de um sistema fiável de avaliação da eficácia ideológica da arte. Do estudo da engenharia e da matemática tinha-lhe ficado o gosto pelos axiomas, que procura transpor para o cinema: «A ciência começa quando se podem aplicar unidades de medida no domínio da pesquisa. Procure-se, portanto, a unidade susceptível de medir o poderio da arte. A Física conhece os iões, os electrões, os neutrões. A arte terá as atracções». Em Maio de 1923, a revista Lef, dirigida por Maiakovski, publica um dos primeiros e mais célebres artigos teóricos de Eisenstein, justamente intitulado a montagem das atracções. Embora o texto se refira à prática teatral desenvolvida nos anos do Proletkult, é a emergência do mesmo conceito que irá desenvolver no cinema. Depois de separar o teatro narrativo-representativo, estático e psicológico, associado à direita, do teatro de atracção-agitação, dinâmico e excêntrico, associado à esquerda, Eisenstein define o novo conceito: «A atracção é todo o factor agressivo do teatro, isto é, todo o elemento que submete o espectador a uma acção sensorial ou psicológica verificável pela experiência e matematicamente calculada para produzir determinados choques emocionais que condicionam a percepção ideológica do espectáculo e a sua conclusão final». A génese do conceito de atracção, no que diz respeito à constatação do choque emocional, está ligada às exibições de circo e variedades e refere-se a um momento forte do espectáculo que prende a atenção do público. Numa das suas encenações cubo-futuristas, em que colocara um actor a representar em cima de uma corda de equilibrista, Eisenstein reparara na enorme tensão dramática causada pelo simples facto do actor não dominar a situação e dar a sensação de poder cair a cada instante: um diálogo banal adquiria assim uma instabilidade física real, simulando um perigo do qual os espectadores não se conseguiam alhear. Os números de acrobacia de circo, precisamente chamados de atracções, obedecem a esta vontade essencial de criar um choque emocional controlado, através de contrastes arrojados e de momentos típicos, cuja eficácia é testada em cada espectáculo. A atracção, enquanto unidade agressiva do espectáculo, é relativamente autónoma e pode ser inserida num contexto que a potencie e lhe dê novo alento. Ou seja, o choque emocional não é concebido em abstracto mas calculado em função da sua relação estrutural. A atracção é violenta porque rompe com a homogeneidade da 115
representação, impedindo o espectador de ficar indiferente, pois prepara-o para a adesão ao raciocínio suscitado pelo choque emocional. A atracção não é um truque nem uma habilidade, na medida em que o seu objectivo não visa criar ilusões inúteis nem fazer brilhar o executante em cena mas provocar e controlar a reacção do auditório. Eisenstein combatia assim em duas frentes, contra a impressão de realidade característica do drama naturalista — e, por analogia, contra a famosa transparência do cinema americano — ao mesmo tempo que ensaiava um processo formal rigoroso de estimular o psiquismo do espectador de maneira a obter os efeitos ideológicos pretendidos. Ainda no âmbito do Proletkult, Eisenstein prepara e dirige o seu primeiro filme de longa metragem — A Greve (1924) — no qual aplica a teoria das atracções. Referindo-se especificamente ao cinema, Eisenstein precisa que «a atracção é todo o facto mostrado (acção, objecto, fenómeno, combinação, consciência, etc.) , conhecido e verificado, concebido como uma pressão que produz um determinado efeito sobre a atenção e a emotividade do espectador, e combinado com outros factos que possuem a propriedade de encaminhar a sua emoção na direcção ditada pelos objectivos do espectáculo. Deste ponto de vista, o filme não pode contentar-se simplesmente em apresentar ou mostrar os acontecimentos em confronto, uma vez que ele próprio constitui uma selecção tendenciosa desses acontecimentos, eximidos das tarefas estritamente ligadas ao tema, de acordo com o objectivo ideológico do conjunto e com a moldagem a exercer sobre o público». Prevendo o âmbito do debate, Eisenstein é o primeiro a notar a incongruência da hipótese da neutralidade das imagens cinematográficas, inevitavelmente produto de uma selecção tendenciosa dos acontecimentos, ou seja, de uma articulação de pontos de vista que começam no enquadramento e acabam na montagem. Admite ainda que as atracções introduzem uma ruptura na homogeneidade e na continuidade narrativas, por serem, na maior parte dos casos, estranhas à unidade do tema recomendada pela dramaturgia clássica. As séries inesperadas de associações de ideias, provocadas pelas imagens dos acontecimentos em confronto, influenciam o pensamento dos espectadores seguindo o padrão de causalidade instaurado pela ciência dos reflexos condicionados: cada estímulo induzido pela montagem produz um certo efeito que deve ser previsto. Se a operacionalidade dos estímulos psíquicos é baseada nas experiências da reflexologia de Pavlov, para quem os sistemas de linguagem oferecem uma 116
enorme capacidade de condicionamento das operações intelectuais, a aferição das respectivas consequências ideológicas é caucionada pela dialéctica marxista. Eisenstein reconhece que, em homenagem a Pavlov, podia ter chamado à montagem das atracções a teoria dos excitantes estéticos. O exemplo mais conhecido da montagem das atracções, comentado pelo próprio Eisenstein em diversos textos, é uma sequência do filme A Greve, na qual as imagens de uma manifestação de operários grevistas, barbaramente reprimida pela polícia do czar, são montadas em alternância com imagens de bois e vacas a serem abatidos no matadouro. O choque provocado pelas imagens sangrentas dos animais a morrer, associadas à violência exercida sobre os trabalhadores, suscita uma repulsa emocional imediata contra a acção policial e os valores que ela representa. Esta sequência é de facto exemplar porque levanta algumas das questões teóricas prioritárias com que Eisenstein se irá debater ao longo da sua obra. A primeira diz respeito ao carácter heterogéneo e arbitrário da atracção: não existe qualquer relação dramática ou narrativa entre a repressão policial e o abate no matadouro, a não ser aquela que o filme estabelece pelo processo metafórico da comparação implícita na montagem paralela. A segunda tem a ver com a eficácia das atracções e a determinação do sentido ideológico, ambas condicionadas pelo meio sócio-cultural em que a obra é vista. Durante a exibição do filme em vários pontos do país, Eisenstein verificou que a sequência dos grevistas e do matadouro era pertinente nos meios urbanos, onde os espectadores não estavam habituados à violência do abate, mas não despertava igual reacção nos meios rurais, onde a matança de animais fazia parte da vida quotidiana das populações. Eisenstein concluiu, portanto, que o choque emocional sobre o público depende de uma escolha adequada dos estímulos que tome em consideração o contexto comunicacional. A persuasão só é eficaz quando o filme reflecte os interesses do público. Os excitantes dividem as classes do público consoante as respectivas convicções ideológicas, tradições culturais e gostos estéticos. Pondo de lado as atracções eróticas e sentimentais, que sustentam o filme comercial burguês, Eisenstein considerou a hipótese da existência de dois tipos de atracções úteis à orientação do filme proletário: as atracções eternas ou universais, susceptíveis de funcionarem em qualquer conjuntura progressista, nas quais inclui os temas da solidariedade operária, da vontade humana 117
de justiça social, da criança inocente em perigo, todas abundantemente utilizadas nos seus filmes, e as atracções momentâneas ou conjunturais, ligadas a tópicos da actualidade, aos hábitos e crenças do público visado. Nos filmes de Eisenstein, a argumentação não pretende apenas obter a adesão intelectual dos espectadores, mas também incitá-los à acção política fora do recinto do espectáculo. O conceito de montagem das atracções revela-se particularmente ambicioso, abrangendo os aspectos sintáctico, semântico e pragmático da articulação do cinema como linguagem: ao nível da organização discursiva das imagens; ao nível da implicação semântica dos objectos mostrados; ao nível do sistema de representação na relação problemática entre o emissor e o receptor. As atracções não são, portanto, uma simples técnica de montagem que possa ser executada de improviso na moviola, mas um novo princípio orgânico de dramaturgia que deve ser previsto no argumento. Escrito ou não, seja ficção seja documentário, o filme de argumento oferece vantagens sobre o filme improvisado porque tem a possibilidade de estabelecer à partida as várias combinações de planos e sequências que vão explorar os excitantes estéticos. O problema, pondera Eisenstein, é a falta de preparação dos argumentistas para escreverem na perspectiva da montagem das atracções, pelo que essa tarefa tem de competir ao realizador, em última análise responsável pelo processo de encenação, de planificação e de montagem que define a escrita específica do filme. Estreado em Leninegrado em Fevereiro de 1925 e em Moscovo em Abril, A Greve foi aclamado por parte da crítica soviética como o primeiro filme revolucionário da arte cinematográfica. Nele Eisenstein contrariava os principais requisitos do chamado cinema burguês: em vez de enredo havia uma mistura de quadros de ficção excêntrica e de sequências puramente documentais, em vez de heróis individualistas havia o colectivo dos operários como protagonistas da história, em vez de actores-vedetas havia amadores escolhidos em função da tipagem, em vez da montagem invisível havia uma fricção constante entre os planos. Porém, a imprensa não foi unânime e, dado o fracasso do filme junto do público popular, muitos foram os que acusaram o realizador de formalismo. O calor da polémica vivia no espírito do tempo, mas nenhuma crítica irritou tanto Eisenstein como aquela que lhe dirigiu Dziga Vertov, porventura o cineasta soviético que mais admirava até essa altura. 118
Apesar de muitas sequências documentais de A Greve, nomeadamente aquelas que descrevem as condições de vida operária e a luta clandestina dos comunistas, serem influenciadas pelas reportagens do Kino-Pravda, e de Eisenstein ter sistematicamente demolido a exposição psicológica e a narrativa linear, Vertov continuava a incluir a película na abominável categoria burguesa do cinema dramático: «o cine-drama faz cócegas aos nervos, o cine-olho ajuda a ver. O cinedrama vela os olhos e o cérebro com um nevoeiro delicodoce, o cine-olho faz abrir os olhos, esclarece a vista». A intransigência de Vertov contra o filme de argumento era inseparável da sua profunda convicção de que toda e qualquer forma de organização narrativa do material cinematográfico, mesmo de conteúdo revolucionário, atraiçoava a verdade contida nas imagens. Nesta perspectiva, Vertov apercebeu-se muito bem de que o método de Eisenstein, mesmo quando parecia não estar a contar uma história, visava fundamentalmente dar uma estrutura discursiva ao fluxo fílmico, reduzindo as imagens a signos arbitrários e, portanto, separando-as da sua pureza mimética em relação ao real. A resposta de Eisenstein não se fez esperar e deu origem a uma das mais incisivas incursões teóricas da estética marxista no campo do cinema. A distinção entre forma e conteúdo é liminarmente recusada por Eisenstein, que à forma opõe o informe: não há maneira de representar os homens e os conteúdos revolucionários da nova sociedade sem uma nova visão do mundo que os produz e organiza, porque é a forma e não o conteúdo que segrega a ideologia da prática artística. Por outras palavras, a ideologia não está nos materiais que o cinema utiliza, sejam eles documentos em bruto ou obras de ficção, a ideologia está nos processos de elaboração e de transformação desses materiais, quer exista ou não exista um guião escrito. O argumento não é a forma do cinema. O argumento, com ou sem intriga dramática, seja ele de natureza narrativa ou documental, é apenas um material de carácter literário que deve ser considerado ao nível dos outros materiais, humanos, naturais e construídos, com os quais o realizador tem de trabalhar no sentido de lhes dar uma resolução visual. A forma do filme começa no enquadramento, na fragmentação do mundo em imagens. Uma simples tomada de vistas, delimitada pela escolha do cineasta ou determinada pelas condições de rodagem, exclui e extrai qualquer coisa do mundo, é já, portanto, um acto de montagem. E esta concepção materialista do plano que coloca em evi119
dência os elementos significantes que vão agir e reagir uns com os outros. Quando afirma que o quadro-fragmento é uma célula de montagem Eisenstein sugere com inteira coerência que o processo de agenciamento do filme passa por diversos níveis de montagem produtiva, no interior dos planos e no conflito entre os planos, na interdependência de todos os elementos em jogo, uma vez que as imagens se decompõem segundo o modelo molecular da descontinuidade e da divisibilidade da matéria. Eisenstein contra-ataca isolando nos documentários de Vertov uma atitude meramente impressionista: a contemplação dispersa da realidade contida nos planos, por mais revolucionária que seja, não produz os devidos efeitos ideológicos sobre o espectador, deixando à deriva imagens estáticas, quase abstractas, sem a dinâmica emocional conseguida pelas atracções. Eisenstein deixa claro que, em seu entender, o processo cognitivo é simultaneamente um processo de participação e de recriação da vida e que o cinema não escapa a essa lei. Não basta olhar para a realidade, é preciso estabelecer as relações de causalidade social ensinadas pela dialéctica marxista e, em consequência, reinventar o mundo do cinema de modo a que o filme trabalhe o psiquismo do espectador assim como o tractor trabalha a terra. O filme só é útil se for uma máquina de semear ideias, se souber passar das imagens aos sentimentos e dos sentimentos à tese, se despertar nas consciências a vontade de conhecimento e intervenção: «não é de um cine-olho que precisamos mas de um cine-punho». Eisenstein assumia assim, inteiramente, o estatuto do autor que sabe manipular os meios do seu ofício — a eficácia das atracções é o triunfo do cinema como arte — contra o idealismo despersonalizado dos Kinoks que, ao negarem indiscriminadamente todas as formas de ficção, recusam também parte importante do poder do cinema. Vários foram os textos em que Eisenstein voltou à defesa das suas posições contra aqueles que, julgando zelar pelos bastiões das várias ortodoxias, o acusaram de formalismo. Acusação de que também não se livrou Vertov, nem Meyerhold, nem Bogdanov, nem Maiakovski, nem muitos outros. De todas as vezes que Eisenstein respondia a um ataque desse teor apetecia-lhe terminar parafraseando uma citação célebre que os seus adversários por certo conheciam de olhos fechados: o cinema não tem feito mais do que observar e imitar o mundo, trata-se agora de o pôr ao serviço da sua transformação. 120
A tirania de Mabuse (1922
14 A MÁSCARA E A HIPNOSE Em Março de 1933 Hitler criou o primeiro gabinete do seu governo, tendo em vista a mobilização psicológica do povo alemão e a restauração da unidade e do orgulho nacionais, e nomeou Joseph Goebbels Ministro da Cultura e da Propaganda do Terceiro Reich. No dia 28 desse mês, no primeiro discurso dirigido aos profissionais da indústria cinematográfica, Goebbels teve oportunidade de esclarecer as linhas mestras da sua estratégia no sentido de transformar o filme num veículo de propaganda do regime e do engrandecimento da pátria alemã. Depois de explicitar que o objectivo ideológico das actividades culturais, sob orientação do Ministério, consistiria em fazer capitular o povo alemão aos ideais do nacional-socialismo, Goebbels definiu o modelo ideal de cinema a partir de um exemplo que deixou toda a gente boquiaberta. O grande filme citado no discurso de Goebbels, simultaneamente qualificado como obra de arte incomparável e poderosa máquina de propaganda, era nada menos do que O Couraçado Potemkin (1925), de Eisenstein: «Eis um filme capaz de tornar qualquer pessoa sem firmes convicções ideológicas num bolchevique. Isto significa que a arte pode ter uma linha política definida, 121
e pode comunicar mesmo as ideias e as atitudes mais odiosas, desde que sejam expressas através de uma obra de arte superior». Não se podia ser mais claro. No mesmo discurso, Goebbels citou outro filme que o tinha deveras impressionado, no qual ele reconhecia a grandeza épica e a modernidade artística susceptíveis de comover o público esclarecido e até os militantes do movimento nacional-socialista. Esse filme paradigmático, obra-prima do génio alemão, era Die Nibelungen (1924), escrito por Thea von Harbou e realizado por Fritz Lang. Concebido em duas partes, alterando alguns pormenores da saga que já tinha inspirado o delírio romântico da tetralogia de Wagner, nomeadamente dando uma dimensão mais humana aos personagens. Die Nibelungen foi inteiramente filmado em estúdio a fim de recriar em escala monumental tanto as paisagens e os edifícios como a cenografia de interiores. As figuras aparecem assim, nos planos gerais, reduzidas a seres quase insignificantes, meros volumes ornamentais dominados pelas grandes massas arquitectónicas e pelos elementos da natureza. As composições imponentes de simetria, ao nível das imagens fixas e da frequência dos eventos narrativos, inculcam no filme um sentido de disciplina e um rigor de ordem estética que são, por si só, factores de dramatização mítica. Estes padrões visuais, de uma beleza fulgurante, criados com um domínio técnico e plástico inexcedível, não podiam deixar de impressionar os ideólogos de um regime cuja preocupação política tendia à total dissolução dos indivíduos nas estruturas autoritárias do Estado. Se os ecos mais sombrios das óperas de Wagner se encontram mitigados no filme de Lang, Siegfried continua a ser o herói que forja a sua própria espada e se lança à conquista do mundo, cumprindo um destino intemporal de luta, paixão e glória. Nas suas veias corre o sangue puro e generoso que dá energia ao corpo perfeito de guerreiro atlético, símbolo e incarnação do louro ariano como modelo superior de raça. A estreia das duas partes de Die Nibelungen, respectivamente em 14 de Fevereiro e 26 de Abril de 1924, foi saudada como um acontecimento de inegável importância cultural, dando lugar a alguns encómios de exaltação nacionalista, que a crise social da época ajudou a multiplicar, mas à qual, obviamente, não se pode reduzir a amplitude do filme. Os elogios oportunistas de Goebbels à obra de Lang partem de um equívoco que o próprio realizador, na vida e no cinema, haveria de dissipar. 122
Por enquanto, no frémito de um discurso exaltado que anunciava tempos novos, Die Nibelungen servia para invocar um dos tópicos prioritários da futura cinematografia nazi, apostada na recuperação fantasista dos personagens históricos e lendários do passado germânico, como se em cada herói da pátria existisse um fuhrer em potência. Por estranha coincidência, naquela intervenção inaugural de 28 de Março de 1933, Goebbels esqueceu-se de dizer à distinta assembleia de cineastas que, cinco dias antes, tinha interditado a estreia do último filme de Fritz Lang, Das Testament des Dr. Mabuse (1933), por considerar que «a representação da prática de crimes contra a sociedade aparece tão instrutiva e fascinante que levanta o perigo de suscitar agressões semelhantes contra a vida e a propriedade dos cidadãos, bem como actos terroristas contra o Estado». Na verdade, o intuito de Lang, perfeitamente compreendido pelo Ministro da Propaganda, visava sugerir que as acções do bando de criminosos chefiados pelo sinistro Mabuse ofereciam muitos pontos de contacto com a ideologia terrorista da organização nacional-socialista recém-chegada ao poder. Um dos mais extravagantes personagens da história do filme de ficção, Mabuse aparece no cinema em 1922, numa película de Lang intitulada Dr. Mabuse der Spieler, segundo o romance de Norbert Jacques adaptado por Thea von Harbou. Desde o início da sua carreira, primeiro como argumentista de outros cineastas, entre os quais se destaca Joe May, depois como realizador, que Fritz Lang revelou um pendor acentuado pelas intrigas de folhetim típicas da literatura popular. Podemos mesmo dizer que os aspectos fundamentais da estrutura narrativa da sua fabulosa obra alemã decorrem do repensar da tipologia ficcional do folhetim ajustada às exigências estéticas de um novo meio dominado pela intensidade emocional da imagem. A formação académica de Lang em Viena, nas áreas da pintura e da arquitectura, aliada à experiência de viagens à Ásia e ao Oriente, e à leitura desencontrada de autores tão diversos como Schopenhauer e Karl May, Nietzsche e Júlio Verne, revelam um gosto ecléctico que, também devido às circunstâncias de produção, se reflecte numa filmografia dispersa mas exemplar. A influência decisiva na filmografia alemã de Fritz Lang deve-se sem dúvida a Thea von Harbou, arqueóloga, escritora de romances de aventuras, mais tarde argumentista de Murnau, de Dupont, de Dreyer, entre outros. Em 1920 Harbou escreve com Lang o filme 123
Das Indische Grabmal, realizado por Joe May, cujo argumento o pró-
prio Lang haveria de retomar trinta e oito anos mais tarde para dirigir um dos mais surpreendentes filmes da história do cinema alemão. Entre 1921 e 1933 Thea von Harbou escreveu os argumentos de todos os filmes realizados por Fritz Lang, tanto as histórias originais como as adaptações. O gosto pelas façanhas mais obscuras e tenebrosas da natureza humana, a obsessão pelo exótico e pelo fantástico, temperados por um sentimentalismo melodramático típico da ideologia do folhetim, dão aos argumentos de Harbou uma tonalidade inconfundível. O prazer da narração, na literatura e no cinema populares, é dado sobretudo pelo regresso metódico aos elementos que já são conhecidos, através do recurso a personagens de definição psicológica sumária e a situações típicas que se repetem no interior dos géneros ou das séries narrativas, num jogo de referências culturais que solicita a cumplicidade do público e cria determinados patamares de expectativa. Nos autores mais interessantes, esta estratégia não constitui forçosamente uma limitação, antes se pode apresentar como uma forma de submissão poética assumida, exigindo um maior rigor técnico ao nível do trabalho formal dos parâmetros da imaginação. A primeira característica do universo folhetinesco assenta num conjunto de oposições binárias de natureza mítica, ora renitentes ora permeáveis à contextualização histórica, cuja dimensão maniqueísta é uma constante: entre o bem e o mal, entre o superior e o inferior, entre o normal e o anormal, entre a lei e a margem, entre a culpa e a inocência, entre o carrasco e a vítima, entre os senhores e os oprimidos. Dada a influência do expressionismo na constituição da imagem de Lang, podemos cristalizar simbolicamente o essencial numa luta sem quartel entre a luz e as trevas. Neste território demarcado, em que o bem e o mal formam um par de forças indissociáveis mas de sinal contrário, o percurso narrativo conduz-nos de confronto em confronto, num duelo permanente pelo poder, pela felicidade ou pela harmonia, numa lógica imparável, como se de um mecanismo de relógio se tratasse. É sem dúvida por este motivo que se invoca tantas vezes a noção de destino para caracterizar o universo de Fritz Lang, quando os personagens modelares mais não fazem do que pôr à prova o seu carácter inflexível perante as adversidades da vida. Passamos à segunda característica. Os protagonistas de folhetim não precisaram de conhecer Nietzsche para se atreverem a ser sobre124
-humanos, bastou-lhes a nostalgia da tradição romântica, na qual os heróis triunfavam sempre por entre uma multidão de medíocres e de desprotegidos, simples figurantes de fundo nos grandes tormentos da história. Os heróis dos filmes folhetinescos de Lang não são apenas homens de génio superior, são sobretudo seres demoníacos animados por uma energia criativa ou destruidora imparável, frontalmente irredutível ao império da razão e da moral, quer estejam do lado do bem ou do lado do mal. Não é raro, por isso, vermos nos filmes de Lang as forças da ordem e as forças do caos utilizarem na prática os mesmos subterfúgios de conduta, indiferentes às consequências dos seus actos e partilhando a mesma rejeição pelas regras sociais estabelecidas. A terceira característica estrutural da narrativa folhetinesca prendese com a génese da sua publicação na imprensa periódica. Cada excerto é organizado em episódios cujo desenvolvimento é suspenso numa situação de grande expectativa, de modo a cativar a curiosidade do leitor, ou do espectador, para o episódio seguinte. A pulverização da narrativa em distintos núcleos de interesse dramático obriga ao cruzamento sistemático das várias linhas de acção a que os processos básicos do alinhamento cinematográfico dão uma eficácia acrescida. Normalmente, Lang concentra e distribui os episódios no interior dos filmes de maneira a distender as situações de suspense, prolongando a dúvida e o clímax, e a estabelecer relações mentais entre as diversas linhas de acção. Basicamente, enquanto os americanos concebem o espaço narrativo a partir das relações de continuidade entre as cenas, Lang concebe prioritariamente o espaço narrativo a partir das relações de contiguidade. Lang não mostra só o que se passa nas imagens, indicia também o que se passa entre as imagens. A descontinuidade temporal introduzida pontualmente pela montagem nos momentos decisivos provoca uma tal dispersão de sentidos que aproxima os filmes do princípio serial de organização dos materiais narrativos, no qual cada elemento tem as suas propriedades específicas para além da ressonância que provoca no conjunto. A inserção da ficção folhetinesca nos órgãos de imprensa, ao lado da informação factual jornalística e de comentários de carácter social, influenciou sobremaneira o método de trabalho de Fritz Lang, que nunca deixou de preparar uma documentação copiosa sobre cada um dos acontecimentos e dos temas subjacentes aos seus filmes, mesmo nas histórias mais abertas à especulação e à fantasia. A obstinação 125
que levava Lang a colar os mais variados recortes de jornais nas folhas dos guiões de trabalho surpreendia sempre os colaboradores. Daí que os seus filmes, além dos prodígios de composição formal, se apresentem quase sempre como retratos sociais de uma época. No catálogo de distribuição de Dr. Mabuse der Spieler (1922) pode ler-se: «O mundo que este filme apresenta é o mundo no qual todos vivemos: simplesmente, está concentrado, alguns pormenores ampliados, o conjunto condensado, e todas as acções animarias pelo sopro febril dos anos que ligaram a crise e a cura, esses anos vacilantes, semi-inconscientes, à beira do abismo, à procura de uma ponte. Este Doutor Mabuse, o jogador, não era possível em 1910, já não será possível — assim o esperamos — em 1930. Mas é uma imagem fantástica dos anos 20 — quase um sintoma, no mínimo um arquétipo». Bem relacionado na sociedade, o Dr. Mabuse (Rudolf Klein-Rogge) é um notório bandido, que utiliza a sua amante para seduzir, roubar e matar. Mabuse serve-se de poderes quase sobrenaturais de hipnose para comandar um bando de criminosos. Graças a diversos disfarces, Mabuse transforma-se noutras entidades, dando a aparência de estar em todo o lado e de controlar tudo. Descoberto, Mabuse consegue escapar à polícia, abandonando a amante que acaba por se suicidar na prisão. Depois de vários crimes e perseguições, Mabuse enlouquece, é apanhado pela polícia e internado num manicómio. Como é hábito nos filmes de Lang, a sequência de abertura dá o mote. Mabuse organiza o roubo de um contrato comercial secreto, o que tem por consequência imediata a desvalorização na bolsa de certas acções, que o próprio Mabuse adquire a preços irrisórios. Quando o contrato aparece e se verifica não ter havido motivo para alarme, o valor das acções volta a subir vertiginosamente, com enormes lucros para Mabuse e prejuízo para a confiança das transacções económicas. A desastrosa situação da Alemanha, entre 1918 e 1922, data da produção do filme, ajusta-se às façanhas de Mabuse, figura sobre quem, na ficção, recaem as culpas do estado caótico da ordem social e financeira do país. A instabilidade, a inflação e a desconfiança tinham atingido tal proporção que os membros da equipa técnica do filme de Lang eram pagos ao dia, em moeda, com receio de que o banco não descontasse os cheques ou que o dinheiro valesse menos de metade no dia seguinte. Tal como muitos outros personagens que nasceram à luz dos projectores no turbulento período da República de Weimar, e dos quais 126
os mais celebrados são porventura Caligari e Nosferatu, Mabuse ostenta os sinais do tirano insaciável cuja única ambição é espalhar o caos, minar os valores sociais estabelecidos e saborear o espectáculo da destruição sem qualquer móbil aparente que não sejam a ganância e o puro prazer da prática do mal. O carácter demoníaco do personagem exprime sem dúvida a profunda inquietação dos tempos, perfilandose no horizonte do século xx como uma figura premonitória, tanto ao nível das atrocidades políticas que se aproximavam como ao nível do espectáculo que se instituía, na emergência de uma corrente do filme policial que haveria de banalizar-se até à exaustão. Jogo clandestino, vício, corrupção, roubo, homicídio, espionagem industrial, crime organizado, especulações na bolsa, poderes paranormais, múltiplas personalidades, todos os elementos da narrativa aparecem integrados no mesmo universo de ficção, com uma coerência cristalina, subordinados ao desejo que os move e sustenta — a tentação do poder absoluto. Os inúmeros crimes cometidos, em locais diferentes, alguns dos quais sem ligação aparente, por não apresentarem soluções imediatas de articulação narrativa, são fruto de um plano oculto cuja execução o filme mostra, na relação de alternância e contiguidade entre as sequências, como se a própria organização espacial das imagens que vemos, indiferentes a qualquer juízo de valor, dependesse de um único saber — o de Mabuse na pele do encenador omnipresente. A capacidade de Mabuse se disfarçar, através do uso de máscaras, assumindo a personalidade que mais lhe convém, remete para a questão de saber quem verdadeiramente está por detrás da organização criminosa que ele personifica. A figura de Mabuse dissemina-se assim virtualmente pelo corpo social, como se em cada pessoa pudesse existir de facto a vontade de poder e o desígnio de opressão. Todos são Mabuse, ninguém é Mabuse, cada um receia o outro porque a ameaça pode vir de onde menos se espera — nada é o que parece, reina o pavor. O caos e a tirania alimentam-se mutuamente nas brechas da desconfiança e da violência quotidianas, numa visão paranóica das relações humanas que é provavelmente uma das mais portentosas metáforas sociais que o cinema alemão forjou no período entre as duas guerras. Como se as máscaras não bastassem, Mabuse tem ainda a faculdade de hipnotizar quem dele se aproxima, de modo a conseguir dominá-lo e a fazer-se obedecer sem resistências. A relação hipnótica 127
entre quem manda e quem obedece sintetiza, de um modo particularmente adequado, a essência do poder. Através do ritual hipnótico, a palavra de ordem é incorporada na mente do executor como se fosse a sua própria vontade, obliterando por completo a motivação, os fins e a responsabilidade da cadeia de comando. O cumprimento de ordens por parte daqueles que se encontram hipnotizados, relaxados e dependentes, organizados e expectantes, passa a constituir a sua única razão de ser, solidificando-se desta maneira a obediência cega ao homem superior que manipula os seus títeres longe do teatro das operações. Tem sido várias vezes sublinhado que as circunstâncias sociais da ida ao cinema simulam as condições usuais da relação hipnótica: ociosidade, disponibilidade e passividade do público imerso na escuridão da sala, de olhos fixos no brilho do ecrã. Entre a vigília e o sonho, entre a consciência e o inconsciente, a percepção objectiva que o espectador tem das imagens esfuma-se perante o impacto afectivo, delirante, quase mágico, que o mundo da ficção lhe proporciona. Este processo alucinatório, característico do cinema, é simultaneamente gerador de um elevado índice de ilusão de realidade. Que a imagem fílmica seja um logro, no sentido analítico do termo, não lhe retira eficiência, pelo contrário, enreda e cativa o imaginário de quem a vê pela evidência da sua própria realização. Nos dias que se seguiram ao êxito da estreia das duas partes de Dr. Mabuse der Spieler, em Maio de 1922, não é impossível imaginar Goebbels sentado na plateia, também ele fascinado pelo personagem e pelo extraordinário dispositivo fílmico que lhe deu forma e existência. Não tinha que se envergonhar — não era o único a pensar que o cinema podia ser uma prodigiosa máscara social, bem como um engenhoso mecanismo hipnótico de diversão e propaganda.
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O efeito de estranheza: Outubro (1928) , Eisenstein.
15 ESTRANHOS OBJECTOS POÉTICOS No dia 19 de Março de 1925 Eisenstein recebeu a encomenda oficial de realizar um filme sobre as comemorações da chamada revolução de 1905, com duas condições: apesar do fracasso das revoltas o filme não podia ter um final derrotista, como acontecera com a repressão dos operários em A Greve, e tinha de estar pronto a estrear em 21 de Dezembro desse ano. O projecto era desmedido, pois implicava filmagens em mais de duas dezenas de cidades diferentes espalhadas pelo território da União Soviética e incluía episódios históricos aos quais era difícil dar um tratamento adequado à duração de uma longa metragem. Mas Eisenstein não hesitou e meteu mãos à obra. Durante a rodagem, largamente improvisada a partir de um guião que apenas dava indicações sumárias de locais, ambientes e acontecimentos, Eisenstein decidiu concentrar o filme num dos episódios previstos — o motim a bordo do Couraçado Potemkine seguido do massacre da população de Odessa aquando do funeral de um dos marinheiros do couraçado. Como o Potemkine original já não existia, a produção teve de recorrer a vários navios diferentes, alguns dos quais ancorados sem possibilidade de navegar, e a maquetas construídas em 129
tamanho reduzido, a fim de se poderem filmar as sequências passadas a bordo. Estas dificuldades agudizaram o engenho do realizador, interessado em aprofundar e reformular a montagem das atracções. Se não podia filmar todos os acontecimentos de 1905 o episódio do Potemkine seria exemplar do momento histórico de que fazia parte, se não podia enquadrar todo o couraçado num único plano filmá-lo-ia em partes de modo a dar a sensação do conjunto. A sinédoque é o princípio elementar do plano cinematográfico: na impossibilidade de se mostrar tudo mostra-se apenas aquilo que em cada momento é representativo do todo. Mas Eisenstein quis levar a definição mais longe e torná-la a ideia dinâmica da organização plástica e dramática do filme. Ele próprio dá o exemplo dos óculos do médico de bordo que são identificados com o personagem quando este examina a carne estragada que leva a tripulação a revoltar-se. Num grande plano vemos as mãos que seguram os óculos e os vermes que empestam a carne. Na mesma imagem temos o desdobramento da sinédoque em metáfora e em metonímia. Metáfora dos alimentos que significam a podridão do estado czarista, num tropo de comparação in absentia; metonímia dos óculos que focam a podridão da carne e, pela relação de contiguidade, evidenciam a hipocrisia do médico e da classe dirigente. Quando, depois do motim, vemos os óculos baloiçar numa das amarras antes de caírem ao mar, temos novamente a metáfora e a metonímia a funcionar em simultâneo: é o regime político que treme com a revolta dos marinheiros, é a miopia moral do médico que não voltará a cometer a ignomínia de desprezar a tripulação. Estas figuras de estilo, sistematicamente utilizadas ao longo do filme, não têm apenas a vantagem da economia dos meios, procuram refazer com maior naturalidade, pela surpresa e pela abundância dos pormenores integrados na unidade narrativa, o estímulo emocional característico das atracções. Filmado como um documento mas concebido para actuar como uma tragédia, O Couraçado Potemkine (1925) obedece à ambição de uma meticulosa composição temática e formal, num processo dialéctico entre o particular e o geral, entre os planos e as sequências, entre as sequências e o filme, que Eisenstein resume da seguinte maneira: «de uma célula do navio, ao organismo de todo o navio; da célula da frota, ao organismo de toda a frota — assim toma corpo, no tema, o sentimento de fraternidade revolucionária». O desen130
volvimento orgânico do tema emerge governado pela mesma lei que desencadeia nos espectadores a indignação e a cólera contra a prepotência, ou seja, um estado de exaltação estética próxima do êxtase. A esta paixão retórica, na tradição da poética aristotélica, chama Eisenstein o sentimento patético (pathos), pensado para comover o espectador, para o despertar da sua condição de indiferença e de passividade perante o mundo representado: «O patético mostra o seu efeito quando o espectador é compelido a pular na cadeira. Quando é compelido a tombar quando está de pé. Quando ele é compelido a aplaudir, a berrar. Quando os seus olhos são compelidos a brilhar de satisfação, antes de derramar lágrimas de satisfação. Em resumo, quando o espectador é forçado a sair de si mesmo... Sair de si mesmo implica inevitavelmente uma transição a alguma coisa, a algo diferente em qualidade, a algo oposto ao que era — da imobilidade para o movimento, do silêncio para o barulho, etc.». É a partir do confronto e da superação entre os contrários que se desenvolve o esquema narrativo do filme, adaptando a estrutura em cinco actos da tragédia clássica às leis da dialéctica marxista. Acto I: perante a carne podre a tripulação recusa-se a comer. Acto II: a desobediência dos marinheiros leva os oficiais à repressão que provoca o motim. Acto III: a morte de um dos marinheiros suscita o luto dos companheiros e a simpatia da população de Odessa. Acto IV: a adesão da população à causa dos marinheiros motiva a fuzilaria nas escadas. Acto V: os tripulantes confrontam-se com a esquadra do czar que se recusa a disparar, triunfando assim o espírito de solidariedade revolucionária. Cada acontecimento conduz a um movimento inverso, do mesmo modo que na montagem o ritmo e a organização gráfica de cada sequência são contrariados na sequência seguinte. Se Eisenstein adoptou a composição trágica foi, como reconhece, por ter dado provas de uma indiscutível força dramática ao longo dos séculos. Como vemos, é ainda de uma questão de eficácia ideológica que se trata quando procura desencadear o horror, a piedade e a sensação jubilatória. O estado de êxtase do espectador, essencial à sua mobilização afectiva, seria a prova cabal dessa eficácia. Que a palavra êxtase seja escolhida tendo em conta a ambiguidade semântica entre o arrebatamento religioso e o prazer sexual mostra até que ponto o pensamento de Eisenstein se afastava do mecanicismo da reflexologia de Pavlov para se aproximar do continente insondável introduzido por Freud. 131
Depois de ver O Couraçado Potemkine, na estreia memorável do Bolshoi de Moscovo, em que as bobinas do filme iam entrando na cabina de projecção à medida em que saíam da tesoura do realizador, Viktor Sklovski não teve dúvidas em reconhecer que ninguém, como Eisenstein, tinha conseguido, com tal perfeição, materializar no cinema a poética da excentricidade que defendia como prática fundamental da regeneração das formas artísticas. Um dos principais impulsionadores do formalismo russo, Sklovski dedicara vários ensaios ao estudo da literatura e do cinema, tomara-se amigo de Eisenstein e haveria de escrever uma das suas primeiras biografias críticas. Se tivesse de explicar porque considerava Eisenstein um génio diria simplesmente para repararem em como ele trata os objectos, como os transfigura e lhes dá vida, como os torna estranhos e os faz gerar novos sentidos obrigando-nos a observá-los como se fosse pela primeira vez. Os formalistas russos constataram o papel relevante do automatismo na percepção humana e asseguraram a formulação de uma hipótese que se revelaria muito produtiva na definição da especificidade das práticas estéticas da modernidade: o hábito impede-nos de ver e de sentir os objectos da vida quotidiana, pelo que uma das funções essenciais da representação artística consiste em deturpá-los de modo a prender a nossa atenção e a consciencializar-nos da originalidade do artifício. As própria formas da arte, à força da imitação e da repetição, acabam por se fossilizar, pelo que se tomam imperiosas as mudanças periódicas de estilo, tarefa atribuída às vanguardas. O carácter assumidamente construído da obra de arte, fruto de um trabalho técnico concreto sobre os meios próprios de cada linguagem, aparece assim incompatível com a mística da criação e o culto do artista demiurgo. O segredo do prazer estético está na estrutura das formas, no seu sentido imanente, e não na psicologia do autor. Sklovski chamou de excentricidade ou de efeito de estranheza (ostranenie) o processo artístico pelo qual o objecto representado nos obriga a um esforço de percepção, na medida em que perde os contornos da banalidade para ganhar um novo sopro de vida. A finalidade da arte seria dar-nos uma sensação do objecto como visão e não como mero reconhecimento. Ao definir a arte como sendo o pensamento por imagens poéticas, em contraste com a dimensão prosaica do quotidiano, Sklovski sugere que os termos da comparação e do deslocamento semântico, na invenção das imagens, têm a metáfora por fundo. Desta maneira, 132
o objecto nomeado, ou representado, é retirado do seu contexto habitual e colocado num contexto diferente que nos surpreende e nos revela outras potencialidades de sentido. Ao desviar os objectos da sua cadeia normal de associações, gastas pelo uso estereotipado da linguagem, a arte aumenta o patamar sensível da nossa apreciação do mundo. Este método de procura estética de novos contextos inesperados para os objectos, que Sklovski designa por processo de singularização ou desfamiliarização, não anda longe do que, no campo do cinema, Eisenstein começou por fazer na montagem das atracções e prosseguiu com o aprofundamento visual da imaginação metafórica. A importância da teorização de Sklovski não pode ser sobrestimada. Quando deixa explícito que a arte tem o dever de lutar contra a sua própria canonização, que mais não seria do que aceitar dissolver-se no caldo da cultura oficial, Sklovski reflecte sem dúvida a vaga revolucionária da época, mas aponta também o caminho seguido pelas vanguardas do período modernista, de uma maneira ou de outra inclinadas ao exercício fértil do efeito de estranheza e à recusa do academismo: a quebra de sintaxe dos futuristas, o ruidismo e o acaso dos dadaístas, as colagens e o cubismo de Picasso, o expressionismo alemão, as fotomontagens de Grosz, a escrita automática dos surrealistas, o construtivismo de Tatlin, o suprematismo de Malevich, o abstraccionismo de Kandisky, a biomecânica de Meyerhold, o monólogo interior de Joyce, o vorticismo de Pound, o dodecafonismo de Schonberg, as marionetas de Craig, a crueldade de Artaud, o efeito de distanciação de Brecht, para mencionar os principais. Eisenstein aceitava plenamente as teorias de Sklovski e citava, a propósito, uma entrada famosa do diário de Baudelaire: «O que não é um pouco distorcido não tem apelo emocional; disso se segue que a irregularidade, isto é, o inesperado, a surpresa, o espanto, são uma parte essencial e característica da beleza». De um modo geral, os textos dos formalistas russos sobre cinema partem do postulado de que o valor de signo da imagem é inversamente proporcional à sua capacidade referencial, pois quanto maior for a restrição realista do plano fílmico maiores serão as suas possibilidades discursivas. O nó da estilística cinematográfica aperta-se, portanto, na montagem, porque só aí se estabelecem definitivamente as cesuras e as articulações significantes que constituem o cinema como linguagem. Esta perspectiva era também partilhada por Eisenstein, 133
para quem um plano de cinema isolado, em si mesmo, não oferecia grande consistência de significação, visto que só na teia relacional cerzida pela montagem cada fragmento adquiria legibilidade e, pode dizer-se, inteira legitimidade. Na preparação dos seus dois filmes seguintes, Outubro (1927) e A Linha Geral (1928), a ambição de Eisenstein era a de criar uma dramaturgia da forma visual do filme, independente da dramaturgia contida no argumento. Estava firmemente convencido de que a composição plástica do plano e as associações dinâmicas da montagem, através da sua influência na fisiologia da percepção do espectador, podiam proporcionar emoções mais fortes do que as do conteúdo narrativo, dirigindo assim de um modo subliminar todo o processo de pensamento do público. A esta nova síntese de arte e ciência, em seu entender capaz de formular directamente conceitos por imagens sem necessidade de passar pelo diálogo, pelo comentário ou pela paráfrase, chamou Eisenstein o cinema intelectual. As primeiras aproximações de Eisenstein à montagem intelectual são-lhe sugeridas pelo estudo da cultura japonesa, em particular o teatro kabuki e a escrita ideográfica. Dois ideogramas, cada um dos quais designando um objecto, por exemplo cão e boca, quando juntos significam ladrar, tal como a junção dos ideogramas faca e coração significa tristeza, e assim por diante. A combinação dos ideogramas não fornece uma soma mas um produto, ou seja, cada descrição de objectos concretos, quando articulada com outra descrição, através de um sistema de escrita semelhante ao da montagem, dá origem à formação de um conceito abstracto. Isto, conclui Eisenstein, é o ponto de partida do cinema intelectual. A montagem cinematográfica passa então a ser designada como um processo de conflito sistemático entre os planos, já que é da sua oposição e colisão que surge uma nova qualidade de significação irredutível à reprodução analógica da realidade. É o mesmo raciocínio que permite a Sklovski dizer que Eisenstein rescreve inteiramente os seus argumentos na mesa de montagem. Seguindo um método de classificação que se pretende científico, Eisenstein procede, em diversos textos, ao inventário dos conflitos susceptíveis de proporcionar um choque dinâmico entre os planos, de acordo com a sua missão social e com a sua natureza intrínseca. Dos conflitos criados no interior do quadro — contrastes de linhas gráficas, perspectivas, volumes, escalas, luzes, tons, movimentos — às colisões, ritmos e harmonias organizados na montagem, cuja matriz continua 134
a ser a noção de atracção, Eisenstein desenvolve um conjunto de teorias cada vez mais complexas, e por vezes delirantes, nas quais pretende integrar a linguagem da lógica e a linguagem das imagens, padrões de carácter racional e padrões de carácter emocional, como se do confronto entre ambos pudesse resultar uma síntese da máxima eficiência estética e ideológica. O Partido exerce a ditadura do proletariado, assim os filmes de Eisenstein exercem a ditadura do sentido. Nos projectos do realizador, os próximos passos do cinema intelectual seriam nada menos do que uma versão de O Capital, de Karl Marx, e a adaptação de Ulisses, de James Joyce, dois dos seus autores de cabeceira. Os estranhos objectos poéticos, transfigurados por distorções de escala e de volume no interior do plano, pelo uso quase imperceptível de grandes angulares, reconfigurados no espaço e na duração, através da dilatação e da contracção do tempo orquestrado pela montagem, não agradavam a toda a gente. Um dos mais acérrimos críticos do cinema intelectual era um cineasta e teórico de renome, amigo íntimo de Eisenstein e uma das glórias do cinema soviético — Vsevolod Pudovkin. Um dos mais brilhantes e fiéis discípulos de Kulechov, defensor infatigável da continuidade narrativa, da personagem de essência psicológica, da unidade dramática e da montagem linear, Pudovkin visitava Eisenstein a altas horas da noite para discutirem as suas concepções antagónicas de cinema. Em vez da colisão entre imagens, Pudovkin propõe a estratégia clássica da ligação espácio-temporal entre os planos, decompondo a cena em pontos de vista dramatizados que simulam a presença imaginária de um observador ideal. A estrutura narrativa dos filmes de Pudovkin assenta basicamente numa hábil homologia visual da evolução da consciência dos personagens, já que a resolução dramática das suas histórias, centradas em heróis individuais com imensos dilemas psicológicos, coincide normalmente com a passagem do estado de alienação ao momento da tomada de consciência, num gesto típico da estética marxista da época. Pudovkin adopta uma concepção de cinema em que as imagens são a expressão exterior dos problemas morais e ideológicos que atormentam os personagens, bem como do mundo em que eles vivem e com o qual têm de se confrontar. Se o filme se apresenta como a expressão elaborada de um ponto de vista, cada plano deve contribuir para cimentar o conjunto como se fosse 135
uma parcela da perspectiva global. Trata-se, portanto, de conciliar a montagem tijolo a tijolo, aprendida com Kulechov, com a planificação analítica à americana cujo paradigma continua a ser Griffith. Em Pudovkin as técnicas de construção do discurso fílmico apagam-se perante a evidência do mundo em transformação, em Eisenstein tanto as técnicas do cinema como o mundo se transformam à nossa vista, por força da intervenção revolucionária a todos os níveis. Nos textos de Pudovkin, de resto muito coerentes, encontramos a ideia, central na teoria e nos filmes, de que o tema determina o estilo, sendo este minuciosamente preparado na fase de escrita do argumento. Daqui decorrem duas consequências em oposição com a prática de Eisenstein. Primeira, para Pudovkin o assegurar da continuidade e da unidade estilísticas do filme implica a planificação de um detalhado guião técnico de filmagens «que permita ao realizador a prefiguração visual, nos seus mínimos pormenores, de todo o resultado. Só assim ele poderá depositar confiança nas fases seguintes do seu trabalho e chegar a um resultado significativo: tratando cada plano, cuidadosamente, de acordo com um projecto de antemão estabelecido onde visualizou uma sucessão de imagens para traçar uma vez por todas o inteiro decorrer da acção e da evolução de cada personagem. Só por meio desse trabalho preparatório é que o realizador pode criar o estilo, a unidade que condiciona o valor de toda a obra de arte» (Pudovkin, Argumento e Realização). Deste rigor, que chega ao apuro de prever a montagem na escrita do argumento, nasceu a designação de guião de ferro, ainda hoje inseparável do nome de Pudovkin. Segunda consequência, se as filmagens se limitam a traduzir por imagens apenas o que o argumento contém e nada mais, tudo o que resulta do processo específico do pensamento fílmico terá forçosamente de se remeter a uma concepção ilustrativa da fase de preparação literária. Não é por acaso que os livros técnicos e didácticos de Pudovkin conheceram uma enorme popularidade nas escolas da especialidade da Europa e dos Estados Unidos. São manuais de grande clareza e entusiasmo, nos quais se realça o papel do actor, da realização e da montagem com exemplos muito pertinentes, mas quase sempre numa frequência não problemática das formas cinematográficas. Ora, o que encontramos em Eisenstein é o questionamento permanente da estabilidade da própria ideia de cinema, de tal modo que é impossível falar-se de uma teoria unificada de Eisenstein. Apesar das divergências 136
de fundo os dois cineastas escrevem em conjunto, em Agosto de 1928, um manifesto acerca do futuro do cinema sonoro que é, ainda hoje, uma peça notável de premonição teórica. Numa época em que o advento do som era repudiado por grande parte da inteligência como um elemento espúrio à pureza imagética do cinema, Eisenstein e Pudovkin, pelo contrário, vêm demonstrar, com grande argúcia, que só o som poderá contribuir para aumentar as capacidades expressivas e formais da sétima arte. Têm a consciência de que o filme sonoro é uma arma de dois guines e de que, provavelmente, o som venha a ser utilizado segundo a lei do menor esforço, ou seja, satisfazendo a curiosidade do público como um recurso meramente naturalista e pleonástico da banda sonora: ouvem-se apenas os sons daquilo que se vê no ecrã. Prevêem também, como de facto aconteceu, que os filmes falados venham a depender em demasia do diálogo para contar a história, restringindo o papel fundamental da imagem e da montagem. Propõem então que o som e a imagem sejam tratados com relativa autonomia, de modo a potenciarem a dinâmica audiovisual da linguagem cinematográfica ao nível da montagem, já que a completa coincidência entre a banda sonora e a banda visual aumenta a inércia de ambas como elementos de montagem. «Só um uso polifónico do som, em contraponto com os elementos visuais da montagem, pode conferir novas potencialidades ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da montagem. O primeiro trabalho experimental com o som deve ser orientado numa perspectiva de não-sincronismo com as imagens visuais. Só este tipo de abordagem produzirá a sensação necessária à criação de um novo contraponto orquestral das imagens sonoras e visuais». Com o êxito comercial do primeiro filme sonoro americano, estreado na sala da Warner em Nova Iorque em 6 de Outubro de 1927, o futuro do cinema torna-se previsível. Eisenstein está então no auge do seu poder criativo, conhece as insuficiências e as dificuldades da cinematografia soviética, sabe que não se pode arriscar a filmar O Capital sem avaliar os progressos técnicos da indústria mais avançada do mundo e sem ver as glórias e as misérias do capitalismo com os seus próprios olhos. Que fazer, senão ir a Hollywood?
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Garbo: a sedução da estrela e o exotismo sexual.
16 O PARAÍSO PERDIDO A porta do elevador principal do Hotel New Willard, em Washington, abriu-se e dois homens entraram a falar. Depois de uma breve pausa, durante a qual olharam para o desconhecido, continuaram a conversar como se mais ninguém estivesse ali dentro. Um deles explicava ao outro que o filho tinha apanhado más notas em álgebra, pelo que teria de dedicar mais tempo a acompanhar a educação do adolescente. William Hays não pôde deixar de ouvir a conversa. Tinha acabado de se despedir dos seus colegas do Partido Republicano, como ele membros do Governo e conselheiros do Presidente Harding, para cumprir uma nova missão que se lhe afigurava simultaneamente aliciante e difícil, e pareceu-lhe que aquela conversa casual tinha um sentido premonitório (Hays, The Memoirs of Will H. Hays, 1955). No dia 8 de Dezembro de 1921, os principais organizadores da recémformada Associação Americana de Produtores e Distribuidores de Filmes (MPPDA), representados por Lewis J. Selznick, convidaram William Hays para seu Presidente. A proposta de salário de cento e cinquenta mil dólares anuais, superior ao que já ganhara em qualquer 139
outra função oficial, o prestígio inerente ao cargo de porta-voz da profissão cinematográfica e as condições do exercício da autoridade numa indústria cujos produtos exerciam influência em milhões de pessoas em todo o mundo, levaram Hays a aceitar o cargo, que exerceu de forma eficaz até ao momento da sua reforma, em 1945, embora os princípios doutrinários que implantou no seio da indústria se mantivessem em vigor, com ligeiras alterações, até 1966. Com a criação da Associação, e o respectivo convite a Hays, pretendiam os produtores consolidar a aceitação do cinema como espectáculo dirigido a todas as camadas de público e evitar as pressões censórias que aumentavam de tom em vários Estados. A rápida expansão industrial e o enorme crescimento urbano, nas primeiras décadas do século, forneceram ao cinema um vasto mercado que parecia aderir com entusiasmo à monumentalidade das novas salas, às peripécias das longas metragens de ficção e ao culto das estrelas. Em 1915, a propósito do direito de opinião reivindicado por Griffith para os filmes, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha declarado a indústria cinematográfica um mero negócio, portanto não abrangida pela Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão. Entre 1909 e 1922 os próprios exibidores apoiaram uma Comissão Nacional de Censura que visionava os filmes e regulava os conflitos resultantes de queixas públicas contra determinadas cenas consideradas imorais. Não obstante, na viragem dos anos vinte, a maior parte dos Estados tinha autorizado formas de censura federal e regional, com critérios diferenciados, que criavam sérias dificuldades à normalização da distribuição cinematográfica. Filmes que passavam sem problemas numa localidade, eram proibidos ou sujeitos a cortes noutras praças de exibição, onde grupos de pressão protestavam contra as películas de Clara Bow ou de Gloria Swanson, contra os títulos de duplo sentido ou contra a evidência de, em Hollywood, as saias se estarem a tornar mais curtas e os beijos mais longos. Uma série de escândalos ocorridos com actores e actrizes muito populares, cujos processos em tribunal desvendaram uma série de ofensas que iam do homicídio à violação, passando pelo adultério e pelo consumo de drogas, forçaram os produtores a intervir na vida privada das vedetas ligadas aos grandes estúdios. Quando Gloria Swanson se preparava para renovar o seu contrato com a Paramount, ficou estupefacta ao ler uma nova cláusula onde se dizia que, no caso da actriz 140
ser publicamente acusada de adultério, ou de ser apanhada a manter relações imorais com outros homens que não o marido, a produtora sentia-se no direito de fazer cessar o respectivo contrato. O próprio Cecil B. De Mille, cujos filmes recentes tinham contribuído de maneira decisiva para lançar a imagem de Swanson como uma mulher sedutora e inconformista, aconselhou a actriz a silenciar o processo de divórcio que ela tinha em curso, pagando ao marido a indemnização pedida para não a acusar de adultério no tribunal. O talento e a hipocrisia do realizador não conheciam limites. Gloria calou-se e assinou o contrato. A indústria do espectáculo precisava de ser tratada como o estudante que apanha más notas em álgebra, precisava de ser acompanhada e educada por uma vocação de paternalismo paciente. Will Hays não tinha dúvidas quanto aos métodos a seguir, tanto mais que o cinema se lhe afigurava como o mais poderoso meio de educação de massas, superior ao de qualquer escola ou universidade. No Verão de 1922, na sua primeira visita oficial a Hollywood, Hays deixa clara a ideia, ao afirmar, no seu discurso de apresentação à comunidade cinematográfica, que a prioridade da sua acção visará fundamentalmente proteger os valores morais do público, cuja mentalidade ele compara à de uma inocente criança, acabando por afirmar que a responsabilidade dos profissionais de cinema se assemelha à do padre quando sobe ao púlpito ou à do professor quando entra na sala de aulas. Instalado em Nova Iorque, onde continuaram sediados os centros de decisão económica do cinema, Will Hays atacou de imediato as várias frentes que preocupavam tanto a Associação de Produtores e Distribuidores como os sectores financeiros que tinham investido na actividade, nomeadamente o Banco da América, sem cujos empréstimos Zukor não teria conseguido construir o seu império de salas por todo o país. A expansão do cinema americano no mercado internacional, a regulamentação dos contratos internos de exibição, o reforço dos meios e dos suportes publicitários dos filmes, a elaboração de um cadastro de registo de títulos, a formação de uma comissão arbitral para os conflitos laborais, a criação de uma agência central de figuração, foram algumas das medidas que, desde logo, garantiram a Hays o apoio praticamente incondicional dos patrões do cinema. Mas a tarefa mais importante, para a qual Hays não teve de imediato uma solução a seu 141
ver satisfatória, consistia em travar o fervor das várias comissões de censura espalhadas pelo país, tranquilizando simultaneamente os grupos conservadores mais radicais quanto à potencial ameaça subversiva do cinema e dos seus intelectuais mais perigosos — os escritores. Numa primeira fase, que entrou em vigor em Maio de 1924 e ficou conhecida por Fórmula Hays, os membros da Associação acordaram em submeter à apreciação do Gabinete Hays todos os livros e peças teatrais que se destinavam a ser adaptados a filme, pois era entendimento do próprio Hays que a principal origem das histórias controversas apresentadas pelo cinema se devia primordialmente à funesta herança da literatura e do teatro, cujo público, muito mais reduzido e elitista do que o do cinema, não se contentava com sugestões de simples entretenimento. O zelo dos colaboradores de Hays foi de tal ordem que, só no primeiro ano de vigência do Gabinete, foram proibidos sessenta e sete livros e peças. Perante o protesto indignado da Liga Americana de Autores, que via assim as receitas de direitos de autor dos seus associados substancialmente diminuídas, Hays aperfeiçoou a fórmula, permitindo que os escritores modificassem as histórias e os títulos dos livros, de acordo com as recomendações expressas do Gabinete, antes de as venderem para o cinema. A ausência de uma doutrina consistente da Fórmula, aliada à arbitrariedade dos critérios de proibições e de cortes emanados do Gabinete, levantaram uma onda de protestos, dentro e fora da profissão, que o próprio Hays considerou justificada. Em consequência, passou a uma nova fase da sua estratégia, instituindo um sistema de Interditos e Precauções (Don'ts and Be Carefuls) que anunciou pessoalmente numa visita a Hollywood em Maio de 1927. Os célebres Interditos, que constituíram um passo marcante na aceitação da autocensura por parte da indústria cinematográfica, eram, por enquanto, facultativos e resumiam-se em onze pontos: 1. a blasfémia, sob qualquer forma ou expressão; 2. a nudez, de facto ou em silhueta, bem como qualquer pose licenciosa ou sugestiva por parte dos personagens; 3. o tráfico ilegal de drogas; 4. a perversão sexual; 5. a escravatura branca; 6. a miscigenação (relações sexuais entre as raças branca e negra); 7. pormenores de higiene sexual e doenças venéreas; 142
8. cenas de parto; 9. os órgãos sexuais das crianças; 10. a ridicularização do clero; 11. ofensas intencionais a qualquer nação, raça ou credo religioso. Em breve, porém, dois acontecimentos vertiginosos e quase simultâneos vieram pôr em causa as diligências de Hays. A depressão económica e o advento do cinema sonoro, ambos iniciados em 1929, causaram alguma ansiedade na indústria quanto aos resultados comerciais da exploração dos filmes, pelo que os produtores recorreram a uma receita tradicional, reforçando o número de películas de sexo e violência. Como resultado, na temporada de estreias de 1930-1931, só a Comissão de Censura da cidade de Nova Iorque executou 468 cortes por indecência, 243 por actos desumanos, 1129 por incitamento ao crime e 1165 por corrupção moral. O cinema sonoro esteve também na origem de um novo surto migratório de escritores para Hollywood, na sua maior parte jornalistas e dramaturgos, pouco propensos a acatar o sistema de Interditos, que desprezavam, ou a abdicar das potencialidades satíricas do diálogo, em geral bem acolhidas pelo público. Em vez de perder o controlo da situação, Will Hays aproveitou a oportunidade para reforçar a influência do seu Gabinete, argumentando, com inteira lógica na sua perspectiva, que saía muito mais barato aos produtores cortarem as cenas duvidosas na fase preparatória dos projectos do que depois dos filmes estarem prontos a estrear. Se tinha sido fácil cortar planos, cenas e legendas nos filmes mudos, o cinema sonoro apresentava uma dificuldade insuperável: cada corte na cópia de exibição ficava marcado com um salto no sincronismo. O passo final da estratégia de Hays, visível desde a aplicação da Fórmula, que contemplava apenas os textos adaptados, consistia em exercer o controlo dos filmes a partir da escrita dos argumentos, fossem eles adaptações ou histórias originais. Para tanto precisava de um corpo de doutrina organizado, de um autêntico Código de Produção, em nome do qual pudesse vigiar todos os filmes, mesmo aqueles que, graças à sua intervenção providencial, não chegariam a ter existência material. Entram então em cena dois personagens discretos, de sólida formação católica: Martin Quigley, jornalista e editor em Chicago, e o padre Daniel Lord, professor de arte dramática e consultor técnico 143
das epopeias bíblicas de Cecil B. De Mille. Ambos familiarizados com os problemas da actividade cinematográfica, que acompanhavam de perto, tinham redigido um pormenorizado inventário de preceitos morais e ideológicos, ponderado à medida dos desejos e das necessidades de Hays. Além de tomar em conta o anterior sistema de Interditos e Precauções, a inspiração do documento fundamentava-se obviamente no espírito e na letra dos Dez Mandamentos, considerados de alcance universal e tidos como o indiscutível pilar moral da civilização ocidental. Em Janeiro de 1930 Hays parte novamente para Hollywood onde o espera uma comissão especial da Associação de Produtores, presidida por Cecil De Mille e tendo como executivos Irving Thalberg e B. P. Schulberg, entre outros, com a finalidade expressa de estudar, debater e aprovar o articulado do futuro Código de Produção, que passaria à história com a designação de Código Hays. O texto definitivo foi oficialmente aprovado em Março desse ano, reforçando de modo inequívoco o poder dos produtores sobre a execução dos projectos, uma vez que agora, mais do nunca, era preciso os argumentistas serem muito precisos quanto ao modo de exposição e intenção das suas histórias, tal como era indispensável que os realizadores se limitassem a filmar aquilo que estava formalmente sancionado no papel. Os princípios gerais dão o tom ao documento: 1. Não serão produzidos filmes susceptíveis de baixar o padrão moral dos espectadores. A simpatia do público não pode recair sobre o vício, o pecado e o mal. 2. Apresentar-se-á um padrão de vida correcto, sujeito apenas às necessidaJes dramáticas e de divertimento. 3. A Lei, natural ou humana, não será posta a ridículo, nem será criada simpatia por aqueles que a violem. Doze secções descrevem em pormenor os tópicos de aplicação específica do Código: crimes contra a lei, sexo, ordinarices, obscenidades, blasfémias, costumes e nudez, danças, religião, ambientes e cenários, sentimentos nacionais, títulos e legendas, assuntos repelentes. Na formulação concreta das proibições, dois temas há que se destacam dos outros, por se repetirem obsessivamente de secção em secção: o crime e o sexo como emanações supremas do espírito do mal. A preocupação dos legistas é compreensível, pois são os 144
primeiros a reconhecer que, mesmo quando castigado no fim, o mal provoca sentimentos de prazer tão intensos que podem tentar quem os testemunha. A preocupação é acrescida pelo facto de, na grandiosidade da tela e no mundo da ficção, a violência e a sedução, a marginalidade e a transgressão, serem vividas de um modo realista por actores carismáticos que despertam o desejo de imitação, sobretudo nas mentes mais jovens, fracas e desprotegidas. Uma sondagem feita em 1933, no seio do público estudantil, revelou que tanto rapazes como raparigas reconheciam ter aprendido a beijar e a estimular as suas fantasias sexuais copiando o comportamento das estrelas de cinema. A aceitação do cinema como um poderoso agente de socialização justificava, portanto, a recomendação sistemática, ao longo das várias alíneas do Código, que os criminosos não podem suscitar simpatia, que não devem ser mostradas técnicas de homicídio ou de roubo, que o matrimónio é uma instituição sagrada, que as paixões ilícitas não merecem ser apresentadas de uma forma atraente ou explícita. O reconhecimento textual, por parte dos autores do Código, de que o crime e o sexo constituem o material básico de organização dos enredos dramáticos reflecte uma propensão para o estereótipo que nunca deixou de estar presente em Hollywood e que os argumentistas de tarimba condensam na célebre piada de que só existem três motivações sérias nos personagens fortes do cinema americano: o poder, o dinheiro e as mulheres. Em traços gerais, os princípios doutrinários do Código e a orientação ideológica de Hays coincidiam perfeitamente com os interesses dos grandes produtores e distribuidores, como Zukor e Mayer, que pretendiam retirar aos filmes o seu cunho populista e por vezes iconoclasta, demasiado ligado às origens proletárias do entretenimento cinematográfico, para o aproximarem dos valores morais das classes médias, alargando assim o mercado de exibição e proporcionando a necessária dignidade social às novas salas onde os bilhetes eram mais caros. Era fundamental, no entanto, que o prestígio de uma instituição oficial, respeitada em todo o país por igual, garantisse a observância dos bons costumes da burguesia. Foi essa a tarefa histórica da acção política de Hays. Em Junho de 1934, Joseph Breen, um militante católico da confiança de Hays, é nomeado director em Hollywood do agora chamado 145
Production Code Administration (PCA). O acordo, mediado por Breen, entre a Associação de Produtores e a hierarquia da Igreja Católica, tendo em vista a implementação do Código, é oficializado. A partir desta data, além do exame prévio dos argumentos antes da filmagem, nenhum filme passou a ser distribuído nas salas da Associação de Produtores e Distribuidores sem o selo de aprovação da administração de Breen. O Vaticano sancionou e saudou com entusiasmo a imposição do Código que, em muitos países, foi adoptado como letra de lei e guia de orientação para as respectivas comissões oficiais de censura. Will Hays podia dar-se por satisfeito. Aos seus olhos, o cinema tornara-se finalmente um factor espiritual de progresso e de elevação moral da humanidade. Lamentavelmente, ficou sem saber se alguma vez o estudante de álgebra chegou a obter notas positivas.
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17 O CO MÉRCIO DA I MAGI NAÇÃO Em meados dos anos vinte a longa metragem de ficção tinha atingido uma maturidade formal notável. As legendas explicativas tornavam-se menos insistentes, quer pela fluência narrativa das imagens quer pelos hábitos entretanto adquiridos pelo público. Da elaboração das intrigas fazia parte a estratégia minimalista dos intertítulos, por onde escorriam as informações funcionais e as sugestões de humor apropriadas a cada cena. Os diálogos escritos, projectados no ecrã, deviam ser concisos e, se possível, ter um toque de originalidade literária que os distinguisse dos lugares-comuns do melodrama do cinema primitivo. Ainda no tempo do cinema mudo, a escrita de diálogos impôs-se como uma especialidade no interior dos departamentos de argumentos. Dada a maior complexidade das histórias e dos personagens, os actores precisavam de diálogos estruturados que os ajudassem a representar e a ponderar o tempo das réplicas e das movimentações. A atenção do público aos menores gestos das suas estrelas preferidas tinha habituado os fans a decifrarem nos lábios dos actores o que eles diziam no silêncio grandioso do ecrã. Havia, no entanto, toda a vantagem em os intertítulos serem breves, de modo 147
a não quebrarem em demasia a coerência e a autonomia do universo visual instaurado pelo filme. A maneira mais convincente de atenuar a intromissão dos intertítulos era através do sentido de humor: uma linha de diálogo ou uma descrição escritas com graça reforçavam a cumplicidade do público com o dispositivo narrativo e predispunhamno a aceitar as convenções da ficção. Foi esta habilidade que valeu a Anita Loos uma enorme popularidade entre os profissionais do mesmo ofício. Em 1926 B. P. Schulberg contratou para a Paramount dois argumentistas notáveis: Herman Mankiewicz e Jules Furthman. Tendo começado ele próprio como argumentista, B. P. era sensível à qualidade da escrita e à personalidade dos escritores. Furthman escrevia histórias, adaptações e legendas para filmes desde 1915, nomeadamente para a Fox, onde trabalhara sob contrato a partir de 1920. Mankiewicz tinha um passado atribulado de jornalista e dramaturgo, e a fama de ser um dos intelectuais mais brilhantes e bem relacionados da sua geração. Irmão mais velho do futuro realizador Joseph Mankiewicz, Herman nasceu em Nova Iorque em 1897 e estudou na Universidade de Colúmbia, onde começou a escrever peças de teatro para o grupo dramático da respectiva Faculdade. Depois de uma estadia em Berlim como jornalista no pós-guerra, ingressa em 1922 no New York Times na qualidade de crítico teatral. O fracasso como dramaturgo e a perspectiva de uma remuneração muito mais elevada em Hollywood levamno a aceitar o convite de B. P. Schulberg para integrar os quadros do departamento de argumentistas da Paramount. Em média, o que um escritor ganhava em direitos de autor pela primeira edição de um romance, nos anos vinte, era o equivalente ao salário de quatro semanas de um argumentista contratado por um dos grandes estúdios. O prestígio estava nos meios literários e nas revistas de Nova Iorque, mas o dinheiro estava em Hollywood. No entendimento de Mankiewicz, como no de outros intelectuais da costa Este rendidos pela força das circunstâncias ao encanto mercantil de Los Angeles, o cinema tinha ainda a vantagem de permitir o exercício de uma participação assaz discreta, na medida em que a maior parte dos argumentos era fruto de um trabalho colectivo cujo produto final — o filme — responsabilizava sobretudo os realizadores, os produtores e os actores. A crítica não perdoava a evidência de um mau escritor, mas um argumentista 148
medíocre podia passar despercebido durante muito tempo sob a capa do anonimato fomentado pelo sistema. Mankiewicz depressa se habituou às extravagâncias de Hollywood. A sua notoriedade no interior da comunidade cinematográfica ficou a dever-se tanto à perspicácia das suas observações e aos conhecimentos da sua vida social como às legendas e aos diálogos sarcásticos que escrevia para os filmes. Entre 1926 e 1932, período durante o qual trabalhou em exclusividade para a Paramount, Herman Mankiewicz colaborou em diálogos e argumentos de mais de vinte filmes e foi produtor executivo das primeiras obras cinematográficas dos irmãos Marx, além de ser companheiro de poker e conselheiro favorito de B. P. Schulberg sempre que este entendia ser necessário rescrever ou remontar películas de outros contratados da produtora. Quando Ben Hecht recebeu notícias de Mankiewicz a convidálo para Hollywood não ficou surpreendido. Eram grandes amigos dos tempos de Berlim, tinham sido colegas de jornalismo em Nova Iorque e partilhavam a mesma ambição de uma carreira literária e teatral sem compromissos. O telegrama, que ficou célebre, não podia ser mais claro quanto à opinião de Mankiewicz sobre a capital do cinema: «Aceitas trezentos dólares semanais para trabalhar para a Paramount? Todas as despesas pagas. Trezentos é uma ninharia. Há aqui milhões para sacar e a única competição são nabos. Não espalhes isto. Herman Mankiewicz» . Hecht aceitou, mas por muito mais do que trezentos dólares semanais e sem qualquer contrato de exclusividade com a Paramount ou qualquer outro estúdio. Na verdade, num curto período, Hecht impôsse como o arquétipo do argumentista de Hollywood — um dos mais talentosos, prolixos e bem pagos do seu tempo. Em quarenta anos de carreira escreveu cerca de setenta filmes e participou pelo menos na rescrita de mais vinte ou trinta sem ser creditado nas fichas técnicas. Obrasprimas de Hawks, Hitchcock, Lubitsch, Wellman, Preminger e Stevens trazem a sua assinatura nos respectivos argumentos. A acreditar na autobiografia (A Child of the Century, 1954), gastava em média apenas duas semanas para escrever um argumento, chegou a ditar guiões completos num fim-de-semana e nunca passou mais de oito semanas a trabalhar na mesma história. Recusando uma educação universitária, Ben Hecht começou a trabalhar como jornalista em 1910, com 16 anos de idade, no Chicago 149
Journal. Aí adquiriu o método e o estilo que iriam caracterizar a sua passagem por Hollywood: versatilidade no tratamento dos temas e dos géneros, rapidez de escrita, vivacidade das intrigas, diálogos cruzados, situações de duplo sentido, tudo marcado por uma mistura de cinismo e sentimentos à flor da pele. Em 1914 entra para a redacção do Chicago Daily News onde se torna conhecido pela particular habilidade que revela na escolha das reportagens e pela capacidade inaudita de estar sempre no sítio mais adequado à observação pessoal e ao comentário da prosa original. Mas Hecht não era um jornalista como os outros: quando não havia notícias, inventava-as. As suas entrevistas e fantasias jornalísticas eram tão bem forjadas que pareciam mais verdadeiras do que os relatos de rotina dos seus colegas. Para Hecht o jornal era uma espécie de romance diário onde ele pedia meças a Montaigne e a Dostoievski, seus autores de cabeceira. Na prática quotidiana do jornalismo Hecht aprendeu simultaneamente o respeito pelo trabalho de grupo e pela independência individual, moldado em horas memoráveis de companheirismo dentro e fora da actividade. É porventura essa atitude conjunta de modéstia, descontracção e exigência profissionais que lhe vai permitir adaptarse tão bem à organização dos estúdios em Hollywood, escrevendo por encomenda, rescrevendo no anonimato, deixando os louros para os realizadores e os produtores, mas sem abdicar dos direitos materiais de autor, cuja defesa e promoção não deixava por mãos alheias. Hecht nunca teve dúvidas de que a experiência jornalística era a melhor escola da vida, da camaradagem e da escrita. Em Dezembro de 1918 chega a Berlim, onde permanece até meados de 1920 como correspondente de um conjunto de jornais. Assiste à efervescência política e cultural da capital alemã, de onde envia peças que fizeram sensação, nomeadamente as que descrevem a repressão dos movimentos de esquerda e a propensão da burguesia alemã para apoiar as ditaduras. Interessa-se pela vaga expressionista e frequenta com assiduidade as sessões do movimento dadaísta, então no auge, do qual não se esquecerá ao escrever posteriormente para Hawks alguns dos mais excêntricos e hilariantes argumentos da comédia sofisticada americana (screwball comedy). Em 1922 instala-se em Nova Iorque, onde pretende desenvolver uma carreira de dramaturgo em parceria com outro jornalista, Charles MacArthur. O êxito da estreia na Broadway da peça The Front Page 150
permitiu aos dois autores continuarem a escrever para o teatro, que Hecht encarava prosaicamente como sendo metade arte e metade máquina de fazer dinheiro. Porém, a mais completa máquina de fazer dinheiro estava em Hollywood, já que, na opinião de Hecht, o cinema nem sequer tinha a metade de arte que salvava o teatro do puro comércio. Num artigo cáustico, de grande sinceridade e agudeza crítica, publicado na edição de Junho de 1929 da revista Theatre Magazine, Hecht afirma que o seu único interesse no cinema reside no dinheiro que lhe pagam, uma vez que o cinema não é um meio específico do escritor mas sim do realizador. E conclui de modo profético: «no dia em que os realizadores ganharem confiança em si próprios deixarão de precisar dos escritores; então os filmes serão melhores e mais íntegros». Remetida a responsabilidade dos filmes para o realizador ou, eventualmente, para o produtor, restava ao argumentista alinhar as histórias de acordo com o pedido dos patrões. Fiel a esta lógica, Hecht nunca se sentiu penalizado com as encomendas menos interessantes, porque a todas aplicava um lema imbatível: já que dá tanto trabalho escrever um mau argumento como um bom argumento, sempre é preferível tentar fazer um bom argumento. Aparentemente concluído, o argumento caía nas mãos do produtor que, salvo raras excepções, o dava a rescrever a outro argumentista ou ao próprio realizador indigitado para o filme. A partir daqui Hecht desligavase completamente do projecto, a não ser que lhe pedissem — e pagassem — para escrever ele próprio novas cenas, diálogos adicionais ou pontos de viragem nas intrigas. Na verdade, a fama da sua rapidez, eficácia, sentido crítico e espírito de humor fez dele um dos mais solicitados argumentistas de urgência (script doctors) de Hollywood, de bisturi sempre pronto a executar operações delicadas no corpo das obras alheias. Para Hecht o prazer do cinema traduzia-se em primeiro lugar no gosto pela efabulação em que, desde criança, a leitura e a escrita o tinham educado. Considerava-se um escritor compulsivo, não pelo desejo de agradar aos outros, mas porque se divertia com a sua própria imaginação. Além de se consolidar como um proveitoso comércio da imaginação, o cinema americano na era dos estúdios podia ser também uma arte do convívio e da intriga permanentes, ambas especialidades de homens vivos como Hecht e Mankiewicz para quem o mundo servia de palco às suas próprias representações. 151
Ao receber Hecht no estúdio, confortavelmente instalado no edifício da administração da Paramount, ao lado do escritório de B. P. Schulberg, Herman Mankiewicz considerou prudente ministrar ao seu amigo um curso intensivo de dramaturgia cinematográfica. Explicou-lhe, entre fumos de charuto e copos de uísque, que as histórias de Hollywood eram diferentes das da literatura, do teatro e da vida. Hecht ouviu com a maior atenção. «Faço-te notar que num romance o herói pode ir para a cama com dez miúdas e no fim casar com uma virgem. No cinema isto não é permitido. O rapaz e a rapariga têm de ser virgens. O mau da fita pode ir para a cama com quem quiser, divertir-se à grande a enganar, a roubar, a enriquecer e a chicotear os criados. Mas no fim tens de o matar a tiro. Quando ele cair com uma bala na testa, é aconselhável agarrar-se a uma tapeçaria Gobelin colocada na parede da biblioteca, de modo a tombar-lhe sobre a cabeça como uma mortalha simbólica. Assim, coberto pela tapeçaria, o actor escusa de suster a respiração enquanto é filmado a fingir que está morto» . Hecht reflectiu sobre as advertências de Mankiewicz e decidiu escrever uma história exclusivamente dedicada ao único tipo de personagens interessantes da lição: os maus da fita. Assim nasceu o argumento de Underworld (1927), hoje citado em todas as histórias da sétima arte como o filme que inaugurou o ciclo do gangster no cinema americano. As dezoito páginas dactilografadas do tratamento cinematográfico que cotou Ben Hecht entre os melhores tinham, no entanto, uma origem mais plausível, enraizada na sua actividade de repórter nas ruas de Chicago na década anterior. Underworld é uma descrição fria do submundo da cidade, povoado por marginais sem contemplações que o repórter conheceu de perto e que lhe fizeram descobrir a injustiça inerente a uma sociedade que produz seres humanos de tal calibre. B. P. Schulberg leu a história de Hecht, pediu a outros argumentistas do estúdio para a desenvolverem e entregou a realização do projecto a Josef von Sternberg. O tom seco e directo do original coadunava-se perfeitamente com os filmes anteriores de Sternberg cuja ambição era superar o realismo de Stroheim. Foi justamente por conhecer a admiração de Sternberg pelo autor de The Wedding March que B. P. lhe pedira para remontar a película. Entretanto, Sternberg viajara pela Alemanha, navegara na corrente expressionista, conhecera o encenador Max Reinhardt, cuja influência na sua obra jamais deixou 152
de enaltecer, reflectira acerca das relações entre a pintura e o cinema, enfim, convencera-se da missão de criar um novo estilo para a arte do cinema. Underworld foi a primeira realização de Sternberg para a Paramount. A estreia do filme constituiu um êxito enorme, tanto na imprensa como no público. As filas na rua, junto às bilheteiras, eram tão extensas que as salas aumentaram o número de sessões diárias para satisfazer o afluxo de espectadores. Sternberg tornou-se o homem mais falado de Hollywood. Ben Hecht foi ver o filme e ficou absolutamente petrificado. Havia cenas que ele não tinha escrito, outras que tinham sido cortadas. O realismo psicológico e social do argumento dava lugar no filme a um decorativismo visual que recalcava a sordidez dos personagens e dos décors. Os ambientes carregados da malha urbana, reconstituída em estúdio por uma cenografia estilizada, eram afogados em luzes deslumbrantes que traziam à superfície actrizes enfeitadas de plumas e martirizadas por olhares lânguidos. Se aquilo era um grande filme, como toda a gente reconhecia, não era certamente o filme que Hecht tinha em mente quando escreveu o argumento. Hecht não esteve com meias medidas, enviou um telegrama a Sternberg a insultálo e a exigir que retirassem o seu nome do genérico. No ano seguinte, quando a recém-criada Academia das Artes e Ciências Cinematográficas atribuiu pela primeira vez os cobiçados Óscares, Underworld foi galardoado com o prémio do argumento para a melhor história original. Ben Hecht não se fez esquisito, subiu ao pódio, aceitou a estatueta e reconheceu a paternidade do filme como sendo inteiramente sua. Se ainda alimentava algumas ilusões acerca de Hollywood e da especificidade da escrita para cinema, Hecht perdeu-as porventura nesse dia. Presente na cerimónia, exibindo o orgulho do talento e do sucesso, Sternberg estranhou que Hecht não tenha mostrado qualquer embaraço nem tenha feito referência à maneira como o realizador teria deturpado o espírito da prosa original. Na verdade, parte da prosa do guião que serviu para as filmagens não era de Hecht nem de Stemberg. Segundo a prática corrente nos estúdios, o tratamento cinematográfico de Underworld foi desenvolvido por Robert Lee, depois passou pelas mãos de Howard Hawks que colaborava, nessa altura, no departamento de argumentos da Paramount. Hawks gostou da história, deu algumas sugestões, que Hecht agradeceu, e supervisou a construção dos cenários. Depois, o projecto foi parar à 153
secretária de Jules Furthman, que preparou o guião final, introduzindo por sua iniciativa algumas alterações que agradaram a Stemberg. Entre 1926 e 1932 Furthman foi o mais importante argumentista da Paramount, onde chegou a escrever quatro filmes por ano e a colaborar na revisão de outros tantos. A Furthman ficaria Stemberg a dever os guiões de oito obras consecutivas que fizeram a sua glória, incluindo os três primeiros filmes americanos com Marlene Dietrich: Morocco (1930), Shangai Express (1931) e Blonde Venus (1932). A Furthman se ficarão a dever também alguns dos melhores filmes de Howard Hawks, a começar em Only Angels Have Wings (1939) e a acabar em Rio Bravo (1959). À medida que foi trabalhando como independente para quase todos os estúdios, Ben Hecht não melhorou a sua opinião acerca de Hollywood e dos seus colegas argumentistas. Respeitava a inteligência, a imaginação e o profissionalismo de ases como Mankiewicz ou Furthman mas tinha de reconhecer que a maior parte eram tarefeiros bem pagos, sem ambições literárias ou artísticas. Dos cerca de mil escritores que se passeavam por Los Angeles no fim dos anos vinte, Hecht achava que talvez cinquenta tivessem realmente talento. Em 1928-1829, com a depressão económica à porta, e prevenindo as necessidades do cinema sonoro que se aproximava a passos largos, a indústria acolheu um número considerável de escritores vindos, na sua maior parte, de Nova Iorque e oferecendo um currículo com experiência de teatro ou jornalismo. Em 1931 havia oficialmente em Hollywood 354 escritores a trabalhar em regime de exclusividade para os estúdios e 435 a colaborar em tempo parcial com o estatuto de independentes. Todos juntos, auferindo salários considerados elevados para a época, custavam à indústria aproximadamente sete milhões de dólares, importância que representava apenas 1,5 por cento das despesas globais do pessoal dos estúdios. Grande parte dos escritores não se conseguia habituar aos métodos de trabalho dos estúdios — consideravam degradante a falta de respeito pelos direitos de autor. Outros conformavam-se com a recompensa do cheque semanal enquanto iam alimentando esperanças de escrever mais tarde o grande livro da sua vida. Poucos eram os que encaravam a escrita para cinema como o topo da sua carreira. Mais de metade dos que chegavam todos os anos para tentar a sorte não ficavam em Hollywood mais de três meses. Mas os que ficaram, gostassem ou não, contribuíram com a sua imaginação para a maior saga do espectáculo do século XX. 154
Construir a invisibilidade da técnica.
18 A PLANIFICAÇÃO E A MONTAGEM ANALÍTICAS De um ponto de vista estritamente técnico compete à montagem seleccionar, cortar, ordenar e colar os diferentes planos de rodagem, por forma a dar à película a sua forma definitiva e a dotar as imagens e os sons de continuidade discursiva. Edward Dmytryk, chefe-montador da Paramount entre 1930 e 1939, mais tarde realizador em actividade até finais dos anos sessenta, insiste na estreita coordenação entre a realização e a montagem, vinculadas às duas faces de um mesmo processo criativo. «As condições que tornam possíveis os cortes suaves (smooth cutting) não surgem espontaneamente na sala de montagem. O ideal da montagem invisível só se atinge observando uma série de regras. A primeira das quais, e uma das mais importantes, só pode ser garantida por iniciativa do realizador» (Dmytryk, On Film Editing, 1984). Essa regra básica, trave mestra do edifício formal do cinema clássico, é o raccord. Em sentido lato, fazer raccord entre duas imagens significa unir os respectivos planos de modo a obter uma perfeita ilusão de movimento, de fluência e de continuidade entre os fragmentos da acção representada, sem que a transição entre as imagens dê lugar a qualquer salto perceptível. 155
A tarefa da anotadora — que começou precisamente por se chamar continuity girl, hoje script supervisor — consiste em assegurar que todos os objectos e pessoas participantes na cena de filmagem respeitem os requisitos da continuidade narrativa, ao nível das posições, dos gestos, dos diálogos, das roupas, dos adereços, da luz, dos eixos de câmara, de acordo com as indicações do guião técnico, do desgloso, das folhas de serviço e do seu próprio caderno de anotação. Uma vez que os filmes, salvo raras excepções, não são rodados pela ordem cronológica da narrativa, os problemas da continuidade tornam-se na prática mais complexos do que a simples verificação do raccord entre dois planos registados na mesma sessão de trabalho. O sistema de montagem típico do cinema americano não é um simples conjunto de operações neutras, na medida em que parte de um postulado claro, implícito em quase todos os manuais da profissão: a manipulação do material não se pode fazer sentir, pois é a invisibilidade da técnica que assegura a transparência do mundo da ficção. Justamente, é a invisibilidade e a transparência que proporcionam ao espectador a sensação de naturalidade e de neutralidade do sistema. Vejamos em pormenor um exemplo referido por Dmytryk, ditado por longos anos de experiência. Imaginemos o plano de uma diligência que avança pela planície em direcção ao espectador até sair de campo. Se o montador prolongar o tempo de duração da imagem, depois da saída da diligência, levando o espectador a concentrar-se na beleza do cenário, significa que o plano é demasiado longo. O facto do espectador ter tempo para apreciar a beleza do cenário, depois da acção do plano ter terminado, implica que tomou consciência da composição plástica do enquadramento e, por conseguinte, do trabalho artístico. No entanto, se o mesmo plano começar algum tempo antes do aparecimento da diligência, de modo a que o espectador possa contemplar o cenário, provavelmente não se vai dar conta do artifício, porque a imagem da planície vazia serve o contexto da história, criando uma expectativa de acção. Se só contribuem para a eficácia do filme os acontecimentos que têm uma justificação funcional na história, é preciso eliminar todos os momentos em que não se passa nada de relevante. Do argumento à montagem, o cinema americano clássico adopta uma postura baseada na acumulação dos tempos fortes. Cada mudança de plano, cada corte de imagem, entre cenas ou no interior das cenas, serve potencialmente 156
para eliminar os tempos mortos, contraindo ou expandindo a duração real da acção e criando um tempo narrativo muito dinâmico, no qual as elipses são constantemente dissimuladas pelo interesse dramático das situações. A génese da planificação e da montagem radica porventura na vontade de contrariar a tendência do policentrismo e da polissemia das imagens primitivas, e de refutar a herança do teatro nos primeiros filmes feitos em estúdio. A dispersão das tomadas de vistas em exteriores, bem como a frontalidade e a unidade do proscénio, deram lugar à fragmentação calculada dos planos fílmicos, afirmando a montagem como o elemento aglutinador da estética cinematográfica. Na procura do mito das origens, frequente em muitas histórias do cinema, a montagem viria assim dar forma ao material desconexo, heterogéneo e informe das imagens soltas, constituindo o cinema como linguagem e como arte. Se a montagem garante a homogeneidade e a coesão discursiva do filme, a continuidade e a transparência da ficção, é graças aos pressupostos analíticos da planificação que estrutura a representação do mundo de acordo com determinados padrões cognitivos de inteligibilidade. Verificamos, nos manuais profissionais de realização e de montagem, ligeiras variações da mesma resposta à questão crucial de saber porquê e quando se muda de plano. Fundamentalmente, muda-se de plano para fornecer novas informações, para destacar o jogo dos actores, para fazer progredir a narrativa, para reforçar o conteúdo dramático, para hierarquizar o espaço e o tempo, para estimular a percepção visual do espectador, para proporcionar equilíbrio e ritmo à sucessão das imagens. Em qualquer dos casos, a decisão da mudança de plano é sempre recalcada pela obediência às regras do raccord, cujo objectivo primordial é disfarçar a técnica dos cortes e organizar o real em discurso, como se cada nova imagem viesse satisfazer com inteira justeza a nossa expectativa e curiosidade pelo mundo representado. Ninguém melhor do que André Bazin (Qu' est-ce que le cinéma? , 1958) expôs as razões empíricas da planificação e da montagem analíticas. «A utilização da montagem pode ser invisível; tornou-se o caso mais frequente do filme americano clássico anterior à guerra. A fragmentação em planos não tem outro objectivo que não seja analisar o acontecimento segundo a lógica material ou dramática da cena. É precisamente esta lógica que torna a análise imperceptível, já que o espírito do espectador 157
se identifica naturalmente com os pontos de vista propostos pelo realizador, na medida em que se encontram justificados pela geografia da acção ou a deslocação do interesse dramático». Apesar de criticar a planificação analítica pelo seu excesso de artifício, ao decompor a realidade em fragmentos irreais e por vezes abstractos, Bazin não pode deixar de reconhecer um certo coeficiente de especificidade cinematográfica aos filmes que a sabem utilizar, porque ela reinventa uma linguagem visual análoga à do raciocínio. «A planificação clássica, que analisa a cena dividindo-a num certo número de elementos (a mão sobre o telefone ou na maçaneta da porta que gira lentamente) , corresponde implicitamente a um determinado processo mental natural que nos faz admitir a continuidade dos planos sem que tenhamos consciência do carácter arbitrário da técnica». A noção do cinema como processo mental apareceu formulada com toda a clareza num texto invulgar, ignorado durante anos. Hugo Munsterberg, um modesto professor alemão convidado por William James para dirigir o departamento de filosofia da Universidade de Harvard, publicou The Photoplay: A Psychological Study em 1916, pouco antes de morrer, mas só com a reedição de 1970 lhe foi dada a devida importância. Teórico da psicologia da forma, discípulo de Kant, Munsterberg apaixonou-se pelo cinema quando descobriu as curtas metragens de Griffith. Nesse dia, confessa, perdeu a vergonha de ser visto numa sala de cinema. Para Munsterberg as imagens do filme não são um mero registo do movimento exterior, mas um meio artístico complexo através do qual a mente organiza a percepção e a compreensão da realidade, por analogia com o movimento interior do pensamento. O cinema supera as formas do mundo exterior e ajusta os acontecimentos representados às formas do mundo interior, que são essencialmente a atenção, a memória, a imaginação e a emoção. As categorias do tempo, do espaço e da causalidade são reorganizadas pelo cineasta que assim cria um mundo próprio com a aparência de realidade. A experiência do público não se limita à aparência das imagens que vê, uma vez que o grau de entendimento e de fruição dessas imagens organizadas em narrativa é indissociável da memória cultural que cada espectador possui — o mesmo filme pode assim ser visto de maneira diferente por pessoas diferentes, uma vez que o significado do filme se constrói subjectivamente na consciência do espectador. 158
Se é certo que cada um de nós pensa o cinema, também é certo que o cinema pensa por nós. Munsterberg começa por distinguir entre atenção voluntária e atenção involuntária, pois em seu entender a atenção é, de todas as funções internas que criam o significado do mundo exterior, a mais importante. A atenção voluntária, alimentada pelos nossos interesses, objectivos e emoções, controla todas as actividades humanas de um modo selectivo, quase subliminar. A atenção involuntária, pelo contrário, está sujeita às influências provenientes do exterior: tudo o que é barulhento, brilhante, rápido e insólito atrai a atenção involuntária. A distinta argumentação de Munsterberg vai no sentido de mostrar que o dispositivo básico do cinema, da planificação à montagem, consiste em transformar a nossa quota de atenção involuntária em voluntária, passando assim de uma percepção meramente sensorial do mundo a uma interpretação pessoal de carácter emotivo. Os enquadramentos, as mudanças de escala das imagens, nomeadamente a intromissão do grande plano, os ritmos de montagem, as intensidades luminosas, a própria condição social de isolamento do espectador na sala às escuras, concentrado no ecrã, contribuem para fazer do cinema um poderoso meio narrativo e dramático: «é como se o mundo exterior fosse sendo urdido dentro da nossa mente e, em vez de respeitar as leis que lhe são próprias, obedecesse apenas aos actos da nossa atenção». É a memória das experiências e dos acontecimentos anteriores, tanto ocorridos no cinema como no mundo, que permite ao espectador dar um sentido a cada cena e integrá-la no contexto global da narrativa que está a ver. Ao relacionar os dados da memória com a articulação das novas imagens que compõem o filme, a montagem mais não faz do que seguir as leis psicológicas da associação de ideias. No nosso espírito, o passado e o futuro da narrativa entrelaçam-se com o presente criando expectativas que dão asas à imaginação. Mais importante, as imagens do ecrã não só estimulam no espectador a energia psíquica necessária ao contacto entre a memória e a imaginação como reflectem o sentir e o pensamento dos próprios personagens, obrigando o espectador a identificar-se com eles. O espectador projecta as suas aspirações e desejos nos personagens e, simultaneamente, identifica-se com os motivos e os valores incorporados pelo herói, num sistema dinâmico de participação afectiva. Não obstante, Munsterberg tem o cuidado de distinguir entre aquilo que são os 159
sentimentos dos personagens da ficção e as emoções que as cenas do filme suscitam dentro de nós. A força dramática do cinema consiste em nos fazer participar da experiência de um mundo que não é o nosso, que só existe como projecção numa tela branca, mas que consegue, ao mesmo tempo, desencadear sensações e emoções que sentimos como reais. As imagens fílmicas tomam-se imagens mentais e, como tal, têm uma existência própria na consciência do espectador. Compreende-se que as normas técnicas da indústria sejam tão obstinadas na persecução da ilusão de realidade, sem a qual a eficácia do modelo estaria em causa. A continuidade formal é conseguida com a manipulação exímia da atenção do espectador e reforçada pelo facto da sucessão das imagens obedecer a uma teia de motivações psicológicas e de efeitos de causalidade. A figura de estilo mais frequente da estratégia da planificação analítica, comum aos grandes realizadores como aos meros funcionários, é o campo contracampo baseado no raccord de olhar. Embora as variações do esquema sejam múltiplas, tomemos como exemplo o simples diálogo entre dois personagens filmados em grande plano. Ora fala um, ora fala o outro: sempre que um fala, o plano mostra-o a falar e a olhar para fora de campo, onde se encontra o outro à escuta. Quando fala o outro, o plano mostra-o a olhar para fora de campo, onde se encontra o primeiro interlocutor, e assim sucessivamente. À força da repetição e da economia de meios, o campo contracampo ligado pelo raccord de olhar tornase um elemento básico da sutura entre os planos, naturalizado pela relação do diálogo e dos olhares que marcam a alternância da subjectividade dos intervenientes. No contexto do jogo de subjectividades que se estabelece no seio do triângulo composto pelos personagens e pela câmara de filmar, a presença do espectador é inscrita de modo simbólico no interior do espaço diegético do diálogo. É a recorrência e a lógica desta figura, entre outras, que estimula a concentração do espectador e permite o apagamento da instância narradora, favorecendo a ideia de um pretenso grau zero da escrita cinematográfica. A encenação de um filme como Casablanca (1943), típica dos anos quarenta, recorre a cerca de 50 por cento de mudanças de plano fundadas na observância do eixo visual do campo contracampo. Um filme de meados dos anos cinquenta, On the Waterfront ( 1954), oferece nada menos do que 63 por cento de mudanças de plano baseadas no mesmo sistema. 160
A maior parte dos realizadores ligados à produção industrial adopta de bom grado o partido do grau zero da escrita, na medida em que considera o trabalho técnico da encenação cinematográfica como um meio para contar uma história que já existe virtualmente no argumento e que cativou o interesse comercial das estrelas e dos investidores. A linguagem específica do cinema parece assim reduzida à natureza funcional e transitiva de instrumento de comunicação. Outros cineastas, que no contexto das normas da indústria podíamos apelidar de problemáticos, experimentam e reflectem a proliferação das formas, não se coibindo de interrogar o cinema e de agir sobre a sua linguagem, de modo a produzir efeitos de ficção que não são redutíveis ao articulado do argumento. A distinção entre cineastas funcionais e cineastas problemáticos não implica aqui qualquer juízo de valor estético a priori, pois tanto encontramos excelentes cineastas funcionais, de que Michael Curtiz é um exemplo, como descobrimos cineastas problemáticos nitidamente desinteressantes. A norma narrativa industrial pressupõe que o prazer fílmico radica na evidência da história e no fluxo das imagens, como se as personagens tivessem vida própria e os factos acontecessem acidentalmente, sem mediação do discurso estético, como se o filme não existisse senão perante o olhar do espectador. Outro procedimento que se tornou quase um dogma no cinema clássico americano, sempre com a obsessão de se apagarem as marcas de enunciação do discurso fílmico, consiste em cortar os planos de maneira a poder fazer o raccord em movimento (match-on-action). Edward Dmytryk, grande defensor deste recurso, explica que o movimento dos actores em cena, normalmente ligado à própria acção dramática, é a melhor maneira de chamar a atenção do espectador, pelo que nessa altura o corte e a colagem dos planos não serão sentidos, por darem a perfeita sensação de continuidade e por estarem justificados pela necessidade de mudança da tomada de vistas. A analogia do movimento entre os dois planos ligados ilude por completo as eventuais diferenças resultantes do corte. Um historiador como Jean Mitry, muito atento à evolução das formas cinematográficas, considera que, por volta de 1925, o raccord em movimento se generaliza no cinema americano, consolidando-se definitivamente com o triunfo do sonoro, uma vez que a ausência de intertítulos vem exigir o aperfeiçoamento da fluência narrativa das imagens. 161
O som veio, de facto, contribuir para aumentar os índices de realidade da representação cinematográfica, um dos quais consiste em reforçar a continuidade espácio-temporal das imagens fragmentadas. Num conjunto de ensaios notáveis, publicados originalmente entre 1923 e 1949, Béla Balazs assinalou o carácter indivisível do som, por oposição à natureza das imagens. Balazs retirou duas premissas que a prática dos primeiros anos do cinema sonoro não veio desmentir. Primeira: a dimensão temporal indivisível do som reforça a percepção de continuidade das imagens que se encontram ligadas pelos mesmos objectos sonoros — é o que, na gíria profissional, se chama a ponte de som, que faz passar os sons pertencentes a um plano de imagem para o plano seguinte. Segunda: o carácter espacial da escuta sonora dinamiza o espaço fora de campo, na medida em que não é possível, nem desejável, circunscrever as fontes dos objectos sonoros ao espaço visual representado no enquadramento. O contágio permanente, fomentado pelo som, entre o espaço em campo e o fora de campo, entre o que é visto e o que é escutado, favorece a reversibilidade dos espaços e a emergência de elementos de representação que são literalmente invisíveis e indizíveis, alimentando o filme sonoro com uma energia dramática inesgotável. Em vez de dificultar, deturpar ou anular a originalidade do filme, como se ouviu da boca de muitos críticos e cineastas ilustres nos anos trinta, o som enriquece de uma maneira extraordinária as potencialidades formais da linguagem cinematográfica. A escuta do espaço sonoro para além do campo visual abre as fronteiras da imaginação, criando um envolvimento acústico que transforma e intensifica o sentido das imagens, que sugere expectativas e gera surpresas. Se os sons síncronos, de certo modo evidentes na imagem, reforçam a dimensão realista da representação devido à sua natureza redundante, os sons nãosíncronos, não-redundantes, não identificados ou remisturados na banda sonora podem tornar-se um factor de tensão narrativa bastante eficaz. O som não veio só, como diz Balazs, dar um novo rosto às imagens, veio sobretudo reinventar a experiência sensorial da vida em termos estéticos — «o silêncio é um dos efeitos dramáticos mais originais do cinema sonoro». O silêncio pode impulsionar efeitos dramáticos comoventes mas raramente é utilizado pelo cinema industrial, onde o hábito é a avalancha de som e fúria. O propósito mais utilitário dos efeitos sonoros 162
de pós-produção (foleys), colocados em imagens de acção ou na transição entre os planos, é, uma vez mais, reforçar a credibilidade dos movimentos e a suavidade dos cortes. O outro objectivo consiste em emprestar corpo e consistência material a imagens de fantasia sem espessura real. É sem dúvida esta faculdade particular dos sons que justifica a complexidade cada vez maior das bandas sonoras dos filmes contemporâneos, à medida que as imagens, saturadas de efeitos de simulação sem referente, se afastam do nosso mundo. Além destes requisitos instrumentais, aos quais haveria que acrescentar a rasura das eventuais deficiências da captação do som directo, a música de fundo opera como um tensor emocional sempre disponível para enfatizar determinadas situações. Porque não pertence ao universo da representação, a música de fundo com dificuldade é neutra ou apenas decorativa, uma vez que o seu princípio de dispersão ao longo do filme a toma relevante sempre que intervém. A música é um elemento indispensável à harmonia da montagem analítica porque, não obstante a sua natureza autónoma, vem coroar todo um processo de sugestão e de integração dos diversos materiais fílmicos, tanto ao nível da ficção, conduzindo os momentos fortes da narrativa, sublinhando a caracterização dos personagens, idealizando a realidade representada, como ao nível da mobilização emocional, estimulando a atenção, a imaginação e a memória do espectador através das suas múltiplas possibilidades temáticas, rítmicas e orquestrais. Porém, depois do filme pronto, todas as parcelas de intervenção técnica e artística parecem fundir-se na evidência da narrativa, de tal maneira que muitos cineastas do período clássico consideram que a melhor música de cinema é aquela que não se faz sentir, ou seja, a que não desperta no espectador a consciência da escuta. O êxito comercial deste modelo, inquestionável na era dos estúdios, dominante após a comemorações dos cem anos da existência do cinema, impôs-se como referência obrigatória e continua a ser o termo de comparação incontomável a partir do qual o grande público e a crítica julgam os outros mundos do cinema.
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A luz e a pose de Marlene ( 1932), Sternberg.
19 O TOQUE DO OLHAR A primeira cerimónia da entrega dos Óscares, realizada no Hotel Roosevelt e presidida por William De Mille, foi uma noite memorável para B. P. Schulberg. Os filmes elegíveis tinham sido estreados entre 1 de Agosto de 1927 e 31 de Julho de 1928. A Paramount conquistou os galardões mais disputados com três obras em que B. P. tinha apostado pessoalmente: Wings, realizado por William Wellman e escrito por John Monk Saunders, recebeu o Óscar para o melhor filme; Emil Jannings foi contemplado com o prémio do melhor actor pelo seu papel na película The Last Command, realizada por Josef von Sternberg a partir de um argumento onde aparecem os nomes de John Goodrich, Lajos Biro, Ernst Lubitsch e Herman Mankiewicz, embora o realizador reivindique a autoria da história; Ben Hecht arrecadou o prémio do melhor argumento original para o filme Underworld, também realizado por Josef von Sternberg. B. P. Schulberg tinha convidado Sternberg para a Paramount depois da carreira do realizador ter chegado a um impasse, apesar do prestígio que envolveu o seu nome desde o primeiro filme. Sternberg nasceu de uma família pobre, em Viena de Áustria, em Maio de 1894. 165
Radicou-se nos Estados Unidos aos 14 anos, tendo começado a trabalhar em Nova Iorque num armazém de roupas e rendas. O contacto com os tecidos, que tinha de separar, classificar e arrumar, fez dele um especialista de texturas, avaliadas pela sensualidade do tacto e o conhecimento das formas. Sternberg lembrar-se-á mais tarde dos corredores estreitos, mal iluminados, que tinha de atravessar para chegar ao armazém, e dos rendilhados em forma de labirinto que atraíam o toque do olhar conservando o enigma da sua estranha configuração. Do que Stemberg não se lembra é das emoções que então sentia e de que os seus filmes com Marlene Dietrich, anos mais tarde, serão porventura o eco distorcido. A aproximação ao cinema é puramente casual — arranja emprego como revisor de filmes e projeccionista na World Film Corporation, de New Jersey. Depois trabalha como assistente de Émile Coutard, actor e realizador francês que fizera fortuna na América vendendo meia dúzia de filmes com Sarah Bemhardt. Coutard é uma das poucas pessoas que Stemberg evoca com gratidão na sua verrinosa autobiografia ( Fun in a Chinese Laundry, 1965), confessando, com mal disfarçada modéstia, dever-lhe praticamente tudo o que aprendeu sobre o cinema. À excepção de Chaplin, cuja obra respeita com moderação, e de Stroheim, cuja vitalidade criadora sempre o impressionou, Sternberg não mostra particular entusiasmo pelo cinema americano do seu tempo. Quando chega a Hollywood, em 1924, limita-se a cumprir as tarefas de assistente de realização em filmes que considera medíocres e que são apenas o ganha-pão do autodidacta que, no silêncio das bibliotecas e dos museus, acha que grande parte dos problemas visuais colocados pelo cinema já foram resolvidos pela pintura. Para Stemberg, o essencial do cinema, enquanto meio de expressão artística, não passava tanto pela reconversão dos conteúdos do teatro e da literatura às necessidades da narrativa cinematográfica como pela transfiguração das artes plásticas através das imagens em movimento. A questão com a qual Sternberg se irá constantemente debater, enquanto realizador, reside precisamente em saber como resolver a contradição entre os momentos de pose dos actores, propícios à composição plástica do plano, à estilização do espaço, ao controlo da luz, aos valores da mera contemplação estética, e a natureza ontológica do movimento e do tempo na tomada de vistas cuja tendência natural é reforçar a componente realista da reprodução fotográfica. 166
Sternberg depressa se deu conta do equívoco que era trabalhar como assistente de realização para aprender a fazer cinema. Constatou que o segredo do cinema não está no aparato mecânico da técnica, nem no modo temperamental de controlar o caos regulado que é uma filmagem. O segredo, quando existe, está dentro da cabeça do realizador, nas razões e nos impulsos que o levam a assumir um determinado ponto de vista. Na prática corrente de Hollywood, o que Stemberg verificou, na sua modéstia de assistente, é que havia tanta gente a dar ordens, a rescrever, a refilmar e a remontar os filmes iniciados por outros, que provavelmente poucos saberiam ao certo o que andavam a fazer. Prometeu a si próprio que, quando fosse realizador, tudo faria para evitar que tal acontecesse. A oportunidade surgiu quando um actor inglês que tentava afirmar-se na América, George K. Arthur, se ofereceu para financiar o primeiro filme de Stemberg desde que este o aceitasse como protagonista. The Salvation Hunters (1925) foi produzido com um orçamento irrisório, quase todo rodado em décors autênticos, sem repetições, com um mínimo de película e de equipamento técnico. A influência do naturalismo de Stroheim é patente nos planos de exteriores, enquadrados e montados de modo a articularem o tom documental das imagens com a intencionalidade simbólica da situação dos personagens. O projecto, que o próprio Stemberg designa de poema visual, é ambicioso: trata-se, como frisa um dos intertítulos, de filmar o pensamento dos protagonistas e de indiciar, pelos meios específicos do discurso cinematográfico, a influência do meio ambiente e da mentalidade no comportamento humano. As habilidades empresariais do actor-produtor, primeiro obtendo garantias financeiras para a rodagem, depois conseguindo interessar Chaplin e Fairbanks na distribuição do filme através da United Artists, contribuíram para fazer de Stemberg o novo prodígio de Hollywood. A admiração da comunidade cinematográfica era genuína: em pouco tempo, Stemberg recebeu convites para dirigir Mary Píckford, para ingressar na MGM, para realizar um filme produzido pessoalmente por Chaplin, enfim, para aderir à Paramount. Mas os resultados nem sempre corresponderam às expectativas. Pickford assustou-se com a ousadia experimental do argumento original que Sternberg lhe apresentou, cuja protagonista era uma rapariga cega, e as boas intenções ficaram na gaveta. O acordo de oito 167
filmes na MGM foi de curta duração — Thalberg não gostou da sobranceria do cineasta e mandou refilmar e remontar os dois filmes dirigidos por Sternberg, The Exquisite Sinner (1925) e The Masked Bride (1925), acabando por rescindir o contrato com o realizador por motivos de indisciplina laboral semelhantes aos que invocara para despedir Stroheim. O desprezo de Sternberg pelas práticas ditatoriais da MGM e pela mediocridade do argumento que lhe tinha sido imposto era tal que, a meio da rodagem de The Masked Bride, em vez de filmar os actores pôs-se a filmar o tecto do estúdio, provocando a perplexidade da equipa e a fúria de Thalberg. À saída, Sternberg atravessou os portões da produtora bem acompanhado: nesse dia foram despedidos Frank Capra, Frank Borzage e William Wellman, que seriam mais tarde, todos eles, premiados com Óscares da Academia ao serviço de outros estúdios. O regime contratual, disciplinar e laboral instaurado por Irving Thalberg na Metro-Goldwyn-Mayer a partir de 1924 veio consolidar uma ordem fabril no sistema dos estúdios de que Stroheim e Stemberg foram as primeiras vítimas exemplares. Apostado em garantir os lucros da empresa, aumentando o número de filmes anuais, e em subordinar a política de produção à popularidade das estrelas e aos gostos da opinião pública, Thalberg impôs mapas de filmagem onde cada cena era planificada e decomposta em horas de trabalho, que os directores de produção tinham de fazer respeitar, criando assim pretextos de atrito constante com os realizadores mais lentos, mais criativos ou mais inconformistas. Os orçamentos dos filmes passaram a ter inscritas verbas percentuais cada vez mais avultadas para a fase das retakes, ou seja, para a refilmagem integral das cenas que desagradavam a Thalberg, ou que tinham recolhido pareceres desfavoráveis nas previews, e que eram novamente filmadas por outro realizador, segundo as indicações expressas do produtor. Thalberg considerava o filme um produto impessoal, cujas identidade, propriedade e responsabilidade pertenciam em exclusivo à produtora. À excepção dos actores, cujo vedetismo estimulava por razões mercantis, Thalberg desencorajava qualquer manifestação de autoria individual entre os seus colaboradores, por pensar que os filmes são fruto de um trabalho de equipa que deve servir a imagem de marca do estúdio. Ele próprio, para dar o exemplo, nunca colocou o seu nome nas obras que produziu. 168
A colaboração de Josef von Stemberg com Charles Chaplin não foi mais frutuosa. The Sea Gull (1926), com Edna Purviance, a actriz favorita de Chaplin, desapareceu de circulação por ordem do produtor, tendo-se tornado, desde então, um dos filmes lendários de Hollywood. Reza a lenda que o filme seria tão bom que Chaplin o teria destruído por pura inveja. Na sequência de tantos percalços é no mínimo estranho que Stemberg tenha quebrado uma promessa íntima para iniciar a sua colaboração com a Paramount fazendo a colegas de profissão aquilo que sempre criticara aos outros: refilma em três noites quase metade de Children of Divorce (1927), que traz no genérico o nome de Frank Lloyd como realizador, e remonta The Wedding March (1927 ) , ocasionando assim a ruptura das relações de amizade com Stroheim, cuja obra fora reconhecidamente a sua primeira fonte de inspiração. Talvez na altura Stemberg ainda não tivesse reflectido acerca das implicações éticas que mais tarde o levariam a escrever uma página notória da sua autobiografia: «A história de um estúdio de cinema é como a história da guilhotina: a cada cabeça que rola segue-se a cabeça daquele que ordenou a decapitação anterior» . Depois do êxito de Underworld (1927), B. P. Schulberg não hesitou em propor a Stemberg a direcção de um filme com o alemão Emil Jannings, na época considerado um dos melhores e mais difíceis actores do mundo. Jannings notabilizara-se na América devido à apresentação de várias películas alemãs de grande qualidade, entre as quais se contavam três obras-primas de Mumau: Der letzte Mann (O Último dos Homens, 1924), Tartuffe (1925) e Faust (1926). Jannings estava agora em Hollywood, com um contrato fabuloso com a Paramount, vivendo como um senhor feudal à espera da consagração internacional. O argumento de The Last Command (1928), escrito à medida dos usuais papéis em tom de humilhação e tragédia em que Jannings se especializara, constituiu o primeiro ajuste de contas de Stemberg com a indústria. Sumariamente, conta como um General do Exército Imperial Russo (Jannings), derrotado e fugido da Revolução Soviética, em confrangedora miséria económica e moral, acaba os dias a trabalhar como figurante de cinema em Hollywood sob as ordens de um exrevolucionário agora convertido em ilustre realizador. Este reconhece o ex-oficial do czar, de quem fora prisioneiro durante a guerra civil, e pede-lhe para representar a figura patética de um general que morre em combate comandando um batalhão de figurantes. O retrato 169
de hipocrisia do mundo do espectáculo, apesar da ambiguidade e da feroz ironia permitida pelo tema, não é lisonjeiro para a comunidade cinematográfica que, depois de tentar impedir a estreia, acabou por premiar o filme na figura do actor. Entre 1928 e 1929, nos dois conturbados anos da reconversão técnica e industrial do cinema mudo ao sonoro, Sternberg dirige quatro filmes na Paramount, todos eles escritos por Jules Furthman e cenografados por Hans Dreier, dois nomes cruciais na definição da imagem de marca do estúdio na época. B. P. Schulberg, cada vez mais ocupado com a expansão comercial da Paramount na Europa, que o obriga a prolongadas viagens, convida para trabalhar consigo um jovem produtor recém-despedido por Thalberg da MGM: David O. Selznick. Filho de Lewis Selznick, um exibidor falido e antigo rival de Louis Mayer, David aprendeu com o pai o negócio da produção e da publicidade de filmes em Nova Iorque. Em 1926 instala-se na Califórnia e, durante um ano e meio, trabalha na MGM como supervisor do departamento de argumentos, tornando-se depois produtor executivo. A falta de autonomia na condução dos seus projectos no seio da MGM leva-o ao confronto com Thalberg, que acaba por despedi-lo, apesar das relações cordiais que mantêm. A disputa entre Thalberg e Selznick anuncia uma das mais importantes transformações do modo de produção em Hollywood: a passagem do sistema de produtor central, protagonizado por Thalberg entre 1924 e 1933 na MGM, para o sistema das unidades de produção, defendido por Selznick, no qual cada produtor executivo é directamente responsável por um número restrito de filmes. Selznick previu, com bastante antecedência, que a saturação do mercado de produtos estandardizados ia favorecer o acolhimento de filmes mais individualizados, tanto ao nível da produção como ao nível da promoção publicitária. Na Paramount, David Selznick começa também por trabalhar na direcção do departamento de argumentos, estágio básico onde se aprende a controlar o processo de execução do cinema de ficção, passando depois a gerir directamente a produção dos filmes do estúdio. Nas ausências de B. P. Schulberg é Selznick quem durante o advento e a consolidação do sonoro, entre Maio de 1928 e Junho de 1931, controla as tarefas correntes do estúdio da Paramount em Hollywood e toma as decisões referentes às filmagens. Apesar da idade — tem 25 anos quando entra para a Paramount — Selznick não hesita em 170
interferir pessoalmente nos projectos em curso sempre que o esquema de trabalho se afasta das normas estabelecidas pela direcção do estúdio. Um dos realizadores cujo método sempre desconcertou Selznick foi precisamente Sternberg. B. P. Schulberg tinha dado carta branca a Selznick, excepto no tocante a Sternberg, que considerava um génio a quem eram permitidas quase todas as extravagâncias, enquanto os seus filmes dessem dinheiro. As discussões entre Selznick e Stemberg eram infrutíferas — a teimosia do realizador acabava sempre por levar a melhor. Durante as filmagens, Selznick observava as modificações de última hora no guião, a insolência de Sternberg a dirigir os actores, a frieza da relação com os técnicos, a indiferença perante as sugestões do director de fotografia ou dos assistentes. Ao fim do dia, quando via o material filmado, ao lado do realizador, na sala de projecções privada, Selznick não podia deixar de ficar surpreendido com os resultados. Como é que aquele homem que toda a gente tinha dificuldade em suportar, que insistia em filmar situações, personagens e décors completamente absurdos e ridículos, conseguia fazer, com meia dúzia de adereços e trapos espalhados pelo décor, e com um jogo de luzes e sombras de que só ele adivinhava os efeitos, como é que aquele homem, interrogava-se Selznick, desencantava algumas das mais deslumbrantes imagens de cinema que tinha visto? Numa relação pessoal de ambivalência, frequente no mundo do espectáculo, Jannings e Sternberg estimaram-se e odiaram-se mutuamente durante as filmagens de The Last Command. Quando o actor, de novo na Alemanha, agora com o Óscar no currículo, se viu perante a responsabilidade de interpretar o seu primeiro filme sonoro, convidou Sternberg a ir a Berlim dirigi-lo. A ida de Stemberg à Alemanha convinha perfeitamente à Paramount que por essa altura tentava formalizar (em concorrência com a MGM) acordos de produção e distribuição com a UFA, o mais importante estúdio da Alemanha, dirigido com mão de mestre por Erich Pommer. Produtor dos melhores filmes de Murnau e de Fritz Lang, dinamizador do período expressionista do cinema alemão do pós-guerra, Erich Pommer tinha estado recentemente em Hollywood onde pudera apreciar o talento de Sternberg. Josef von Sternberg chegou à Alemanha no Outono de 1929. A efervescência cultural e política da cidade estava no auge. Nos teatros havia espectáculos encenados por Brecht, Piscator e Reinhardt, 171
nas galerias viam-se exposições de Grosz e Dix, nas salas de cinema passavam os últimos filmes de Lang e Pabst. A ascensão do partido nazi era visível dia após dia, dentro e fora dos meios políticos, enquanto a inflação e o desemprego escoavam nas ruas o desespero e a promiscuidade. De entre as propostas de filmes apresentadas por Pommer e Jannings, Stemberg optou pela adaptação (na qual colaboraram Robert Liebmann e Carl Zuckmayer) de um livro de Heinrich Mann, intitulado Professor Unrat, que descreve a decadência de um ríspido professor de liceu que se apaixona e casa com uma cantora de cabaret, deixando-se humilhar até à loucura. A escolha do elenco foi relativamente consensual, excepto no tocante à protagonista feminina, uma vez que o realizador recusou as dezenas de actrizes que lhe foram sugeridas para o papel. Stemberg viu pela primeira vez Marlene Dietrich num palco de Berlim, onde desempenhava um modesto papel numa peça de Georg Kaiser. Convidou-a para fazer testes no estúdio da UFA e, contra a opinião dos seus colaboradores e da própria Marlene, propôs-lhe o papel principal de O Anjo Azul. O resto é história e é lenda. Sternberg nunca teve uma grande opinião acerca dos actores, que achava serem pessoas de talento (às vezes) mas de espírito tacanho, particularmente frágeis e dependentes — do texto, do director — e insaciáveis — de dinheiro, de glória, de afecto. Mas Sternberg sabia também que os actores, transformados em estrelas, eram o carburante indispensável ao êxito comercial dos filmes e ao fascínio visual do cinema que agora se propunha fazer. O que Sternberg procurava, e encontrou em Marlene, foi uma actriz sensual, extremamente disciplinada e voluntariosa, capaz de se moldar à vontade do realizador, a ponto de ser ela a primeira a reconhecer que a sua imagem cinematográfica era uma pura criação do cineasta. Não era por acaso que Sternberg gostava tanto de evocar a metáfora do escultor para esclarecer o seu entendimento acerca da direcção de actores. O escultor trabalha o barro como o realizador trabalha os actores: um serve-se das mãos e do cinzel, o outro utiliza a luz e a câmara. Em ambos os casos há uma matéria resistente que se transfigura até se conformar com a visão do artista. No âmbito desta concepção excessivamente romântica da prática estética, Sternberg reconhecia aos actores superlativos um dom raro: o de se entregarem de corpo e alma à direcção do realizador e à 172
aceitação dos personagens que interpretam. E de, nessa entrega sublime e irresponsável, revelarem a multiplicidade de facetas recalcadas da sua própria humanidade. Os grandes actores de cinema vão sempre além da simples encarnação dos personagens descritos no argumento porque os animam com uma energia própria, complexa e imprevisível, transbordante de imaginação e de vitalidade, que nenhuma dramaturgia consegue descrever. O actor de génio dá sempre mais do que aquilo que o texto tem para oferecer. Foi esse talento que Sternberg descobriu e apurou em Marlene Dietrich. A preparação e as filmagens de O Anjo Azul foram um período de actividade febril para Stemberg. A paixão pelo cinema e a paixão por Marlene confundiram-se. O estúdio foi visitado por intelectuais do teatro e do cinema, entre os quais Max Reinhardt, que Sternberg já conhecia e admirava, e Sergei Eisenstein, que se encontrava de passagem por Berlim, onde o seu filme O Couraçado Potemkin tinha sido aclamado pela crítica como o melhor filme do mundo. Apesar da diferença de temperamentos e de ideias, Stemberg e Eisenstein travaram amizade, debateram a prática do cinema nos respectivos países, apreciando os filmes um do outro. A insistência dos telegramas de Sternberg convenceu B. P. Schulberg a ir a Berlim ver a nova actriz que o realizador garantia poder transformar na maior estrela da América. A viagem não foi em vão. Schulberg não só formalizou com Dietrich um contrato de dois filmes, com uma opção de exclusividade para sete anos na Paramount, como estabeleceu o primeiro contacto com Eisenstein, cuja ambição era ir realizar um filme a Hollywood. As filmagens de O Anjo Azul começaram a 4 de Novembro de 1929 e terminaram a 22 de Janeiro de 1930. Depois da película montada, Sternberg partiu para os Estados Unidos levando consigo um livro oferecido por Marlene — a peça Amy Jolly, de Benno Vigny — que iria estar na origem do argumento de Morocco, o primeiro filme americano da vedeta. Heinrich Mann ficou desiludido com a adaptação do seu romance e com o exibicionismo das pernas de Dietrich, que desvaneceram aos olhos do público a pompa do Professor Unrat e do actor que lhe emprestou vida. Mann deve ter sido o primeiro a aperceber-se de que O Anjo Azul não falava do seu passado, como o livro, mas da infância de Sternberg. O professor autoritário que acaba humilhado, a despolitização do contexto social, as rendas que enredam 173
os personagens numa teia de erotismo transparente, as poses estudadas da actriz, o som saturado de sugestões sensoriais, tudo volta a surgir nos filmes e na autobiografia do cineasta, como traços indeléveis da mesma personalidade e das suas obsessões. Na estreia alemã de O Anjo Azul, Marlene Dietrich apareceu deslumbrante no palco do Gloria Palast, agradecendo os aplausos do público, cujo entusiasmo era genuíno. Nessa mesma noite partiu para os Estados Unidos onde lhe estariam reservados mais seis filmes com Sternberg. Tinha hesitado muito em tomar uma decisão que sabia ir transformar por completo a sua vida pessoal. Mas acreditava em Sternberg e nas palavras que um dia o ouvira pronunciar com profunda convicção: a arte é aquilo que sobrevive quando tudo o resto desapareceu. Talvez tenha sido essa confiança absoluta no olhar do realizador que contribuiu para imortalizar Marlene Dietrich.
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20 AS MÁQUINAS DO FUTURO Em Outubro de 1924, depois do êxito da estreia alemã de Die Nibelungen, Fritz Lang e Erich Pommer visitam Nova Iorque e Hollywood com o objectivo de estudarem a organização industrial da produção cinematográfica americana. No regresso, Erich Pommer, então administrador da UFA, anuncia a realização da película até então mais dispendiosa produzida na Europa, com a participação financeira de duas companhias americanas, a Paramount e a MetroGoldwyn-Mayer. As filmagens de Metropolis decorreram entre Março de 1925 e Outubro de 1926. Com quase dois milhões de marcos gastos só em despesas de salários para as equipas técnica e artística, a UFA encontrava-se à beira da falência em 10 de Janeiro de 1927, data da estreia do filme em Berlim. Apesar das expectativas e dos elogios pontuais dedicados à ousadia técnica da produção, a maior parte da imprensa lamentou o tom excessivamente sentimental do filme, cujo êxito popular não foi suficiente para salvar a UFA do desastre económico. Em Abril de 1927, a produtora alemã caía nas mãos do milionário Alfred Hugenberg, proprietário de jornais, agências noticiosas e uma cadeia de cento e trinta e cinco salas de cinema. 175
Hugenberg era um dos principais apoiantes e financiadores do partido nazi. Como muitos outros intelectuais europeus, Fritz Lang ficara impressionado com a organização do trabalho e os arranha-céus americanos. Na Alemanha e na Rússia a adopção do maquinismo industrial coincidia com o elogio do americanismo que, longe de se circunscrever às maravilhas de Hollywood, abarcava a invasão dos novos produtos de consumo fabricados em massa segundo os princípios de gestão de Frederick Taylor e de Henry Ford. A precisão, a eficiência e o pragmatismo do aparelho produtivo americano, antes da crise económica de 1929, deslumbraram o eixo Berlim-Moscovo do movimento modernista. Através da decomposição dos gestos dos trabalhadores e da sua repetição ergonómica, introduzidas nas cadeias de produção fabril, o taylorismo contribuiu para aumentar os níveis de produtividade, transformando os operários em meros componentes humanos das máquinas. Com o êxito da produção em massa dos automóveis do célebre modelo T, estandardizados em todos os seus detalhes, o fordismo veio impor um modelo autoritário de racionalidade capitalista que muitos pretendiam apontar também como exemplo de organização social. É na confluência desta problemática cultural que Fritz Lang e Thea von Harbou concebem a cidade industrial do futuro. A acção de Metropolis (1927) passa-se no ano 2000, meta simbólica de um tempo cujos vestígios Lang intuíra no gigantismo, na vertigem urbana e nas fábricas do novo continente. Freder (Gustav Frohlich) — filho de Fredersen (Alfred Abel), o senhor de Metropolis — revolta-se contra o sistema que reduz os trabalhadores a meros escravos das máquinas, fechados no subsolo da cidade e vigiados por um dispositivo panóptico de televisão. A revolta dos operários é refreada por Maria (Brigitte Helm), uma jovem pregadora que anuncia para breve a chegada do salvador. Informado pelo contramestre do descontentamento das massas, o senhor de Metropolis pede ao cientista Rotwang (Rudolf Klein-Rogge), seu antigo rival, para construir um robot, duplo perfeito de Maria, a fim de desmoralizar e confundir os trabalhadores. Aproveitando para se vingar de Fredersen, que outrora lhe roubara a noiva, Rotwang programa a Maria-robot para liderar a revolta dos operários, a fim de destruir o império do senhor de Metropolis. O plano do cientista surte efeito, a falsa Maria provoca o caos nos subterrâneos onde vivem os operários, causando a destrui176
ção das máquinas e uma inundação que arruína as casas. Freder e a verdadeira Maria, entretanto apaixonados, conseguem salvar as crianças e perseguir Rotwang, que morre ao cair do telhado da catedral. Ao ver o seu filho em perigo, o senhor de Metropolis hesita, aceitando finalmente a reconciliação com os trabalhadores: o capital e o trabalho dão as mãos. Freder surge como o típico herói langiano, mediador entre dois mundos antagónicos regidos pela mesma lei. Movido por impulsos emocionais à flor da pele e por um sentimento de justiça sempre em fricção com as estruturas sociais vigentes, o herói positivo dos filmes de Lang corre o risco da solidão, da traição ou da morte, mas nunca o da derrota. Se Die Nibelungen fora a epopeia do passado, Metropolis é uma epopeia do futuro. Em ambos os filmes está patente a obsessão do colossal, a hierarquia dos espaços arquitectónicos e a função ornamental das massas de figurantes, agora configurados como agentes da dinâmica dos cenários e da estilização dos planos fílmicos. As primeiras sequências mostram-nos grupos geométricos de trabalhadores, vestidos de uniforme, a marchar sincopadamente em direcção aos elevadores que os conduzem ao ventre profundo da terra, onde se encontram as fábricas concentracionárias. A dissolução dos indivíduos anónimos na massa compacta, literalmente engolida pelas galerias subterrâneas que dão acesso ao reino das máquinas, vinca bem o que será um dos temas cruciais do cinema de ficção científica: a cidade industrial fechada sobre si própria, devoradora de homens, em nome do progresso tecnológico, da performatividade do corpo, da produção em série e do bem-estar daqueles que se mantêm à superfície, nos postos de decisão. Quando Freder encontra pela primeira vez Maria, rodeada de crianças famélicas, como ela filhas de trabalhadores, sente-se solidário do infortúnio da condição operária e desce à sala das máquinas onde assiste à lei impiedosa do trabalho em cadeia, que dura, penosamente, horas sem fim. O controlo do emprego do tempo é uma constante nas ruas e nas fábricas de Metropolis. Há, praticamente em todos os décors, um relógio circular que rima com os panéis de regulação das máquinas utilizadas pelos operários. Os ciclos de repetição das tarefas são aproveitados para explicitar a estreita relação existente entre a engrenagem técnica, a disciplina laboral e a codificação instrumental do corpo humano. 177
A separação entre o superior e o inferior, entre o exterior e o interior, entre o cérebro e os músculos, entre o claro e o escuro, corresponde, na toponímia do filme, a um padrão de distribuição cenográfica típica do período expressionista, cujas reverberações ideológicas remontam por certo ao conceito nietzschiano da coabitação civilizacional entre duas raças desiguais: a dos senhores, cujas virtudes derivam de um excesso de força criadora e da vontade de dominação, e a dos servos, sedentários e laboriosos, reduzidos à escravidão pelos primeiros. Qualquer ameaça a este equilíbrio instável, mantido por uma disciplina rígida e por normas hierárquicas inquestionáveis, põe em risco a própria orgânica social, uma vez que a instauração do nivelamento pode provocar a decadência de qualquer sistema ou instituição. Que este princípio dramático esteja na base da maior parte dos filmes de Fritz Lang, embora destituído de simplismos políticos e de perspectivas moralizantes, diz da complexidade da sua obra. Uma das dicotomias nucleares de Metropolis prende-se com as duas figuras interpretadas por Brigitte Helm: a evangélica Maria, portadora de pureza e de esperança religiosa, e a Maria feita robot, que tem por missão desestabilizar os operários e destruir as máquinas sem as quais eles deixarão de ter um lugar. Todavia, o confronto entre a Mariarobot e os operários é mais amplo do que os conflitos da intriga deixam transparecer, na medida em que a simples possibilidade técnica da existência física do robot, enquanto duplo inesgotável da pessoa, faz desmoronar a lógica e a estabilidade do trabalho humano. O robot é uma simbiose aparentemente perfeita entre o trabalhador e a máquina, com a diferença que o robot não come nem pensa, não se cansa nem se revolta, não deseja nem morre, em suma, é um autómato sempre disponível e expectante de um novo exército de mão-deobra. O robot, pensamento inerte e corpo dócil por excelência, surge assim como o símbolo da máquina ideal da sociedade totalitária. A mise-en-scène de Fritz Lang acentua o carácter demoníaco do robot, fruto de um pacto contranatura entre o universo mágico e oculto de Rotwang, irremediavelmente preso ao passado, e o universo da modernidade tecnológica de Fredersen, virado para o futuro. O robot feito à imagem de Maria exterioriza num só fluxo o pior do instinto e o excesso da razão instrumental. A falsa Maria representa no filme uma dupla ameaça à ordem industrial capitalista, uma vez que liberta de modo anárquico a energia sexual que a verdadeira Maria sempre 178
reprimira, ao mesmo tempo que revela os perigos da operacionalidade técnica fora do controlo humano. A Maria-robot é a máquina erótica por excelência, capaz de seduzir e de excitar, de dominar e de enlouquecer, sem que o seu mecanismo seja perturbado pela imponderabilidade dos sentimentos. Só depois de queimado o robot que usurpara a imagem de Maria, será possível reconciliar o corpo e o espírito, o capital e o trabalho, o amor e a fábrica. O carácter futurista da cidade de Metropolis deve ser entendido num duplo sentido: o da antecipação ficcional, enquanto comentário simbólico sobre a sociedade industrial contemporânea, e o do desenho da composição plástica e temática, directamente inspirado na exuberância oratória dos manifestos futuristas cuja influência se fazia sentir na arquitectura e nas práticas culturais modernistas. No seu elogio febril ao homem multiplicado e ao reino da máquina, anunciando o fim do amor romântico, característico da arte e da literatura do passado, Marinetti preconizava a redução do afecto humano e a exclusividade do amor do homem pela máquina, que viria a substituir o amor pela mulher, reservada à tarefa necessária da conservação da espécie: «Encontram-se hoje em dia homens que atravessam a vida quase sem amor, numa bela atmosfera cor de aço. Façamos com que o número destes homens exemplares vá sempre crescendo. Estes seres enérgicos não têm uma doce amante para visitar à noite, mas adoram observar todas as manhãs com amorosa meticulosidade o funcionamento perfeito da sua oficina». Este excerto premonitório, escrito em 1911, anunciava porventura o tempo e o modo das máquinas do futuro, dos operários e dos tecnocratas de Metropolis, que Fritz Lang não exaltou nem pintou com as cores do entusiasmo futurista, mas antes com o pessimismo reformista que Marinetti tanto odiava. A crise económica aberta em 1929 veio aumentar a instabilidade crónica que então se vivia na Alemanha. O desemprego e a miséria empurravam o crime e a agitação política pelas ruas, enquanto os filmes populistas contavam histórias de sucesso e de sorte que procuravam mitigar o desânimo dos inocentes. O êxito relativo do cinema devia-se à necessidade de evasão, ao ócio forçado dos espectadores e à novidade do espectáculo reforçado pelo aparecimento do som. As duas maiores companhias alemãs com patentes de registo sonoro fundiram-se na Tobis-Klangfilm cuja qualidade passou a liderar o mercado europeu. As dificuldades técnicas da captação síncrona do som 179
directo acentuaram-se nos primeiros filmes sonoros com uma sobrecarga de diálogos e de músicas, relegando para segundo plano a dinâmica poética da imagem e da montagem. Não foi o caso de Fritz Lang, cujos filmes sonoros iniciais — M (1931) e Das Testament des Dr. Mabuse ( 1933), ambos produzidos por Seymour Nebenzal para a companhia Nero Films — se contam entre os mais notáveis da época. No Inverno de 1930, quando Fritz Lang anunciou a preparação do seu primeiro filme sonoro, com o título provisório de O Assassino Entre Nós (Morder unter uns), recebeu diversas ameaças dissuadindo-o de abordar semelhante assunto. Alguém suspeitara que o assassino do título era uma referência velada ao clima de intimidação terrorista provocado pela ascensão do movimento nazi, mas Lang e Harbou só pretendiam traçar o quadro emocional de uma sociedade desequilibrada pela ameaça de um assassino de crianças, vagamente baseado no retrato compósito de uma série de crimes relatados pela imprensa. O filme, rodado em seis semanas num estúdio improvisado nos arredores de Berlim, passou a chamar-se apenas M. Um desconhecido, M (Peter Lorre), seduz várias meninas, matando-as. Os homicídios provocam a indignação e o pânico na cidade, fomentando um ambiente de psicose colectiva e uma onda de suspeitas e delações. As investigações da polícia perturbam as actividades dos grupos de criminosos habituais que vivem no submundo e que, desta forma, se sentem também incomodados pelo comportamento do homicida. Face à lentidão dos métodos policiais, os próprios criminosos, organizados e disciplinados, decidem dar caça ao assassino, conseguindo identificá-lo através do reconhecimento da melodia que ele assobia sempre que se prepara para matar. Os criminosos capturam o assassino e submetem-no a uma simulação de julgamento popular que o condena à morte. Momentos antes da execução, o assassino é salvo pela chegada da polícia. A mediação entre o mundo da lei e o mundo da marginalidade é aqui exercida pelo homicida psicopata, simultaneamente perseguido pelos polícias e pelos criminosos de Berlim, uns e outros interessados em restabelecer a mesma ordem social que os justifica. A estrutura dramática do filme é rigorosamente organizada a partir de reflexos contraditórios e indissociáveis que projectam as duas faces de uma só realidade que incorpora o normal e o anormal, o racional e o irracional: o conformismo do burguês anónimo que se revela ser um 180
perigoso assassino de crianças, numa cisão patológica da personalidade que ele não consegue controlar, encontra um eco alarmante na orgânica social do estado de direito que gera no seu interior a ameaça do fascismo. A maneira como Fritz Lang estabelece analogias formais entre as reuniões dos polícias e as reuniões dos criminosos, através dos enquadramentos e dos falsos raccords de luz e movimento, dá ao dispositivo da montagem paralela um alcance conceptual, ao nível da associação de ideias, tanto mais surpreendente quanto é certo as imagens veicularem uma tonalidade meramente descritiva. Dir-se-ia que existe um trabalho do inconsciente do filme, enraizado na miseen-scène e na escrita dos planos, homólogo ao trabalho do inconsciente do criminoso, que o persegue e domina. Na célebre sequência final, quando Peter Lorre, interpelando os espectadores, implora clemência ao tribunal de facínoras, confessando que não tem culpa porque não consegue fugir à força interior que o impele a matar seres indefesos, expõe-se uma das mais extraordinárias e comoventes sínteses do espírito do mal, que não remete apenas para a caracterização individual da natureza antagónica daquele personagem patético, uma vez que o futuro da Alemanha, dentro em breve, se encarregaria de inventariar muitos outros assassinos em série que reduziram a história à dimensão do absurdo. Afinal, talvez os nazis tivessem motivos particulares para não apreciar uma película que seria, poucos anos depois, retirada por eles de circulação sob a acusação de decadente e degenerada, como todas as formas estéticas que não se conformassem com a pureza mítica do ideal ariano. Apesar da herança expressionista, manifesta no estilo de iluminação, no tratamento plástico dos décors e na própria temática da dualidade humana como fonte de conflitos insanáveis, o filme assume por vezes uma postura documental que o aproxima das obras de denúncia social características do período da nova objectividade. A influência das peças didácticas de Brecht, bem como da Ópera dos Três Vinténs, adaptada ao cinema por Pabst no mesmo ano (1931), é evidente. A descrição dos métodos científicos de investigação policial, em contraponto com a organização do submundo dos criminosos, determina a ordenação serial da montagem, introduzindo novas relações formais e semânticas na descontinuidade dos elementos narrativos. É a banda sonora que estabelece os vínculos de continuidade, através da construção de sucessivas pontes de som, nas quais os sons de uma cena 181
passam para a cena seguinte sem quebrar a lógica e a intensidade da narrativa. Neste particular, M é um filme sonoro admirável, particularmente inovador, na supressão da música de fundo decorativa, na recusa do recurso ao som como mero reforço pleonástico da imagem, na utilização produtiva dos materiais sonoros, quer como embraiadores da progressão da história quer como factores de tensão especificamente cinematográfica. A sequência de abertura do filme é justamente considerada uma pequena obra-prima da retórica fílmica na articulação entre o som e a imagem. O assassino é referenciado apenas pela sombra, pela voz fora de campo e pelo assobio obsessivo com que antecipa a morte das suas vítimas. O leitmotiv do assobio, ouvido ao longo do filme, toma-se assim a metonímia sonora do perigo de morte que paira sobre as crianças. Depois de cometido o primeiro homicídio, ouvimos a mãe da menina assassinada chamar em desespero pelo nome da filha enquanto vemos nas imagens a mesa posta onde a criança devia almoçar, a escada que devia subir, o estendal por onde devia passar, a bola e o balão abandonados com os quais devia estar a brincar. Lang nunca mostra o crime, limita-se a filmar os sinais da ausência da criança e os sons que confirmam o carácter terrível desses sinais. A sequência inicial de Das Testament des Dr. Mabuse (1933) constitui outro exemplo notável da aplicação expressionista do som e do desdobramento das bandas visual e sonora enquanto meios autónomos de criação e de amplificação recíproca dos mecanismos emocionais implícitos na ficção, mesmo antes dos espectadores terem informação suficiente para saberem ao certo do que se trata. O olhar da câmara avança por um armazém até descobrir um homem escondido, que fica ainda mais nervoso ao ver entrar outros dois homens que se preparam para retirar alguns materiais de uma bancada. O homem escondido tem uma pistola na mão e, embora seja detectado pelos outros dois, estes fingem não dar por ele, deixando-o sair do armazém da oficina. Durante toda a cena, desde o encadeado em negro do genérico, ouvimos um ruído persistente de máquinas de impressão a trabalhar. O desconhecimento dos personagens, a incerteza da situação e a presença enigmática do fora de campo inscrito na repetição mecânica e sincopada dos ruídos da banda sonora, criam de imediato um envolvimento de perturbação que define o molde do filme. Quando o intruso chega à rua é alvo de dois atentados consecutivos aos quais 182
consegue escapar milagrosamente: uma viga que cai no passeio e quase o esmaga, um bidão que rola na sua direcção e explode em chamas. Não sabemos quem é a vítima, não sabemos quem prepara os atentados, como se a maquinação de um e de outros estivesse na ordem normal dos acontecimentos. A ameaça e a dúvida instalam-se na narrativa desde o primeiro instante, com o rigor de um axioma geométrico, a partir de uma articulação muito densa entre as imagens, os sons e o enredo. O intruso do armazém é Hofmeister (Karl Meixner), um informador da polícia que espiava um bando de falsários. Antes de conseguir revelar o que descobriu ao Inspector Lohmann (Otto Wernicke), ainda em estado de choque pela perseguição dos falsários, Hofmeister enlouquece. É levado para o asilo do Professor Baum (Thomy Bourdelle), onde se encontra também internado o Dr. Mabuse (Rudolf KleinRogge), que tinha enlouquecido no final do filme anterior. Mabuse escreve o seu testamento na cela do asilo, um tenebroso plano que tem por objectivo disseminar o terror e o caos no país, por meio de uma série de assaltos, sabotagens, assassinatos e falsificações. Mesmo depois da morte de Mabuse, a onda de crimes, cometidos em seu nome, de acordo com o plano, continua. Através dos seus escritos, o espírito de Mabuse consegue hipnotizar o Professor Baum, apoderando-se completamente da sua vontade, a ponto de este agora se considerar a reincarnação do próprio Mabuse. O Professor Baum esconde a sua dupla personalidade emitindo as ordens aos chefes das várias secções do bando por intermédio de gravações da sua voz e da silhueta de Mabuse colocada atrás de uma cortina. Quando o Inspector Lohmann descobre o segredo do Professor Baum, este refugia-se na cela que fora de Mabuse, acabando também por enlouquecer. Desta vez, as alusões ao movimento nacional-socialista parecem evidentes e, a acreditar nas declarações do próprio Lang, muitos dos diálogos do filme teriam sido decalcados de discursos dos dirigentes nazis. «A alma humana tem de ser profundamente atemorizada por meio de crimes impenetráveis, aparentemente absurdos, sem utilidade para ninguém, apenas com o fim de espalhar o medo, o pavor e a anarquia. O pânico deve ser tal que nos chamem a tomar o poder», lê o Professor Baum no testamento do Dr. Mabuse, que imita um outro texto célebre — Mein Kampf — ditado em 1924 numa cela de prisão. O poder criminoso de Mabuse apossa-se do Professor Baum assim como a pulsão de morte 183
se infiltra no desejo de M: ambos cumprem um programa perverso de destruição que os transcende e se espalha no tecido social como um espectro esquizóide. A vinculação das ideias de Mabuse em Baum, depois daquele estar morto, é feita no filme com uma sobreposição da imagem fantasmática de Mabuse, que se transfere para o corpo de Baum enquanto este lê e escuta as palavras escritas legadas pelo mestre do crime. Tudo se passa como se a ideologia, destituída de corpo mas implícita no texto, viesse ocupar a mente daquele que não resiste à sua capacidade de persuasão. O texto e a voz de Mabuse não garantem uma fixação estável e definitiva da linguagem, são apenas elementos de um lugar de incertezas onde as palavras comuns vão ao encontro do desejo do outro. O corpo de Mabuse morre mas o seu espírito continua vivo na convicção e na acção dos que seguem os seus ideais. Mabuse deixou de ser uma pessoa para passar a ser uma doutrina que se propaga em vozes sem corpo nem identidade, em palavras, imagens e sons que são a materialização virtual das novas máquinas do futuro. A voz incorporal é uma matriz das ideologias, das religiões e das práticas mágicas. No cinema as figuras de Deus e do narrador omnisciente são quase sempre representadas por uma voz fora de campo que vê tudo, sabe tudo, está em todo o lado e emite juízos de valor do lugar da verdade. O Mabuse de 1922 hipnotizava através do poder do olhar — domínio do cinema mudo —, o Mabuse de 1933 hipnotiza através do poder conjunto da imagem, do som e da palavra — domínio do cinema sonoro. Não é certamente coincidência que os anos trinta tenham sido os anos da rádio, voz fora de campo por excelência por não ter qualquer imagem por referência, e que a rádio tenha sido um dos mais influentes meios de propaganda do III Reich. A conspiração de Mabuse é tão demoníaca que lhe sobrevive. A mise-en-scène magistral de Lang mostra muito bem que o poder não reside no homem, que permanece praticamente invisível e calado, mas no dispositivo de mediação que ele engendrou e que reproduz as palavras de ordem com inteira eficácia. Nenhum dos membros do bando conhece Mabuse: eles obedecem ao vulto escondido atrás de uma cortina opaca que emite ordens gravadas através de altifalantes. O poder está na manipulação dos meios de reprodução mecânica das palavras de ordem, que não são concebidas para pensarmos, retorquirmos ou acreditarmos seja no que for, mas apenas para obedecer e 184
fazer obedecer. É difícil imaginar, em 1933, outro filme que pudesse caricaturar com tanta firmeza e argúcia o uso hipnótico que Hitler e Goebbels — como tantos outros mentores de ditaduras políticas e económicas subsequentes — fizeram das técnicas de encenação, do fascínio do espectáculo, do impacto das imagens de marca e dos meios de comunicação de massa. Não se pode dizer que Fritz Lang tenha ficado surpreendido quando, no dia 5 de Abril de 1933, recebeu em casa um telefonema de Goebbels convocando-o para uma reunião no Ministério da Propaganda. A recente proibição da estreia de Das Testament des Dr. Mabuse era um augúrio sombrio, não obstante Thea von Harbou ter aderido ao partido nazi. Lang preparou-se para passar um mau bocado, mas foi recebido com a maior das amabilidades. Goebbels ignorou por completo qualquer referência ao tenebroso Mabuse, elogiou Die Nibelungen e Metropolis como exemplos superiores da arte alemã, e foi directo ao assunto, convidando oficialmente Fritz Lang para dirigir a cinematografia do III Reich. A situação era pior do que Lang imaginara. À hora a que saiu do gabinete do ministro já os bancos estavam fechados, mesmo assim não hesitou durante muito tempo, passou por casa para recolher os documentos, despediu-se da família e apanhou um táxi para a estação dos caminhos de ferro. Nesse mesmo dia Fritz Lang viajou de comboio para Paris. Em França, faria ainda um filme produzido por Erich Pommer, também no exílio, depois viria o convite de David Selznick para trabalhar em Hollywood. Esperava-o um outro mundo e, sem dúvida, um outro cinema.
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O fascínio do estúdio americano.
21 MONÓLOGO A VÁRIAS VOZES A estreia de O Couraçado Potemkine na Alemanha, em Abril de 1926, foi um acontecimento. Apesar da intervenção da censura, no filme e na música, especialmente composta por Edmund Meisel, a exibição foi triunfal, obrigando à distribuição de mais cópias por diversas salas. Numa rápida visita a Berlim, Eisenstein foi aclamado como um prodígio, à esquerda e à direita, e o Reichstag foi interpelado para avaliar o perigo do potencial bélico da marinha de guerra soviética, tendo em conta a grandiosidade das imagens da última sequência do filme, quando a frota russa adere à revolta do couraçado. O efeito de sinédoque, a perícia da montagem e o impacto emocional da propaganda são tão eficazes que os espectadores não se apercebem de que Eisenstein utilizou planos de arquivo de vários navios de guerra estrangeiros para compor uma sequência de imagens heterogéneas, sem qualquer relação real entre si, que dão uma impressão de poder militar que o Estado soviético não possuía na época. Quando Mary Pickford e Douglas Fairbanks visitaram Moscovo, em Julho de 1926, estavam longe de imaginar que a sua popularidade fosse tão grande como nos restantes países da Europa. Depressa veri187
ficaram, pela aclamação frenética das multidões de fans nas ruas, pela cortês recepção oficial dos cineastas soviéticos e pelas folhas de receita dos seus filmes, que a Rússia gostava tanto dos heróis capitalistas como qualquer outro povo. Só havia um filme em Moscovo com uma bilheteira superior à de Robin Hood (1922), realizado por Allan Dwann com Fairbanks no protagonista — esse filme era O Couraçado Potemkine. Depois de verem o filme revolucionário, as estrelas americanas insistiram em conhecer Eisenstein. Testemunhas do encontro garantem que, ao cumprimentar o realizador, Fairbanks lhe perguntou de imediato quanto tempo precisava para fazer as malas e partir para Hollywood. O certo é que Pickford e Fairbanks levaram consigo uma cópia de O Couraçado Potemkine e o promoveram no seio da comunidade cinematográfica com um entusiasmo fora do vulgar. Numa conferência de imprensa o célebre actor declarou, sempre com um sorriso nos lábios, que a visão do Potemkine fora «a mais intensa e profunda experiência da minha vida». Um dos executivos que tiveram oportunidade de ver O Couraçado Potemkine antes da estreia americana foi o jovem David Selznick, na altura director do departamento de argumentos da MGM. Sempre de espírito alerta para descobrir novos talentos, Selznick ficou tão impressionado com a película de Eisenstein que escreveu uma cuidadosa carta de recomendação ao seu superior hierárquico, em 15 de Outubro de 1926: «Há poucos meses tive o privilégio de assistir a duas projecções privadas daquele que é, sem dúvida, um dos melhores filmes jamais realizados, O Couraçado Potemkine, feito na Rússia sob a supervisão do Governo Soviético. Não vou discutir aqui os aspectos comerciais ou políticos da fita mas quero afirmar que, independentemente desses aspectos, o filme é uma soberba obra de arte. Tem uma técnica cinematográfica completamente nova e por isso penso que pode ser muito vantajoso para a nossa companhia olhar para ele com o mesmo espírito com que um grupo de artistas pode observar e estudar um Rubens ou um Rafael» (Memo from David O. Selznick). Potemkine estreou nos Estados Unidos no dia 5 de Dezembro de 1926, tendo sido eleito pela crítica, incluindo a mais conservadora, o filme do ano. Numa entrevista muito citada, Chaplin não esteve com meias medidas e classificou Potemkine o melhor filme do mundo, no que retribuía a opinião conhecida de Eisenstein que considerava Chaplin, depois de Griffith, o maior cineasta em actividade na América. 188
Em França o filme esteve proibido durante muitos anos, mas os cineclubes encarregaram-se de o exibir na clandestinidade a partir de Novembro de 1926, colocando o nome de Eisenstein e os ideais da revolução entre as peregrinações obrigatórias da cultura cinematográfica. O mesmo aconteceu em Inglaterra, onde a selecta London Film Society exibiu o filme com a banda sonora de Meisel antes de ser autorizada a respectiva exibição comercial. A repercussão do êxito internacional de Potemkine fez-se sentir em Moscovo ao mais alto nível. A prontidão de Eisenstein em remontar os seus dois últimos filmes — Outubro (1928) e A Linha Geral ( 1929) — a pedido de Estaline, valeram-lhe a simpatia efémera do ditador. De Outubro desapareceu a figura de Trotsky, entretanto caído em desgraça; de A Linha Geral, rebaptizado O Velho e o Novo, foram alteradas as cenas que já não correspondiam à política agrícola do último plano quinquenal. A modernização da URSS passava também pelo cinema e este, quase de um dia para o outro, ganhara som. Os equipamentos e o parque de salas encontravam-se deteriorados e obsoletos, pelo que levaria alguns anos até se reconverterem às exigências do sonoro. Não se perdia nada em autorizar o mais célebre dos realizadores a ir ao mundo capitalista aprender as novas técnicas e divulgar um pouco do génio soviético. Em conformidade, com autorização do Partido e vinte e cinco dólares no bolso, na companhia de Edouard Tissé, fabuloso director de fotografia de todos os seus filmes, e de Alexandrov, actor e assistente desde a primeira hora, Eisenstein parte de Moscovo, em Agosto de 1929, para regressar cerca de três anos depois, desiludido e amargurado. Ivor Montagu tinha consciência do seu relativo fracasso como cineasta. Nascido em Londres, em 1904, no seio de uma das mais ricas e singulares famílias inglesas, Montagu estudara no Royal College of Science, em Londres, com o propósito de se dedicar à investigação científica, e mais tarde no King's College, em Cambridge, onde se ligou aos círculos de esquerda e aprendeu a falar fluentemente russo. A paixão do cinema levou-o a dirigir algumas curtas metragens de exibição difícil, apesar de terem sido escritas pelo seu amigo H. G. Wells. Mas a realização era apenas um dos aspectos do cinema a fascinar Montagu, igualmente entusiasmado pela crítica, pela escrita de argumentos, pela distribuição e pela produção, áreas de actividade em que se distinguiu ao longo da sua multifacetada carreira cinematográfica. 189
Em Setembro de 1929, na qualidade de representante da London Film Society, participa, em La Sarraz, na Suíça, num dos primeiros congressos internacionais dedicados ao cinema de vanguarda, cujo convidado de honra é Eisenstein. Desse encontro memorável, onde conhece Béla Balazs, Léon Moussinac, Walter Ruttmann, Hans Richter e Alberto Cavalcanti, entre outros, nasce uma amizade que irá marcar tanto o percurso de Montagu como o de Eisenstein. Após o congresso, Montagu acompanha Eisenstein a Berlim, Londres e Paris, cidades onde o realizador é recebido de braços abertos nos meios artísticos mas com imensas reservas por parte das autoridades policiais, que receiam a propagação de ideias comunistas. Eisenstein e os seus companheiros vivem da exibição dos filmes e das inúmeras conferências que o cineasta faz, apesar da sua aversão em falar em público. Na estadia em Berlim, em Novembro de 1929, Eisenstein circula num autêntico rodopio de celebridades: Piscator e Brecht, Grosz e Pirandello, Murnau e Lang. Visita os estúdios da UFA onde a filmagem da produção de que toda a gente fala lhe prende a curiosidade: num décor barroco, inundado de véus e fumos, Marlene Dietrich canta com voz rouca, dirigida por um realizador intransigente que repete os planos até a actriz ficar exausta. Josef von Stemberg mostra-se encantado por receber Eisenstein, suspende a rodagem e convida-o a visionar a película já filmada numa sala de projecção do estúdio. Eisenstein fica admirado com a enorme quantidade de material impresso para cada cena e nota a influência da pintura de Daumier na composição de certos planos, o que deixa Stemberg embevecido. A melhor maneira de entrar em Hollywood não é pedir trabalho mas fazer com que nos convidem: Eisenstein e Montagu estavam de acordo com a estratégia a seguir. Enquanto o cineasta russo permanecia em Paris, colaborando num pequeno filme de encomenda a executar por Tissé e Alexandrov, o escritor inglês ia para a Califórnia desenvolver contactos para tomar a ida da equipa soviética exequível e desejada. Contactos era coisa que não faltava a Ivor Montagu. Começou por visitar o tio Lionel, banqueiro cosmopolita que tinha travado amizade com Adolph Zukor à mesa de jogo de um casino da Riviera. O tio não só lhe escreveu uma milagrosa carta de apresentação para o patrão da Paramount como lhe emprestou dinheiro suficiente para enfrentar qualquer eventualidade desagradável. Outras cartas que Montagu levava na bagagem eram assinadas por escritores 190
ilustres como Wells e Shaw, dirigidas a Chaplin, Pickford e Fairbanks, que já tinham manifestado a sua admiração por Eisenstein e estavam interessados em adaptar ao cinema obras dos referidos autores. Assim que desembarca em Nova Iorque, Montagu é recebido por Zukor, que se prontifica a sensibilizar os seus colegas de administração para formularem uma proposta digna do cineasta russo. Jesse Lasky, responsável pela coordenação central da produção da companhia, em vésperas de viajar para a Europa, leva o recado de contratar Eisenstein em Paris. Montagu parte para Los Angeles com uma carta de Zukor endereçada a B. P. Schulberg, administrador dos estúdios da Paramount em Hollywood, com indicações para este satisfazer as pretensões do seu amigo inglês até terem um projecto definido (Ivor Montagu, With Eisenstein in Hollywood, 1974). No Verão de 1930 Budd Schulberg arranjou o seu primeiro emprego. Não foi difícil. Acabara o secundário e, antes de entrar para a Universidade, o pai achou bem que ele trabalhasse durante as férias no departamento de publicidade da Paramount para ganhar tarimba. Competia à publicidade organizar materiais promocionais e distribuílos aos jornais como se fossem notícias ou revelações sensacionais sobre o pessoal contratado. Encarregado pelo chefe do departamento de fazer um inquérito íntimo aos actores e actrizes da companhia sobre o que gostariam de ter sido se não fossem estrelas de cinema, Budd Schulberg decidiu começar por Gary Cooper, um dos mais promissores galãs da Paramount. Depois de se tomar famoso ao lado de Clara Bow, na comédia romântica de maior êxito dos anos vinte, Cooper iniciara a rodagem do filme com que a Paramount tencionava lançar no estrelato a actriz alemã que todos estavam convencidos ir superar a aura de Garbo. No estúdio onde se filmava Morocco (1930), no intervalo de um beijo entre Gary Cooper e Marlene Dietrich, sob o olhar voraz de Stemberg, Budd Schulberg entrevistou o actor. A simpatia de Cooper não era fabricada, irradiava da sua personalidade e elegância natural, qualidades que a câmara de filmar depurava e tomava brilhantes. Numa conversa descontraída, pontuada pelas respostas lacónicas do actor, Budd julgou compreender o encanto irresistível de Gary Cooper: enquanto a maior parte dos actores se exibia, à procura do melhor ângulo, da melhor luz, do melhor papel, Cooper não exigia nem criava problemas, entregava-se ao trabalho, representava como era, sempre com a modéstia de quem não quer nem precisa de ser vedeta. 191
Depois de ler a carta de Zukor, B. P. Schulberg perguntou a Montagu o que é que gostaria de fazer até chegarem a um acordo com Eisenstein. A melhor maneira de acompanhar o trabalho de produção do estúdio, sem estar directamente envolvido nas rodagens, calculou Montagu, era ser argumentista de um dos muitos filmes em preparação. B. P. concordou, nomeou-o de imediato consultor literário de uma fita cuja acção decorria numa Rússia de fantasia, construída no terreno de exteriores, e, para surpresa do inglês, perguntou-lhe, sem qualquer embaraço, quanto queria ganhar de salário. Nos últimos dias, em Paris, depois de percorrer os museus e de arruinar as parcas poupanças nas livrarias da margem esquerda, Eisenstein visitava James Joyce, com quem não se cansava de discutir os pormenores de uma eventual adaptação de Ulisses, que o escritor lia de viva voz para exemplificar um ou outro pormenor. Seguro de que o cinema intelectual, recorrendo à montagem do som em contraponto audiovisual, seria o meio artístico mais adequado à total apreensão do mundo interior do homem e à simultaneidade da representação do seu comportamento exterior, bem como da realidade em que vive, Eisenstein considerava a obra de Joyce a tentativa mais sublime jamais ensaiada na literatura para atingir tal meta. E explicava que só a narrativa cinematográfica pode ultrapassar os limites do romance para disseminar palavras e sensações visuais que recriam a emoção indivisível daquilo que o homem vê, sente e pensa. Quase cego, Joyce pediu para ver os filmes do seu admirador e ficou convencido: se um dia Ulisses fosse adaptado ao cinema, gostaria que fosse por Eisenstein. Quando Jesse Lasky chegou a Paris o acordo com Eisenstein foi rápido, uma vez que a única exigência do cineasta consistia em levar consigo Tissé e Alexandrov. Os pormenores contratuais foram tratados directamente por Lasky com a Sovkino — representante do cinema soviético — e previam que Eisenstein fizesse em alternância três filmes nos Estados Unidos e três filmes na União Soviética, desde que a Paramount aprovasse previamente o argumento dos projectos americanos dentro dos prazos estipulados. Assim que Eisenstein desembarca nos Estados Unidos a máquina de publicidade da Paramount começa a trabalhar. São entrevistas, recepções, fotografias, para as quais Eisenstein revela pouca paciência. Por outro lado, a enérgica campanha da imprensa conservadora contra a presença dos bolcheviques obriga o estúdio a adoptar um perfil 192
mais discreto. O único encontro que interessa Eisenstein enquanto está em Nova Iorque é o que marca com Griffith, de madrugada, no bar de um velho hotel da Broadway, onde o realizador de Intolerance reside nos últimos trinta anos da sua vida sempre que permanece na cidade. Eisenstein não compreende como é que um cineasta da envergadura de Griffith tem dificuldade em arranjar trabalho numa indústria que lhe deve quase tudo. Talvez quando chegar a Hollywood aprenda à sua própria custa. Em Los Angeles, Montagu junta-se aos três russos. Instalados numa vivenda de Beverly Hills, seleccionam os projectos a apresentar. As reuniões com Jesse Lasky e B. P. Schulberg abrem perspectivas de cooperação. De entre as várias hipóteses, que incluíam a adaptação de A Guerra dos Mundos, de Wells, e de Ouro, de Cendrars, afastadas por serem demasiado dispendiosas, os produtores propõem A Tragédia Americana, volumoso romance de Theodore Dreiser que o próprio Griffith já quisera adaptar. Eisenstein lê o romance e fica indeciso. Seria possível deixarem um estrangeiro, para mais comunista, fazer um filme que não podia deixar de ser uma severa crítica à sociedade americana? Parecia óbvio que a Paramount tinha comprado os direitos do livro sem o ter lido. Eisenstein aceita e, em colaboração com Montagu, começa a escrever o argumento. A amizade com Chaplin e Fairbanks permite a Eisenstein conhecer a nata de Hollywood em pouco tempo. Aproveita para visitar Death Valley, onde Stroheim filmou a sequência do deserto de Greed, um dos seus filmes preferidos, e passa algumas tardes no estúdio da Paramount a assistir à rodagem do novo filme de Sternberg com Marlene Dietrich e Gary Cooper. Numa dessas tardes é abordado por um jovem que mal consegue disfarçar a gaguez ao pedir-lhe uma entrevista. Apesar de Eisenstein não ser propriamente uma estrela da Paramount, Budd Schulberg não quer perder a oportunidade de falar com o célebre realizador soviético. Sentados num banco de pedra do jardim do estúdio, Eisenstein e Budd discorrem sobre o cinema na Rússia e sobretudo sobre o filme americano em preparação. Eisenstein quer utilizar um estilo sonoro completamente novo, inspirado no monólogo interior, intercalando na montagem fragmentos visuais incoerentes para dar o estado de confusão mental do personagem na cena do crime. Quer imagens e sons que mostrem o mundo interior do personagem intercalados com a realidade objectiva do mundo exte193
rior. Quer descrever o devir da corrente de consciência do personagem sem formular qualquer análise psicológica que justifique os seus actos, uma vez que lhe interessa realçar o papel fundamental da pressão social na formação do carácter arrivista do protagonista de Uma Tragédia Americana. Budd ouve e interroga-se sobre as razões que teriam levado aquele cineasta invulgar a vir para a América, onde o cinema é tão diferente, arriscando-se a ser incompreendido, quando podia estar na Rússia a fazer outros Potemkines. Ao nível do enredo, a principal alteração que Eisenstein introduz em relação ao romance de Dreiser reside no ponto de vista adoptado pelo filme sobre o comportamento de Clyde, o personagem principal. Depois de seduzir e engravidar uma jovem operária que trabalha no departamento que dirige, Clyde vê-se obrigado a casar com ela, perdendo assim a oportunidade de subir na escala social casando com outra rapariga mais rica que está apaixonada por ele. Clyde premedita então o homicídio da operária simulando um acidente de barco. Porém, Clyde revela-se demasiado fraco para cometer o crime. A rapariga adivinha as intenções do amante, entra em pânico e o acidente dá-se tal como Clyde tinha previsto. A rapariga afoga-se e Clyde foge pondo em prática o plano que estabelecera previamente, deixando atrás de si pistas que o levam a ser preso pela polícia. O romance de Dreiser é mais detalhado e prolixo, acumulando inúmeros pormenores naturalistas sobre o itinerário biográfico do personagem, mas, basicamente, a situação dramática central é a mesma. No livro não ficam dúvidas sobre a culpa de Clyde, mesmo se o conflito entre as aspirações e a fraqueza de carácter do personagem é típica da mediocridade económica e cultural do meio social de onde ele é proveniente. Eisenstein leva mais longe a visão trágica do conflito, explícita no título do romance, atribuindo as culpas do crime ao modelo de sociedade que identifica a riqueza com a felicidade e não olha a meios para atingir os fins. No argumento a culpa da morte da operária não é atribuída a Clyde, alienado pela ambição desmedida de conquistar um lugar no seio da classe dominante, incapaz de fugir ao destino traçado pelo sonho americano, a culpa é da própria sociedade capitalista que fomenta a mentalidade amoral e oportunista à qual o carácter do personagem não consegue escapar. Theodore Dreiser aprova a adaptação e, no dia 5 de Outubro de 1930, Eisenstein entrega o argumento original a B. P. Schulberg. Nessa mesma tarde, uma cópia do dossier chega às mãos de Selznick, agora 194
produtor executivo e assistente de B. P. na Paramount, com o pedido expresso de elaboração de um parecer pessoal. Três dias depois B. P. recebe a opinião de Selznick por escrito: «Acabei de ler a adaptação que Eisenstein fez de Uma Tragédia Americana. Foi uma experiência inesquecível; é o argumento mais comovente que me foi dado ler; é tão eficaz que é positivamente um tormento. Quando acabei de o ler estava tão deprimido que só me apeteceu ir buscar a garrafa de uísque. Como espectáculo não creio que o projecto tenha qualquer hipótese». Na leitura de Selznick a proposta de Eisenstein não oferecia qualquer abertura de final feliz. Ou Clyde era culpado, e lá se ia a simpatia da estrela, indispensável à empatia do público com o protagonista, ou era inocente, e nesse caso o filme assumia uma crítica deprimente dos ideais americanos. Depois de frisar que a companhia não tem o direito de arriscar o dinheiro dos accionistas numa experiência artística sem perspectivas comerciais, Selznick conclui: «Não me oponho a que se experimentem coisas novas. Mas conservemos essas apostas dentro dos limites razoáveis daqueles que perfilham uma política de negócio; não gastemos mais dinheiro nos próximos anos em filmes com assuntos que, embora apelem à nossa vaidade pelo previsível sucesso que a sua produção teria junto da crítica, não podem oferecer mais nada do que duas horas miseráveis aos milhões de jovens americanos optimistas.» A experiência de quatro anos nas instâncias de decisão das duas maiores produtoras de Hollywood tinham afinado a perspicácia comercial de Selznick: Eisenstein continuava por certo a ser uma espécie de Rubens ou de Rafael do ecrã, mas a função da Paramount não era propriamente substituir-se ao museu do Louvre. O contrato com Eisenstein foi rescindido e o argumento arquivado. As férias estavam a chegar ao fim e Budd Schulberg ainda não tinha falado com todas as vedetas da Paramount, sempre muito ocupadas. Quando o chefe da publicidade lhe pediu os artigos para colocar nas revistas de fans, ficou surpreendido com o tamanho e o detalhe das entrevistas já feitas. Prosa bem documentada mas inútil. Tudo o que precisava era de meia dúzia de linhas improvisadas sobre cada actriz em voga, para preencher as legendas que acompanhavam as fotografias. Do género, Dietrich gostava de ter sido professora primária, Swanson enfermeira da Cruz Vermelha, enfim o que lhe passasse pela cabeça. Escusava de ter saído do escritório. Budd sentou-se e começou a bater à máquina. Aos 17 anos, naquele Verão inesquecível, entre 195
o rumor das pás da ventoinha suspensa no tecto e o alarido do pessoal dos carros de produção que estacionavam no pátio interior, no ambiente abafado de um gabinete do segundo andar do edifício de escritórios dos estúdios da Paramount, Budd Schulberg aprendeu a escrever o pensamento íntimo das estrelas. Uma Tragédia Americana começou a ser filmado em Março de 1931, contra os protestos de Dreiser que considerava o novo argumento uma reles deturpação da sua obra. Apesar de trazer a assinatura de Samuel Hoffenstein, a nova versão era da responsabilidade do realizador que aceitara a encomenda da Paramount. Enquanto Marlene passava umas curtas férias na Alemanha, Josef von Sternberg rodava um dos filmes menos característicos da sua carreira, feito, como ele diz, apenas para se exercitar. A tragédia de ecos sociais transforma-se num drama íntimo de obsessão sexual, confinado ao ensaio de análise psicológica e moral que Eisenstein queria evitar. Prevendo o pior, David Selznick tinha enviado um relatório de leitura do novo guião a B. P. Schulberg que é, simultaneamente, uma crítica lúcida e implacável dos métodos do realizador. «Sternberg é o homem errado para este trabalho. Não penso que tenha, em absoluto, a atitude de elementar honestidade que este assunto requer, que tenha a simpatia, a tolerância, a compreensão que a história exige. A série de triunfos de Joe ficaram todos a dever-se ao bom espectáculo, cada filme lidando com pessoas completamente falsas em situações totalmente falsas. Através de uma série de truques brilhantes, conseguiu obrigar o público a engolir coisas que a sua inteligência normalmente rejeitaria. Com a Tragédia é diferente: a não ser que as pessoas compreendam a psicologia do rapaz a par e passo, acreditem de modo implícito na realidade da história e estejam convencidas que estão a assistir a uma página da vida, não resta nada». É provável que Sternberg tenha tido acesso ao relatório de Selznick, porque Uma Tragédia Americana (1931) é, sem dúvida, o filme menos estilizado do realizador e aquele onde é mais visível a preocupação com a credibilidade psicológica dos personagens e o contexto social das situações. Quem ficou sem conhecer as opiniões de Selznick foi por certo Eisenstein, entretanto no México a filmar um projecto financiado pelo escritor Upton Sinclair, que seria mais um episódio lamentável das suas desventuras no ocidente. Desanimado com a experiência em Hollywood, Montagu recusou-se a acompanhar os russos ao México, regressou a Inglaterra e produziu os melhores filmes do período inglês de Alfred Hitchcock. 196
A fotogenia e o glamour de Marlene, Sternberg.
22 FOTOGENIA, GLAMOUR, VOYEURISMO O nevoeiro mal deixa perceber os contornos do décor, preenchendo literalmente o espaço visível com a suave espessura das luzes. Vestida de preto, emergindo do fundo encoberto pela densidade translúcida da atmosfera, a mulher aproxima-se com lassidão, aparentemente alheia aos movimentos e aos sons do barco que a trouxe ao Norte de África. O grande plano, com a profundidade de campo reduzida, de modo a isolar a actriz do contexto pictórico já de si rasurado pela bruma, mostra o rosto protegido por um ligeiro véu negro. E a aparição de Marlene Dietrich no seu primeiro filme americano com Josef von Sternberg. Morocco (1930) foi cuidadosamente concebido para lançar Marlene no estrelato. Ao contrário da vulgar sensualidade exigida pela mulher fatal de O Anjo Azul, que humilha e destrói o homem que se apaixona por ela, a imagem de Marlene em Morocco — como nos três filmes que se seguirão: Dishonored (1931), Shangai Express (1932), Blonde Venus (1932) — é construída a partir do sacrifício feminino como núcleo principal da paixão. Agora são as personagens interpretadas 197
por Marlene que abdicam dos seus hábitos, valores e identidade para conquistar, conservar ou salvar o homem amado. A imagem da mulher fatal torna-se assim menos geradora da ansiedade de castração para o ideal masculino, mas sem perder a capacidade de sofrimento e o espírito de iniciativa sexual que a caracterizam como tipo dramático e como força motriz da acção narrativa. A sensualidade anunciada, meticulosamente contornada em roupas fechadas, que moldam o corpo e se exibem como ardil fetichista, culmina no véu do rosto, dissimulando com requinte uma beleza que se adivinha e se transforma de imediato em enigma. O que Sternberg tentou fazer com Marlene, nos seis filmes produzidos pela Paramount, foi criar um sistema de tensão dramática fundamentalmente baseado no corpo e na voz da actriz, na maior parte dos casos cristalizado no rosto e no olhar, ambos animados por uma luz celestial derramada a pique sobre a estrela, como se a sua simples presença fosse motivadora de um brilho fulgurante que atrai e cega. Utilizando uma metáfora típica dos cineastas barrocos, Sternberg confessa que iluminava o rosto de Marlene como se fosse uma paisagem, no sentido em que seria a luz do criador a dar vida a uma natureza inanimada. Esta observação, por certo discutível, é coerente com a sua premissa de que os actores não passam de instrumentos de manipulação pictórica ao serviço do filme. Sternberg tinha tendência para minimizar a importância do argumento, na medida em que não considerava nem a palavra escrita nem a estrutura narrativa como sendo componentes primários do filme. Sabia, por experiência, que o mesmo argumento nas mãos de realizadores diferentes dava obras muito distintas. Sabia também que os produtores interferiam constantemente no argumento e na montagem, fases cruciais da dinâmica narrativa, mas era ao realizador que cabia o domínio da composição plástica dos planos durante a rodagem. Se era a singularidade das imagens que continha a marca do autor e exalava o magnetismo do cinema, irredutível a qualquer traço de texto escrito ou a qualquer realidade material presente na sua origem, havia que deslindar as veias dessa prodigiosa transfiguração. Dois cineastas e teóricos franceses, nos anos vinte, tentaram clarificar os pressupostos da especificidade do cinema que tanto preocupava Sternberg. Foram eles Louis Delluc e Jean Epstein, ambos escrevendo textos em torno da questão da fotogenia. Delluc definia 198
lapidarmente a fotogenia como sendo o aspecto poético extremo das coisas e dos seres susceptível de nos ser revelado exclusivamente pelo cinema. Desligada de qualquer contexto narrativo ou dramático, a noção de fotogenia é assim reduzida à componente fotográfica do cinema, dando a entender que as imagens em movimento, por si só, têm a capacidade de desvendar determinadas características da realidade que não são percebíveis à vista desarmada. A fotogenia implica pois um olhar depurado mas atento sobre as pessoas e o mundo: nada de poses, de falsidades, de artifícios de iluminação. Só é fotogénico o que é natural. A definição de Delluc deixa explícita a ideia de que o mundo tem uma dimensão poética que permanece fora do alcance da percepção humana sem a intervenção do cinema. A imagem cinematográfica teria então essa capacidade inaudita de ser uma espécie de revelador do inconsciente do real, dos ritmos da natureza e das atitudes humanas mais secretas — nem sempre aquilo que uma fotografia mostra é aquilo de que estamos à espera, nem sempre a pessoa fotografada ou filmada se reconhece totalmente na imagem que a representa. É nesta distância subtil entre a realidade bruta e as qualidades espontâneas da sua reprodução pelo cinema que se instala o encanto da fotogenia. Epstein aceita as propostas de Delluc e redefine a fotogenia a partir do que ele entende serem as faculdades anímicas do cinema. Para Epsteín é fotogénico qualquer aspecto das coisas e dos seres que amplia o seu carácter intrínseco através da reprodução cinematográfica. Ou seja, tudo aquilo que não é espiritualmente revalorizado pela imagem cinematográfica não é fotogénico. Na lógica da argumentação de Epstein são as dimensões do tempo e do movimento que dão a aparência de vida aos seres e aos objectos registados pelo filme, como se a nova linguagem visual tivesse uma força primitiva e o privilégio da organização mágica do mundo. Daí o possível carácter anímico do cinema que as outras artes figurativas não possuem com a mesma intensidade. Para os defensores da fotogenia a verdade é indispensável à beleza das imagens, enquanto que nas artes que precederam o cinema ela é fruto de múltiplas convenções culturais. Inseparável da sua qualidade estética, a imagem fílmica apresenta-se como uma espécie de catalisador psíquico e moral que o realizador não pode ignorar, porque aí reside a inteligência do cinema. As intervenções de Delluc e Epstein, no contexto dos movimentos da vanguarda francesa dos anos vinte, visavam por um lado defender 199
o estatuto criador do cineasta e a autonomia estética do filme, contra as adaptações teatrais e literárias que colocavam o cinema ao serviço da ilustração e da divulgação das outras artes, e por outro lado procuravam combater os aspectos mais artificiais e mercantilistas do cinema de Hollywood, centrados na mitologia e no culto da estrela de cinema. A pureza impossível que Delluc e Epstein reivindicavam para o cinema depressa os conduziria a um visualismo abstracto, baseado em formas, movimentos, ritmos, analogias e trucagens que, em última análise, contradizem a intuição primordial da fotogenia. Não é seguro que Sternberg conhecesse os textos de Delluc e Epstein, e muito menos que estivesse de acordo com eles. Há por certo em comum a vontade de vincar o carácter inequívoco do cinema como arte e, por essa via, de remetê-lo para o olhar do cineasta como origem da alquimia estética. Se a fotogenia é um atributo da imagem — uma vez que não é imediatamente visível nas coisas — o seu apuro formal não pode deixar de estar ligado à concepção do ponto de vista cuja responsabilidade no cinema pertence ao realizador. E óbvia, neste percurso, a relativa desvalorização do argumento, do trabalho do actor e, até certo ponto, do próprio director de fotografia a quem na prática compete a execução técnica da visão do cineasta. O princípio de Stemberg parte da conjuntura aberta pela hipótese da fotogenia para chegar a um conceito oposto que se tomou um sinónimo da habilidade comercial de Hollywood: o glamour. Descartada a fase realista dos primeiros filmes — fase que podíamos, justamente, qualificar de fotogénica — Stemberg fomenta pacientemente no maneirismo da iluminação hierarquizada e na organização saturada dos planos a matéria do seu cinema e do seu efeito de assinatura. Ao contrário da naturalidade ambígua da fotogenia, o encantamento do glamour deve-se ao excesso de legibilidade da imagem, trabalhada de acordo com determinadas tipologias sociais, expressões dramatizadas e efeitos de ficção reconhecíveis. O glamour banha a imagem com o calor das luzes, que é o calor da sensualidade e do exibicionismo, transformando as pessoas e os objectos de cena em focos potenciais de uma relação erótica sempre disponível e sempre adiada. Enquanto valor acrescentado à beleza das actrizes, o glamour não pode deixar de ser a imagem patente da mais-valia comercial do star-system. Consolidado na fusão entre a personalidade do modelo e o olhar do realizador-fotógrafo, o glamour sternbergiano debate-se permanen200
temente com a contradição entre a suspensão da narrativa, indispensável aos momentos de pose dos modelos-actores e ao prazer visual da mera contemplação fetichista, e a progressão do movimento físico e dramático exigido pelo cinema industrial. Sternberg sabe melhor do que ninguém que o glamour das fotografias de promoção das vedetas, que os departamentos de publicidade dos estúdios aperfeiçoaram à exaustão, assenta basicamente no seu carácter estático — a pose ajustase à completa idealização da imagem, na medida em que inscreve na vertigem do instante uma promessa de movimento que é simultaneamente uma oferta sempre diferida da rendição sexual do modelo ao olhar do espectador. Se é certo que a fotogenia deriva do modelo, apesar de só ganhar forma através da reprodução fotográfica, o glamour existe exclusivamente na imagem e, por extensão, na imaginação do espectador. Daí a frustração que pode provocar o conhecimento pessoal do modelo, destituído do glamour que o projecta numa dimensão fantasmática do imaginário incompatível com a realidade. Foi o receio dessa frustração, sentido por milhares de mulheres no quotidiano, quando comparadas às estrelas do ecrã, que fez do cinema o maior impulsionador das indústrias de cosmética e dos salões de beleza nos Estados Unidos. A estratégia de encenação de Sternberg consiste precisamente em tirar partido da contradição fundamental entre a gratificação da fantasia e a consciência da sua impossibilidade real, entre o sublime momento da pose e o decurso inevitável do movimento. Os mais belos planos de Marlene Dietrich são aqueles em que a actriz parece assumir a eternidade virtual do instante perfeito, esquecendo-se e fazendo-nos esquecer da duração da narrativa. O glamour é um elemento puro de ficção, uma vez que o seu propósito consiste em estilizar as qualidades fotogénicas do modelo através do milagre do claro-escuro e do engenho do espectáculo. Primeiro, dramatizar a beleza feminina fazendo-a convergir em partes do corpo da actriz transformadas em fetiche, depois dramatizar todo o universo da ficção por contaminação, ampliando os focos dessa beleza até ganhar a intensidade de eco emocional de todos os equívocos relacionais em jogo no filme. Os véus no rosto de Marlene desdobram-se e multiplicam-se nos filmes através das redes, das malhas, das peles, das plumas, dos chapéus, dos candeeiros, dos adereços, da névoa, do fumo ou da chuva que se interpõem entre o olhar da câmara de filmar e o espaço da 201
ficção erotizado pela presença da estrela e pela proliferação perversa dos seus objectos. A obsessão de Sternberg em preencher todos os interstícios do décor, suprimindo os espaços mortos dos planos, não deve ser unicamente atribuída ao decorativismo da cenografia ou à fobia do vazio e da inércia típica da ideologia do espectáculo, mas sobretudo a uma sábia táctica visual de ocultação-desocultação e de difusão do desejo assente num dos dispositivos basilares do cinema: a escoptofilia. Em termos genéricos, o prazer de ver sem ser visto ( voyeurismo dos espectadores) e o prazer de se dar a ver (exibicionismo das estrelas) encontram-se socialmente regulados pela instituição cinematográfica. A invisibilidade da técnica e o apagamento das marcas de enunciação da narrativa criam a ilusão de um mundo de ficção hermético e autónomo que facilita a separação entre o observador e o observado, tanto mais eficaz quanto é certa a ausência física do objecto visto. O filme de Hollywood, entre os anos vinte e os anos cinquenta, não faz mais do que reproduzir a divisão dos papéis típica da sociedade patriarcal, na qual a mulher se assume como o elemento passivo e o homem como o elemento activo na troca dos olhares e na repartição das tarefas produtivas da ficção: invariavelmente, são os homens que resolvem os conflitos dramáticos, quer por força da acção física quer pela aproximação às instâncias do poder decisório. Daí que o impulso do prazer voyeurista escolha como objecto erótico de eleição a figura feminina. Nas indústrias do espectáculo a mulher apresenta-se como um equivalente geral do desejo para ambos os sexos — papel que Marlene desempenhou à perfeição cumprindo a ambiguidade da imagem de marca que lhe fora atribuída pelo departamento de publicidade da Paramount para concorrer com a androginia mole de Greta Garbo ao serviço da MGM - Marlene, a mulher que os homens desejam e as mulheres invejam. Por muito que custasse a Sternberg, esta imagem velada de sedução bissexual, tipificada nos bonés e fardas militares, e sobretudo no célebre smoking masculino que Marlene usava nos números musicais, era inseparável da teatralização de alguma hipocrisia moral da América que proporcionava personagens instantâneos — reconhecidos de imediato, sem necessidade de passado nem perspectivas de futuro — perdidos de paixão em países distantes, ainda mais exóticos devido às extravagâncias da reconstituição em estúdio: África 202
em Morroco (1930), Áustria em Dishonored (1931), China em Shangai Express (1932), Rússia em The Scarlet Empress (1934), Espanha em The Devil is a Woman (1935). Blonde Venus (1932) é o único filme da série que inscreve directamente a sociedade americana na ficção, embora, como nos restantes títulos, esteja afastada à partida qualquer veleidade realista. Stemberg recusava-se a aceitar a pesquisa sociológica ou histórica que pudesse modificar ou pôr em causa as suas ideias. O propósito era dar asas à imaginação na esperança de que a fantasia abrisse as portas menos óbvias ao ar do tempo. Escrito por S. K. Lauren e rescrito por Jules Furthman a partir de uma história original de Stemberg, o argumento de Blonde Venus conheceu várias versões, basicamente devido a pressões de Lamar Trotti — censor oficial do gabinete Hays que seria, mais tarde, um argumentista muito requisitado em Hollywood —e a desentendimentos pontuais entre o realizador e o executivo B. P. Schulberg. O esquema da história é aparentemente simples. Helen ( Marlene Dietrich), casada com o modesto cientista Ned (Herbert Marshall), gravemente doente, decide reatar a carreira de cantora de cabaret para arranjar dinheiro que permita tratar a doença do marido. Num dos espectáculos musicais, em que actua mascarada de macaco, com o nome artístico de Blonde Venus, Helen conhece o elegante milionário Nick (Cary Grant) com quem estabelece uma relação íntima em troca de um cheque. No regresso da Europa, onde entretanto fora tratar-se, Ned descobre a infidelidade da mulher e separa-se dela tentando ficar com a custódia do filho do casal. Helen foge com a criança e percorre no anonimato o interior da América fazendo trabalhos de ocasião e prostituindo-se. Apanhada pela polícia e obrigada a entregar o filho ao marido, Helen vai para Paris onde conquista o êxito e a fama como actriz de music-hall. De regresso aos Estados Unidos, Helen abdica da carreira artística e das propostas do seu amante milionário para regressar a casa, onde a esperam o perdão do marido e o amor do filho. Escusado será dizer que nenhuma sinopse faz justiça à invulgar argúcia e beleza do filme. Mas os censores não analisaram o filme, analisaram o argumento e, como veremos, as duas fases do projecto estão longe de ser a mesma coisa. Numa versão inicial, que a Paramount tentou impor a Sternberg, Helen continuava a carreira de sucesso acabando por casar com Nick depois de descobrir que o marido arranjara 203
uma amante. Numa visão típica de produtor, B. P. Schulberg propunha um clímax com a personagem da estrela em trajectória de ascensão social, de efeito comercial garantido junto do público popular, e pretendia tirar partido da constituição do casal Marlene Dietrich-Cary Grant, porventura mais proveitosa, em termos de mitologia dos actores, do que a do casal Marlene Dietrich-Herbert Marshall. Porém, num pormenorizado relatório que a Administração do Código de Produção enviou à Paramount, Lamar Trotti explicava porque é que esta versão lhe parecia moralmente inaceitável: o desfecho caucionava claramente a infidelidade da mulher, através do seu casamento com o amante, acabando por culpabilizar o marido por um novo adultério e pela separação entre o filho e os pais. A relação entre Helen e o amante rico, em princípio motivada pelo sacrifício de arranjar dinheiro para salvar o marido pobre, acabava por ter uma resolução que contradizia a ideia da abnegação da mulher e sugeria a sua satisfação na prática do adultério, recompensada com o novo casamento e com o triunfo no palco. A questão central, no entendimento do censor, consistia em não haver, neste final, qualquer espécie de punição para as transgressões cometidas pela personagem interpretada por Marlene. A recomendação mais frequente nas admoestações dos censores de Hays aos filmes de Hollywood tinha como objectivo a aplicação da célebre fórmula que ficou conhecida pela designação de valores morais compensatórios. Os personagens que não se conformavam com a moral vigente tinham de ser castigados ou sofrer um processo de regeneração que os redimisse da prática do mal. A versão de Stemberg, que acabou por ser autorizada e filmada, propõe o desfecho compensatório típico, uma vez que reforça a submissão da mulher no seio da unidade familiar. O relatório de aprovação do Gabinete Hays, desta vez assinado por Jason Joy, secretário da Comissão em Hollywood, invocava três pontos sintomáticos em defesa da versão de Stemberg. Primeiro, a infidelidade da mulher está justificada por ser iniciada com a intenção de salvar a vida do marido. Segundo, as cenas de prostituição, quando a mulher foge do marido e do amante, estão justificadas pelo amor ao filho, que tem de sustentar sozinha. Terceiro, a glória e o luxo em que a mulher vive quando é actriz de variedades em Paris não a fazem feliz, pelo que regressa a casa. Levando o raciocínio até à caricatura, o parecer de Joy concluía elogiando o carácter altamente moralista da história. 204
Apesar do filme ter sofrido alguns cortes, nomeadamente numa cena de cabaret em que Marlene cantava e dançava de modo demasiado sugestivo por entre bailarinos negros e ritmos primitivos, Stemberg deve ter sorrido ao saber que os vigilantes de Hays reconheciam no filme os indispensáveis valores morais compensatórios, porque o que as imagens mostram está longe de ser tão linear. A representação de Marlene, irónica e ambígua, mas muito segura, nunca se ajusta ao convencionalismo das situações. A relação estreita, estampada na malícia do rosto da actriz, entre a determinação pela conquista da independência económica e o prazer da liberdade sexual da personagem, fora do matrimónio, são de todo incompatíveis com a aceitação literal do conteúdo do argumento. Poder-se-ia mesmo dizer que o trabalho de encenação e de direcção de actores visa contrariar sistematicamente a evidência dos acontecimentos. O leque de motivações sugeridas pela evolução do comportamento da mulher e pela sua capacidade de iniciativa na organização da narrativa tendem a minar a ideia primária do sacrifício e da devoção à figura do marido. Se dúvidas restassem, o glamour da imagem de Marlene, vincando a sedução como forma de poder, face à apatia dos homens que a perseguem, vem dissipá-las: o aparente conformismo do final feliz é apenas um momento efémero na passagem vertiginosa da mulher para outro mundo, incompatível com toda a mediocridade que deixou para trás e da qual só se salva a criança. Os filmes de Stemberg-Dietrich, em particular Blonde Venus, contribuíram decisivamente para consolidar um género de filmes, muito popular nos anos trinta e seguintes, que foi outro quebra-cabeças para a Comissão Hays: o ciclo da mulher perdida (fallen woman), herança do melodrama vitoriano adaptado ao modo de vida americano. A ousadia do cineasta em reunir, na mesma personagem activa, os dois arquétipos femininos do confronto moral burguês — o dilema entre a mãe e a puta, entre o lar e a marginalidade — é sem dúvida um factor acrescido de perturbação ideológica. A característica maior do género, no qual a figura da mulher fatal aparece invariavelmente como a causa da instabilidade no universo disciplinado do homem, reforça ainda mais a disponibilidade voyeurista do público para violar a intimidade das disputas conjugais e sentimentais dramatizadas pelo cinema. Que Stemberg fizesse de assuntos tão sérios filmes simultaneamente magníficos e irrisórios é o que grande parte do público e da 205
indústria sempre teve dificuldade em aceitar. John Howard Lawson, por exemplo, o mais interveniente comentador de esquerda de Hollywood, antecipou algumas das objecções feministas ao mito de Dietrich ao condenar o artifício do glamour como uma redução mercantil da actriz a objecto sexual. Muito atento aos padrões sociais do cinema americano — Film in the Battle of Ideas, 1953 —, Lawson detecta na criação do glamour das estrelas femininas uma condição primária da estratégia de associação da mulher aos impulsos do irracional e do libidinal, em contraste com os valores racionais e civilizadores encarnados pelos heróis masculinos, a quem compete restabelecer a ordem. Mesmo nos filmes de gangsters, há sempre uma mulher que instiga e provoca a queda do herói, sugerindo que a violência e o sadismo remetem em última instância para uma agressividade de carácter sexual de que a mulher é culpada. Daí que os filmes centrados no fascínio da mulher fatal façam simultaneamente apelo à urgência social de repressão dos impulsos primitivos da sexualidade feminina — tipificados em Blonde Venus na aparição de Marlene disfarçada de macaco a dançar ao ritmo de música africana — submetendo a fêmea transgressora às leis da sociedade patriarcal capitalista. Aparentemente alheio às inquietações morais e ideológicas do cinema, Sternberg considerava os argumentos como meros pretextos para fazer filmes cujo instrumento de escrita ele atribuía à câmara de filmar, na medida em que a objectiva seria uma extensão do olhar do cineasta. Assim, o realizador é, no mesmo gesto, aquele que revela e transforma a fotogenia do mundo, o escultor que molda o barro humano dos actores e o escritor que escreve as imagens da ficção com a luz, os cenários, os enquadramentos, os movimentos, o som e a montagem. A estrutura visual do filme, definida pela realização, sobrepõese a todas as outras ao nível da percepção estética, do impacto emocional e do processo de significação.
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A percepção visual do medo:
Sabotage (1936), Hitchcock.
23 O PRAZER DA ANSIEDADE Durante a Primeira Guerra o financiamento de filmes de ficção em Inglaterra foi drasticamente reduzido e os estúdios de cinema encerrados. O esforço bélico e os imperativos de propaganda favoreceram o desenvolvimento do filme documental, em particular o jornal de actualidades, que se manteria como um dos sectores fortes da produção britânica até ao advento da televisão. Mas a população continuou a ver nas salas as efabulações que lhe chegavam do novo mundo. Entre 1914 e 1916 a importação do cinema americano duplicou, aumentando de modo considerável o seu nível de popularidade e de rentabilidade. Em meados dos anos vinte, apenas 5 por cento do cinema exibido nas salas do Reino Unido era de produção nacional. Aproveitando a fortuna do cinema americano na Europa, Adolph Zukor e Jesse Lasky não perderam tempo. Vieram a Londres depois do Armistício e mandaram construir uma delegação da Paramount na Poole Street, onde ficou situado o estúdio de Islington. Os anúncios dos filmes ingleses a produzir pela companhia americana foram publicados na imprensa londrina com grande aparato, prometendo a futura 207
adaptação cinematográfica de clássicos da literatura e do teatro, na tradição que a Famous Players-Lasky Corporation tinha consolidado na América. Um leitor particularmente atento desses anúncios foi um jovem empregado no departamento de publicidade da Henley Telegraph and Cable Company: Alfred Hitchcock. Depois de recortar os anúncios, Hitchcock leu os romances originais dos primeiros projectos divulgados e apresentou-se no estúdio de Islington com uma série de desenhos que exemplificavam a sua concepção visual dos cenários, da atmosfera e dos intertítulos dos filmes em preparação. Foi imediatamente admitido como assistente de realização e decorador. Um dos realizadores com quem Hitchcock trabalhou em Islington, em 1922, foi George Fitzmaurice, cenógrafo e argumentista francês a caminho dos Estados Unidos, onde mais tarde teria a oportunidade de dirigir estrelas como Negri, Valentino, Colman e Garbo. Habituado a supervisar a construção dos décors em estúdio e a executar pormenorizados desenhos dos planos de filmagens (storyboards), Fitzmaurice ganhava rapidamente a confiança dos técnicos e dos actores pela seriedade que punha na preparação da rodagem, limitada ao cumprimento das directrizes antecipadamente conhecidas por todos os intervenientes. As filmagens com Fitzmaurice decorriam na maior tranquilidade, satisfazendo os prazos e os mapas de produção, o que era muito apreciado pelos produtores. Este método de trabalho, que Hitchcock viria a adoptar, reduzia consideravelmente os imprevistos e os custos inerentes à produção cinematográfica. Como o público continuasse a preferir os filmes de Hollywood aos filmes nacionais europeus, os estúdios americanos mudaram de estratégia — em vez de empregarem realizadores europeus nos estúdios ingleses começaram a convidar os realizadores e actores europeus de renome para Hollywood. Em Janeiro de 1924 a Paramount cancelou a produção de filmes em Inglaterra e vendeu o estúdio de Islington a Michael Balcon, o mais importante e dinâmico produtor inglês em actividade até finais dos anos cinquenta. A estratégia de Balcon, apoiada na adaptação de êxitos do teatro, visava o fabrico de estrelas inglesas e o fortalecimento da co-produção europeia. Os resultados foram, no entanto, escassos. Hitchcock passou a trabalhar para Balcon como assistente de realização de Graham Cutts, cujo talento e organização estavam longe de igualar o modelo de Fitzmaurice. Um dos filmes em que Hitchcock 208
trabalhou com Cutts, intitulado The Blackguard (1924), foi rodado em Berlim, ao abrigo de um acordo de co-produção que Michael Balcon e Erich Pommer tinham assinado a fim de tentar debelar a crise da produção europeia. Nos estúdios da UFA, enquanto decorria a preparação do filme de Cutts, Hitchcock teve oportunidade de assistir às filmagens de obras de Mumau e de Fritz Lang. Ficou deveras impressionado com a disciplina, o rigor e a beleza plástica dos filmes alemães que então emergiam no apogeu expressionista. Ao longo da sua carreira, em inúmeras entrevistas, Hitchcock haveria de repetir, com uma convicção persistente, a herança do período mudo alemão como um princípio inviolável da sétima arte: o cinema deve contar as histórias e expressar as ideias através de meios puramente visuais. Michael Balcon depressa se deu conta das qualidades de Hitchcock, cujo empenho nos vários aspectos da produção ultrapassava as meras incumbências do assistente, e deu-lhe a oportunidade de realizar os seus próprios filmes. Em 1925, com 24 anos, Hitchcock dirige na Alemanha dois filmes de encomenda — The Pleasure Garden e The Mountain Eagle — e, no ano seguinte, no estúdio de Islington, realiza o que considera ser o seu primeiro filme pessoal. Vagamente inspirado na figura de Jack o Estripador, The Lodger (1926) conta como um desconhecido que aluga um quarto em casa de uma modesta família inglesa se toma suspeito de ser o assassino de mulheres que aterroriza Londres. Na primeira versão de The Lodger era intenção de Hitchcock acabar a narrativa em plena ambiguidade, sem sabermos se de facto o inquilino sinistro era o assassino ou não. Mas o papel foi atribuído a Ivor Novello, um actor muito popular em Inglaterra nessa época, pelo que o produtor e o distribuidor se opuseram terminantemente à hipótese de os espectadores pensarem que o personagem de Novello podia ser o assassino da história. Hitchcock iria enfrentar o mesmo problema na América, onde os seus actores preferidos — Cary Grant e James Stewart — jamais aceitariam interpretar personagens de criminosos. A lição da simpatia das estrelas, enquanto factor de mobilização emocional, de identificação moral e de êxito comercial, seria aprendida e refinada por Hitchcock, depois de alguns percalços de reflexão em que o seu período inglês foi fértil. Hitchcock fez uma preparação rápida e exaustiva do filme. O guião de rodagem estava planificado ao pormenor, com indicação dos cenários, adereços, roupas e luzes a utilizar nas diversas cenas, incluindo 209
um desenho completo para cada plano de rodagem. Balcon ficou agradavelmente surpreendido por ver a película praticamente pronta no papel, de modo que nem se preocupou em seguir de perto as filmagens. Os famosos storyboards e dossiers de produção de Hitchcock, igualmente elogiados por técnicos e actores, não eram apenas uma garantia de competência e economia para os produtores, eram, fundamentalmente, uma promessa de segurança para o próprio realizador. Não deixa de ser interessante assinalar uma certa homologia formal entre o universo da ficção de The Lodger, que inaugura uma matriz temática importante na obra de Hitchcock, e o método de trabalho do realizador, que procura prever as dificuldades técnicas da filmagem a fim de as resolver de antemão. Assim como, no filme, as pessoas vivem aterrorizadas pela ameaça não identificada do assassino — sabemos que existe o perigo mas não sabemos onde e quando acontece: é um dos princípios do suspense —, também durante as filmagens o realizador sabe que muitas coisas podem não correr como ele deseja e arruinar-lhe o projecto. A prática do storyboard, em Hitchcock como em muitos outros produtores e realizadores, é um recurso porventura eficaz de combate ao imprevisto e ao improviso, por outras palavras, é um meio racional de redução da ansiedade profissional provocada pelos factores aleatórios implicados na produção de um filme. A súbita irrupção do caos, do absurdo e da violência na aparente harmonia da vida quotidiana, que caracteriza o ponto de partida da maior parte dos filmes de Hitchcock, é sem dúvida um dos traços maiores da experiência da angústia vivida nas sociedades contemporâneas. A severidade paternal, a ameaça e as privações da guerra, cujos efeitos conheceu durante a infância, e a leitura fascinada de Edgar Allan Poe, seu escritor de cabeceira, indicaram a Hitchcock as duas dimensões da percepção do medo que haveria de marcar não só o seu cinema como grande parte da produção industrial que teima em imitálo. A simulação do medo real, conseguida pela projecção sensorial do público no mundo das imagens, é indissociável da consciência do medo sem verdadeiro perigo, apreciado no conforto da sala de cinema convenientemente mantida às escuras. A excitação do medo, enquanto intuição imaginária desencadeada pelos estímulos do espectáculo, é uma forma altamente elaborada de gratificação emocional cujos mecanismos formais Hitchcock analisou e criou à perfeição: «O medo é uma emoção que as pessoas gostam de sentir quando sabem que estão em 210
segurança. Quando uma pessoa está calmamente sentada em casa a ler uma história de terror, mesmo assim sente-se segura. Podemos naturalmente tremer, mas uma vez que estamos num ambiente familiar e sabemos que é só a nossa imaginação que reage à leitura, sentimos um grande alívio e felicidade — como alguém que bebe um refresco depois de ter muita sede». Interessado em ter na sua produtora — Gainsborough Pictures — os melhores colaboradores disponíveis, Michael Balcon convidou Ivor Montagu para montador do filme de Hitchcock. Conhecido como crítico do Times e do Observer, muito estimado como fundador e presidente da London Film Society — um dos primeiros clubes de cinema europeus que deu a conhecer em Inglaterra filmes inéditos de Griffith, Stroheim, Murnau, Lang e Eisenstein Ivor Montagu era filho de um dos mais poderosos banqueiros britânicos, o que não o impediu de militar ao lado do movimento socialista. Montagu viu The Lodger, que achou excelente, reduziu o número de intertítulos de trezentos para cerca de oitenta e pediu a Hitchcock que refilmasse duas cenas. O filme teve um acolhimento entusiástico, tanto por parte da imprensa como do público. Hitchcock fez mais dois filmes mudos com Balcon e Montagu e depois assinou um contrato com o produtor John Maxwell, da British Intemational Pictures, para quem dirigiu dez filmes entre 1927 e 1932, tornando-se o mais conceituado e bem pago realizador inglês. Pode mesmo dizer-se que, nos anos trinta, Hitchcock era provavelmente o único realizador cujo nome o público inglês conhecia melhor do que o dos actores. O exercício profissional da publicidade, antes de se tomar cineasta, tinha-lhe ensinado o valor comercial de uma forte imagem de marca. Assim, começou a aparecer em todos os filmes que dirigia, destacava o seu nome na imprensa e nos anúncios, programava as suas intervenções, finalmente criou uma empresa da publicidade de uso estritamente pessoal — a Hitchcock Baker Produtions — cuja única missão consistia em gerir a sua imagem pública e justificar as despesas de representação, que abatia nos impostos. Este aspecto da carreira do cineasta não é de somenos importância, na medida em que revela até que ponto, muito antes de chegar a Hollywood, Hitchcock tinha uma profunda compreensão da natureza do espectáculo cinematográfico enquanto modelo da sociedade do espectáculo. As expectativas sociais desencadeadas nos meios de comunicação pelo fabrico ou pela estreia de um determinado filme — digamos um filme 211
de Hitchcock — geram um efeito promocional que não anda longe do famoso efeito de suspense, como se o mundo da ficção começasse de facto nos nossos hábitos de vida muito antes de vermos o filme. Esta estratégia tinha ainda a vantagem de não deixar dúvidas nem quanto à identidade da vedeta principal nem quanto à autoria do filme, ambas centradas no nome do cineasta que assim se via provido de maior autonomia criativa e poder negociai junto dos produtores e exibidores. Entre 1934 e 1937 Hitchcock volta a trabalhar para Michael Balcon, agora na companhia Gaumont-British Picture, com quatro filmes decisivos que esboçam e sistematizam a bagagem retórica da dramaturgia da ansiedade que viria a celebrizar Alfred Hitchcock como um dos grandes criadores de formas e mitos do século XX: The Man Who Knew Too Much (1934), The 39 Steps (1935), Secret Agent (1936), Sabotage (1937). Estes quatro filmes contam ainda com a produção executiva de Ivor Montagu entretanto regressado de Hollywood e da sua frustrada colaboração com Eisenstein — e com o trabalho de escrita dos argumentos de Charles Bennett, dramaturgo de quem Hitchcock já tinha adaptado uma peça para a realização do primeiro filme sonoro inglês: Blackmail (1929). A meio da manhã, quando Charles Bennett chegava a casa de Hitchcock, para trabalharem no argumento de The Man Who Knew Too Much, o realizador recebia-o na sala, sentado numa enorme poltrona de veludo, vestindo um pijama de seda preto. Hitchcock parecia nunca estar com pressa para discutir as cenas que o argumentista entretanto escrevera. Tomava um lauto pequeno almoço, entre conversas de circunstância, até o ambiente estar suficientemente descontraído para as ideias do filme surgirem como se se tratasse de uma brincadeira. Antes de existir qualquer história coerente, Hitchcock definia as características das personagens, expunha planos visuais fora de contexto, sugeria situações complicadas que Bennett tinha de integrar na estrutura da intriga sem prejuízo da lógica narrativa. O método de trabalho de Bennett — inspirado nas técnicas de escrita de folhetins e retomado quase como um dogma nas recomendações dos manuais de escrita de thrillers — consistia em conceber primeiro os episódios finais, nomeadamente o clímax e o desfecho, de modo a poder encaixar as ideias visuais e dramáticas de Hitchcock sem perder de vista a perspectiva global e o objectivo essencial da progressão narrativa. O ponto de chegada determina o ponto de partida. Utilizando uma 212
metáfora de Hitchcock, o filme deve avançar vertiginosamente, como um comboio que atravessa o túnel da montanha, sem parar, com transições rápidas e inesperadas, levando o espectador a interrogar-se: E agora, que vai acontecer? O ponto de partida de The Man Who Knew Too Much marca, como se tornará regra em Hitchcock, a passagem de uma situação de aparente banalidade a uma situação excepcional de constante perigo que os protagonistas não desejam nem controlam. Bob (Leslie Banks) e Jill (Edna Best), um casal de ingleses, acompanhados pela filha Betty ( Nova Pilbeam), de férias em Saint-Moritz, conhecem um agente francês, Bernard (Pierre Fresnay), que é inesperadamente assassinado à sua frente e lhes confia, antes de morrer, uma mensagem secreta que pode impedir um atentado político susceptível de provocar uma guerra na Europa. A fim de silenciar o casal inglês, os espiões inimigos raptam Betty, forçando os pais a intervir directamente nas acções que conduzem ao salvamento da filha e ao fracasso do atentado contra um embaixador estrangeiro num concerto do Albert Hall. O ponto de chegada parece coincidir precisamente com as duas grandes sequências de suspense que descrevem o salvamento do diplomata no teatro e o salvamento da filha do casal no reduto dos espiões. Sem dúvida que essas sequências são fundamentais para o crescendo da tensão dramática, para a resolução da intriga, para o reforço da atenção dos espectadores, mas não constituem o núcleo mais interessante do filme que consiste em revelar a maneira como os pais enfrentam a crise de ansiedade provocada pelo rapto da filha, independentemente dos segredos políticos que podem lançar a Europa no Inferno. O pretexto da construção do arco emocional que percorre o filme fica praticamente esquecido durante o trajecto narrativo: tal como os pais, a cujo comportamento e ponto de vista aderimos, estamos mais interessados em conhecer o destino da criança do que o conteúdo da mensagem secreta que motivou a acção. A este pretexto de construção das intrigas de suspense chamou Hitchcock o MacGuffin. Vale a pena escutar o próprio Hitchcock, em conversa com Truffaut, explicar o que entende por MacGuffin. «Sabe que Kipling escrevia frequentemente sobre as Índias e sobre a luta dos Britânicos contra os indígenas na fronteira do Afeganistão. Em todas as histórias de espionagem que evocam esse ambiente havia, invariavelmente, o roubo dos planos da fortaleza. Era o MacGuffin. MacGuffin é, portanto, o nome que se dá a 213
este género de acção: roubar... os papéis, roubar... os documentos, roubar... um segredo. Na realidade isto não tem importância e os lógicos fazem mal em procurar a verdade no MacGuffin. No meu trabalho, sempre pensei que os "papéis", ou os "documentos", ou os "segredos" da fortaleza, devem ser extremamente importantes para as personagens do filme, mas sem qualquer importância para mim, narrador. Agora, de onde é que vem o termo MacGuffin? Lembra um nome escocês e podemos imaginar uma conversa entre dois homens num comboio. Um diz ao outro: "Que embrulho é aquele que você pôs na rede?" O outro: "Ora! É um MacGuffin". E o primeiro: "O que é isso, um MacGuffin?" O outro: "Olhe, é um aparelho para apanhar leões nas montanhas Adirondak!" O primeiro: "Mas não há leões nas Adirondak!" Então o outro conclui: "Nesse caso não é um MacGuffin". Esta anedota mostra-lhe o vazio do MacGuffin... o nada do MacGuffin» . No filme seguinte, The 39 Steps, adaptado de um romance de John Buchan, Hitchcock e Bennett utilizaram um MacGuffin semelhante. Um jovem canadiano, Hannay (Robert Donat), foge de Londres para a Escócia, depois de uma mulher que conhecera casualmente no teatro ter sido assassinada no seu apartamento. A mulher deixa a Hannay uma mensagem que lhe permite descobrir uma rede de espionagem cujo objectivo é tomar conhecimento da fórmula matemática relacionada com a construção de um novo motor de avião. Suspeito da morte da mulher, Hannay é perseguido pela polícia e, depois, perseguido também pelos espiões que pretendem eliminá-lo. O MacGuffin é, evidentemente, a fórmula matemática, que faz correr o protagonista, a polícia e os espiões, numa série de peripécias repletas de humor e suspense que são a verdadeira razão de ser do filme. Depois de pôr a história em movimento, o MacGuffin apaga-se, dando lugar aos confrontos e às dificuldades que o protagonista tem de vencer. O MacGuffin, cujo teor é completamente irrelevante, justifica e alicerça a estrutura da dupla perseguição fazendo coincidir o itinerário geográfico dos locais percorridos pelo protagonista com a progressão da própria intriga. Este esquema do filme-itinerário, em que cada etapa da história nos conduz a cenários diferentes, nos revela uma nova faceta dos personagens e faz avançar a acção de modo episódico mas irreversível, seria várias vezes recuperado por Hitchcock e de tal modo glosado pelo cinema-espectáculo que passou a constituir um subgénero de pleno direito. 214
A propósito de Secret Agent e de Sabotage, é o próprio Hitchcock que assinala, nos preciosos diálogos com Truffaut, dois erros de concepção dramática que ele não voltaria a cometer e que merecem ser esclarecidos, dada a importância de que se revestem nas formas narrativas do cinema industrial. O protagonista de Secret Agent, cujo argumento é baseado em duas novelas de Somerset Maugham, é enviado pelos serviços ingleses à Suíça para liquidar um espião inimigo cuja identificação desconhece. Pouco entusiasmado com a sua missão, o protagonista acaba por matar por engano um turista inocente. O erro básico desta intriga não está tanto na troca dos homens abatidos — equívoco tipicamente hitchcockiano que vem mostrar a contingência e o irrisório da vida humana nos conflitos políticos — como no facto do protagonista não incorporar energia dramática suficiente para conduzir a acção, visto que é ele o primeiro a duvidar do interesse e da eficácia da sua missão. Nada pior num thriller do que ter um protagonista passivo, contemplativo ou hesitante, incapaz de galvanizar a ficção e a aderência dos espectadores. Em suma, no dizer de Hitchcock, «num filme de aventuras, a personagem principal deve ter um objectivo, é vital para a evolução do filme e para a participação do público, que deve apoiar a personagem e, quase diria, ajudá-la a atingir esse objectivo». Em Sabotage, adaptado de uma novela de Joseph Conrad, o realizador apura a distinção e a articulação entre as três premissas básicas da dramaturgia da ansiedade a que o seu nome ficará indelevelmente associado na história das formas cinematográficas: o mistério, a surpresa e o suspense. No filme, o sabotador, Verloc (Oscar Homolka), é gerente de uma sala de cinema londrina, em cujas traseiras vive com a esposa, Sylvia (Sylvia Sidney), e o jovem irmão dela, Steve (Desmond Tester). Um dia, impossibilitado de ir colocar uma bomba no centro da cidade, Verloc pede a Steve para entregar um pacote com latas de filme em Piccadilly. Os rolos de película escondem a bomba que o espectador vê ser preparada e accionada para uma certa hora. O rapaz demora-se pelo caminho e a bomba explode num autocarro, matando-o. Ao saber o sucedido, durante o jantar, Sylvia mata Verloc com uma faca de cozinha. O erro que Hitchcock reconhece em Sabotage prende-se com a principal sequência de suspense que culmina na morte do rapazinho. Sensível à reacção da crítica, que elogiou o filme lamentando a 215
crueldade com que o cineasta solicitou e frustrou a empatia do público, ao deixar morrer a criança inocente num momento de grande tensão, Hitchcock não voltaria a contrariar os mecanismos de identificação do espectador, certo de que tal procedimento corre sempre o risco de cortar a corrente de satisfação prevista pela função social do espectáculo. «Houve um gravíssimo erro da minha parte: o rapazinho que transporta a bomba. Quando uma personagem passeia uma bomba sem saber, como um simples embrulho, cria-se no público um suspense muito forte. Ao longo do trajecto, a personagem do rapaz torna-se demasiado simpática para o público, que não me perdoou que a seguir o tenha feito morrer, quando a bomba explode com ele no autocarro». O cineasta não podia ser mais claro, sobretudo se atendermos a que defende a hipótese de fazer obras sem happy-end, desde que o público encontre no conjunto da ficção motivos suficientes de saciedade emocional. Um motivo de saciedade frequente nos filmes de Hitchcock é justamente o prazer das emoções fortes provocadas pelo desconhecido, pela suspeição, pelo medo e pela insegurança que percorre a sua obra como uma onda de choque, varrendo à passagem os tempos mortos, as cenas de transição e os diálogos de exposição redundante, como se o drama fosse apenas uma vida de que se eliminaram os momentos aborrecidos. Na tradição da literatura policial inglesa, sob a égide de Conan Doyle, autor das célebres deduções de Sherlock Holmes, o mistério constitui o principal pólo de sedução do leitor. O enigma em sentido lato, enquanto motor de curiosidade e protocolo de um conhecimento diferido, é sem dúvida essencial às artes narrativas, mas no romance policial clássico, cristalizado em torno do deciframento das pistas e da descóberta do criminoso (whodunnit), a lógica formal tem tendência a dominar por completo a narrativa transformando-a num exercício de racionalidade. Ora, o cinema de Hitchcock mostra-se pouco empenhado em utilizar a ficção como mero mecanismo de raciocínio; não é o mistério do acto criminoso em si mesmo que o interessa, mas sim a ambiguidade do destino, do carácter e das motivações humanas que se abatem como dilemas morais num mundo cinzento que se habituou à banalidade do mal. Porque está mais interessado em explorar o cinema enquanto campo aberto aos abismos do irracional e à explosão das emoções intensas, Hitchcock apenas se serve do mistério e da surpresa para manter e reforçar os dispositivos da incerteza, da angústia e do suspense. 216
Tomemos o exemplo da bomba, várias vezes referido pelo cineasta. Dois homens estão numa sala, sentados à mesa, a conversar. De repente, uma bomba explode, matando-os. É o efeito de surpresa. Nem os personagens nem nós, espectadores, sabíamos da existência da bomba debaixo da mesa e, por isso, fomos apanhados de surpresa. Voltemos à mesma sala, mas desta vez, antes dos dois homens entrarem, mostramos um terrorista a colocar a bomba debaixo da mesa e a regular o mecanismo de relógio da explosão para as três horas. Depois do terrorista desaparecer, os dois homens entram na sala, sentam-se e começam a conversar. Por cima da mesa está um relógio de parede que marca duas horas e vinte minutos. Está criado o mecanismo de suspense, porque nós, espectadores, sabemos mais do que os personagens, sabemos o que lhes pode acontecer, e cada minuto que passa aumenta o risco de vida daqueles homens. Se um ou os dois personagens sentados à mesa tiverem, em cenas anteriores, suscitado um sentimento de simpatia junto do público, o suspense aumenta, porque somos mais sensíveis ao destino das pessoas que conhecemos. Enquanto o efeito de surpresa, por mais forte que seja, dura uns escassos segundos, o efeito de suspense dura o tempo de uma ou várias cenas, de acordo com os processos de contracção ou dilatação temporais formulados pela planificação e pela montagem. Na cena anteriormente descrita o mistério reside na identificação do terrorista e no esclarecimento das razões que o levam a executar o atentado. Podem ser pontos importantes para o desenvolvimento da história mas não são os focos essenciais de tensão dramática que criam o suspense da cena. Em Sabotage ficamos a saber quem é o criminoso logo na primeira sequência do filme. Quando, mais tarde, por imposição dos inimigos de Inglaterra, o sabotador entrega o embrulho com a bomba à criança, nós, espectadores, sabemos a hora a que o engenho vai explodir e o perigo que o miúdo corre. Eis um suspense que dá tudo a saber — quem, como, quando e porquê — uma vez que só assim o envolvimento do afecto do espectador fica completo. Neste sentido, o suspense hitchcockiano, assente na acção imediata e na cumplicidade do espectador, afasta-se do mistério policial baseado exclusivamente nas situações inextricáveis que requerem uma reflexão intelectual distanciada do leitor, ou do espectador, ao longo da narrativa. No Outono de 1936, por imperativos de ordem financeira, os estúdios da Gaumont-British fecham, deixando em actividade apenas o 217
ramo da distribuição. Michael Balcon passa então para a filial britânica da Metro-Goldwyn-Mayer e, dois anos depois, toma conta dos estúdios Ealing onde, durante vinte anos consecutivos, continuará a desenvolver um esforço notável em prol do cinema inglês. Charles Bennett ainda acompanha Hitchcock na preparação do próximo filme, Young atui Innocent (1937), mas antes da rodagem parte para Hollywood onde o espera um contrato de argumentista com a Universal Pictures. Ivor Montagu associa-se a uma pequena equipa que, ao lado dos republicanos, filma um documentário sobre as atrocidades da Guerra Civil de Espanha. Durante a Segunda Guerra, Montagu coordena o departamento de cinema do Ministério da Informação do Reino Unido, permanecendo, até ao fim da sua vida, sócio honorário da Associação Britânica de Argumentistas e Presidente da Film Society. Alfred Hitchcock roda mais dois filmes em Inglaterra, devido a compromissos contratuais. Em Março de 1939 vende a maior parte das suas propriedades e embarca, com a família, para os Estados Unidos. De entre os vários convites recebidos, Hitchcock optou pela proposta que lhe deixava, aparentemente, mais liberdade criativa e lhe garantia o prestígio de trabalhar com o mais invejado produtor de Hollywood: David O. Selznick.
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Estúdio de Hollywood nos
24 OS ESTÚDIOS E OS GÉNEROS Após a consolidação do cinema sonoro, no alvor dos anos trinta, com o país mergulhado numa profunda crise económica, Hollywood conhece o auge da popularidade. Nenhuma outra indústria ou forma de espectáculo, até ao advento da televisão no final dos anos quarenta, atinge o mesmo nível de publicidade, dentro e fora dos Estados Unidos. Apesar do carácter imprevisível da exploração dos filmes, o sistema dos estúdios americanos funciona com uma eficácia apreciável, repartindo actividades e zonas de influência conquistadas nas décadas anteriores. Esquematicamente, a estrutura dos estúdios assenta num oligopólio de oito corporações que dominam cerca de 90 por cento da actividade cinematográfica na América e, em média, mais de 70 por cento da exibição dos filmes em todo o mundo. Esse número restrito de empresas, tacitamente concertadas em cartel de modo a determinarem em conjunto as condições contratuais e comerciais da oferta global de filmes no mercado, constituem o núcleo industrial e financeiro do território virtual chamado Hollywood. Por ordem de importância do volume de negócios as oito corporações são: Paramount, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM — subsidiária 219
da cadeia de cinemas da Loew's Inc.), Warner Bros, 20th Century Fox, Radio-Keith-Orpheum (RK0), Universal, Columbia e United Artists. O que distingue as primeiras cinco companhias da era dos estúdios, entre 1928 e 1948, é o facto de integrarem numa única organização vertical as três actividades constitutivas da indústria cinematográfica — produção, distribuição, exibição — enquanto as três companhias restantes se limitam à produção e à distribuição, ficando assim na dependência das grandes corporações para poderem exibir os seus filmes nas melhores salas. Sendo sem dúvida as mais importantes produtoras, as cinco grandes (Big Five) devem no entanto a sua supremacia económica à cadeia de salas de estreia (first run) que controlam e que asseguram maior rentabilidade à circulação dos filmes. O domínio do circuito de estreias, tanto na América como no mercado internacional, permite às cinco grandes desenvolver a prática ilegal do block booking (aluguer de um conjunto liderado por filmes de êxito comercial garantido) e do blind booking (forçar o aluguer sem que o exibidor possa escolher os filmes), de modo a garantir o escoamento da totalidade da sua produção e a vedar o acesso a películas concorrentes. Os produtores ditos independentes, como Selznick ou Goldwyn, não podem pois dispensar o acordo de distribuição com os grandes estúdios, que detêm as estrelas, os meios técnicos e as salas mais lucrativas. Enquanto as salas de estreia se situam em zonas urbanas de grande concentração populacional ou movimento comercial, as salas de segunda e de terceira exibição, também chamadas de reprise, situam-se normalmente em zonas urbanas periféricas ou em localidades rurais, com preços de bilheteira mais acessíveis. Entre a saída do filme de estreia e a sua exibição nas salas secundárias medeia um compasso de espera (chamado clearance) que se destina a preservar o estatuto das salas de exclusividade e a recuperar as cópias que são revistas e enviadas para as restantes praças de exibição.
O sistema dos estúdios, indissociável da integração vertical das três actividades da indústria, do valor mercantil dos actores, da aposta comercial nos valores de produção, da eficácia narrativa, da divisão técnica do trabalho, da repartição controlada do mercado e da liquidação de novos concorrentes, fora ensaiado por Adolph Zukor nos anos dez, primeiro na Famous Players e depois na Paramount, com o objectivo de tirar partido da economia de escala a todos os níveis da organização produtiva. No tocante à concretização dos filmes, o recurso 220
à utilização do equipamento e da cenografia dos estúdios, das estrelas sob contrato e dos modelos dramáticos do agrado do público, levaram à congeminação de esquemas repetitivos que facilitavam a rotina das filmagens, da publicidade, da programação e das vendas. Uma vez que a produção dependia das receitas imediatas da exibição, por ser financiada num ciclo de amortização de custos a curto prazo, a tendência para acatar os pedidos dos exibidores influentes tornou-se premente. Os sectores da distribuição e da exibição eram os mais conservadores da indústria, sempre ansiosos por repetir uma fórmula de sucesso, quer se tratasse da popularidade de uma vedeta, de um tema na moda ou de um género narrativo. A reconversão da indústria ao filme sonoro exigiu um investimento massivo nos estúdios e no parque de salas, pelo que as oito maiores produtoras-distribuidoras viram reforçada a sua partilha do mercado com o apoio da Wall Street. O som veio acabar com as variedades ao vivo antes da longa metragem, sendo progressivamente substituídas pela apresentação de curtas metragens e de jornais de actualidades. Nas zonas de reprise e nos circuitos secundários a sessão dupla tornou-se uma prática frequente que durou praticamente até finais dos anos cinquenta. À diferença do estatuto das salas correspondia sensivelmente a diferença do estatuto dos filmes. As salas de estreia apresentavam filmes de classe A, produzidos pelas oito maiores produtoras, as salas secundárias apresentavam filmes de classe A em reprise, algum tempo depois da estreia, tendo como complemento filmes chamados de série B, de baixo orçamento, de menor duração, filmados à pressa e sem estrelas de primeira grandeza. Algumas salas, nitidamente inferiores, programavam apenas filmes de série B, em sessões duplas. Os filmes de classe A geravam cerca de 90 por cento das receitas globais de bilheteira. Apesar da sua reduzida parcela de mercado, os filmes de classe B eram — e são — essenciais na manutenção do funcionamento regular das salas e na captação de faixas diversificadas de público. Desde meados dos anos dez que, a par do sistema de estrelas, mobilizador dos filmes de maior investimento e rentabilidade, é a oferta dos filmes de género e de série B que permite estabilizar o mercado e gerir a programação das salas com rapidez e variedade, sempre que os filmes de classe A são insuficientes ou não satisfazem os índices previstos de ocupação do parque de exibição. O baixo orçamento dos filmes B e a garantia do seu escoamento em nichos especializados do mercado 221
fazem com que os seus lucros, embora reduzidos, sejam menos aleatórios do que os dos filmes caros. Nos anos trinta, 75 por cento da produção de Hollywood podia ser classificada de série B. Os argumentistas das produtoras especializadas em filmes B, como a Republic e a Monogram, recebiam instruções precisas para reduzirem ao mínimo o número de cenas de interiores, mais morosas e dispendiosas por causa da iluminação e do aluguer dos décors, favorecendo as filmagens em exteriores perto da área de Los Angeles, por forma às equipas poderem regressar todos os dias a casa sem ajudas de custo. A estandardização das situações narrativas atingia o cúmulo nos filmes de acção, nos quais não chegava a haver tempo nem oportunidade para explicar as premissas da intriga, já que os exteriores se sucediam com lutas e perseguições muitas vezes recuperadas de planos de arquivo utilizados em filmes anteriores. Com uma média de produção entre quatrocentos a seiscentos filmes anuais nos anos trinta, Hollywood repete actores, personagens, décors, histórias, esquemas narrativos, definindo e desenvolvendo determinados grupos de filmes cujas semelhanças entre si são de imediato reconhecidas pelos espectadores, quer se trate de películas de classe A ou de série B. Longe de ser um obstáculo à comercialização dos filmes, o efeito de reconhecimento é, pelo contrário, um factor determinante do seu êxito. A sensação de familiaridade, o abandono das pretensões de originalidade por parte dos autores e a combinação judiciosa entre a repetição e a novidade são uma característica essencial da arte popular e da cultura de massas. É neste contexto que se pode falar de Hollywood como de uma fábrica de sonhos, na medida em que os métodos de produção em série se ajustam à realização de mercadorias cujo modo de consumo pertence à esfera do imaginário. Os géneros cinematográficos podem distinguir-se seguindo diversas tipologias de classificação, embora em todas possamos provavelmente encontrar três critérios incontornáveis. O primeiro diz respeito ao referente dos filmes, ou seja, ao tipo de realidade social e histórica que está na origem da representação, por mais estilizada ou fantasista que seja a ambição singular de cada projecto. O western tem por pano de fundo a expansão da fronteira e a colonização americana na segunda metade do século )(IX, assim como o filme de gangsters remete para o surto de criminalidade urbana dos anos trinta como matriz da violência das sociedades modernas. Que os modelos iniciais possam ser 222
transpostos para outros locais e para outras épocas, levantando a hipótese de subgéneros específicos que parasitam os originais, não afecta a pertinência do princípio. O segundo critério prende-se com os parâmetros da iconografia, nomeadamente com os traços de figuração e de composição que definem o sentido e o estilo visual de cada género. As luzes e os décors do filme negro não são iguais aos da ficção científica, nem as cores do melodrama se aproximam das da comédia musical. Em terceiro lugar, cada género dispõe de um elenco de personagens tipificados que conduzem a acção e resolvem os conflitos, restabelecendo a ordem social ou o equilíbrio afectivo que a abertura do enredo veio pôr em causa. A obediência às regras cinematográficas e aos códigos culturais estabelecidos assume-se por vezes como um desafio auto-reflexivo, disponível para a experimentação formal no interior dos formatos da indústria. A tensão estilística entre a lei dos géneros e a singularidade dos autores tem sido um dos terrenos preferidos da crítica de cinema. O classicismo de Hollywood, condensado nos géneros e regulado por normas extrínsecas relativamente estáveis durante décadas consecutivas, atribui aos personagens principais a tarefa prioritária de orientar a acção narrativa segundo um feixe de motivações individuais, de carácter fisiológico, psicológico e moral, que justificam a persecução e a obtenção de objectivos concretos, a solução de dificuldades e de mistérios insondáveis, a eliminação de obstáculos e de ansiedades persistentes, enfim o restabelecimento da harmonia possível num mundo sempre sujeito a novos problemas e, por conseguinte, disponível para novas histórias. A caracterização dos personagens obedece invariavelmente a uma visão determinista do carácter dos personagens, resumido num passado (backstory) que será explicitado quer na exposição inicial quer no desenrolar dos acontecimentos. A inclusão das biografias dos personagens centrais na documentação do argumento pode tornar-se um factor decisivo na escolha do elenco e na aceitação dos respectivos papéis por parte de determinados actores indispensáveis ao financiamento do projecto. A padronização psicológica e comportamental dos personagens é um elemento intimamente ligado ao sistema das estrelas, na medida em que cada actriz e cada actor desenvolve uma imagem individual que é, ela própria, indissociável de certos géneros e da estratégia de comercialização dos filmes. Para o grande público é por certo mais importante saber que se trata 223
de um filme com Gary Cooper ou com Humphrey Bogart do que conhecer quem o escreveu, produziu e realizou. A ficção clássica ambiciona criar personagens cuja dimensão humana, para além de todos os artifícios e lugares-comuns, seja aceite como um dado adquirido. Os personagens revelam-se na acção e na sua relação social com os outros, estabelecendo diferenças e contrastes entre si, disputando valores que geram conflitos, dramatizando a existência de acordo com vectores temáticos que dão uma direcção precisa à vida representada na narrativa. No mundo empírico as mulheres e os homens podem ser difíceis de entender, ser talhados de múltiplas contradições, podem não deixar adivinhar o passado nem o futuro, mas na ficção estão sujeitos ao escrutínio implacável dos intervenientes e, sobretudo, à lógica do desfecho que não deixará de lançar algumas pistas para nos ajudar a compreender o labirinto da condição humana. O mundo da ficção faz mais sentido do que o mundo em que vivemos porque nele tudo é intencional. Num ensaio sobre o romance, E. M. Forster observou que os personagens de ficção se podem dividir em duas grandes categorias, que ele designou por personagens lisos (flat) e personagens redondos (round). Os últimos são personagens complexos, imprevisíveis, revelam várias qualidades e evoluem ao longo do percurso narrativo de modo a fornecer uma visão multifacetada da pessoa. Pelo contrário, os personagens lisos são desenhados num único traço, são criaturas de hábitos e ideias fixas, não evoluem no arco da história nem modificam o seu modo de ser no decurso das peripécias. Típicos da literatura popular e do teatro cómico, os personagens lisos proporcionam uma enorme economia de meios narrativos, visto introduzirem uma função temática ou um carácter de personalidade facilmente reconhecidos e recordados pelo público. Apesar do seu carácter estático, os personagens lisos podem ser tão ricos e concludentes como os personagens redondos, sobretudo no que diz respeito ao esboço dos tipos e dos arquétipos que as grandes obras narrativas e dramáticas consagraram. Dickens, Molière e Chaplin, para nomear apenas três exemplos de grandeza indiscutível, são autores de alguns dos personagens lisos mais ricos da arte da ficção. O filme de género é, obviamente, uma ficção fértil em personagens lisos, uma vez mais perfeitamente adequados à gestão da carreira das estrelas de cinema, à realização de argumentos normalizados e à produção de remakes e séries. 224
O problema do herói do filme de género, largamente extensível ao desenho da narrativa clássica, consiste em repor, por imperativos de ordem ética nos limites existenciais do seu mundo, uma harmonia perdida. É o cowboy que tem de vingar o massacre da família, é o gangster que tem de continuar a combater os rivais que pretendem liquidá-lo, é o detective que tem de cumprir o contrato e desvendar o rosto do criminoso, é o jornalista que tem o dever de denunciar a corrupção, é o coreógrafo ou o compositor que tem de conseguir concretizar o espectáculo que ensaia todos os dias, é a mulher apaixonada que tem de se sacrificar pelo amante ou pelos filhos, é o cientista que tem de destruir o monstro vindo do espaço, é o militar que tem de tomar de assalto uma praça ocupada pelo inimigo. Em cada um dos casos, as leis sociais e afectivas que regem a identidade do protagonista foram violadas e devem ser restabelecidas. Sem perturbação ou sofrimento, sem desafios ou ambições, sem paixão ou injustiça, não há razão para o herói intervir. Uma vez desencadeado o motivo da acção, o protagonista só descansa quando a nova ordem for reposta, a liberdade estiver garantida e ele se sentir em paz com a sua consciência. Daí o carácter inelutável do happy end, profundamente enraizado nos objectivos comerciais da indústria, é certo, mas igualmente inscrito no coração político de uma sociedade que aponta como direito inalienável dos cidadãos a procura da felicidade. Quase sempre, a missão de que se encarrega o herói do filme de género tem um prazo limite de execução (deadline ou countdown), anunciado desde o desencadear do conflito, por forma a criar um clima de suspense que se dissemina por toda a narrativa e aumenta sempre que surge um obstáculo no percurso do protagonista. A preocupação com os prazos, marcada nos filmes pela presença regular de calendários, relógios e mapas nos quais se medem as distâncias a percorrer em função do tempo disponível, reforça o carácter dramático da fragmentação narrativa, favorece os mecanismos da progressão emocional e das relações de causalidade, permitindo que cada cena retome o fio condutor das cenas anteriores sem que o espectador dê conta de qualquer arbitrariedade. O esquema do prazo limite nos enredos do cinema americano, recorrente desde que Griffith sistematizou o salvamento no último minuto, prende-se com a ideologia da sociedade industrial, organizada em torno da eficiência laboral e do cumprimento dos prazos de produção, de que a estrutura de funcionamento 225
de Hollywood é o exemplo característico. O herói tem de cumprir dentro do prazo, porque tempo é dinheiro, quando não significa a própria vida. Não é por acaso que os heróis dos filmes de género, sejam eles jornalistas, detectives, advogados, cientistas, militares, pistoleiros ou bailarinos se distinguem antes de mais pelo brio e competência profissionais que lhes garantem o triunfo sobre as forças da adversidade e os faz merecer o respeito e a admiração da comunidade que ajudaram a tranquilizar. As histórias típicas dos filmes de género desdobram-se em duas linhas de enredo que se desenvolvem em simultâneo e se cruzam sempre que se trata de distender ou de contrair o tempo narrativo, de reforçar ou de contrastar os núcleos temáticos, de apresentar personagens secundários cuja presença é indispensável para transmitir informações que dizem respeito aos protagonistas. Das duas linhas de enredo uma delas envolve obrigatoriamente uma relação de amor e a outra uma explicitação do tema dominante ao nível do confronto dramático entre os personagens. As duas linhas de enredo podem servir para complicar a acção, para retardar o desfecho, ou para facilitar as elipses da montagem, mas encontram-se sempre estruturadas de maneira a realçar a importância dos protagonistas, do conflito central e da resolução conjunta, na qual a consumação do romance amoroso favorece os elementos de satisfação afectiva requeridos pelo público. As convenções narrativas dos géneros constroem um mundo imaginário predeterminado, com a sua própria coerência interna, sem terem forçosamente laços de coesão lógica com o mundo real, reorganizando a nossa experiência sensorial e emocional em termos estéticos. Cada género cria assim o seu campo de referências a partir do qual avaliamos os novos filmes que se inscrevem nos seus limites de influência. Por outras palavras, o filme de género remete para outros filmes do mesmo género, num jogo assumido de intertextualidade, numa espécie de circuito fechado em que pessoas e situações se reflectem tanto quanto reflectem os nossos gostos, preocupações e desejos. A relação entre o mundo real do espectador e o mundo imaginário do filme de género é regulada por um protocolo de credibilidade a que a disciplina retórica chama verosimilhança. Enquanto convenção cultural estabelecida pela reiteração do discurso narrativo, enquanto premissa do que é provável aos olhos da opinião comum, em oposição ao que é verdadeiro, o verosímil não esgota as capaci226
dades do possível nem afere a fidelidade da ficção com qualquer regime factual da realidade, limita-se a aceitar aquilo que está conforme as leis do género. Daqui o carácter simultaneamente relativo e absoluto do verosímil, sem o qual o filme não conseguirá persuadir o espectador da existência do mundo fabuloso que o cinema pretende imporlhe pela evidência sensível dos sons e das imagens em movimento. Quanto mais os filmes são regidos pelas leis do género maior parece o seu alheamento perante os problemas políticos contemporâneos, mais forte surge a tendência para dissolver as tensões ideológicas no terreno das oposições maniqueístas, o que tem levado alguns comentadores a levantarem a hipótese da filiação conservadora e escapista dos géneros clássicos, isolados num mero exercício formal e lúdico, determinado pelas regras da sua própria efabulação mítica. Em consequência, os filmes que não se conformam com os padrões narrativos industriais, que evitam a simpatia das estrelas, que não acatam as leis dos géneros nem se confundem com uma tradição comercialmente imposta, despertam uma leitura mais realista da ficção, como se o mundo se materializasse por fim na inocência depurada das imagens não contaminadas pelo hábito. Os códigos do realismo, pacientemente elaborados, atingem então o desiderato supremo do verosímil na medida em que conseguem fazer-nos crer que, em vez de se submeter às leis da arte, o cinema obedeceria às leis do real.
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A escola do crime: Scarface (
1932), Hawks.
25 A GLÓRIA DO TRIUNFO Howard Hawks não precisava de se arriscar numa produção independente dos estúdios, mas era essa a sua vontade quando propôs a Ben Hecht a escrita de uma história sobre os gangsters de Chicago. Gostava da fita que Stemberg fizera do primeiro argumento de Hecht — Underworld (1927) — mas entendia que a visão excessivamente romântica da figura do bandido não dava a verdadeira dimensão do tipo de personagem. Depois de ter trabalhado na secção de adereços, na montagem e no argumento de películas da Paramount, e de aí ter feito a produção executiva de mais de sessenta filmes mudos, Hawks foi convidado por Irving Thalberg para coordenar o departamento de argumentos da MGM. A amizade entre Hawks e Thalberg fora reforçada pelo estabelecimento de laços familiares inesperados quando, em 1928, Hawks casou com Athole, irmã da célebre actriz Norma Shearer, mulher de Thalberg. Hawks admirava e conhecia bem a personalidade de Thalberg para se deixar envolver numa colaboração que lhe podia trazer dissabores. Enquanto realizador, queria manter a liberdade de iniciativa dos seus filmes, do argumento à montagem, por isso o melhor era não se comprometer com contratos a longo prazo que o 229
vergassem às exigências do produtor. Entre 1925, data da rodagem do primeiro filme de Hawks como realizador, e 1930, altura em que o milionário Howard Hughes o convida para fazerem juntos Scarface ( 1932), Hawks dirigiu oito longas metragens mudas, todas produzidas por William Fox. Apesar das propostas de Zanuck, director de produção da Wamer, responsável pelo lançamento do ciclo de filmes de gangsters com duas produções de grande êxito, Little Caesar (1930), dirigida por Mervyn LeRoy, e The Public Enemy (1931), de William Wellman, Hawks opta por colaborar com Howard Hughes, a quem o ligava a mesma paixão pelo golfe, pelas corridas de automóveis e pelas acrobacias de avião. Os filmes com Zanuck e com a Warner podiam esperar. Quando Darryl Zanuck se instalou em Hollywood, no início dos anos vinte, a Câmara do Comércio espalhava folhetos pela cidade dissuadindo os recém-chegados de ficarem presos à miragem da fábrica de sonhos. Num desses anúncios Zanuck leu: Entre cada cem mil pessoas apenas cinco conhecem a glória do triunfo no mundo do cinema. Zanuck amarrotou o papel e dispôs-se a ser um desses cinco. Experimentara escrever algumas histórias para publicar nas revistas da especialidade mas não tivera sorte. Estava agora decidido a vendê-las aos estúdios e a tomar-se argumentista profissional. Depressa verificou que o objectivo não era fácil de concretizar e que os produtores preferiam pagar os direitos de reportagens e de novelas publicadas a darem oportunidade a desconhecidos. Com os proventos do primeiro argumento vendido, Zanuck adquiriu os direitos de algumas peças de teatro que vira em Nova Iorque, converteu-as em guiões de filmes e convenceu Thalberg a comprar-lhe a autoria das adaptações com uma margem de lucro razoável. Zanuck não desistiu de vender as suas histórias originais, que não se coadunavam com o luxo da produção dos grandes estúdios nem com os caprichos das estrelas. Dirigiu-se por isso à Wamer Bros, produtora com dificuldades económicas, conhecida pela disciplina e pela rapidez com que mantinha os níveis de produção dos filmes de série B no mercado: «Não quero o filme bom, quero o filme na terça-feira», era a palavra de ordem mais frequente de Jack Warner dirigida ao seu pessoal. Em 1924 Zanuck assina um contrato de exclusividade como argumentista da Warner e entrega para rodagem imediata o guião de um filme sem ambições, Find Your Man (1924), que se toma um êxito 230
comercial invulgar — é a primeira das aventuras do cão Rin Tin Tin, cuja série iria fazer conhecer a Zanuck, então com apenas 22 anos de idade, a glória do triunfo no mundo do cinema. Em menos de um ano Zanuck escreve mais seis argumentos para Rin Tin Tin, imediatamente produzidos e distribuídos com um sucesso cada vez mais surpreendente, já que os filmes se pareciam uns com os outros como gotas de água. Em 1925 Rin Tin Tin é uma das estrelas de Hollywood mais conhecidas em todo o mundo e Zanuck um dos argumentistas mais atarefados, pois escreve nesse ano dezanove filmes de longa metragem, todos produzidos pela Warner, doze dos quais eram assinados por pseudónimos criados para não inflacionar o nome do jovem escritor. A colheita de 1926 rendeu treze argumentos, repartidos pelos quatro nomes que Zanuck agora utilizava para assinar os guiões, consoante os vários géneros dos filmes. O segredo da rapidez de escrita de Zanuck não era propriamente uma novidade em Hollywood, mas ninguém como ele aperfeiçoou o método de canibalização das histórias, que se repetiam com uma frequência mal disfarçada pelo ritmo vertiginoso da produção que o próprio começou a controlar. O método era simples, embora tecnicamente sofisticado ao nível da execução. Histórias praticamente iguais eram filmadas em décors diferentes com outros personagens, histórias diferentes eram filmadas nos mesmos décors dos filmes precedentes. Muitos dos filmes aproveitavam planos de sequências inteiras de filmes anteriores, apresentadas num contexto narrativo diverso. Jack Wamer apreciou tanto o engenho de Zanuck que, em 1927, nomeou-o director de produção do estúdio e deu-lhe como assistente executivo outro ás da velocidade e da poupança, Hal Wallis, que viria a dirigir as operações da Warner Bros a partir de 1933 e a ganhar um Óscar com Casablanca (1943). O processo de reciclagem dos argumentos rentáveis tornou-se uma instituição. Em 1932 Howard Hawks realizou a pedido de Zanuck um filme de orçamento modesto intitulado Tiger Shark, que conta as desventuras de um pescador português a quem um tubarão decepa um braço ao salvar o seu melhor amigo e que descobre, mais tarde, que a mulher está apaixonada por esse amigo. Dado o êxito do filme, o produtor executivo da série B da Warner, Bryan Foy, foi encarregado de encomendar outros filmes baseados na mesma premissa dramática. O próprio Foy explica as dificuldades que teve para conseguir que a 231
mesma história desse origem a onze filmes diferentes rodados num curto espaço de tempo. «Tudo começou com uma fita chamada Tiger Shark, uma história de pescadores, na qual Edward G. Robinson perdia um braço. Segui o guião de Tiger Shark cena por cena e fiz a mesma coisa em Lumberjack, só que desta vez o rapaz perdia a perna em vez do braço. Depois fiz exactamente a mesma coisa em Bengal Tiger, mas agora era um domador de circo que perdia o braço. Os argumentistas protestaram porque em Tiger Shark o protagonista também tinha perdido um braço, e eu então respondi-lhes que o tipo de Tiger Shark podia bem ter perdido um porque tinha dois braços» . As remakes eram outra maneira rápida de economizar e de apostar no seguro, recuperando não só o argumento como parte do material já filmado. Num memorando de serviço dirigido a Jack Warner, no qual se propõe repetir o primeiro filme sonoro de Hawks, produzido na Warner em 1930, Hal Wallis explica como «usando os planos de exteriores do negativo original de Dawn Patrol, e filmando apenas os interiores, que consistem quase só no pequeno aquartelamento do comando militar, podíamos refazer o filme por tuta-e-meia». A acção de Darryl Zanuck como produtor da Warner entre 1927 e 1933 não se limitou à autofagia fílmica que seria uma das constantes de Hollywood. Zanuck foi provavelmente o produtor mais criativo e enérgico da era dos estúdios, juntamente com Thalberg e Selznick. Ao contrário do que acontecia na MGM, os argumentos na Warner eram rigorosamente respeitados na preparação, na filmagem e na montagem, não por haver mais escrúpulos para com os escritores, mas porque a produção não tinha tempo nem dinheiro para gastar em rescritas e em refilmagens. Zanuck retomou a lição de Ince, obrigando os realizadores a seguir fielmente os guiões, revistos e aprovados por ele próprio, depois de ter cortado tudo o que não contribuísse para a progressão da linha narrativa principal. Dominadas as regras da dramaturgia popular, das quais tentava apagar qualquer vestígio de retórica sentimental que pudesse prejudicar a rapidez de acção, Zanuck dedicou-se a estudar os mecanismos da montagem, exigindo aos técnicos a supressão dos tempos mortos, dos planos de transição e das cenas de exposição redundantes. Não é certamente uma coincidência Ralph Dawson, chefe montador do estúdio, ter conquistado três Oscares na década de trinta. Em regra, mais de metade da acção dos filmes da Warner passava-se de noite, 232
não por razões ponderosas de ordem dramática, mas, uma vez mais, por insistência da produção: luzes baixas em espaços cor de chumbo arrastavam sombras por cenários praticamente inacabados, disfarçados pela neblina ameaçadora da cidade, criando uma densidade visual inconfundível, reforçada pelo trabalho atento das bandas sonoras. Durante anos nenhum outro estúdio conseguiu, com tão poucos meios, atingir a eficácia produtiva e narrativa imposta por Zanuck e Wallis. Mas o maior contributo de Zanuck para a história da narrativa cinematográfica prende-se com o estilo jornalístico que introduziu na ficção de Hollywood, a qual, por seu turno, teve uma influência enorme no tratamento noticioso dado pela imprensa de sensação à página dos faitsdivers, que passaram a ser relatados e dramatizados como se fossem histórias de cinema: era meio caminho andado para as reportagens se transformarem em argumentos. Aquilo a que Zanuck chamava um filme de primeira página (a headline movie) era quase sempre a adaptação de um caso verídico aparecido na imprensa ou na rádio, devidamente transformado para se poderem acrescentar valores dramáticos e espectaculares, mas também para evitar qualquer processo judicial por parte das pessoas envolvidas nos acontecimentos originais. Zanuck resumia assim o guião do filme ideal: «Tem de se caracterizar por um impacto forte, que o torne digno de ser o título de primeira página de qualquer jornal diário de sucesso de uma grande cidade». Zanuck entendia que as intrigas de salão e os eternos triângulos amorosos, enquanto material dramático, se encontravam esgotados e que era preciso sair à rua para reinventar o realismo das histórias de primeira página. Quem o conheceu, primeiro na Warner e depois na Twentieth Century Fox, afirma que Zanuck dirigia de facto os estúdios como se fosse um chefe de redacção, sugerindo ideias, distribuindo tarefas, colocando em agenda temas e situações a que os argumentistas e os realizadores deviam dar continuidade. Este método de gestão só era possível tendo ao dispor um aparelho de produção célere, disciplinado e eficiente. A estratégia de Zanuck e de Wallis passava pela relativa liberdade dos argumentistas e dos realizadores nas fases de trabalho, de modo a não travar o andamento dos projectos, e, simultaneamente, pelo controlo absoluto de todas as etapas de execução, procedimento habitual em todos os estúdios. O controlo era feito pelos chefes de produção designados para cada filme, 233
que tinham a incumbência de redigir minuciosos relatórios nos quais eram anotadas as anomalias susceptíveis de atrasar ou de encarecer os filmes: a hora de chegada e de saída dos actores e dos membros da equipa, o tempo perdido na preparação de cada plano, a película gasta em cada dia de rodagem em função dos minutos úteis de filme, a desobediência às ordens de um superior hierárquico, as extravagâncias na decoração de um cenário ou na iluminação de uma cena, as falhas humanas atribuídas a negligência, tudo se encontra nos relatórios de produção da Warner. Veja-se, por exemplo, a missiva do chefe de estúdio, T. C. Wright, dirigida a Hal Wallis, com data de 25 de Março de 1937. Wright queixa-se da lentidão do realizador convidado, Joe May, que não acata as recomendações do director de produção e do assistente de realização, ambos funcionários da Warner, no sentido de filmar um maior número de planos por dia e de usar o duplo nas cenas de acção em vez de agastar o actor principal. Apesar da severidade dos relatórios, Joe May não foi importunado durante as filmagens, mas aquele foi o primeiro e o último filme que fez na Warner. Os realizadores favoritos do estúdio eram homens como Michael Curtiz, Mervyn LeRoy e William Wellman, capazes de dirigir quatro ou seis filmes por ano sem ultrapassar os orçamentos e os mapas de rodagem, sem reivindicar participação nos argumentos ou exigir o direito à montagem. A vida era dura na Warner e era uma vida dura que os filmes de primeira página mostravam. À euforia comercial da novidade do cinema sonoro seguiu-se a evidência amarga da depressão económica que alastrava pelo país. As classes mais desfavorecidas reviam-se nos temas de actualidade da Warner, obrigada à contenção das estrelas nos elencos e a dispensar o equivalente do sumptuoso guarda-roupa da MGM ou dos imponentes cenários da Paramount. Na verdade, os filmes de realismo social eram mais baratos de produzir. Os heróis típicos da Warner são lutadores natos, sobreviventes solitários que ambicionam um lugar na sociedade e se vêem marginalizados sem razão aparente. As páginas interiores dos jornais andavam cheias destes heróis anónimos do pós-guerra. Alguns conseguiam chegar à primeira página, nem sempre pelas melhores razões. Era o caso dos gangsters. As sucessivas vagas étnicas de emigração da Europa para a América a partir do último quartel do século passado aumentaram a base social de pobreza nas grandes cidades, contribuindo para alastrar o crime como rampa de mobilidade social. Nova Iorque e Chicago foram 234
assoladas por grupos de irlandeses e de sicilianos que disputavam entre si o banditismo organizado nas diversas zonas da cidade. O puritanismo dominante na sociedade americana, responsável pela lei que entre 1919 e 1934 proibiu o fabrico e a venda de bebidas alcoólicas, e a aceitação do darwinismo social, segundo o qual a sobrevivência e o enriquecimento individuais são o resultado determinista da aptidão natural dos mais fortes, serviram para racionalizar uma ordem social violenta, pautada por uma competitividade sem limites. O regresso dos soldados da Primeira Guerra revelou a dimensão do desemprego e a indiferença a que eram votados os militares desmobilizados, facilmente recrutados pelos gangs, tanto mais que já tinham experiência no manejo de armas de fogo. Muitos filmes de gangsters fazem referência directa a esta situação, atribuindo indirectamente as causas do aumento da criminalidade à miséria social. Em The Public Enemy (1931), quando o irmão mais velho de J ames Cagney o acusa de ser assassino, este comenta que não foi certamente por apertar a mão aos alemães durante a guerra que ganhou tantas condecorações, como se a vida na sociedade civil fosse a continuação da guerra por outros meios. Noutro filme de grande êxito da Warner, I Am a Fugitive from a Chain Gang (1932), de Mervyn LeRoy, Paul Muni dirige-se a uma loja de prego para vender as suas medalhas da tropa e, numa resposta óbvia, o prestamista mostra-lhe um monte de condecorações militares penhoradas que ninguém quer. Numa análise social do cinema americano da época, o dramaturgo John Howard Lawson estabelece uma estreita relação entre a benevolência com que algumas películas tratam o personagem do gangster, envolto numa aura de revolta social, e a franca apologia do herói militar, ambos fruto da mesma disciplina fascista que aceita a obediência cega às cadeias de comando autocrático. Para Lawson, o cinema de direita de Hollywood dos anos trinta e quarenta sugere um subtil sistema de equivalências: ora o soldado desempregado se torna gangster, expondo uma injustiça social que não tem autoridade moral para criticar, ora o gangster se torna soldado, protagonista dos filmes de guerra, sublimando num gesto patriótico os seus instintos de assassino. As figuras do delinquente romântico, do assassino psicótico e do herói militarista, constantes no cinema americano, seriam tanto mais perniciosas quanto é certo serem interpretadas por actores de grande carisma popular que despertam inevitavelmente a simpatia do público. 235
Quem se insurgiu de imediato contra a vaga dos filmes de gangsters, certamente por razões ideológicas diversas das de Lawson mas chamando também a atenção para o perigoso fascínio exercido pelas estrelas em papéis negativos, foi Will Hays, em pleno exercício do seu mandato de censor oficial da associação de produtores. A fim de evitar o ressurgimento da polémica em torno do cinema como escola de crime, sempre lesiva dos interesses da indústria, Hays emitiu uma circular onde se insistia que os filmes não podiam glorificar a acção dos bandidos, deviam propor valores morais compensatórios e deixar bem claro que o crime não compensa. O desfecho das histórias de gangsters — o criminoso abatido na rua às mãos de rivais ou da polícia — tornou-se uma convenção obrigatória mas não totalmente destituída de ambiguidade. Num influente ensaio, intitulado o gangster como herói trágico ( 1948), Robert Warshow mostra como é que na sociedade democrática, em que a cultura de massas está votada à propagação fútil de imagens de optimismo e de esperança, o filme de gangsters representa o sentido moderno da tragédia. O criminoso tem de morrer no final porque, depois de chegar ao topo do poder, da fortuna e da corrupção, já não tem lugar para onde ir. A actividade feroz e implacável do gangster é um exemplo típico da história de sucesso num mundo onde impera a lei da selva urbana: ele liquida sem contemplações todos os obstáculos que o podiam impedir de triunfar na vida. Morto entre sarjetas e caixotes de lixo, o gangster não é punido tanto pelos crimes que cometeu, e que lhe deram prazeres inconfessáveis, como pela ousadia de ter conseguido sair do anonimato, da subserviência e da penúria. O gangster é uma figura trágica da modernidade capitalista porque morre justamente no momento em que celebra a glória do triunfo, pondo em causa o mito do sonho americano. A primeira sequência de Scarface (1932), de Howard Hawks, é a todos os títulos exemplar. Num movimento obsessivo, a câmara de filmar transpõe as portas do restaurante onde Big Louie dá uma festa. Big Louie afasta-se dos companheiros e vai telefonar, ficando por instantes só, observado pela câmara cuja deslocação em continuidade, como se fosse uma testemunha ocular, nos faz descobrir a silhueta de Camonte (Paul Muni) a assobiar. Camonte mata Louie, inaugurando a série de crimes que o hão-de conduzir a uma situação semelhante à de Louie. Tal como os reis das sociedades primitivas, imolados pelos 236
seus sucessores em violentos rituais de ordem simbólica, também os pistoleiros do western e os gangsters da nova fronteira urbana estão condenados a serem liquidados por outros que vêm ocupar o seu lugar. No final Camonte é abatido a tiro pela polícia, mas de tal modo o filme isola os bandidos e os polícias como antagonistas dominantes do mesmo mundo sórdido, como as duas faces da moeda que George Raft não se cansa de atirar ao ar, que os censores exigiram ao produtor a substituição do massacre final por uma sequência em que Camonte era preso, julgado em tribunal, condenado e executado. Os problemas de Scarface com o Código de Produção não se devem apenas ao facto de Hughes ser na altura um produtor independente, situação já de si suspeita aos olhos de Hays, devem-se porventura a uma total recusa de compromisso moral que o filme apresenta e que o torna uma obra ímpar na história do cinema americano. Camonte é um personagem destituído de qualquer qualidade redentora passível de introduzir a sombra do arrependimento ou a mensagem de que o crime não compensa. O que nós vemos ao longo de toda a história é a alegria infantil e animalesca de Camonte na sua vertigem de ascensão social como único factor de conduta individual. Pode ter os dias contados, mas enquanto vive, vive como quer. Camonte não mata, rouba ou viola as leis apenas para enriquecer, para exercer o poder ou para se vingar mas, pura e simplesmente, porque lhe dá prazer. Daí que os censores estivessem menos preocupados com a violência brutal dos confrontos entre os gangsters, ou com a hipótese das relações incestuosas entre Camonte e a sua irmã, do que com a monstruosa simplicidade com que aquele ser abjecto podia, apesar de tudo, despertar a simpatia do público. Não obstante as filmagens terem ficado concluídas em meados de 1931, Scarface só foi estreado em Los Angeles em Março e em Nova Iorque em Maio de 1932, devido aos problemas com a censura. As reportagens sobre as divergências e as discussões entre Hughes e o gabinete de Hays fizeram aumentar a curiosidade do público pela produção que se anunciava como o filme de gangsters que vai acabar com todos os filmes de gangsters. O êxito foi enorme. Al Capone, o verdadeiro homem da cicatriz, que vira e adorara o filme, que se orgulhava de ter servido de modelo ao argumento assinado por Ben Hecht, W. R. Burnett e Seton Miller, com diálogos de John Lee Mahin, foi preso por evasão fiscal pouco antes da estreia e mereceu notícia de 237
primeira página. Mais do que a imprensa, que o indiciava sem rodeios de um extenso rol de suspeitas, era o cinema que imortalizava a glória do seu triunfo. Scarface não acabou com os filmes de gangsters, tornou-se a matriz do género de maior longevidade no cinema americano. Camonte pode bem estar morto, trespassado de balas, inchado de raiva, podre de ilusões, mas enquanto no telhado do edifício mais alto da cidade, no horizonte da noite sem fim coroada de estrelas, estiver aceso aquele anúncio luminoso feito de promessas e sonhos legítimos, outros Camontes surgirão das trevas da imaginação para ameaçar o mundo do cinema. O filme de Hawks termina com um plano desse anúncio, no qual se pode ler: The World Is Yours.
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O argumentista de Sunset Boulevard (1950), Wilder.
26 O SONHO E O RESSENTIMENTO Anita Loos regressou a Hollywood em Dezembro de 1931, a convite de Irving Thalberg. Passara os anos vinte em Nova Iorque, afastada dos estúdios, mas não da escrita. Além dos argumentos, que entretanto assinou, a glória definitiva veio-lhe da novela que a tornou célebre em todo o mundo e rica para o resto da vida. Gentlemen Prefer Blondes, publicada em folhetim no Harper's Bazaar em 1925, imediatamente lançada em livro, nunca mais deixou de se vender desde então. Transformada em peças de teatro, espectáculos musicais e filmes, o melhor dos quais realizado por Howard Hawks em 1953 com Marilyn Monroe e Jane Russell, Gentlemen Prefer Blondes é a confissão hilariante de Lorelei Lee em forma de diário, o protótipo da caçadora de fortunas, descontraída, divertida e sedutora, que tantas vezes anima as comédias de Loos. Ao contrário do que era habitual, Thalberg não a fez esperar muito tempo. Queria que Loos começasse a rescrever o mais depressa possível o filme Red-Headed Woman (1932), cujas datas de rodagem já estavam marcadas sem que houvesse um argumento em condições. Thalberg explicou minuciosamente o que pretendia: um confronto de amor em 239
que as insinuações sexuais são sublimadas pelas situações cómicas com duplo sentido, uma história que nascesse do interesse pelos personagens e não uma intriga complicada onde a personalidade dos actores passa para segundo plano. Ia ser o primeiro filme de Jean Harlow, uma desconhecida que a MGM apostara em transformar numa estrela. Apesar de Thalberg lhe recomendar para não ligar ao argumento que já estava escrito, por considerá-lo banal, Loos insistiu em levar uma cópia para dar uma vista de olhos. Qual não foi a sua surpresa ao ver na capa o nome de um escritor seu amigo, frequentador dos mesmos círculos da boémia literária de Nova Iorque na década anterior — E Scott Fitzgerald. No início dos anos vinte, quando Scott Fitzgerald visitou Hollywood pela primeira vez, a fama e a glória singravam de vento em popa. Tinha publicado o primeiro romance com assinalável êxito e a luade-mel com Zelda mal havia terminado. A atmosfera e os costumes de Hollywood não lhe pareceram, então, estranhos. Sentiu-se à vontade no meio de actores e figurantes dos grandes estúdios, protegidos dos olhares dos curiosos por altos muros vigiados, e nem sequer os cenários ainda por demolir de velhos filmes o impressionaram por aí além. Teve o sentimento nítido de que a imaginação da maioria dos argumentistas e dos realizadores do período mudo não podia comparar-se, em extravagância e sensibilidade, ao universo cintilante da sua melhor prosa. Na verdade, Scott Fitzgerald não precisou do cinema para se tornar, por direito próprio, uma estrela do seu tempo e uma lenda para o futuro. O namoro com Hollywood começou cedo, num dia divertido de Julho de 1922, quando o casal Fitzgerald foi convidado sem parcimónia a interpretar os protagonistas de uma adaptação cinematográfica de This Side of Paradise. Recusada a oferta e gorada a produção do filme, os Fitzgerald visitaram Hollywood em 1927 onde, durante dois meses, ele foi pago pela United Artists para tentar, em vão, escrever uma história para Constance Talmadge. Nada impediu, porém, que os direitos de autor das obras de Scott Fitzgerald fossem sendo adquiridas pela indústria. Algumas adaptações dos primeiros contos remontam a 1920 e o seu segundo romance, The Beautiful and the Damned (1922), chegou a ser filmado por William Seiter no mesmo ano em que foi publicado. The Great Gatsby, a sua indiscutível obra-prima, publicada em 1925, foi adaptada no ano 240
seguinte ao teatro por Owen David e prontamente encenada em Nova Iorque por George Cukor. A partir da peça, realizou Herbert Brenon para a Paramount um filme de que os anais não registam qualquer memória favorável. Em 1931, por sugestão de Samuel Marx, responsável pelo departamento de argumentos da MGM, Scott Fitzgerald passa pela capital do cinema e é contratado por Irving Thalberg para escrever o argumento de Red-Headed Woman. No primeiro jantar público com o produtor e Norma Shearer, Fitzgerald embriaga-se e provoca um escândalo que deixa Thalberg mal impressionado. Cinco semanas depois, entregue e analisada a primeira versão do argumento, Thalberg dá instruções para não renovarem o contrato do escritor, que sai de Los Angeles convencido de que o produtor apreciara o seu trabalho. Durante as filmagens de Red-Headed Woman, por recomendação expressa de Thalberg, o realizador Jack Conway manteve Anita Loos permanentemente no estúdio, de modo a poder corrigir os diálogos de que Jean Harlow não gostasse ou a dar sugestões de representação que acentuassem o tom de comédia. Após a primeira montagem do filme, Loos acompanhou Thalberg a uma ante-estreia surpresa (preview) onde o produtor e a escritora, anónimos, se sentaram no meio do público. Thalberg estudou a reacção dos espectadores e verificou que hesitavam em rir na primeira parte do filme. Pediu então a Loos para rescrever as cenas que achava fracas e, em particular, para inventar um prólogo de alta comédia que provocasse desde o início o riso. Loos rescreveu quase um terço do guião, que Conway refilmou seguindo as indicações do produtor. O filme foi remontado várias vezes e novas anteestreias foram marcadas até Thalberg ter a certeza de que o público compreendia o tom de comédia do princípio ao fim. Nada ficou do argumento de Fitzgerald, mas o filme foi um êxito e Jean Harlow aclamada como a nova estrela da MGM. Nem todos os escritores e realizadores se adaptavam ao método autocrático e centralizado imposto por Thalberg, que corria o risco de estimular o conformismo no pessoal a vários níveis: só garantia emprego estável aos cineastas submissos, sem direito à montagem ou à filmagem de retakes dos seus filmes, enquanto os argumentistas se viam obrigados a trabalhar em grupo e a reformular as histórias para dar azo à política dos filmes concebidos em função das estrelas. A fim de cumprir este objectivo, os leitores do departamento de argumentos 241
examinavam uma média semanal de quatrocentas peças, romances e reportagens cujos resumos eram submetidos a Thalberg. Na década de trinta a MGM investia por ano um milhão de dólares em direitos de autor de histórias que não chegava a produzir mas que mantinha fora do alcance da concorrência. Dois lemas recorrentes em Hollywood não podiam deixar de irritar os escritores. O primeiro consistia em dizer que não é preciso serse um bom escritor para se ser um bom argumentista. Há porém alguma sensatez na afirmação, se reconhecermos que escrever um argumento não é fazer literatura. O argumento é um importante instrumento de trabalho mas não é o trabalho acabado. À excepção do diálogo, escrito para ser dito e não para ser lido, a prosa do argumento é meramente funcional e nunca salva um filme da falta de ideias dramáticas, de situações de impacto visual e do lastro existencial indispensável aos actores mostrarem o que valem. Daí o segundo lema, que Thalberg e Selznick aplicaram caricaturando a divisão do trabalho pelo exagero: quanto mais escritores trabalhassem num argumento melhor podia ser o resultado, já que havia especialistas na estruturação dos enredos, outros na fluência dos diálogos, outros ainda na introdução de piadas ou na condensação de cenas. A escrita em grupo e em concorrência — uma vez que, frequentemente, cada escritor desconhecia o que faziam os outros escritores integrados no mesmo projecto —, bem como a revisão sistemática dos textos por supervisores, produtores, realizadores e actores, levava alguns argumentistas a perderem o interesse pelo acto individual da escrita ou a alimentarem um estado permanente de insatisfação contra aqueles que corrigiam ou adulteravam a sua prosa e acabavam por partilhar indevidamente a autoria das histórias. Os escritores que melhor se adaptaram ao sistema de Hollywood nos anos trinta não vieram da literatura nem do teatro mas do jornalismo, da publicidade e dos espectáculos de variedades, profissões sujeitas à disciplina da encomenda, à rapidez da execução, à efervescência do trabalho colectivo e à modéstia das ambições artísticas. O que mais incomodava os escritores era, no entanto, o nepotismo e a arbitrariedade que imperavam na atribuição dos créditos da escrita de argumentos nas fichas técnicas dos filmes. Havia produtores que inscreviam o nome de quem lhes apetecia nos genéricos, com o fito de protegerem ou promoverem determinadas pessoas, outros havia que perdiam a conta dos escritores a quem se devia o trabalho 242
original. Em 1933 Herman Mankiewicz escreveu para a MGM o argumento de um filme dirigido por Sam Wood, Stamboul Quest (1934), baseado num tratamento cinematográfico de Donald Ogden Stewart que, por sua vez, partia de uma história original de Lee Pirinski. Na rubrica da estruturação da narrativa juntam-se os nomes de mais três argumentistas, sendo o diálogo atribuído a outros quatro escritores diferentes. Se contarmos com as rescritas, as cenas especiais, os diálogos adicionais e os polimentos finais, nos quais aparece o nome do veterano Gardner Sullivan, o filme conta com um total de quinze argumentistas. Como a tendência nos estúdios era a de creditar apenas os nomes dos dois ou três últimos escritores no activo antes da filmagem, nem Mankiewicz nem Stewart, a quem se devem as intervenções substanciais, incluem o título do filme nas suas filmografias. Tal facto podia ter consequências desastrosas para os argumentistas menos prestigiados, que corriam o risco de não ver o contrato renovado se ao fim de um ano não tivessem o seu nome creditado em qualquer filme. O descontentamento dos escritores, agravado pelos cortes salariais devidos à crise económica, em Março de 1933, facilitou a formação da Associação de Argumentistas (Screen Writers Guild), liderada por John Howard Lawson, primeiro presidente eleito. Lawson tivera uma carreira prestigiada como dramaturgo nos palcos de Nova Iorque e era conhecido pelas suas opiniões à esquerda. Em Hollywood nunca teve trabalho que se visse mas o seu espírito combativo dava suficientes preocupações aos produtores para o manterem entretido a escrever filmes de segunda linha. Depois de aderir ao comunismo, em 1934, Lawson tornou-se o comissário político do Partido em Hollywood, exercendo nos meios profissionais uma influência muito superior à importância da sua obra como argumentista. A primeira reunião da Associação de Argumentistas teve lugar no dia 6 de Abril de 1933, com Lawson a lançar uma palavra de ordem reivindicativa susceptível dos maiores equívocos: o escritor é o autor do filme. Este voluntarismo, sintomático da aceitação do primado estético do escrito sobre o material filmado, havia de subalternizar durante muitos anos a especificidade da linguagem cinematográfica. Na verdade, os argumentistas pretendiam, prioritariamente, ser eles próprios a decidir o modo como os créditos eram distribuídos nos genéricos dos filmes, bem como garantir a protecção jurídica das componentes 243
morais e materiais dos direitos de autor. Neste contexto, a noção de autor deve ser entendida como o exercício de uma propriedade intelectual concreta — a escrita do argumento — e não como a autoria global do filme. A reivindicação dos direitos económicos dos argumentistas face à exploração dos produtores é parodiada por Scott Fitzgerald numa passagem de The Last Tycoon em que o produtor Stahr ( decalcado de Thalberg) conversa com o dirigente comunista Brimmer ( decalcado de Lawson): «— Eles (os escritores) são os lavradores neste negócio — disse Brimmer num tom agradável. — Lançam as sementes mas não tomam parte na festa final. O que sentem pelos produtores é semelhante ao ressentimento que sentem os lavradores pelos tipos da cidade». O apelo de Lawson ao ressentimento foi eficaz: ao fim de um mês a Associação tinha cerca de duzentos membros, ao fim de ano e meio contava com setecentos e quarenta. O mais implacável adversário da Associação de Argumentistas foi sem dúvida Irving Thalberg, que não só contava com a adesão incondicional dos outros produtores como tinha o apoio de argumentistas respeitados como Anita Loos, Herman Mankiewicz, John Lee Mahin e James K. McGuiness, quatro dos escritores mais bem pagos da indústria. Mankiewicz não se cansava de provocar e insultar em público os colegas inscritos na Associação, por entender que o problema da esquerda em Hollywood era ganhar demasiado dinheiro, o que provocava impulsos irreprimíveis de má consciência social. A estratégia de Thalberg, cujo pavor era ver os ideólogos comunistas tomarem conta dos estúdios, foi desenvolvida em simultâneo a vários níveis: reduzir o número de argumentistas residentes contratados a prazo, a favor de acordos individuais e pontuais para um filme de cada vez, criando assim maior ansiedade e instabilidade no mercado de trabalho; pagar bem aos escritores produtivos sem ceder uma parcela do poder de decisão sobre os filmes; instigar o aparecimento de uma associação congénere que dividisse e antagonizasse os escritores; marginalizar e isolar os militantes mais activos da Associação; evitar que a Associação dos Argumentistas estabelecesse protocolos formais de integração com outras sociedades de autores, nomeadamente a poderosa liga de autores teatrais de Nova Iorque. A morte de Thalberg, em Setembro de 1936, veio apaziguar a guerra dos escritores e fechar um capítulo decisivo na história de Hollywood. De repente, desaparecera a figura tutelar em cujas iniciativas 244
todos, amigos e inimigos, se tinham habituado a descobrir o caminho do futuro da indústria. «Com a sua morte extinguia-se um mundo em que os heróis eram feitos à sua semelhança», escreve Scott Fitzgerald no romance inacabado The Last Tycoon, porventura o livro que mais contribuiu para mitificar Thalberg. Apesar de ter convivido pouco tempo com o produtor, que não tinha grande opinião a seu respeito, Fitzgerald ficara fascinado com aquela personalidade afável e autoritária que se contava entre a «meia dúzia de homens que conseguiu manter a completa equação famica na cabeça». Para quem nunca se adaptou à equação fílmica de Hollywood, a admiração pelo produtor é compreensível. Os filmes não eram o forte de Scott Fitzgerald e a breve experiência de 1931, quando foi substituído por Anita Loos sem perceber porquê, desiludira-o. Em Janeiro de 1935 tinha sido convidado a escrever uma adaptação de Tender is the Night. Recusara explicando ao seu editor que odiava Hollywood e que só o apanhariam em caso de emergência. Um ano e meio depois a emergência chegou. Zelda fora internada numa clínica psiquiátrica da Carolina do Norte, sem esperanças de recuperação, e os seus livros deixaram de se vender o suficiente para o sustentar. Na Primavera de 1936 iniciou uma série de crónicas na revista Esquire (The Crack-up) onde dava conta do seu fracasso como escritor e onde lamentava que o cinema sonoro estivesse em vias de destronar no imaginário do público a superioridade artística do romance. É pois sem grande entusiasmo, mas com enorme vontade de aprender, que Fitzgerald se instala num dos gabinetes do edifício dos escritores da MGM em Julho de 1937, com um contrato anual que lhe garante um dos níveis salariais mais altos da produtora — mil dólares por semana, quando os argumentistas com traquejo recebiam em média trezentos e cinquenta dólares semanais e a maior parte deles só entrava nas folhas de pagamento quando tinha uma encomenda entre mãos. No período em que Fitzgerald trabalhou para a MGM a produtora estava no apogeu. Dispunha de vinte e dois estúdios de filmagens em plena actividade e produzia cerca de quarenta filmes por ano com um orçamento médio superior a quinhentos mil dólares por película. Os vinte e sete departamentos técnicos de produção da Metro albergavam quase seis mil profissionais com salário fixo semanal, entre os quais se contavam vinte e seis das maiores estrelas de cinema da época, dezoito realizadores em regime de exclusividade e oitenta argumentistas permanentes. 245
Dos seis filmes em que trabalhou durante dezoito meses apenas um ostenta o seu nome no genérico como autor do argumento. Fitzgerald começou a escrever a adaptação de Three Comrades (1938), segundo o romance de Erich Maria Remarque, no dia 4 de Agosto de 1937. A primeira versão do argumento só foi entregue ao produtor executivo no dia 5 de Novembro. O produtor era um jovem de 28 anos, muito paciente e em rápida ascensão na MGM. Trabalhava como argumentista desde 1929 e, em 1935, fora promovido a produtor executivo para coordenar as operações de Fury (1936), o primeiro filme americano de Fritz Lang. Como muitos outros escritores, Joseph Mankiewicz viera para Hollywood a convite do seu irmão mais velho, Herman, e depressa se afirmara como um profissional eficiente e exigente. Foi talvez essa exigência, matizada pela admiração que votava ao escritor, que o levou a rejeitar o argumento apresentado por Fitzgerald e a pedir-lhe para rescrever tudo em colaboração com um especialista de dramaturgia chamado Ted Paramore. Nos três meses seguintes Fitzgerald escreveu mais seis versões diferentes do argumento, todas recusadas por Joe Mankiewicz e pelo realizador, entretanto nomeado, Frank Borzage. Quando começaram os ensaios, a estrela do filme, Margaret Sullivan, recusou-se a dizer alguns diálogos, que achava demasiado artificiais. Pouco tempo antes do começo da rodagem, marcada para o dia 1 de Fevereiro de 1938, Joseph Mankiewicz perdeu a paciência, rescreveu ele próprio os diálogos e alterou a estrutura da intriga. O êxito comercial da estreia e a receptividade da crítica de Nova Iorque, que considerou o filme um dos dez melhores do ano, deixou Fitzgerald estarrecido: quase nada do que tinha escrito estava na película e a presença do seu nome no genérico devia-se certamente a um equívoco, típico da sua acidentada carreira em Hollywood. A história repetiu-se nos projectos seguintes em que Fitzgerald trabalhou na MGM, sem que desta vez o seu nome chegasse a figurar na ficha técnica de qualquer dos filmes. Em Fevereiro de 1939, o contrato da MGM não foi renovado e Fitzgerald aceitou de bom grado o convite do produtor Walter Wanger para trabalhar no argumento de Winter Carnival (1939) em colaboração com um promissor escritor de 24 anos, recém-licenciado pela Universidade de Dartmouth. Quando Fitzgerald conheceu Budd Schulberg, numa das penosas conferências de argumento no escritório do produtor, tinha 42 anos e era uma glória 246
em pleno declínio, arrasado pela loucura de Zelda, diminuído por doença cardíaca, vergado pelas dívidas, consumido pelo álcool, obcecado pela velhice e pelo fracasso. Budd Schulberg mal podia acreditar que um dos seus escritores favoritos de juventude — relera Tender is the Night e The Great Gatsby vezes sem conta — estava ali para escreverem ambos uma história baseada nas suas memórias da vida académica de Dartmouth. Ainda não tinha concluído o curso e já Budd se envolvera na escrita para cinema e na organização da Associação de Argumentistas. Em 1934 assistiu em Moscovo ao Congresso dos Escritores e encontrou-se com a nata dos cineastas soviéticos. De regresso aos Estados Unidos, acaba os estudos universitários e filia-se no Partido Comunista, levado pelo idealismo de contribuir para a transformação do mundo e do cinema. Graças à amizade de David Selznick, que admirava e respeitava desde miúdo como se fosse um irmão mais velho, Budd Schulberg teve a oportunidade de escrever as suas primeiras cenas para dois filmes admiráveis de William Wellman — A Star is Born ( 1937) e Nothing Sacred (1937) —, o realizador que, com Wings (1929), ganhara o primeiro Oscar para seu pai, B. P. Schulberg. Protegido por conhecimentos e influências familiares de longa data, Budd queria agora provar que era capaz de escrever o seu próprio filme, mesmo que Fitzgerald pudesse ofuscar, com o brilho do escritor consagrado, parte dos seus louros. Fitzgerald foi despedido por Wanger duas semanas depois, em circunstâncias que vieram arruinar definitivamente a sua carreira em Hollywood. Numa viagem de localizações a Dartmouth, na companhia de uma equipa reduzida que ia filmar planos de ambiente do Carnaval, Fitzgerald manteve-se embriagado durante todo o tempo, acabando por ser expulso do hotel e transportado por Budd para o hospital em estado comatoso. O filme foi um desastre mas a experiência desses momentos amargos serviria a Budd Schulberg para escrever o seu romance The Disenchanted (1950), que marcou definitivamente a imagem de Fitzgerald. A par do projecto de The Last Tycoon, as dezassete histórias de Pat Hobby em Hollywood (The Pat Hobby Stories, 1940-1941), escritas para a revista Esquire, foram o último trabalho literário de Fitzgerald. Nelas se descreve o dia a dia de Pat Hobby, um argumentista de 49 anos, medíocre e desiludido, que detesta dar ideias sem dinheiro à vista e sobrevive pela rotina e pela manha nos estúdios da Republic, 247
modesta produtora de filmes de série B. Pat Hobby orgulha-se do seu nome ser dos que mais vezes aparecem nos genéricos, embora não se canse de criticar a promiscuidade dos contactos entre os argumentistas e os agentes no interior do estúdio, o que facilita o plágio descarado das boas ideias que já ninguém sabe a quem pertencem. Apesar de não ler os livros que adapta nem de se inibir de copiar e rescrever as ideias dos outros, Hobby pretende preservar o estatuto de autor e recusar o oportunismo típico dos produtores, cuja filosofia o seu agente resume num aforismo inesquecível: «Penso que as ideias andam como que no ar. Pertencem a quem as agarrar... como os balões». Pat Hobby é uma sombra do passado, vive das memórias dos belos tempos, «conhecera já uma vida sumptuosa, mas nestes últimos dez anos os empregos tinham sido difíceis de segurar — mais difíceis de segurar do que os copos». Aprendera que em Hollywood era mais importante dar-se bem com as pessoas com quem se almoça do que ligar àquilo que se escreve, embora não pudesse abdicar inteiramente do brio profissional que qualquer escritor sente ao atravessar o portão de ferro que abre a fachada do estúdio, porque a partir desse instante tem de saber se vai conseguir agarrar a vida e pô-la nos filmes. A solução parece simples e foi Fitzgerald que a colocou na boca de um dos seus personagens, um jovem argumentista recém-chegado à cidade, ainda cheio de entusiasmo e sem ressentimento: «É só pormo-nos atrás da câmara e sonhar».
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Receamos o pior: Suspeita ( 1941), Hitchcock.
27 A LETRA E O ESPÍRITO Na segunda-feira, 10 de Abril de 1939, o nome de Alfred Hitchcock foi inscrito na lista de pagamentos semanais da Selzníck International Pictures, dando cumprimento aos termos de um contrato que iria durar até Maio de 1947. Aos 37 anos, David O. Selznick estava no apogeu da sua carreira, apesar dos enormes problemas financeiros, técnicos e logísticos levantados pela produção de Gone With the Wind, ainda não totalmente concluída. Selznick tinha, no entanto, boas razões para se considerar satisfeito: conseguira, no espaço de poucos meses, comprometer em contratos de exclusividade por sete anos duas personalidades europeias em que punha o maior empenho pessoal por acreditar sinceramente no seu talento: Ingrid Bergman e Alfred Hitchcock. O realizador inglês, três anos mais velho do que Selznick, tinha também, por enquanto, motivos para se felicitar: acabava de entrar em Hollywood pela mão do seu produtor mais prestigiado e apostado em fazer filmes de qualidade. Rebecca, adaptação do romance de Daphne du Maurier, era o projecto acordado para iniciar uma colaboração que ambos previam frutuosa. Selznick deu carta branca a Hitchcock para 249
preparar o argumento com colaboradores da sua confiança. Philip MacDonald escreveu a acção e os diálogos a partir de um tratamento de noventa páginas que Hitchcock preparara com Michael Hogan e Joan Harrison, incluindo desenhos de cenografia e diagramas com a previsão da colocação da câmara nos respectivos décors. Fiel ao seu método de trabalho, Hitchcock elaborou o guião ao mínimo pormenor, de modo a poder começar as filmagens o mais depressa possível, depois do produtor se decidir quanto às hipóteses de elenco ainda em aberto. Quando o dossier de preparação do filme chegou às mãos de Selznick este leu-o com o maior cuidado e, poucos dias depois, com data de 12 de Junho de 1939, enviou um longo memorando ao realizador no qual se dizia chocado e fortemente desapontado com a adaptação delineada por Hitchcock e os seus colaboradores. Selznick propunha que se contratasse de imediato um outro argumentista, uma vez que, sem um novo guião, substancialmente reformulado e aprovado por ele próprio, as filmagens de Rebecca não teriam lugar. O pomo da discórdia consistia em Selznick considerar que Hitchcock fizera uma versão condensada e distorcida do romance original, sabendo perfeitamente que o produtor defendia a inteira fidelidade do cinema aos clássicos da literatura. Havia da parte de Selznick um genuíno respeito pelo texto escrito que, na maior parte dos casos, redundava numa mera subaltemização da especificidade do cinema, reduzida à nobre tarefa de ilustrar as jóias do património literário, às quais haveria apenas que acrescentar o luxo visual dos valores de produção e as estrelas de Hollywood, indispensáveis ao sucesso de bilheteira. Havia também uma óbvia preocupação económica cuja lógica parece imbatível: se o livro foi — como era o caso — um indiscutível campeão de vendas, não havia nenhuma razão para o alterar, pois cada leitor de um best-seller é um potencial espectador do filme, que ficará desiludido se a respectiva adaptação não for fiel, pondo assim em causa o efeito de acumulação comercial gerado pela sinergia dos dois produtos no mercado cultural. Tal como tantos produtores, antes e depois dele, Selznick acreditava que o prazer do público resulta fundamentalmente de um processo de reconhecimento — e não de um esforço de descoberta — ao qual há que juntar uma forte pressão social fomentada pelos meios de comunicação. Mas enquanto os outros produtores americanos se refugiavam na gestão prudente da economia de escala dos estúdios e na rotina das fórmulas narrativas propiciadas 250
pelas convenções dos géneros cinematográficos, Selznick apostava nos produtos singulares, porventura mais onerosos, mas que tinham a vantagem de criar o filme-acontecimento. A experiência de Selznick ao lado dos dois maiores produtores do sistema centralizado de produção (Schulberg na Paramount e Thalberg na mGm), obrigados a supervisar um número excessivo de filmes, necessários à gestão equilibrada da programação do parque de salas das respectivas empresas, leva-o a repensar a estratégia de produção em moldes que vão determinar o futuro de Hollywood. Quando funda a Selznick International Pictures (SIP), em 1935, é com o objectivo de produzir apenas uma dezena de películas por ano, adaptadas de obras literárias sólidas, rigorosamente seleccionadas para competir com o melhor da produção massiva dos estúdios. Selznick não tem salas para alimentar e pode, portanto, dar-se ao luxo de produzir filmes de excepção que os exibidores não deixarão de acolher nas melhores condições. A aposta é clara: «Só há dois tipos de mercadoria rentáveis neste negócio — os filmes muito baratos ou os filmes caros». Consciente de que os riscos financeiros, tanto em perdas como em lucros, estão na produção dos filmes caros, Selznick desenvolve uma estratégia de venda antecipada dos filmes caros através de colossais campanhas de publicidade que forçam a imprensa a conceder-lhe um largo espaço noticioso e a criar o acontecimento. Selznick inverte os termos habituais da relação com os jornalistas: já não são os filmes que precisam da imprensa e da rádio para se promoverem, são os meios de comunicação que precisam dos filmes para gerar falatório e notícias do agrado do público. Em Gone with the Wind (1939) Selznick limitou o acesso dos fotógrafos e dos repórteres aos locais de filmagens para aumentar a curiosidade do público e os pedidos de entrevistas e de materiais de promoção controlados pela produtora. Selznick era um fervoroso adepto do sistema de repetição das obras de ficção como meio estratégico de garantir mais-valias comerciais em pouco tempo e com riscos reduzidos. Para além da política do remake americano dos êxitos europeus, que adoptou com resultados financeiros satisfatórios, Selznick difundia até à saturação as histórias e os títulos de que detinha os direitos de autor, de modo a usufruir da maior exposição publicitária possível antes da passagem do filme. Rebecca, por exemplo, depois de assegurado o sucesso de livraria, tinha sido publicado em folhetim pelo Daily Express de Londres e pelo 251
Daily Mirrar de Nova Iorque. A própria autora fizera uma versão para teatro, entretanto estreada. Em Setembro de 1938, quase um ano antes da rodagem do filme, Selznick vendeu os direitos do romance para um dos programas de teatro radiofónico de maior audiência nos Estados Unidos, precisamente o Mercury Theatre de Orson Welles. O programa de rádio de Orson Welles dedicado a Rebecca, preparado em menos de uma semana, foi um êxito extraordinário. Ora, a adaptação de Orson Welles, simples e muito bem dita, praticamente não alterava uma vírgula ao texto original, limitando-se a suprimir, pura e simplesmente, passagens inteiras do romance que pouco acrescentavam ao núcleo básico da intriga. Selznick adorou a adaptação de Orson Welles porque sentiu a toada da prosa e dos diálogos de Maurier na presença vocal dos actores, sem as intromissões drásticas que Hitchcock e os seus argumentistas tinham feito na reformulação do discurso indirecto para discurso directo e sem a contracção das cenas e dos personagens que atenuava consideravelmente a dimensão romanesca do original. Selznick advertia, peremptório: «Comprámos Rebecca e pretendemos filmar Rebecca». Selznick enviou a Hitchcock a gravação completa da adaptação radiofónica de Orson Welles pedindo-lhe para considerar a possibilidade de manter no filme a narrativa na primeira pessoa, o que, em seu entender, contribuía de maneira decisiva para o envolvimento afectivo e a eficácia tanto do livro como da peça transmitida por Welles. Fiel ao primado da imagem sobre o diálogo e, portanto, renitente ao recurso sistemático da voz sobreposta (voice over) como meio privilegiado de transportar a narrativa, Hitchcock prometeu ao produtor que era sua intenção experimentar um processo mais subtil de substituição da voz na primeira pessoa característica da ficção literária. Uma jovem dama de companhia (Joan Fontaine), de quem nunca saberemos o nome, casa com Maxim de Winter (Laurence Olivier), um aristocrata inglês atormentado pela recordação da primeira mulher, Rebecca, morta em circunstâncias misteriosas. Os objectos pessoais e a presença sufocante de Rebecca fazem sentir-se na mansão de Manderley para onde o casal vai viver. Insegura, a nova Senhora de Winter vai ocupando o lugar simbólico de Rebecca, cuja identidade parece dominar todos os seus actos. A devoção doentia que a governanta da mansão, a Senhora Danvers (Judith Anderson), dedica à memória de Rebecca aterroriza a actual Senhora de Winter até que 252
o marido, instável e desesperado, acaba por lhe confessar os terríveis segredos do seu passado. Descoberta a verdade sobre a personalidade sinistra de Rebecca, a Senhora Danvers lança fogo a Manderley e suicida-se nas chamas. Sobre as ruínas da mansão, a Senhora de Winter pode agora assumir plenamente a sua nova identidade. Em Rebecca, o realizador aprofunda com grande mestria formal e técnica um dos traços estilísticos maiores da sua obra, várias vezes ensaiado no período britânico e que iria conhecer o auge nas obrasprimas americanas dos anos cinquenta: a subjectivação da narrativa visual centrada na personagem principal através dos meios próprios da encenação e da montagem cinematográficas. Passadas as imagens do prólogo, filmadas num longo e complicado movimento de aproximação (travelling) que simula a consciência do olhar subjectivo e da memória transfigurada pela imaginação, e nas quais a voz sobreposta da protagonista nos introduz num universo onírico, carregado de dúvidas e anseios, o filme desenvolve-se como o equivalente de uma narrativa na primeira pessoa, graças ao modo judicioso como subordina a articulação dos planos visuais e sonoros ao ponto de vista interior da protagonista. Mesmo quando a planificação parece seguir os procedimentos usuais da invisibilidade narrativa, típica da norma clássica, tudo no filme está contaminado pela percepção angustiada daquela mulher sem nome a cuja história estamos a assistir. Rebecca é já uma tentativa perfeitamente conseguida de inscrever no traçado da câmara de filmar o equivalente da voz subjectiva da personagem de ficção, através de cujos olhos, sensações e pensamentos o espectador vê e entende o filme. Hitchcock reformula no cinema o preceito programático de Henry James, que subordina a perspectiva da narrativa ao ponto de vista da consciência reflectora de uma personagem central. A intensidade dramática da acção é assim filtrada pela sensibilidade da personagem, dentro dos limites de juízo ou de moral impostos pela sua caracterização. Depois de convidar o dramaturgo Robert Sherwood a rescrever a sequência e os diálogos, tendo em conta o texto do romance, e de instar Hitchcock a fazer testes com inúmeras estrelas, que ambos sabiam de antemão não serem apropriadas para o papel da jovem protagonista de Rebecca — as notícias relativas à escolha do elenco, tal como tinha acontecido com Gone With the Wind, faziam parte da estratégia publicitária —, Selznick decidiu-se por Joan Fontaine, com 253
22 anos, pouco conhecida na época. Ciente da oportunidade única que se lhe oferecia, a actriz entregou-se de corpo e alma ao trabalho. Hitchcock dirigiu Fontaine mais do que era seu hábito e gosto, não perdendo uma oportunidade para fazer sentir à actriz a sua inexperiência e inferioridade no seio de uma equipa técnica e artística de alto gabarito. Fontaine deixou-se dominar por completo pelo realizador, interiorizando durante as filmagens um misto de respeito, admiração e temor que se coadunavam inteiramente com a figura frágil, angustiada e inferiorizada que tinha de representar. Nunca a actriz esteve tão bem. Durante a rodagem, à medida que ia alinhando o material filmado para escolher os planos e dar indicações aos montadores, como era seu costume, Selznick verificou que, contrariamente ao que era normal no sistema dos estúdios com os realizadores contratados, Hitchcock não cobria cada cena de vários ângulos e escalas, de modo a favorecer várias hipóteses de montagem. O que Hitchcock fazia, e que deixou Selznick furioso, era filmar cada plano de uma só maneira e com a duração estritamente necessária para ser colado com o plano seguinte previsto no guião e exemplificado no storyboard. O que Hitchcock fazia era montar antecipadamente na câmara de filmar (cutting-in-thecamera), com tal rigor e contenção que não era possível remontar o filme de outra maneira senão como tinha sido encenado e rodado pelo realizador. Apercebendo-se de que o método de Hitchcock não lhe deixava grandes prerrogativas para controlar a película à sua maneira na pós-produção, Selznick ainda considerou o cancelamento das filmagens, mas a opinião geral na produtora, de que os resultados obtidos por Hitchcock eram magníficos, acabou por prevalecer. A atitude de Selznick, para além da idiossincrasia pessoal, é sintomática quanto à contradição permanente que envolve a sua política de produção: escolhe os realizadores mais aptos, não para explorar aquilo que podem ter de invulgar ou de original — e que no fundo ele admira — mas para os vergar à execução eficaz de uma concepção de cinema industrialmente normalizada e dependente das opções pessoais do produtor. Incapaz de dirigir as filmagens, por falta de tempo, de paciência e de jeito, Selznick prefere controlar o resultado dos seus produtos através da decisão final sobre o orçamento, o argumento, a escolha do elenco, a aprovação da direcção artística, a montagem e o lançamento publicitário acompanhado de produtos derivados. 254
A tensão das relações entre Selznick e Hitchcock abrandou com o êxito comercial e crítico suscitado pela estreia de Rebecca em Nova Iorque, em 28 de Março de 1940, nomeado para onze prémios da Academia, tendo conquistado os Óscares desse ano para o melhor filme e a melhor fotografia a preto e branco. Apesar de, ao longo de mais de vinte anos e de cinco nomeações, Hitchcock nunca ter sido galardoado com um Óscar na categoria de realizador, Hollywood rendeu-se aos encantos de Rebecca e dos filmes subsequentes do cineasta britânico. No ano fiscal de 1940, apenas com três filmes em exibição — Gone With The Wind, Rebecca e Intermezzo —, a Selznick International Pictures ganhou mais dinheiro do que qualquer das oito Majors, cada qual com uma média de meia centena de filmes em distribuição. O êxito fulgurante da estratégia de Selznick consagrava a supremacia operacional das unidades de produção, contra a produção centralizada do sistema de Thalberg, e indicava o caminho aos produtores independentes da década seguinte. Exausto com os encargos de produção e o acompanhamento da exploração comercial de Gone With the Wind e de Rebecca, Selznick resolveu suspender a actividade produtiva da Selznick Intemational, cujos impostos se revelaram ruinosos por não ter de imediato outros filmes nos quais investir os lucros. Não deixou, por isso, de continuar a gerir com enorme perspicácia e proveito a carreira das personalidades que tinha sob contrato de exclusividade, nomeadamente Alfred Hitchcock. Sucessivamente cedido ao produtor Walter Wanger, à RKO, à Universal e à Fox, com alguma contrariedade por parte do realizador, matizada pelo desejo de não interromper a sua carreira na América, Hitchcock dirigiu seis filmes antes de voltar a trabalhar directamente para Selznick. Entre duas fabulosas histórias de espionagem que retomam o esquema do argumento-itinerário e o MacGuffin da conspiração política — Foreign Correspondent (1940) e Saboteur (1942) —, Hitchcock volta a dirigir Joan Fontaine em Suspicion (1941), filme em que adestra o domínio da subjectividade na narrativa cinematográfica. Suspicion é a adaptação de um romance policial de Francis Iles ( pseudónimo de Anthony Berkeley Cox) intitulado Before the Fact ( 1932). O livro conta a história de uma mulher apaixonada pelo marido que um dia descobre que ele é um assassino e a quer matar. 255
Incapaz de se opor ao desejo do ser amado, a mulher escreve uma carta de suicídio e depois bebe tranquilamente o leite envenenado que o marido lhe oferece. Tal como já tinha acontecido com Rebecca, os censores de Hays e Breen não permitiram a apresentação de um personagem — para mais interpretado por Cary Grant — que cometia um crime e ficava impune. Hitchcock não se preocupou em demasia com a intervenção dos vigilantes do código de produção porque era sua intenção alterar radicalmente o ponto de vista narrativo. O filme conta a história de uma mulher apaixonada e neurótica que imagina que o marido, um homem aparentemente encantador mas leviano e mentiroso, quer matá-la para ficar com o seu dinheiro. Esta reconversão da intriga, que o realizador encomendou a Samson Raphelson (um dos argumentistas favoritos de Ernst Lubitsch), é reveladora da estratégia de infidelidade das adaptações de Hitchcock. Alterando o mínimo de elementos estruturais da narrativa, Hitchcock transforma por completo a dimensão psicológica, moral e existencial da ficção, ajustando-a ao seu universo formal e temático. É este princípio de transfiguração do material literário pela máquina significante do cinema que leva Hitchcock a assumir a posição paradoxal de que só lhe interessa prosa menor e de entretenimento, ou seja, aquela que contando histórias cativantes não esgotou todavia as suas potencialidades estéticas. Exemplificando, Hitchcock recusa que pudesse adaptar uma obra de Dostoievski porque considera impossível fazer melhor em filme do que o escritor fez em livro: é infrutífero adaptar obras-primas da novela e do romance porque elas atingiram a sua forma perfeita na excelência da escrita literária. Ao passar de um criminoso real, no livro, para um suspeito de criminoso que se revela inocente (Cary Grant), uma vez que o crime apenas existe na imaginação da mulher (Joan Fontaine), o filme mais não faz do que entrelaçar uma complexa teia de fios temáticos essenciais na obra de Hitchcock, independentemente do autor adaptado e dos argumentistas envolvidos: o falso culpado sobre quem recaem as suspeitas, os mecanismos psicológicos da transferência de culpa, a mulher perturbada pelo duplo constrangimento de um dilema moral. A acção de Suspicion começa com o ecrã às escuras. Os personagens interpretados por Grant e Fontaine conhecem-se no exacto momento em que o comboio em que viajam atravessa um túnel. Se nos recordarmos da metáfora anteriormente sugerida por Hitchcock, 256
comparando a velocidade da progressão da narrativa com um comboio que avança pelo túnel da montanha, talvez não seja despropositado lembrar que, no começo de uma sessão de cinema, também o espectador fica por instantes às escuras na sala, sem saber ao certo o que vai encontrar no ecrã-túnel. Quando se faz luz no filme é através dos grandes planos do olhar curioso e insistente de Fontaine que modulamos o nosso próprio olhar, como se ela fosse a primeira espectadora de uma ficção que se constrói perante o seu olhar e dentro do seu olhar. Desde a primeira sequência que Hitchcock deixa implícita a noção fundamental do seu cinema: a visão da personagem, tal como a visão do espectador, dá acesso ao mundo exterior dos fenómenos e das representações, tal como dá acesso ao mundo interior da consciência, da intencionalidade e do pensamento. Há, entre Rebecca e Suspicion, algumas semelhanças flagrantes, para além da actriz e do contexto social dos acontecimentos, tipicamente inglês. Trata-se de novo do casamento de uma jovem inexperiente que, sem esperar, se descobre irremediavelmente presa a um homem estranho, imprevisível e talvez perigoso. Mas enquanto a heroína de Rebecca, na tradição do romance gótico, se via ameaçada por forças sobrenaturais que acabavam por ter uma explicação racional, a protagonista de Suspicion é vítima de medos imaginários, atribuindo ao marido a realização de crimes inconfessáveis nos quais se reconhece mas que precisa de negar e de delegar em outrem, a fim de neutralizar uma angústia difusa que desafia qualquer explicação racional. A suspeita é sempre possível porque conhecemos a crueldade da natureza humana e sabemos que o espírito do mal não dá tréguas. A suspeita é um juízo moral equívoco na medida em que implica uma circulação cega da culpa assente no postulado da equivalência cognitiva das consciências e das subjectividades. A ambiguidade do universo moral de Hitchcock, sem dúvida influenciado pela sua educação católica, reflecte, na mediação complexa das formas artísticas, a assunção discreta da culpa universal e do sofrimento — de que o suspense e o horror são as vibrações emocionais — como meios incontornáveis de redenção espiritual. As fronteiras entre a culpa e a inocência, entre a normalidade e a loucura, são escorregadias e ilusórias, feitas à medida dos conflitos dramáticos. No contexto do espectáculo, a suspeita é o estado de espírito que dinamiza a mecânica do suspense e abre as portas da imaginação à 257
cumplicidade do público. Cada imagem impõe-se como a evidência de uma interpretação paranóica do mundo: os comportamentos mais banais, os objectos mais inofensivos, os eventos mais fortuitos agigantam-se como provas irrefutáveis de uma conspiração em curso a que a ficção dá forma e energia. A cena mais célebre de Suspicion mostra Cary Grant, na semiobscuridade de um espaço familiar cortado por sombras e silêncios, subir as escadas interiores de casa transportando numa bandeja um copo de leite para a mulher doente. Os planos não podem corresponder ao ponto de vista de Joan Fontaine, que se encontra deitada no quarto à espera do marido. No entanto, o espectador pensa, por ela, que aquele leite deve estar envenenado. Na dúvida, receamos o pior. O excesso de brancura do leite não pode deixar de ser lido como o indício vivaz que vem confirmar a nossa desconfiança, inteiramente coincidente com a da personagem, mesmo quando esta não está presente nas imagens. Cada enquadramento, cada mudança de escala, cada corte entre planos, aparece assim carregado de sentido, como se o ecrã, enfim liberto da escuridão do túnel, fosse o veículo luminoso da exposição de uma relação mental contínua entre o realizador, os personagens e o público. E a perícia na condução desta força motriz psicológica que permite a Hitchcock afirmar, com alguma ironia e inteira justeza, que não dirige os actores mas sim os espectadores. O mesmo impulso que levou o realizador a não poder, nem querer, ser fiel à letra e ao espírito dos livros que o interpelavam e dos quais extraiu alguns filmes superiores, também nos ensinou, enquanto espectadores, a compreender as dificuldades de sermos fiéis à realidade que nos rodeia, dentro e fora da sala de cinema, porque em cada mundo que vemos e ouvimos há sempre uma dimensão infinita de outros mundos possíveis.
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Omnisciência da ficção: Citizien Kane (1941), Welles.
28 CADA UM É TANTA GENTE Herman Mankiewicz foi despedido da MGM em Setembro de 1939. O excesso de álcool e as dívidas de jogo do escritor esgotaram a paciência de Louis B. Mayer, tanto mais que nos últimos quatro anos apenas fora creditado como argumentista em dois filmes. Em viagem para Nova Iorque, Mankiewicz (Mank) sofreu um acidente de automóvel que o obrigou a ficar de cama durante alguns meses. Foi então que Orson Welles o contratou para escrever uma série de peças radiofónicas produzidas pelo Mercury Theater. Fundado por Welles e John Houseman dois anos antes, o Mercury Theater depressa se notabilizou pela originalidade das encenações de Welles, a primeira das quais — Julius Caesar, de Shakespeare — apresentava o imperador romano em trajos contemporâneos, no contexto do movimento fascista da época, rodeado de camisas negras e com o palco iluminado em profundidade como se fosse um recinto de comícios nazis. A aclamação crítica valeu-lhes o convite da CBS para realizarem um programa de teatro radiofónico — Mercury Theatre on the Air — que se tornou uma referência obrigatória da ficção na história da rádio. 259
A estratégia de Welles, que inaugurou um método e um estilo de enorme aceitação popular, consistia em adaptar os clássicos da literatura colocando o discurso narrativo na primeira pessoa e seleccionando as cenas que se prestavam ao aproveitamento integral dos diálogos originais. Os programas eram dominados pela presença de Orson Welles que, além de director e de narrador, chegava a interpretar vários personagens com vozes diferentes. A leitura de longos excertos dos livros e a cuidadosa articulação entre as partes narrativas e as partes dialogadas, separadas pelas breves pontuações musicais de Bernard Herrmann, davam uma reconstituição oral quase perfeita do universo romanesco. O mais célebre dos programas de rádio do Mercury Theater, transmitido em 30 de Outubro de 1938, foi uma adaptação de The War of the Worlds, de H. G. Wells, feita por Howard Koch, o escritor que mais tarde viria a ganhar um Óscar pela co-autoria do argumento de Casablanca. A emissão começa com o simulacro da transmissão em directo de uma orquestra de baile, subitamente interrompida por breves notícias nas quais se relata a queda em New Jersey de um objecto voador não identificado, na sequência de uma série de explosões no planeta Marte. A música de dança ocupa de novo a emissão até ser substituída por um locutor presente na Times Square que descreve a destruição de Nova Iorque e a sua própria morte com gases tóxicos, em directo. Um silêncio insuportável, cortado por interferências, toma conta do programa até que um professor de Princeton, interpretado por Welles, vem explicar como os marcianos, cientificamente mais avançados do que os humanos, chegaram para arrasar o mundo. À música e aos noticiários da primeira parte, decalcados da grelha habitual da estação de rádio, segue-se a narrativa na primeira pessoa na voz autorizada do universitário sobrevivente que testemunha o extermínio da Terra em escassos trinta minutos. Os efeitos sonoros hiperrealistas, congeminados no estúdio com meios artesanais à boca do microfone, como aquela rolha de garrafa que serviu para imitar o ruído de abertura da porta da terrível nave espacial, confirmaram a natureza ambígua do meio: o som cuja fonte não é visível nem identificável pelo público tem um poder de sugestão mais forte. Ainda a emissão não tinha acabado e já uma boa parte do país entrara em pânico, fugindo de casa, acorrendo às igrejas, provocando gigantescos engarrafamentos de trânsito. Apesar dos avisos prévios de que se tratava 260
de uma obra de ficção, muita gente acreditou no pior: a simulação do directo era impecável e cumpria em pleno o desejo de catástrofe típico dos meios de comunicação de massa. Quando chega a Hollywood, em 20 de Julho de 1939, com 24 anos de idade, Orson Welles é já um dos homens mais famosos da América. George Schaefer, director dos estúdios da RKO, propõe-lhe um contrato fabuloso, altamente remunerado e com garantia de total controlo artístico, incluindo o direito à escolha das histórias, do elenco, dos técnicos e da montagem final. O contrato estipulava que Welles devia produzir, escrever, realizar e interpretar quatro filmes (um por ano), cujo orçamento era o único item a ser previamente aprovado pela produtora. Os termos do acordo depressa correram as redacções dos jornais da especialidade, levantando em Hollywood uma onda de antipatia contra Welles, que entrava no cinema como um príncipe, e contra Schaefer, que ousara conceder a um jovem amador condições de trabalho que nenhum profissional com tarimba jamais tinha conseguido. O primeiro projecto escolhido por Welles foi uma adaptação de Heart of Darkness, de Joseph Conrad, cujo texto já utilizara num dos programas de rádio. Fiel ao livro, Welles pretendia manter a narrativa na primeira pessoa, utilizando um sistema de realização inédito: a máquina de filmar devia assumir literalmente o ponto de vista do protagonista-narrador registando os acontecimentos em continuidade, em planos-sequência tão longos quanto possível, correspondendo ao olhar e ao fluxo de consciência do personagem. O olhar da câmara substituía o personagem, imitava os seus movimentos e intervinha na ficção como um campo de visão simultaneamente narrativo, descritivo e mental, suportado pela voz subjectiva sobreposta (voice over). Este método de realização, que transpunha para meios especificamente cinematográficos o estilo de narração que Welles consagrara na rádio, pressupunha a construção de cenários muito complexos e dispendiosos, adaptados à iluminação de vastas zonas de acção e à permanente mobilidade do dispositivo técnico de filmagem, o que resultou num orçamento muito superior ao que a RKO estava disposta a arriscar. As circunstâncias em que surgiu e foi desenvolvida a ideia de Citizen Kane (1941) continuam rodeadas de algum fervor polémico, já que tanto Welles como Mank reivindicam a autoria majoritária do argumento. O certo é que, na sequência do contrato da escrita das 261
peças radiofónicas, que por razões de estratégia publicitária ligada à perpetuação do mito do menino prodígio permitia a Orson Welles ser creditado na ficha técnica dos programas como o único autor das adaptações, Herman Mankiewicz assina um novo contrato, em termos semelhantes, para escrever um argumento original de filme baseado na figura do magnate da imprensa William Randolph Hearst. Conhecendo a dependência do álcool em que vivia Mank e o seu precário estado de saúde, que requeria cuidados permanentes, Welles pede a John Houseman para acompanhar Mank durante a escrita do argumento. Instalam-se ambos em Victorville, a algumas horas de carro de Los Angeles, acompanhados por secretárias e enfermeiras, de modo a poderem trabalhar depressa mantendo o assunto do filme confidencial, dada a enorme influência de Hearst em Hollywood. Entre Março e Maio de 1940 Mank ditou as duas primeiras versões do argumento, provisoriamente intituladas American, que foram revistas por Houseman e enviadas a Orson Welles. Numa roda-viva entre Nova Iorque e Los Angeles, uma vez que continuava a trabalhar em simultâneo nos programas de rádio e na preparação do filme, Orson Welles alterou e rescreveu o argumento, nomeadamente suprimindo muitas das referências públicas que permitiam identificar Kane com Hearst, mas conservando a perspectiva caleidoscópica da biografia do protagonista ser narrada em flashbacks por diferentes personagens. As maiores alterações ocorreram durante os ensaios em estúdio, quando Welles começou a trabalhar com os dois técnicos que iriam contribuir de modo decisivo para a definição visual do filme: o cenógrafo Perry Ferguson e o director de fotografia Gregg Toland. Feito o desgloso (script breakdown), a partir da versão do argumento corrigido por Welles, e elaborado o orçamento, foi necessário proceder a alterações que baixassem substancialmente o custo do filme. A solução, usual nos estúdios, consistia em eliminar alguns dos décors a construir, concentrando mais cenas em menos locais, em aproveitar estruturas de carpintaria já utilizadas noutros filmes, e em reduzir o número dos dias de rodagem. Mas a alternativa de Ferguson para a elevada quantidade de décors previstos — nada menos do que cento e seis no primeiro desgloso, ou seja, o triplo do que era habitual — foi a de criar espaços em profundidade definidos por adereços, mobiliário, paredes e cicloramas, sem que a totalidade da arquitectura cenográfica 262
estivesse construída. As lacunas no espaço, mantidas na obscuridade, eram preenchidas por flanela preta, aproveitando o efeito de perspectiva exagerada com que os cenários foram concebidos. Noutros casos, trucagens com miniaturas, sobrepostas a desenhos e pinturas em diversas escalas, vinham superar as limitações orçamentais, criando um poder de sugestão que se revelou de uma eficácia extraordinária. Nada disto teria sido possível sem uma rigorosa planificação que incluía não só os enquadramentos e os movimentos de câmara como o estilo de iluminação e as trucagens ópticas a executar no laboratório. Orson Welles ficou radiante quando Gregg Toland se ofereceu para colaborar, alegando estar farto de trabalhar com cineastas experientes e querer ensaiar novas maneiras de iluminar e de filmar. Welles tinha boas razões para ficar satisfeito: Toland era sem dúvida o mais inovador e o mais rápido director de fotografia do seu tempo. O fim dos anos trinta foi fértil no lançamento de novos equipamentos que permitiram satisfazer algumas das exigências de Welles. Lâmpadas de arco mais potentes do que a iluminação incandescente, películas de emulsão rápida, lentes de maior sensibilidade e câmaras sem o pesado revestimento de insonorização (blimp) tinham sido testadas por Toland e esporadicamente utilizadas noutras produções. Mas Citizen Kane foi o filme em que estes recursos técnicos foram postos ao serviço de uma concepção estética coerente e de um efeito dramático sem precedentes. Tal como aconteceu com Griffith, é possível que Welles não tenha inventado nada, mas o cinema não voltaria a ser o mesmo depois dele. Para concretizar os contrastes e a profundidade de campo pretendidos pelo cineasta, Toland utilizou quase sempre objectivas de grande angular, no limite da distorção da imagem (25 mm), e diafragmas mais fechados do que era usual (f-8 e f-11 em média, chegando por vezes a f-16). O efeito de perspectiva era assim muito acentuado, alargando o espaço de representação e criando dificuldades acrescidas para a captação do som e para a iluminação dos locais, uma vez que a frequente colocação da câmara baixa, em contrapicado, deixava ver as estruturas superiores do estúdio. Toland resolveu o problema colocando a maior parte dos projectores de luz de dia ao nível do chão, enquanto os tectos eram feitos em tule fino, esticado em armações amovíveis, de modo a eliminar as sombras e a permitir a passagem do som para os microfones colocados por cima dos tectos visíveis. 263
O objectivo de Welles e de Toland era o de conseguirem obter um campo de visão nos planos fílmicos semelhante ao da visão humana, de modo a que o espectador olhasse para o filme como se estivesse a olhar para a realidade. Tal como no programa radiofónico de The War of the Worlds, também agora os meios técnicos especificamente cinematográficos serviam para dilatar a capacidade realista da representação. Na verdade, em termos preceptivos não é inteiramente correcto dizer-se que a imagem resultante da grande angular e da profundidade de campo seja o equivalente do olhar humano, uma vez que o nosso olhar não consegue focar em simultâneo objectos colocados perto e longe do ângulo de visão. Mas Welles trouxe para o cinema sonoro os ensinamentos da rádio, a persuasão da voz sobreposta, dos sons e das pontuações musicais que sustentam a sensação de materialidade do mundo visível, de tal maneira que a escuta atenta se torna um elemento essencial da apreciação plástica do filme. A justificação estética do almejado realismo de Citizen Kane foi elaborada por André Bazin em textos que fundam a hipótese fenomenológica de uma articulação poética entre o cinema e o mundo. A profundidade de campo e o plano-sequência surgem prioritariamente como uma recusa em fragmentar a unidade espácio-temporal da cena, ao contrário do que faz a mise-en-scène clássica. A ilusão de realidade conseguida pela planificação analítica e pela montagem invisível, no dizer de Bazin, «esconde uma fraude essencial, já que a realidade existe num espaço contínuo, e o ecrã apresenta-nos de facto uma sucessão de pequenos fragmentos chamados planos cuja escolha, a ordem e a duração constituem precisamente aquilo a que se chama planificação de um filme. Se tentarmos perceber, por um esforço de atenção voluntária, as roturas impostas pela câmara no desenrolar contínuo do acontecimento representado, e perceber bem porque é que elas nos são naturalmente insensíveis, veremos que as toleramos porque elas deixam igualmente subsistir em nós a impressão de uma realidade contínua e homogénea. Na realidade não vemos também tudo ao mesmo tempo: a acção, a paixão, o medo fazem-nos proceder a uma planificação inconsciente do espaço que nos envolve, as nossas pernas e o pescoço não esperaram pelo cinema para inventar o travelling e a panorâmica, tal como a nossa atenção para fazer o grande plano. Esta experiência psicológica universal é suficiente para fazer esquecer a improbabilidade material da planificação e permite ao espectador participar como numa relação natural com a realidade». 264
Desta argumentação decorrem três conclusões nas quais Bazin reconhece a superioridade realista do plano longo concebido em profundidade. Primeira, a profundidade de campo coloca o espectador numa relação psicológica de ambiguidade perante a imagem, portanto mais próxima da relação que ele tem com a realidade: independentemente do seu conteúdo, a imagem em profundidade seria estruturalmente realista. Segunda, a mise-en-scène em profundidade e em continuidade estimula a atenção, a liberdade e o pensamento do espectador: o sentido das imagens dependeria assim da sua reflexão pessoal e não da que lhe é imposta pelos cortes da planificação. Terceira, o plano-sequência e a profundidade de campo garantem a unidade dramática da cena, ligam os actores ao décor e mantêm a tensão viva entre os personagens localizados no mesmo espaço. A linguagem sintética instaurada pelo plano-sequência e pela profundidade de campo seria mais realista e ao mesmo tempo mais intelectual do que a planificação analítica tradicional, «já que obriga de alguma forma o espectador a participar no sentido do filme ao fazer sobressair as relações implícitas que a planificação já não mostra no ecrã como as peças de um motor desmontado. Obrigado a usar a sua liberdade e inteligência, o espectador descobre directamente na própria estrutura das aparências a ambivalência ontológica da realidade». Apesar da argúcia da análise, indispensável à compreensão da importância histórica do filme, na maior parte dos casos a homogeneidade física da cena, defendida por Bazin, não criava a ilusão de realidade mas sim uma sensação de teatralidade, que convinha perfeitamente ao tema e ao estilo exuberante de Welles. Em Citizen Kane os actores são dirigidos ao milímetro, colocados em posições que lhes permitem ficar alinhados nas imagens em pontos de composição gráfica que demarcam as várias zonas de acção conflitual. Os efeitos de perspectiva e de iluminação fortemente hierarquizada vêm coroar este dispositivo de dramatização visual em que o cinema é assumido como o palco do mundo. A montagem entre os planos é reduzida apenas para dar lugar à montagem no interior dos planos, quer se trate da manipulação do espaço cénico em profundidade ou da trucagem de sobreposição óptica de várias imagens numa só (split screen). Ao reforçar os factores de tensão ligados à duração e ao movimento das imagens, o plano-sequência sublinha a autonomia narrativa da câmara de filmar, chamando a atenção para o virtuosismo técnico patente em cada fotograma do filme. 265
A sequência de abertura é emblemática. A câmara avança num movimento virtualmente contínuo, desafiando o aviso de «No Trespassing» preso à protecção de arame farpado que cerca o domínio territorial de Xanadu, a residência lendária de Charles Foster Kane (Orson Welles). A câmara aproxima-se da única janela iluminada no castelo, entra no quarto de Kane no momento em que este deixa cair um pisa-papéis em forma de bola de vidro contendo a miniatura de uma casa rodeada de neve. Kane morre ao pronunciar a palavra Rosebud enquanto a bola de vidro se estilhaça no chão. As ligações entre os vários planos são rasuradas por uma série de fundidos e encadeados que sustentam a fluidez dos movimentos de câmara. Ao contrário do travelling de abertura de Rebecca (1940), no qual Hitchcock sobrepunha a voz da protagonista, justificando o carácter subjectivo da narrativa e atenuando assim as marcas de enunciação, em Citizen Kane os movimentos de câmara não simulam, aparentemente, a subjectividade de ninguém, pelo contrário, parecem indiciar a total autonomia do discurso narrativo na determinação de penetrar num espaço irreal, instável, obscuro, saturado de ecos de imaginário. O filme mostra, desde as primeiras imagens, que o olhar condutor da narrativa não tem limites, entra onde quer, no momento justo, pelos meios que lhe convêm, exibe-se e concentra-se em pormenores insólitos, mas sempre relevantes. Ao atravessar ostensivamente uma zona ambígua, irreconhecível, interdita — «No Trespassing» — a visão da câmara cria um espaço narrativo que abre o enigma da mise-enscène antes de abrir o enigma do enredo. Porquê mostrar em grande plano os flocos de neve que rodopiam sobre a casa, encerrados na bola de vidro que cabe na palma da mão, quando o homem, por enquanto desconhecido, morre a dizer uma palavra sem nexo e sem ninguém no quarto para o ouvir? A câmara de filmar pode ser omnisciente mas nunca diz tudo. Talvez a bola de vidro, fechada sobre si própria, com os seus minúsculos farrapos de neve, simbolize o mundo para sempre perdido da infância de Kane; talvez a palavra Rosebud, revelada no último plano do filme, inscrita no trenó com que ele brincava na neve, vigiado pelo olhar ansioso da mãe, venha finalmente satisfazer a curiosidade e o afecto do público. O que nós percebemos, com a rapidez de um sobressalto, é a bola de vidro que se parte, é, no final, o trenó consumido pelas chamas: ao julgarmos aceitar a evidência do que se passa, mais não vemos do que vestígios fugazes do significante 266
que se escapa, primeiro irremediavelmente fracturado em inúmeros estilhaços, depois reduzido a pó incandescente, deixando-nos porventura à deriva na memória flutuante e escorregadia da neve, branca como uma página em branco, branca como um ecrã à espera da luz das imagens por vir. Pode ser que a primeira sequência do filme, até à morte de Kane, mostre a omnisciência da ficção cinematográfica para além do que estávamos habituados e nos faça mergulhar, sem aviso prévio, na corrente de consciência do personagem moribundo, numa tentativa ousada de criar um campo de visão em que as instâncias narrativa, descritiva e mental se fundem na percepção imediata do espectador. A completa subjectivação do campo de representação da câmara de filmar, o realismo fantástico da alucinação e do monólogo interior, que Welles não chegou a concretizar no projecto de Heart of Darkness e Eisenstein foi impedido de realizar em An American Tragedy, estão em Citizen Kane. Ao invés do desejo formulado pelos seus autores, é impossível olharmos para o filme como se estivéssemos a olhar para a realidade, pela simples razão de que o próprio filme se encarrega de explicitar a diferença entre uma coisa e a outra: pode mesmo dizer-se que Citizen Kane é a história dessa diferença. Após a morte inicial assistimos a oito minutos de um jornal de actualidades — News on the March — onde é resumida a vida de Charles Foster Kane, bem como cinquenta anos de história do cinema. Os antecedentes públicos do personagem, que coincidem com a turbulência política do país, teriam sido filmados ao longo dos anos em contextos diferentes. À medida em que vemos Kane envelhecer adivinhamos também a técnica do cinema evoluir no registo dos diversos suportes. As actualidades filmadas, riscadas pela usura do tempo, cumprem aqui o papel desempenhado pelo noticiário na emissão de rádio de The War of the Worlds: dar credibilidade ao mundo da ficção através da ficção do mundo. O programa serviase dos meios estéticos específicos da rádio, Citizen Kane reinventa o cinema. É conhecida a continuação do filme. Insatisfeito com as imagens de actualidades, que na sua pretensa objectividade mostram factos — o que ele fez — mas não revelam a verdade — quem ele era —, um jornalista empreende um inquérito com a finalidade de apurar a vida privada de Kane e o segredo de Rosebud. Cada uma das cinco teste267
munhas interrogadas pelo jornalista dá a sua visão do protagonista. A estrutura do filme em flashbacks quase não altera a ordem cronológica da história de Kane mas vai fornecendo facetas contraditórias da sua personalidade. Kane pode ter mudado com os anos e com as circunstâncias da sua vida, mas o que o filme sugere, de um modo radical e inédito, é que a definição de Kane depende tanto das suas contradições como do ponto de vista dos outros. Cada personagem aparece assim como um processo em construção, processo nunca acabado, dependente da teia com que o enredo tece a história, remetendo a questão da identidade de Kane para a origem e a natureza das imagens que a constituem. Quanto mais julgamos conhecer acerca de Kane menos sabemos quem ele realmente era. O que está em causa não é apenas a crítica da concepção burguesa do indivíduo como sendo o somatório do que fez e do que possui, ou a recusa do idealismo psicológico do ego estável e unificado, mas a ponderação de uma dialéctica do reconhecimento que implica a impossibilidade de reduzirmos quem quer que seja a uma imagem coerente e definitiva. Cada um é muita gente porque incorpora na sua imagem o reflexo da imagem dos outros e o reflexo das sua próprias ilusões. Uma das últimas aparições de Kane mostra-o num corredor, reflectido em dois espelhos paralelos que fragmentam e multiplicam a sua imagem até à vertigem. Quando viu o filme pronto, George Schaefer sentiu-se orgulhoso da confiança depositada no realizador. Nunca a RKO tinha produzido um filme daquele nível. Estava disposto a enfrentar a cólera de Hearst e dos seus acólitos, nem que isso lhe custasse o emprego. Os jornais de Hearst atacavam abertamente Mank e Welles, ameaçavam desvendar os podres de Hollywood, recusavam qualquer publicidade aos estúdios que exibissem o filme nas suas salas. Apesar de Welles vir a terreiro declarar que o argumento de Citizen Kane não era baseado na vida de Hearst, algumas analogias e diálogos eram demasiado conhecidos do público da época para esconder a dimensão de sátira política implícita. As intimidações de Hearst surtiram efeito. Nicholas Schenck e Louis Mayer, patrões da MGM e dois dos homens mais poderosos da indústria, propuseram a Schaefer comprar-lhe o negativo original por uma importância superior ao seu custo de produção, com o único fito de destruir o filme, ganhar as boas graças de Hearst e tranquilizar a comunidade cinematográfica. Schaefer não consultou os accionistas 268
da RKO. Enquanto fosse director do estúdio competia-lhe assumir as responsabilidades: recusou a oferta e prometeu processar quem boicotasse a estreia. A determinação de Schaefer foi decisiva na salvaguarda daquele que continua a ser considerado um dos melhores filmes da história do cinema, mas a sua carreira como produtor ficou arruinada. Tal como outros protagonistas da obra de Orson Welles, o cidadão Kane é um pequeno tirano que se toma por Deus e quer moldar o mundo à medida dos seus desejos. É o tipo de personagem grandioso e desprezível que fascinava o actor Welles mas que suscitava sérias reservas ao realizador Welles. Esta ambivalência, a que o mundo da ficção dá azo para melhor nos ajudar a compreender a natureza humana, mostra-se particularmente adequada a um filme em que a cisão da identidade do sujeito é o tema nuclear. O mesmo se pode dizer quanto à polémica em torno da autoria do argumento, partilhada por Herman Mankiewicz e por Orson Welles depois do primeiro apresentar queixa na Screen Writers Guild alegando que o realizador tencionava excluílo do genérico. Apesar dos termos do contrato autorizarem Welles a apresentar-se como o único responsável pelo argumento, tal atitude teria sido injusta e desnecessária. A mestria cinematográfica de Welles é evidente em cada imagem e em cada som, mesmo se temos plena consciência de que o filme não existiria, tal como o vemos e ouvimos, sem a intervenção de Mankiewicz, de Toland, de Ferguson, de Schaefer e de muitos outros, dos técnicos de som aos dos laboratórios, à frente e atrás da máquina de filmar, antes e depois da estreia. Após vermos Citizen Kane sabemos, por experiência íntima, que um filme de Orson Welles, como o de qualquer realizador que se preza, é um filme de tanta gente.
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Bogart e Bergman em
Casablanca (1942), Curtia.
29 O VERDADEIRO E O FALSO Ingrid Bergman desembarcou do Queen Mary no dia 6 de Maio de 1939. À sua espera estava Kay Brown, supervisora de argumentos, caçadora de talentos e coordenadora da Selznick International Pictures em Nova Iorque. Kay tinha assistido à estreia da versão original de Intermezzo (1936), sexto filme sueco de Ingrid Bergman, dirigido por Gustav Molander, e apressara-se a avisar David Selznick de que não só a história era uma excelente hipótese para fazer uma remake americana de sucesso como a actriz principal do filme era sensacional. Selznick e Jock Whitney — presidente do conselho de administração da companhia de Selznick — pediram uma cópia do filme e, no dia seguinte ao visionamento, Kay recebeu instruções para viajar até à Suécia a fim de comprar os direitos do argumento e convencer Bergman a assinar um contrato de exclusividade para trabalhar em Hollywood. Uma das principais tarefas de Kay Brown em Nova Iorque consistia em conhecer os novos actores e as novas peças de teatro que estreavam, dentro e fora do distrito da Broadway, estar a par dos previsíveis best-sellers a lançar pelas grandes editoras, escolher obras de 271
ficção publicadas na imprensa e ver os filmes estrangeiros que chegavam à grande cidade. Os direitos cinematográficos das peças e dos livros considerados de interesse, em termos de valores de produção, eram negociados por Selznick que, na maior parte das vezes, acabava por cedê-los com enorme lucro a outros produtores. Os filmes estrangeiros que tivessem tido êxito comercial na Europa, e cujas histórias fossem susceptíveis de ser adaptadas a um contexto americano, eram seleccionados tendo em vista a aquisição dos direitos internacionais do respectivo argumento para fazer uma remake americana. Apesar das remakes serem uma prática conhecida desde os primórdios da organização da indústria, primeiro plagiando descaradamente o cinema europeu, depois retomando com variações mínimas a mesma história em circunstâncias diferentes — Griffith, De Mille, Hawks, Capra, Lang e Hitchcock, por exemplo, fizeram remakes dos seus próprios filmes —, é porventura com Selznick que a remake assume foros de estratégica global tendo em vista a importação do talento europeu e a conquista dos mercados internacionais, uma vez que se trata de impor a supremacia técnica e económica da produção americana e dos seus circuitos de distribuição com o apoio de histórias que já tinham provado o apelo popular. Vale a pena distinguir entre remake e nova versão. Enquanto esta parte normalmente de um texto literário ou dramático que deu lugar a filmes com argumentos que, apesar de terem o mesmo fio narrativo, constituem adaptações com perspectivas diferenciadas, a remake é um filme que reproduz, com outros actores, um argumento cinematográfico anteriormente produzido. Embora possa ser determinada por uma vontade de rescrita cinematográfica — como é o caso dos realizadores acima citados — a remake é quase sempre ditada pelo interesse em capitalizar uma obra de sucesso tendo em conta o aproveitamento de actores na moda e, eventualmente, o progresso tecnológico do cinema e a curiosidade de uma nova geração de espectadores. Uma vez que a duração comercial de um filme é relativamente efémera e está muito circunscrita às condições históricas da sua produção e recepção, a remake aparece como um processo típico de reciclagem industrial, propício à criação de pretensas novidades e susceptível de prolongar o período de exploração económica do produto. Vantagens acrescidas da remake de filmes estrangeiros, pouco conhecidos do grande público, residiam na possibilidade de se poderem 272
copiar cenas inteiras do original, plano por plano, evitando dúvidas e demoras na preparação, custos elevados na execução e desperdícios na montagem do novo filme. Nas notas de produção da versão americana de Intermezzo (1939), que iria lançar Ingrid Bergman no estrelato de Hollywood, Selznick aconselha textualmente o seu produtor executivo a utilizar a banda sonora do filme sueco e a recorrer aos mesmos ângulos de câmara do original, que lhe parecem suficientemente bons para não se perder tempo na rodagem a tentar fazer melhor. Em conformidade com estas instruções, Selznick adverte que só lhe interessa contratar um realizador que esteja na disposição de se limitar a copiar o filme de Molander. Num memorando datado de 23 de Outubro de 1938, pode ler-se, com a assinatura do produtor: «Quero reafirmar categoricamente que a mais importante poupança no refazer dos filmes estrangeiros, uma poupança que compensa largamente a perda dos duvidosos mercados estrangeiros onde já passou a versão original, e que constitui a única razão de ser destas remakes, reside na filmagem, ou seja, na verdadeira duplicação, tanto quanto possível, do filme montado. Este procedimento deve economizar semanas de rodagem e uma fortuna por não termos de filmar cenas desnecessárias. Mais concretamente, evita a filmagem de ângulos de câmara inúteis. Penso que o trabalho de câmara no filme original é invulgarmente bom e não há nenhuma razão para o alterar quando isso implica custos adicionais. [...] Assim, é melhor contratarmos um realizador que esteja na disposição de fazer um trabalho de copista. Se o nosso objectivo, ao comprar os direitos, foi conseguir um filme a preços reduzidos, temos de arranjar um realizador disposto a colaborar unicamente em função desse objectivo». Estas indicações são características da estratégia e da mentalidade de Selznick que, na produção de filmes originais, esbarrava em zonas de atrito permanente com os argumentistas e os realizadores mais criativos. A primeira preocupação de Selznick após a chegada de Ingrid Bergman a Los Angeles foi resguardá-la da imprensa, para evitar qualquer animosidade por ter contratado mais uma actriz estrangeira, sobretudo depois da prolongada agitação nacional com o lançamento de Vivien Leigh em Gone With The Wind, no papel cobiçado pelas maiores vedetas de Hollywood. A segunda preocupação consistiu em construirlhe uma imagem pública e mudar-lhe o nome, com o pretexto de que Ingrid Bergman era difícil de pronunciar para o público americano. Como a actriz recusasse e insistisse em apresentar-se tal qual 273
era, Selznick repensou o esquema de lançamento de Bergman, que iria consagrar um novo estilo de estrela no cinema americano. No fim do mudo e nos primeiros tempos do filme sonoro as vedetas femininas de maior impacto mítico na América foram Greta Garbo e Marlene Dietrich, duas importações europeias que David Selznick conhecia bem, por ter trabalhado com ambas. No fim dos anos trinta tanto Garbo como Dietrich atravessavam uma forte crise de popularidade, ao ponto de serem classificadas como veneno de bilheteira pela imprensa da especialidade. Selznick atribuía o declínio de Garbo e de Dietrich no gosto do público ao excesso de artificialismo com que ambas tinham criado e mantido uma imagem rígida de fascínio e distanciamento, típica do período de divinização das estrelas que se prolongou entre os anos dez e meados dos anos trinta. Garbo era o glamour da alma solitária encerrada num corpo frágil e volátil, Dietrich era o glamour do corpo sensual e perfeito aberto a uma moral ambígua. Num caso como noutro, as estrelas tinham sabido encarnar o espírito de uma época propensa à fantasia maneirista e aos caprichos de adulação que não se coadunavam com a evolução dos costumes e as novas exigências de uma representação mais realista. Em breve, Garbo retirar-se-ia de cena, enquanto Dietrich assumiria a caricatura da imagem outrora sonhada por Sternberg. A extensão do espectáculo cinematográfico a todas as camadas da população, a partir dos anos trinta e do triunfo do filme sonoro, obriga à diversificação dos temas e dos géneros propostos pelos estúdios, introduzindo a necessidade de um cuidado acrescido com a credibilidade das narrativas, agora mais atentas à caracterização psicológica das personagens, reforçada pelo diálogo coloquial e pela verosimilhança da conduta dos actores. O aburguesamento do imaginário cinematográfico e da psicologia popular vai dar lugar ao aparecimento de estrelas de amplitude mais realista que, a pouco e pouco, substituem as estrelas de recorte mítico. A campanha orquestrada por Selznick para fazer de Ingrid Bergman a maior estrela da América assenta na correlação entre duas premissas exploradas até à exaustão que só o imenso talento da actriz conseguiu suportar: Bergman seria simultaneamente a anti-Garbo e a anti-Dietrich. Onde a imagem de Garbo fora sofisticada, reservada, altiva e fria, a imagem de Bergman seria espontânea, aberta, generosa e sensual. Onde a imagem de Dietrich fora exibicionista, leviana, 274
inflamada e intransigente, a imagem de Bçrgman seria discreta, sincera, acessível e simpática. A construção da imagem pública de Ingrid Bergman radica num paradoxo de que a actriz depressa se deu conta: o da naturalidade e da autenticidade encenadas dentro e fora dos estúdios de cinema como evidências espectaculares de um quotidiano glorificado pela aparente ausência de glamour. A insistência de Selznick foi ao extremo de mandar colar no material de publicidade legendas nas quais se garantia que as fotografias da actriz tinham sido feitas sem o recurso a qualquer retoque, penteado ou maquilhagem artificiais. Bergman era a norma e a excepção, era a estrela e a antiestrela, era o céu e a terra. Nada disto teria sido possível sem o acordo, a intuição, a técnica apurada e a enorme capacidade de trabalho da actriz que desde a sua chegada declarou não gostar de interpretar personagens estereotipados, sem complexidade nem dimensão humana, referindo-se indirectamente à padronização dos filmes dos estúdios. Presente nos primeiros dias das filmagens de Intermezzo, Selznick insistia na simplicidade cativante de Bergman como um trunfo inestimável na apresentação da nova vedeta. Que essa simplicidade foi o resultado de um paciente trabalho de composição prova-o o elevado número de repetições de cada plano pedido pelo produtor, apesar da segurança com que a actriz enfrentava a câmara. A teimosia de Selznick e a habilidade de Bergman foram recompensadas com o êxito de bilheteira e o acolhimento caloroso da imprensa. O escritor Graham Greene, na altura crítico de cinema no Spectator, resumiu com argúcia o nascimento de uma estrela: «Vale a pena ver o filme sobretudo por causa de Ingrid Bergman, que é tão natural como o seu nome. Que estrela, antes dela, fez a sua entrada com um brilho de luz na ponta do nariz? O brilho é típico de um estilo de actuação que não dá qualquer ideia de se estar a representar, mas sim a viver — sem maquilhagem. Leslie Howard, com as suas inflexões estudadas, não consegue deixar de parecer um tanto falso ao pé da verdade desajeitada da jovem actriz». Depois da estreia do Intermezzo americano, Bergman começou a trabalhar com outros produtores, embora o contrato de exclusividade com Selznick a obrigasse a interpretar apenas os filmes que este entendia serem adequados à sua carreira e tipagem. Ingrid Bergman esforçou-se por mostrar a versatilidade do seu talento, escolhendo papéis diferentes. Verificou, no entanto, que os maiores actores de Hollywood com quem contracenava, como Spencer Tracy, Humphrey Bogart ou 275
Gary Cooper, se limitavam a gerir a sua própria personalidade sem esforço e com uma eficácia que em nada diminuía a extraordinária qualidade do seu trabalho nos filmes. Se é certo que as estrelas têm tendência a repetir no cinema aspectos comportamentais da sua própria pessoa, é precisamente essa atitude contida e minimalista de representação que lhes garante o maior índice de naturalidade num mundo por definição feito de artifícios e exageros. Quando Ingrid Bergman foi convidada a trabalhar ao lado de Humphrey Bogart em Casablanca, em Abril de 1942, aceitou de imediato, mesmo sem ler o argumento, que de resto só seria concluído no decurso da rodagem. A razão do seu entusiasmo estava na oportunidade de contracenar com um dos mais fabulosos actores de Hollywood, cujos filmes ela acompanhara com admiração antes mesmo de pensar emigrar para a América. Durante as filmagens de Casablanca Ingrid Bergman foi várias vezes ver The Maltese Falcon, de John Huston ( 1941), na altura em exibição numa sala de Los Angeles, a fim de estudar o jogo do actor. Nos estúdios da Warner, numa Casablanca feita de cartão e magia, enquanto Michael Curtiz e Hal Wallis, respectivamente o realizador e o produtor do filme, discutiam acaloradamente acerca dos imponderáveis de se estarem a improvisar as situações e os diálogos em cima da hora, criando uma enorme tensão entre os actores, Bergman constatava que Bogart se mantinha igual a si mesmo, sempre idêntico à sua imagem nos filmes, quer estivesse a filmar ou não. Aquele homem que tinha à sua frente, que era adorado em todo o mundo, limitava-se a contagiar com a sua incrível personalidade os personagens que interpretava. O mesmo rosto sulcado, sofrido de filme em filme, tocado por paixões e dilemas morais que arrasavam as plateias, revelava na respiração do tempo o mais terrível dos dramas — a usura e decomposição do ser humano. Na película seguinte, Ingrid Bergman teve por companheiro outro actor que fora seu ídolo de juventude e que era uma lenda viva no cinema americano: Gary Cooper. Filmavam ambos a adaptação de For Whom the Bell Tolls (1943), de Hemingway, que tinha elegido publicamente Cooper e Bergman como os actores ideais para os personagens do seu romance. Nas montanhas da Sierra Nevada, no arranque dos exteriores, Cooper pedia a Bergman para ensaiarem os diálogos enquanto os técnicos preparavam o local de filmagens. Entre ensaios e conversas de circunstância, a actriz reparava que Cooper mantinha 276
exactamente o mesmo tom de voz, sem inflexões, sem qualquer expressão no rosto ou nos olhos. Durante as filmagens acontecia a mesma coisa, Cooper não representava, e Bergman ficou desiludida, antecipando o falhanço do actor. Dias depois, quando Bergman viu em projecção o material filmado, ficou atónita. O rosto, os olhos, os gestos, a voz, o silêncio, a presença de Gary Cooper impunham-se no ecrã de tal maneira que, anos mais tarde, ela não hesitou em escrever na sua autobiografia que Cooper foi o actor mais natural, seguro e maravilhoso com quem trabalhou. Tinha razão Frank Capra, referindo-se a estrelas deste calibre — um actor atinge o seu apogeu quando se pode exprimir num personagem que se lhe assemelha como um irmão. Na cerimónia de entrega dos Óscares referentes a 1943, efectuada em Março de 1944 no Teatro Chinês Grauman do Hollywood Boulevard, Ingrid Bergman esteve presente com dois filmes — Casablanca e For Whom the Bell Tolls — indigitados para os principais prémios, incluindo a sua primeira nomeação como actriz principal ao lado de Gary Cooper que, tal como Bogart, também era candidato. As estatuetas mais importantes (produção, realização, argumento) foram para Casablanca, mas a actriz contemplada, para surpresa geral, foi Jennifer Jones, protagonista de uma comédia religiosa intitulada The Song of Bernardette (1943), realizada por Henry King para a Fox. Durante a sessão, Bergman e Jones estiveram sentadas entre o clã de Selznick, pois embora ele não fosse produtor de nenhum dos filmes a concurso, tinha ambas as actrizes sob contrato. Jones era a última descoberta de Selznick, apresentada como estreante, apesar de ter feito um filme de série B com John Wayne. Ingrid Bergman ganharia o primeiro dos seus três Óscares no ano seguinte, com uma película de George Cukor produzida pela MGM - Gaslight (1944) — desta vez a remake de um filme inglês. A política do sensacionalismo publicitário e da pressão de influências sobre a comunidade do cinema desencadeada por Selznick desde a fundação da Selznick International Pictures, que conhecera o apogeu em 1940 com a chuva de nomeações e de prémios arrecadados por Gone With the Wind e Rebecca, continuava a dar frutos, sobretudo através do estratagema de lançamento de actrizes que o produtor alugava aos estúdios por importâncias astronómicas depois de lhes garantir um contrato de exclusividade e o estatuto de estrela. Joan Fontaine, por exemplo, foi contratada em 1939 por sete anos, com um salário 277
anual de treze mil dólares. Nesse mesmo ano, Selznick cobrava vinte e cinco mil dólares por cada filme em que a actriz participava. Com a nomeação da Academia pelo seu desempenho em Rebecca o cachet da actriz, cobrado por Selznick, passou a ser cem mil dólares por filme. No ano seguinte, depois de ganhar o Oscar pela sua interpretação em Suspicion, Fontaine valia em Hollywood nada menos do que duzentos mil dólares por filme, embora o seu salário contratual se mantivesse inalterado. Além de Rebecca, Joan Fontaine não voltou a fazer nenhum filme produzido pessoalmente por Selznick, embora tenha cumprido contrariada os sete anos da lei, durante os quais todos os anos participou em pelo menos um filme em regime de aluguer. O esquema com Alfred Hitchcock e Ingrid Bergman foi semelhante, o que levou ao esfriamento progressivo das relações entre as vedetas contratadas e o produtor. Selznick cobrou pela participação de Bergman em Casablanca cento e dez mil dólares e cento e cinquenta mil dólares em For Whom the Bell Tolls, dos quais a actriz apenas recebeu por cada filme cerca de trinta mil dólares. Entre 1940 e 1945 Bergman fez onze filmes negociados por Selznick com outros produtores, tornando-se uma fonte de rendimentos apreciável. David fazia assim concorrência ao seu próprio irmão, Myron Selznick, um dos primeiros agentes artísticos a interferir na viabilidade de certos projectos devido à força negocial dos actores e dos realizadores que representava. David O. Selznick começou a alugar as prestações profissionais de Jennifer Jones a outros estúdios antes de produzir o filme que tinha em mente para a actriz, Since You Went Away (1944), um longo e comovente melodrama familiar tendo por pano de fundo a Segunda Guerra Mundial, povoado de estrelas, de patriotismo e de melancolia. Selznick chegou a considerar a hipótese de ser ele próprio a realizar o filme, mas o receio do caos financeiro provocado pela sua ausência da administração da companhia acabou por levar a melhor. Mesmo assim, Selznick fez questão em assinar o argumento e em contratar um realizador — John Cromwell — que aceitou ensaiar todas as cenas com os actores e a câmara diante do produtor antes de impressionar um metro de negativo. Decididamente, Selznick fazia os seus filmes por interpostas pessoas. Durante as filmagens de Since You Went Away, Selznick foi rescrevendo e ampliando a parte da personagem interpretada por Jennifer Jones, por quem se sentia verdadeiramente obcecado, forçando-se a 278
um excesso de trabalho e de euforia que, de seguida, o mergulhou no cansaço e numa profunda astenia. Ele, que julgava conhecer e poder analisar as grandes paixões que assolavam a vida imaginária dos personagens do seus filmes, atravessava uma crise real para a qual não encontrava explicação. Não era a primeira vez que David se sentia assim: o seu estado de espírito parecia uma remake de angústias passadas. Uma severa depressão, no começo de 1940, obrigara-o a passar dias inteiros fechado num quarto do Hotel Waldorf, enquanto os laboratórios preparavam as cópias de distribuição de Rebecca. Apesar das discordâncias pontuais, reconhecia que Hitchcock retratara com mão de mestre uma galeria de neuróticos que ia ficar na história do cinema. Assim outros filmes o ajudassem a compreender melhor o único personagem que por vezes tinha dificuldade em controlar: ele próprio.
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Bogart e Bacall em Ter ou não Ter (1944), Hawks.
30 NINGUÉM É UMA ILHA Do que Ernest Hemingway mais gostava no cinema eram os actores. Como tinha sido possível Sam Wood fazer de For Whom the Bei! Tolls (1943), com a participação de actores ímpares como Gary Cooper e Ingrid Bergman, um filme tão mau? Não, decididamente não estava interessado em ir para Hollywood escrever argumentos. Howard Hawks não tinha resposta para as objecções do escritor mas sempre lhe disse que era capaz de fazer um bom filme do seu pior livro. Ambos concordaram que o pior livro de Hemingway devia ser To Have And Have Not. Embora a história não fosse grande coisa Hawks gostava dos personagens. Comprou os direitos e vendeu-os à Warner com a condição de ser ele a realizar o filme. Como Hemingway se recusasse a trabalhar na adaptação, Hawks pediu a outro escritor seu amigo, na altura sob contrato na Warner, para rever o argumento, alterando a acção da Cuba dos anos trinta para a Martinica dos anos da Segunda Guerra Mundial e substituindo uma intriga de contrabando por outra de implicações políticas. William Faulkner ficou encantado com a ideia de rescrever a obra de um dos escritores que mais admirava. 281
Em 1932, quando Faulkner entrou pela primeira vez num estúdio de Hollywood, o cinema não era um sonho, mas apenas o último recurso de um escritor falido. Apesar de merecerem a atenção da crítica, os seus primeiros quatro livros venderam pouco, à excepção de Sanctuary, romance publicado em 1931, cujos direitos tinham sido adquiridos pela Paramount. O telegrama de Samuel Marx, coordenador de argumentos e assistente de Thalberg, convidando Faulkner a assinar um contrato à experiência com a MGM, com um salário superior ao que ganhara em direitos de autor, pareceu-lhe a salvação. Os numerosos testemunhos sobre a presença do escritor em Hollywood transformaram em lenda tudo o que aí fez. No encontro com o executivo da MGM, quando este perguntou em que género de filmes gostaria de trabalhar, o escritor terá respondido que preferia escrever histórias para o Mickey Mouse e textos para os jornais de actualidades. Samuel Marx fingiu apreciar o sentido de humor de Faulkner e pô-lo a ver um filme de boxe com Wallace Beery, com a recomendação de inventar uma história parecida. A meio da projecção, Faulkner saiu da sala e desapareceu do estúdio. Durante um ano Faulkner colaborou em nove projectos da MGM, dos quais apenas dois foram produzidos, sem o nome do escritor no genérico. Provavelmente, a sua carreira em Hollywood teria terminado com o fim do contrato da MGM se Hawks não tivesse insistido com Thalberg em ter Faulkner como argumentista de Today We Live (1933), adaptado do conto Turn About, publicado no Saturday Evening Post. À excepção de Hawks, com quem estabeleceu uma sólida amizade, e de Nathanael West, que escrevia filmes de série B para produtoras menores como a Republic e a Monogram, Faulkner não convivia praticamente com ninguém em Hollywood. Com a cumplicidade de Hawks regressou a casa, em Oxford no Mississipi, e ditou as cenas do filme por telefone. Durante seis meses, após a conclusão da fita de Hawks, teve a grata surpresa de continuar a receber o cheque semanal da MGM até Thalberg descobrir que o escritor não punha os pés no estúdio e se recusava a sair de casa, onde se mantinha ocupado a escrever o romance Absalom, Absalom! Foi despedido. Dois anos mais tarde, conhecendo as dificuldades financeiras do escritor, Hawks consegue convencer Zanuck a contratar Faulkner. Volta a Hollywood e, entre Novembro de 1935 e o Verão de 1937, trabalha para a Twentieth Century-Fox, nomeadamente no argumento 282
de The Road to Glory (1936), um filme de encomenda sobre a Primeira Guerra Mundial, dirigido por Hawks para aproveitar cenas de combates já filmados por um produtor francês a quem Zanuck entretanto comprara os negativos por uma bagatela. Tanto neste filme como nos outros em que Zanuck o colocou é difícil saber ao certo o que Faulkner escreveu, pois são sempre outros argumentistas a assinar o guião final. O seu nome aparece apenas na ficha técnica de dois filmes realizados por Tay Garnett. O próprio Faulkner se admirava de lhe continuarem a pagar sem utilizarem o que escrevia. Terminado o contrato com Zanuck, regressa a casa convencido de que não voltará a Hollywood. A sua vida é a literatura. O cinema é outro mundo. Pôs-se a escrever o díptico de The Wild Patins. Entre 1938 e 1942 William Faulkner publica quatro livros, dos quais só The Wild Palras, uma das suas obras-primas, foi um êxito de vendas. Uma situação familiar complicada leva-o a recorrer a empréstimos que os editores nem sempre estão em condições de satisfazer. A miragem surge uma vez mais de Hollywood, desta vez sob a forma de um contrato com a Warner, concretizado entre Julho de 1942 e Setembro de 1945. Foi um momento difícil para Faulkner, agora alcoolizado a ponto de ir parar várias vezes ao hospital. Incapaz de ver um filme até ao fim, calado durante as reuniões de trabalho no estúdio, afastado da vida social, consciente de que o tempo gasto a congeminar argumentos medíocres é tempo perdido para a escrita dos romances, Faulkner é colocado na escala salarial mais baixa dos argumentistas da Warner. Os seus diálogos, demasiado longos para serem apreciados pelos actores, são sistematicamente abandonados ou rescritos por outros. Dão-lhe autorização para escrever em casa, em vez de comparecer diariamente no escritório do estúdio, mas quando Jack Warner percebe que Faulkner está indisponível no Mississipi e não num hotel de Los Angeles ameaça processá-lo. Vale-lhe Howard Hawks que nessa altura tem três projectos em curso na Warner: Air Force (1943), To Have And Have Not (1944) e The Big Sleep (1946). Embora haja bastante de comum entre o universo ficcional de Hemingway e o de Hawks, o projecto do realizador não pretendia ser fiel à novela. Hawks queria fazer de To Have And Have Not um filme de aventuras na esteira de Casablanca (1942), mas sem o sentimentalismo patriótico que obrigava Bogart a sacrificar o amor de uma vida pela causa justa. Jules Furthman começou a trabalhar no argumento tendo como ponto de partida um conceito insólito de adaptação — 283
imaginar o que teria acontecido aos personagens antes da história de Hemingway começar, abandonando grande parte do enredo original. Como processo de trabalho, para um argumentista experiente como Furthman, o método não tinha nada de novo. A construção do passado dos personagens (backstory) é uma fase praticamente obrigatória na escrita do argumento clássico. Consiste em estabelecer as biografias imaginárias que determinam o comportamento dos personagens no presente. Essas biografias, essenciais à coerência dos diálogos e à definição dos hábitos, em particular no que diz respeito à caracterização e à motivação dos personagens ao longo da narrativa, são muito úteis ao trabalho dos actores. Em To Have And Have Not os antecedentes possíveis da novela de Hemingway passaram a constituir parte substancial da intriga do filme de Hawks. Se o filme pode servir de backstory à novela, qual é a backstory do filme? De onde vem, por exemplo, Harry Morgan, o protagonista interpretado por Humphrey Bogart? Quando o vemos na primeira sequência, depois do mapa do genérico nos indicar que estamos em Fort-deFrance, na Martinica, durante o período da guerra em que os nazis ocupam a França, sabemos que Bogart vem de Casablanca e dos outros filmes que espelharam a imagem do actor na figura do aventureiro descomprometido e insolente. O passado de Harry Morgan são os filmes de Bogart, não precisamos de saber mais nada. A força e o limite do filme de género e do sistema das estrelas consiste nesta extraordinária economia dramática de apresentar personagens instantâneos, simultaneamente fabulosos e credíveis. Como todos os grandes cineastas americanos, Hawks não se limita a aproveitar a imagem feita dos actores, molda os mitos da maneira que melhor convêm à ficção. A aposta de To Have And Have Not, recomendada a Furthman durante o desenvolvimento do argumento, era a de conceber um perfil feminino tão irreverente e insolente como o de Bogart e que, ao contrário da mulher fatal dos anos trinta incarnada à perfeição por Marlene Dietrich, emanasse sensualidade a partir de atitudes de independência e de iniciativa típicas da camaradagem masculina. Furthman sabia bem do que Hawks falava, pois tinha sido ele a escrever os argumentos que criaram o mito americano de Marlene: Morocco (1930), Shangai Express (1931) e Blonde Venus (1932). Lauren Bacall mal podia acreditar que lhe tivessem telefonado de Hollywood a convidá-la para fazer um teste com Howard Hawks. 284
O cineasta vira uma fotografia de Bacall na capa de uma revista de moda e queria conhecê-la. Bacall tem apenas 18 anos de idade quando faz os famosos ensaios nos estúdios da Warner. É contratada e, durante seis meses, aprende dicção e canto. No dia 1 de Março de 1944 começam as filmagens de To Have And Have Not, precisamente com a cena utilizada no teste inicial da actriz. Bacall tem de entrar no quarto de hotel de Bogart com um cigarro na mão e pedir lume. E uma cena simples, excepto para uma estreante que enfrenta a equipa de filmagens ao lado de uma das maiores estrelas de Hollywood. Apesar do apoio de Bogart, sempre pronto a ajudá-la, Bacall sente as mãos tremerem e receia não conseguir manter a descontracção pedida por Hawks. Repara, durante as repetições, que ao contrair ligeiramente o queixo contra o peito deixa de tremer e é obrigada a olhar para Bogart de baixo, num equilíbrio contido que a faz sorrir e sentir o grão da voz. Hawks pede-lhe para repetir o gesto, que acha muito atrevido. Bogart concorda. Assim nasce o famoso The Look, que iria contribuir para vincar um novo tipo de sensualidade no cinema. É a primeira imagem de Bacall no filme, não sabemos nada acerca da personagem nem existe qualquer antecedente público da actriz que nos possa orientar. No entanto, desde o primeiro plano de Bacall que a personagem fica definida, com uma energia visual espantosa, apoiada apenas em gestos aparentemente banais, em olhares de grande intensidade e em diálogos breves que, em vez de fornecerem informação funcional, como é da praxe, jogam a fundo no subentendido. A proeza que Sternberg conseguira com Dietrich em Morocco repete-a Hawks com Bacall com maior simplicidade e ironia em To Have And Have Not: basta uma cena para fazer da actriz uma estrela, na medida em que a colagem entre o arquétipo da personagem de ficção e a personalidade cinematográfica da actriz resulta de imediato com a força de uma evidência. Esta alquimia fílmica de que os grandes cineastas são capazes tem um preço muito alto para os actores, que jamais se conseguem libertar desse momento inaugural em que tudo parece simples e maravilhoso como no dia da criação do mundo. William Faulkner começou a trabalhar no argumento de To Have And Have Not a 22 de Fevereiro, ou seja, uma semana antes do início da rodagem, quando a estrutura do guião estava totalmente delineada por Furthman. A colaboração de Faulkner teve lugar sobretudo durante o período das filmagens, rescrevendo os diálogos ou sugerindo 285
soluções alternativas para situações da narrativa com as quais Hawks não estava satisfeito. Hawks era dos poucos cineastas que, no interior do sistema dos estúdios, se permitia o luxo de improvisar com os argumentistas e com os actores durante as filmagens sem incorrer na cólera dos executivos, dado o estatuto de realizador-produtor independente que manteve ao longo da carreira. A flexibilidade do seu método de trabalho permitia-lhe remodelar os contrastes e a aproximação entre os personagens de acordo com o reflexo da relação pessoal entre os actores, reforçando deste modo a autenticidade da ficção. A direcção de actores torna-se assim uma arte do convívio e da cumplicidade, que começa muito antes das filmagens, atenta à mínima flutuação do humor, da competência, da disponibilidade e do conforto do elenco. Ao contrário de Hitchcock, para quem tudo está praticamente resolvido nos desenhos de planificação, Hawks deixa os actores à vontade durante os ensaios e repete poucas vezes cada tomada de vistas, partindo do princípio de que os bons actores se entreajudam em dependência mútua e se revelam no acto da filmagem, entregues que estão às regras do profissionalismo, da rivalidade, da confiança e do interesse comum. Esta condição essencial do actor, participando num trabalho de grupo cujo resultado é superior a qualquer contributo individual, resume, em si mesma, um dos temas fundamentais da obra de Hawks, na qual as relações problemáticas entre a identidade individual dos personagens e a sua integração no espírito colectivo da comunidade têm uma função simultaneamente redentora e terapêutica. Mais importante do que a coerência ou a eficácia da intriga é a consistência dos personagens. Não é apenas por trabalhar no contexto do cinema de géneros, na maior parte dos casos circunscrito a personagens planos, de legibilidade inequívoca, que Hawks convoca heróis de comportamento previsível, é por a principal qualidade desses heróis ser a firmeza de carácter. Um dos conflitos típicos dos filmes de Hawks, paradigma de grande parte do cinema americano de aventuras, reside precisamente na tensão criada entre a integridade moral do grupo, liderado pela determinação do protagonista, e a falha trágica de um personagem — por incompetência, por cobardia, por alcoolismo — que põe em perigo a segurança dos outros e a quem será dada uma segunda oportunidade para se redimir e provar que é digno da confiança dos seus pares. As situações que exigem perícia profissional ou 286
coragem física são os catalisadores privilegiados deste universo axiológico onde a fibra dos heróis é constantemente posta à prova. Em To Have And Have Not, Harry Morgan (Humphrey Bogart) ganha a vida alugando o seu barco a turistas que pescam no mar das Caraíbas, ao largo da Martinica, sob o domínio do regime de Vichy, até se ver envolvido no movimento da Resistência francesa que procura pôr a salvo dos fascistas um dos seus dirigentes. Tal como em Casablanca e em outros filmes da Wamer do período da guerra, não faltam as alusões à neutralidade política do herói americano e à urgência de alinhar pelos aliados. A solidão do personagem interpretado por Bogart, inseparável do espírito de liberdade que caracteriza a figura do aventureiro, tem por corolário o isolacionismo hesitante da América face ao conflito mundial. Bogart não tem dúvidas sobre quem tem razão, mas não lhe compete comprometer-se numa luta que, aparentemente, não lhe diz respeito. Quando toma uma opção, defendendo os partidários da França livre contra os apoiantes dos nazis, não é por motivos ideológicos, que contraria repetidas vezes, mas por um gesto de pura ética da amizade — Bogart coloca-se ao lado daqueles de quem gosta contra os outros. A escolha pessoal dos heróis de Hawks, imaculados num equilíbrio estável entre o desejo de individualismo e a necessidade de partilha social, não pertence ao domínio estrito da política, antes procura uma justificação sublime, sempre denegada, no campo dos afectos. Porque não suporta ver maltratadas as pessoas de quem gosta, o herói abdica da neutralidade e, por consequência, da liberdade que tanto preza. O compromisso social e a ligação sexual fazem parte da mesma teia complexa que o leva a desconfiar das ideologias e das mulheres. Neste ponto, alguns filmes de Hawks constituem talvez a expressão perfeita do modo de ser americano no período clássico do cinema de aventuras. Se a ideologia pode desencadear a injustiça, a mulher conduz por certo ao casamento. Ambas as coisas significam a morte simbólica da isenção e da mobilidade do herói. Não é por acaso que o final característico do filme de aventuras mostra a partida do protagonista, de preferência sozinho, em direcção ao horizonte mítico onde o esperam novas histórias. A adesão do herói a uma ideologia política ou à instituição familiar representa o fim de um ideal cuja matriz remonta aos jogos de adolescência. Daí que os grupos de homens, auto-suficientes e regidos por leis inquebrantáveis de camaradagem, 287
apareçam como uma espécie de utopia comunitária que a intromissão da mulher vem pôr em causa, criando novas tensões emocionais, tornando o herói vulnerável e, finalmente, adulto. Nos filmes de Hawks escritos por Furthman, a mulher surge por mero acaso, de parte nenhuma, com destino incerto e a experiência de um passado para esquecer. Ela irrompe da maneira menos plausível em locais inóspitos e longínquos, dominados pela lei do mais forte. Quer se trate de um hotel nos Andes, isolado pela selva, pela montanha e pelas tempestades de neve (Only Angels Have Wings, 1939), de um hotel na Martinica, cercado pelo mar e pela guerra (To Have And Have Not, 1944), ou de um hotel numa cidade do Oeste, ameaçada por um bando de pistoleiros (Rio Bravo, 1959), a mulher introduz vários factores de preocupação acrescida para o herói, o menor dos quais não é certamente a ameaça de vida sedentária que se adivinha depois do final feliz, porque só há heróis longe de casa. A mulher hawksiana pode bem ser a derradeira fantasia masculina, nascida do desejo ambivalente de encontrar no sexo oposto uma pessoa bela e vulnerável, forte e independente, apaixonada e divertida, fiel e sensual, que aceita e prolonga os rituais de camaradagem sem desafiar a supremacia do herói. Há porventura mais pontos de contacto entre o estilo de Hawks e a prosa de Hemingway do que a de Faulkner. Apesar de ambos os romancistas pertencerem a uma idade do romance americano muito influenciada pelas técnicas de objectividade da narrativa cinematográfica, Faulkner nunca deixou de se interessar pelos labirintos do tempo e pela recriação transfigurada da consciência dos personagens, no que é sem dúvida um dos grandes romancistas deste século. Hemingway, pelo contrário, coloca-nos quase sempre perante o imediatismo da acção e evita qualquer tipo de análise psicológica que não decorra da mera observação do comportamento físico e dos factos exteriores. Do mesmo modo, a mise-en-scène de Howard Hawks é o exemplo acabado do relato directo, da naturalidade e da depuração visual: a câmara está invariavelmente no sítio certo para captar a acção, sem enquadramentos complicados, sem habilidades de montagem, sem efeitos especiais ou objectivas fotográficas que deturpem a perspectiva e a sensibilidade do olhar humano. O cinema de Hawks dispensa planos subjectivos, recusa mudanças bruscas na escala das imagens, não recorre a flashbacks nem fragmenta a cena segundo a 288
intencionalidade dos personagens, limita-se a mostrar o que se passa, sem marcas aparentes de interferência, como se tudo aquilo que é inacessível ao direito do olhar franco e consentido não pudesse ser violado, como se tudo o que é íntimo não pertencesse aos imponderáveis da psicologia mas apenas à ordem existencial do inevitável. É da acção, da atitude e dos gestos que deduzimos a dimensão da grandeza e dos desejos dos personagens, num simples acender de cigarro, que desenha veios de fumo e de afinidades, no tom quente ou áspero da voz, que diz o que as palavras não podem dizer, na vibração do corpo com o qual Lauren Bacall, no último plano do filme, ao ritmo da música que celebra a comunhão do grupo, promete mais do que as imagens podem mostrar. Ao contrário de Casablanca, que termina em plena abnegação e amargura de Bogart, ao contrário da novela original de Hemingway, que acaba com a morte do protagonista, To Have And Have Not fecha com uma nota de optimismo: os nazis são derrotados, a América entra na guerra ao lado da França livre, Bogart encontra a mulher da sua vida, ninguém fica só. Não se trata apenas de observar a regra prudente do happy ending, trata-se de manter a coerência de uma visão eufórica da vida onde os protagonistas são os sobreviventes — os mais aptos, os mais competentes, talvez os mais íntegros. Como as comédias de Hawks escritas por Hecht mostram à saciedade, o humor e a ironia são a melhor maneira de cultivar a exuberância do voluntarismo infantil num mundo demasiado duro votado ao absurdo do efémero.
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A culpa e o medo de Bergman: Notorious (
1946), Hitchcock.
31 OS DEMÓNIOS CONTRA A RAZÃO Quando David Selznick começou a chegar sistematicamente atrasado às sessões de psicoterapia, a D.t a May Romm teve a certeza de que o seu paciente se encontrava melhor. Os negócios do cinema tinham voltado a ocupar-lhe a mente e a rotina da psicanálise ficava agora para horas impróprias da noite quando o produtor chegava com mil pedidos de desculpa e um cheque muito confortável. Ia fazer um ano que Selznick via todos os dias a D. " May Romm no seu consultório de Beverly Hills, frequentado pela nata das personalidades do cinema. O próprio Selznick não se cansava de elogiar a competência da psiquiatra rendida aos ensinamentos de Freud, encaminhando para o seu gabinete terapêutico, em consultas separadas, a mulher, Irene Mayer Selznick, o sogro, Louis B. Mayer, a amante, Jennifer Jones, e um amigo e colaborador de longa data, Ben Hecht. A D. ra May Romm adorava o sentido dramático das angústias existenciais das gentes de Hollywood, pelo que não era raro descobri-la em filmagens sempre que uma ou um dos seus clientes se encontrava em crise. Conhecera Selznick antes do Outono de 1943, quando a produção de Since You Went Away a contratou como con291
sultora técnica de algumas cenas que abordavam a questão delicada das psicoses causadas por traumatismos de guerra. Desde então, Selznick tornara-se um cliente, um confidente, um amigo, quase um especialista. O produtor decidiu juntar o útil ao agradável e fazer um filme tendo por esteio a problemática da psicanálise, cuja popularidade nos Estados Unidos ia de vento em popa. A D. ra May Romm — formada pelo prestigiado Instituto Psicanalítico de Nova Iorque — seria, evidentemente, mais do que uma mera conselheira, seria a interlocutora permanente de David Selznick, que tencionava solicitar a opinião e a aprovação da médica em todas as fases de elaboração do projecto. Como observou Irene Mayer Selznick ( My Private View, 1983), que então se encontrava num processo amigável de separação do marido, David decidiu fazer um filme que lhe poupasse o tempo e a maçada de fazer psicanálise no divã do consultório. Só via um realizador com o talento adequado para se envolver num assunto tão controverso como a psicanálise e dirigir um thriller psicológico digno de empolgar o grande público: Alfred Hitchcock. Só via um argumentista de confiança, conhecedor incontestado dos desarranjos da mente, capaz de estruturar uma narrativa sólida sem deixar cair Hitchcock nas suas habituais piadas e digressões: Ben Hecht. Só via uma actriz convincente para abrir as portas do desejo e retratar, com o fulgor da sua beleza e aptidão, uma variante idealizada da D. ra May Romm: Ingrid Bergman. Com um entusiasmo contagiante, que não sentia há muito tempo, David Selznick meteu mãos à obra.. Ao tomar conhecimento do interesse do produtor por uma história de teor psicanalítico Hitchcock apresentou a hipótese de adaptação de um estranho romance de feitiçaria, psicopatologia e homicídio, com acção localizada num manicómio suíço, cujos direitos de autor tinha comprado meses antes: The House of Dr. Edwards (1927), de Francis Beeding. Não era a primeira vez, nem seria a última, que o realizador se interessava por personagens na fronteira da anormalidade, e agradava-lhe a ideia de trabalhar com Ben Hecht, a quem já tinha recorrido em situações de emergência para rescrever no anonimato algumas cenas de Foreign Correspondent (1940) e de Lifeboat (1944). Hecht, por seu turno, ficou encantado, não só porque o assunto o fascinava mas por considerar Hitchcock — a par de Hawks e de 292
poucos mais — um dos realizadores genuinamente criativos ao nível da construção do argumento. Depois de ligeiras correcções, sobretudo nos diálogos que empregavam termos técnicos, o guião final de Spellbound (1945), totalmente remodelado em relação ao livro, foi aprovado pela D. '' May Romm na primeira semana de Julho de 1944. No filme, John Ballantyne ( Gregory Peck) apresenta-se na clínica psiquiátrica de Green Manors identificado como sendo o Dr. Edwards, o novo director que vem substituir o Dr. Murchison (Leo Carrol) em idade de reforma. Constance (Ingrid Bergman), médica na clínica, apaixona-se por Ballantyne e descobre que ele não é o Dr. Edwards mas sim um doente que sofre de amnésia, de fobias e de um agudo complexo de culpa por estar convencido de ter assassinado o verdadeiro Dr. Edwards a fim de tomar o seu lugar. Procurado pela polícia, Ballantyne foge da clínica e é ajudado por Constance que o esconde em casa do seu velho professor de psicanálise (Michael Chekhov). Constance e o professor analisam os sonhos de Ballantyne, até que este consegue recordar-se do traumatismo de infância que está na origem das suas perturbações: quando era criança, matou acidentalmente o irmão, tal como julga ter morto o Dr. Edwards num acidente de esqui. Na verdade, o Dr. Edwards foi morto a tiro pelo antigo director da clínica, Dr. Murchison, que acaba por se suicidar depois de ser desmascarado por Constance. Não se pode dizer que Alfred Hitchcock fosse um adepto incondicional da psicanálise. Porém, o processo terapêutico, enquanto relação comunicacional, revelava-se apropriado ao cinema que pretendia fazer. Esquematicamente, o método básico do tratamento analítico consiste em trazer à consciência as modalidades do conflito defensivo que angustiam o sujeito, através da sugestão, das associações livres, das recordações traumáticas e da interpretação dos sonhos. O paciente deve encontrar ele mesmo os traços recalcados que o atormentam, ajudado pelo conhecimento da interpretação que é por excelência o modo de acção do analista. Por outras palavras, na prosa inspirada de Hecht, no começo de Spellbound: «O analista apenas procura persuadir o paciente a falar acerca dos seus problemas ocultos, a fim de abrir as portas fechadas da mente. Um vez descobertos e interpretados os complexos que perturbavam o paciente, a doença e a confusão desaparecem, e os demónios do irracional são afastados da alma humana». 293
A síntese de Hecht é oportuna porque mostra muito bem como o pressuposto terapêutico da prática analítica americana, fundada na psicologia do ego e preocupada sobretudo em adaptar os indivíduos aos constrangimentos da realidade, se ajusta à dramaturgia do espectáculo. Os problemas ocultos do paciente envolvem uma aura de mistério que baliza o percurso narrativo do filme, doseado do suspense e das surpresas que por certo nos reserva a revelação da verdade, quando finalmente se abrirem as portas fechadas da mente. O analista desvenda e interpreta os complexos assim como um detective descobre a identidade do criminoso a partir da interpretação das pistas involuntárias deixadas no terreno. E não falta sequer a previsão do final feliz, pois os demónios do irracional são afastados da alma humana. O que é relativamente novo neste esquema (cujos antecedentes remontam ao expressionismo alemão), desde então repetido vezes sem conta no cinema americano, é a assunção de que a chave do enigma está no interior dos próprios personagens e que o culpado é o inconsciente. Se consultarmos os manuais de escrita de argumento mais populares nos anos quarenta em Hollywood, verificamos que existem, no fundamental, duas tendências dominantes na caracterização dos personagens dramáticos, que, na prática, permanecem em vigor na maioria do cinema industrial contemporâneo. A primeira, parte da psicologia diferencial e do behaviorismo. O foco central da definição do personagem é colocado na influência do meio ambiente e da hereditariedade, encaixando depois as características do respectivo comportamento e personalidade numa das tipologias clássicas dos temperamentos e dos caracteres. Um autor representativo desta tendência é Laj os Egri, dramaturgo, encenador e professor, cujo livro The Art of Dramatic Writing, com sucessivas edições revistas desde 1942 até aos anos oitenta, foi porventura um dos títulos mais utilizados nas escolas superiores de teatro e cinema. Egri esboça a estrutura do personagem a partir de três dimensões básicas: — a fisiológica, na qual inclui o sexo, a idade, a aparência e a condição física do personagem; — a sociológica, onde cabem a origem social, a vida familiar, a educação, a profissão, a religião e a ideologia; — a psicológica, descrita a partir do temperamento, da inteligência, da ambição, dos padrões morais e dos complexos. 294
Segundo Egri, articulando as variantes idiossincráticas de cada uma das três dimensões humanas, o argumentista teria à disposição os instrumentos necessários para criar personagens diferentes uns dos outros, por forma a marcar o contraste através de códigos objectivos de comportamento cuja modificação ao longo dos conflitos seria um dos factores essenciais do interesse dramático do filme. Não é difícil compreender as razões do êxito desta teoria no seio do cinema narrativo industrial, nomeadamente junto dos actores profissionais que assim se vêem munidos de ferramentas simples e relativamente eficazes para compor os seus personagens a partir de uma retórica gestual e vocal facilmente assimilada pelo público. A segunda tendência significativa na caracterização dos personagens dramáticos é representada por John Howard Lawson, argumentista de formação marxista para quem as relações sociais e económicas determinam a consciência e o comportamento do personagem. Na sua obra mais importante —, Theory and Technique of Playwriting and Screenwriting — que teve a primeira edição em 1936 e foi sendo sucessivamente revista e reeditada até à morte do autor, em 1977, Lawson afirma claramente que a grandeza dramática de um personagem é indissociável da sua determinação consciente em enfrentar e resolver os conflitos sociais. Partindo da premissa vaga que as narrativas humanas lidam com relações sociais, Lawson deduz rapidamente que todo o conflito dramático deve ser um conflito de tipo social. O acento tónico da definição individual dos personagens é, por consequência, colocado na sua dimensão sociológica, em quadros rígidos de entendimento, como a hereditariedade, a origem de classe, a educação, o rendimento, a saúde, as condições de vida e o estatuto económico. Tanto Lawson como Egri aconselham os escritores a elaborarem biografias detalhadas dos personagens antes de iniciarem a história, prática que se tomou corrente entre os argumentistas profissionais. Isto porque, em qualquer dos casos, a questão central mantém-se em aberto: o que é que o protagonista deseja? Qual é a motivação dos personagens para agirem como agem? Que razões existem no passado de uma pessoa para ser quem é? Na medida em que a motivação é aceite como uma manifestação inequívoca da personalidade, responsável pelos objectivos e pela coerência da conduta humana, tomouse o molde não só da caracterização dos personagens como o fulcro essencial da própria acção dramática. Neste ponto, as opções de Lawson 295
e de Egri divergem. Enquanto este dá prioridade ao realismo psicológico, fazendo depender os conflitos e as situações do ânimo e da ambição dos personagens, Lawson prefere o realismo social, concebendo os personagens determinados pela amplitude colectiva dos conflitos e das situações. Digamos, para resumir, que na fórmula de Egri é a singularidade do personagem e da sua motivação que cria as circunstâncias da intriga, enquanto na cartilha de Lawson são as circunstâncias da intriga que fomentam a motivação do personagem. Ambos, porém, aderem a uma concepção mecanicista da dialéctica que tende a encarar a progressão do personagem na narrativa como uma série encadeada de relações de causa-efeito originadas pelo confronto entre as estruturas sociais e o voluntarismo incansável dos protagonistas. Apesar de mencionarem as lições da psicologia como atributos indispensáveis de verosimilhança comportamental, os dois dramaturgos inclinam-se a explicar as motivações humanas de modo a que os personagens tenham plena consciência daquilo que fazem e das razões porque o fazem. Torna-se assim mais fácil para o argumentista escrever os diálogos que são, quase sempre, meras verbalizações do que os personagens pensam, querem e sentem. Se o voluntarismo consciente tem mais impacto dramático, na medida em que explicita de modo inequívoco as motivações e os objectivos da personagem, a dimensão humana não se pode reduzir à intencionalidade racional. Não é por acaso que Lawson ataca com firmeza o trabalho de Hecht e Hitchcock em Spellbound, apresentando-o como o exemplo acabado do argumento que não respeita as regras da causalidade social e da racionalidade na exposição das motivações dos personagens. Lawson observou com perspicácia que, ao assumirem o complexo de culpa como um sintoma moral de carácter universal, os filmes de Hitchcock estão mais perto de serem alegorias sobre o pecado original do que reflexões circunstanciadas sobre qualquer injustiça social. Justamente, o que Hitchcock, Hecht e Selznick tentaram fazer em Spellbound foi explicitar a intromissão incontrolada das ilusões inconscientes como energia dramática e celebrar um novo método na compreensão e na aceitação do ser humano — a psicanálise — transformando-o na matéria do próprio espectáculo. Neste sentido, Spellbound pode ser considerado um filmecharneira na história do cinema americano, mesmo se acharmos que não é das obras mais conseguidas do realizador. 296
No dia 10 de Julho de 1944, data em que Ingrid Bergman celebrou o sétimo aniversário do seu casamento com o médico sueco Petter Lindstrom, começaram as filmagens de Spellbound. Tanto Bergman como Gregory Peck — jovem vedeta em rápida ascensão — ficaram inicialmente desiludidos com o procedimento adoptado pelo realizador para dirigir os actores. Hitchcock limitava-se a fazer as marcações de cena e a indicar a direcção dos olhares de acordo com a posição da câmara em cada plano, escusando-se a discutir os pormenores da história e da construção dos personagens. Treinado pelo Theater Group de Nova Iorque, adepto do método de Stanislavski, Gregory Peck sentia dificuldade em actuar sem conhecer a motivação do personagem em cada momento. Ficou lendária a resposta que Hitchcock deu ao actor quando este um dia lhe perguntou qual era a sua motivação para representar determinada cena. «É o salário que o produtor te paga», teria dito Hitchcock num tom tão sério que só poderia ser entendido como uma piada. Hitchcock voltaria a ter problemas semelhantes com actores formados pelo Actor's Studio, como Montgomery Clift (1 Confess, 1953) e Paul Newman (Tom Curtam, 1966), profissionais de enorme sensibilidade para quem o mínimo gesto em cena deve ser impulsionado pelo eco vivido da memória afectiva. Hitchcock aperfeiçoava a sua técnica de montagem na câmara, filmando planos cada vez mais longos — que não eram repetidos ou desdobrados em escalas aproximadas para polir o talento das estrelas — em alternância com sequências planificadas à base de planos curtos, nos quais os actores mal tinham tempo para calcular a pausa entre duas réplicas. Não eram os movimentos de câmara que acompanhavam as deslocações lógicas dos actores, pelo contrário, eram os actores que se viam obrigados a cumprir complicadas marcações só para poderem justificar a movimentação da câmara, previamente definida como elemento fundamental do estilo de realização. Durante a encenação de um desses trajectos mais sinuosos, que obrigava a actriz a ladear uma secretária sem objectivo aparente, Ingrid Bergman queixou-se de que não era capaz de dizer o diálogo com naturalidade por causa das marcas impostas. A resposta de Hitchcock — «quando não fores capaz de fazer com naturalidade, falseia» — pode não ter convencido de imediato Ingrid Bergman, mas foi provavelmente um dos melhores conselhos que uma actriz de cinema podia receber. Quando tinha paciência, Hitchcock explicava aos actores e ao produtor o seu sistema de representação negativa: o actor não deve 297
exibir na imagem o crescendo gradual da elaboração de uma expressão dramática — que obviamente denuncia a habilidade técnica — antes deve apresentar uma disposição que contrasta com a reacção pretendida. Assim, por exemplo, se num plano o actor está a rir, a reacção dramática consiste em retirar-lhe o sorriso do rosto. Quase sempre, entre o momento inicial de naturalidade e a fase de representação negativa, Hitchcock intercala o plano visual daquilo que provoca a reacção, eliminando entretanto do rosto do actor os indícios mais óbvios do ofício da representação. O plano de reacção é crucial no método hitchcockiano porque permite a passagem constante da visão objectiva (vemos o personagem) à visão subjectiva (vemos o que vê o personagem) sem que o actor seja forçado a qualquer mímica de exteriorização. Quando Hitchcock diz que o actor de cinema não precisa de fazer nada é porque sabe que o filme se encarrega desse trabalho: é o efeito Kulechov aplicado à direcção de actores. Uma das cenas de Spellbound que Peck teve dificuldade em filmar mostra o personagem no interior de uma casa de banho. Peck prepara-se para fazer a barba com uma navalha quando fica perturbado com a brancura excessiva dos objectos que o rodeiam — brancura obviamente associada ao acontecimento traumático. O estado de amnésia em que o personagem se encontra, redobrado pela imagem do seu rosto no espelho, como se enfrentasse um desconhecido no interior do seu próprio corpo, exigia, no entender do actor, um momento de grande intensidade emocional. Ora, o realizador pedia-lhe o contrário, que suprimisse do rosto qualquer sinal de emoção. O que Hitchcock provavelmente não pôde ou não quis explicar ao actor é que o seu rosto devia corresponder a uma página em branco, onde se vinha inscrever não apenas o vazio da sua identidade e da sua memória mas também a vibração ameaçadora dos objectos e do décor que, progressivamente, pela encenação e pela montagem, tomavam conta da cena, num processo porventura equivalente ao que o deslocamento e a condensação desempenham no trabalho do sonho. No cinema de Hitchcock a simulação do funcionamento do inconsciente não carece de ser elaborada pelos actores porque essa tarefa compete à linguagem do filme. É, pois, plausível que Hitchcock tivesse relutância em explicar em pormenor qual seria a motivação consciente mais apropriada a cada situação, uma vez que o actor pode ser dirigido no mesmo estado de latência psíquica em que se encontra o personagem na ficção. 298
A desilusão provocada pela celebérrima sequência do sonho, desenhada por Salvador Dali, reduzida na versão final por Selznick de vinte para cerca de cinco minutos, deriva precisamente do seu carácter explícito, vincado ao traço surrealista, e de uma interpretação analítica talhada à medida da necessidade de resolução do enigma. A antestreia surpresa de Spellbound, ocorrida em 16 de Fevereiro de 1945, constituiu uma noite memorável para a equipa: o filme recebeu cerca de 90 por cento de apreciações entusiásticas por parte do público, expressas nos boletins de opinião da sessão, o que é uma façanha rara na época. Selznick viu o filme nomeado para seis prémios da Academia (embora só viesse a ganhar o Oscar para a música de Miklos Rozsa) e arrecadou as receitas do maior êxito comercial do ano. Sentia-se quase um homem feliz. O divórcio de Irene Mayer decorria sem sobressaltos, dando oportunidade a que o seu romance com Jennifer Jones fosse tornado público. A D. ra May Romm gostou de ver o filme acabado, que contribuiu para relançar a moda da psicanálise na América e aumentar substancialmente o seu número de pacientes. Mas ninguém parece ter apreciado que o prestigiado psiquiatra e analista Dr. Karl Menninger, convidado por Selznick a pronunciar-se sobre o filme para eventual aproveitamento publicitário, tivesse declarado num depoimento lacónico, em nome da infalibilidade científica, que a maioria dos doentes mentais não se encontra internada em asilos de loucos mas anda à solta nas ruas de Hollywood. Prevendo o êxito de Spellbound e a vontade de Hitchcock continuar a trabalhar com Ingrid Bergman, Selznick pressionou o cineasta a desenvolver de imediato outro projecto em colaboração com Ben Hecht. O argumento original de Notorious (1946) partiu de uma premissa vaga que o realizador formulava como sendo a história de uma mulher que aceita transformar-se e assumir uma nova identidade para satisfazer o homem que ama. A ideia, que haveria de impulsionar outros filmes inexcedíveis de Hitchcock, em contextos narrativos bastante diferentes, como sejam Vertigo (1958) e Marnie (1964), foi integrada numa intriga de espionagem cujo MacGuffin residia na descoberta de umas garrafas com urânio susceptível de ser utilizado pelos nazis no fabrico de uma bomba atómica. Hitchcock e Hecht escreveram o primeiro tratamento do filme em três semanas, num hotel de Nova Iorque, entre Dezembro de 1944 e Janeiro de 1945. Reuniam quatro vezes por semana entre as nove e as dezoito horas. Como era seu hábito, sentado 299
num sofá, com as mãos cruzadas sobre a barriga, Hitchcock ia divagando acerca das personagens, das situações e das imagens, enquanto Hecht ouvia, discutia e tomava apontamentos. Nos intervalos entre os encontros, Hecht escrevia as cenas, planeava soluções de estrutura e de continuidade que depois voltava a rever com o realizador. Quando Selznick leu o primeiro esboço de cinquenta páginas ficou radiante, ditou uma breve nota de instruções para o departamento de publicidade recomendando absoluto sigilo sobre o conteúdo do projecto e, à margem da sinopse que iria consultar nas próximas reuniões de trabalho, escreveu apenas: «More Hitch». Notorious é uma das obras-primas de Hitchcock, um dos mais bem delineados argumentos de Hecht e provavelmente a maior interpretação cinematográfica de Ingrid Bergman, ao lado de Cary Grant. Alicia (Ingrid Bergman), filha de um espião nazi condenado por um tribunal americano, leva uma vida aparentemente frívola. Conhece Devlin (Cary Grant), um agente secreto americano, por quem se apaixona e que a convence a aceitar a missão de se infiltrar num grupo de nazis que vive no Rio de Janeiro, a fim de ganhar a confiança de Sebastian (Claude Rains), um velho amigo do seu pai. Quando Sebastian propõe casamento a Alicia, Devlin não se opõe, ao contrário do que ela esperava. Os nazis recebem Alicia com simpatia, à excepção da mãe de Sebastian, mulher ciumenta e desconfiada que domina por completo o filho. Alicia suspeita que o marido esconde algo de importante na cave. Organiza uma recepção durante a qual rouba a chave da adega ao marido e passa-a a Devlin que encontra urânio escondido nas garrafas de vinho. Alicia e Devlin são descobertos por Sebastian na cave. Cego de ciúmes, Sebastian percebe que foi duplamente traído: além de ser amante de Devlin, Alicia trabalha para o governo americano. Sebastian confessa a verdade à mãe que começa a envenenar Alicia aos poucos, para não despertar a suspeita dos outros alemães. Inquieto com a falta de notícias, Devlin introduz-se em casa de Sebastian, declara finalmente o seu amor a Alicia e salva-a, perante a impotência de Sebastian e da mãe que receiam revelar a verdade aos nazis que frequentam a casa. Apesar do seu entusiasmo inicial pelo argumento de Notorious, Selznick viu-se obrigado a vender o projecto à RKO, a fim de conseguir dinheiro para financiar Duel in the Sun (1947), superprodução que visava simultaneamente consagrar Jennifer Jones no estrelato e 300
retomar os valores de grande espectáculo alcançados em Gone with the Wind (1939). Ciente da necessidade de obter aprovação ao mais alto nível para um guião que referia directamente processos de actuação pouco claros por parte dos serviços secretos americanos e que fazia alusão à hipótese dos nazis estarem a construir uma bomba atómica, Selznick pediu ao seu sócio Jock Whitney — que viria a ser embaixador dos Estados Unidos na Grã-Bretanha entre 1956 e 1961 — que intercedesse pessoalmente junto de Edgar Hoover, director do FBI, de modo a não serem levantadas dificuldades à concretização do filme. Não obstante, Hitchcock haveria de queixar-se toda a vida, com o sentido de ironia e de publicidade que nunca desperdiçou, de ter sido vigiado por agentes do FBI durante a rodagem do filme, com o pretexto pouco provável de que pudesse revelar pormenores inconvenientes acerca da bomba atómica. Na verdade, tal como qualquer outro MacGuffin, a bomba e o urânio não têm a mínima importância dramática no filme. Do que se trata é de ver como os personagens interpretados por Ingrid Bergman e Cary Grant, emaranhados numa teia inquestionável de equívocos patrióticos, põem à prova a sua paixão. Em Notorious Hitchcock aprofunda a vertente mais complexa e singular do seu sistema de suspense, que já não se limita a levar o público a interrogar-se sobre o que vai acontecer, ou a tentar adivinhar quando e de onde vem o perigo, mas a intuir a par e passo o pensamento dos personagens por meios estritamente visuais, orquestrando os pontos de vista dos planos no interior de cada sequência como se a associação de imagens no filme correspondesse a uma associação de ideias produzida pela consciência do espectador. Rebecca e Suspicion eram filmes contaminados pela inquietação subjectiva das respectivas protagonistas, Notorious é um xadrez complexo de reflexos individuais onde praticamente cada personagem principal é simultaneamente sujeito e objecto de observação no campo de visibilidade instaurado pela intervenção da câmara de filmar. A sequência mais célebre do filme decorre durante a festa dada por Bergman com o objectivo de permitir a Grant entrar na adega onde estão as garrafas ciosamente guardadas pelos nazis. Antes da recepção vemos como a personagem de Bergman quase é apanhada pelo marido a roubar a chave da adega — a alternância de planos sobre o olhar de Ingrid Bergman, sobre o espaço e os objectos que 301
marcam o seu ponto de vista, selam a identificação do espectador com a personagem. Conhecendo antecipadamente a intenção de Bergman, não temos dúvida de que a sua percepção insegura do mundo, fragmentada pelos cortes da montagem, é também uma representação da sua vontade e do receio que a atormenta por não poder eventualmente concretizá-la. Num primeiro nível, Hitchcock mostra como no cinema as figuras do pensamento são mediadas pela relação entre o olhar da câmara de filmar, o olhar das personagens e os objectos que materializam o seu desejo — a chave da adega na cave é um detalhe do MacGuffin geral que faz funcionar a sequência, é também a chave da solução da intriga de espionagem centrada em Claude Rains, é sobretudo a chave do segredo da paixão de Bergman e a chave da nossa total adesão emocional aos múltiplos confrontos e significados em jogo. A festa começa com um plano geral do salão da casa, uma ligeira panorâmica, aparentemente descritiva, com o movimento a iniciarse no piso superior, descendo em seguida, sem corte na imagem, até se aproximar, em grande plano, da chave escondida na mão de Ingrid Bergman, motivo da sua preocupação nesse preciso momento. Entramos assim no íntimo da personagem, passando num único plano da focalização externa, constituída pela estrita representação do espaço narrativo do filme, a um regime de focalização interna que corresponde ao campo de consciência da personagem. No plano seguinte a actriz olha para a porta por onde espera ver entrar Grant, a quem pretende dar a chave. Depois de Grant entrar e de se aproximar de Bergman, constatamos que ambos estão a ser observados à distância por Claude Rains, curioso, amável, desconfiado, por certo ciumento, como se cada plano de representação, aparentemente neutro, estivesse afinal contaminado pelo campo de visão e pelo pensamento de alguém que vem indiciar um novo patamar de focalização interna, múltipla e variável. O que a mise-en-scène de Hitchcock faz, com uma perícia notável, é tornar indissociáveis as componentes cognitiva e emotiva dos vários pontos de vista narrativos, subordinando-os constantemente às necessidades da progressão dramática. É uma chave que passa de mão em mão, é uma chávena com café envenenado que fica colocada entre a vítima e o campo de visão do espectador, é um beijo interminável que a câmara acompanha como se fosse um terceiro personagem com 302
autonomia e vontade própria. Os movimentos e os cortes estabelecem assim implicações semânticas transparentes entre os objectos e os sujeitos do olhar do filme, redistribuindo a tensão narrativa de tal maneira, em completa cumplicidade com o saber do público, que cumpre perguntar se os demónios da ficção não passam também pelo inconsciente do espectador.
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Diálogos oblíquos de Bogart e Bacall: The Big Sleep (1946), Hawks.
32 NEGRO A PRETO E BRANCO O êxito do lançamento de To Have And Have Not em 1944, e a aclamação de Lauren Bacall como a maior revelação dos estúdios desde o aparecimento de Marlene Dietrich e de Ingrid Bergman, fizeram a Warner acelerar a preparação de The Big Sleep, filme no qual Bogart e Bacall se encontram de novo sob a direcção de Howard Hawks para dar alguma esperança ao mundo desolador de Raymond Chandler. Em 1944 foram produzidos outros dois filmes que assinalam a consagração de Chandler em Hollywood, contratado pela Paramount desde 1942: Double Indemnity, realizado por Billy Wilder, segundo a adaptação que Chandler fez do romance homónimo de James Cain, e Murder, My Sweet, película dirigida por Edward Dmytryk a partir do romance de Chandler intitulado Farewell, My Lovely. Ambas as produções confirmam o tempo e o modo de um novo género que a crítica francesa viria a designar por filme negro. A relação de Raymond Chandler com Hollywood foi a de ódio à primeira vista. Pouco entusiasmado com o caloroso acolhimento crítico e comercial dos filmes de Wilder e de Dmytryk, que lhe valeram várias amabilidades do estúdio, entre as quais três turnos de seis 305
secretárias para dactilografarem os argumentos que ditava a qualquer hora do dia ou da noite, uma enfermeira pronta a injectar-lhe doses de vitaminas sempre que ficava toldado pelo jejum e pelo excesso de álcool, e duas limusinas com motorista para o transportarem ou levarem as páginas escritas ao produtor, Chandler nunca escondeu o seu desdém por uma indústria exibicionista que não respeitava os direitos de autor, embora os pagasse melhor do que a concorrência. Na edição de Novembro de 1945 do The Atlantic Monthly, revista literária de grande prestígio, Raymond Chandler publica um artigo cáustico, intitulado Writers in Hollywood, no qual avança uma crítica radical da situação do escritor nos estúdios de cinema. Chandler admite que a produção de um filme devia ser uma actividade fascinante, se não fosse constantemente prejudicada por uma luta feroz entre alguma gente mesquinha, empurrada pelo arrivismo e pelo tráfico de influências. Os argumentistas não escapam a este ataque, na medida em que a maior parte está disposta a abdicar das ideias próprias para não abdicar do estilo de vida que só o dinheiro rápido e Hollywood podem proporcionar. A principal acusação prende-se no entanto com a condição subalterna do argumentista num sistema em que os produtores têm sempre a última palavra. Chandler não suporta que pessoas que nunca escreveram uma linha de ficção em toda a vida — produtores, realizadores, estrelas — possam julgar o trabalho de escritores profissionais em reuniões em que toda a gente tem opinião sobre o que o argumentista devia ter escrito e não escreveu. O processo colectivo de elaboração, correcção e rescrita dos argumentos nos estúdios representa para Chandler a completa degradação do estatuto da escrita, que vê justamente como algo de subjectivo, singular e insubstituível. Chandler define o bom argumento como aquele que sugere muita coisa em poucas palavras e oferece uma total impressão de facilidade e de naturalidade. Ora, o bom argumento precisa de tempo de maturação, incompatível com a pressão a que os escritores estão sujeitos, e precisa de um estilo, que acaba por ser triturado pelas sucessivas revisões feitas por outros argumentistas. Em parte Chandler tem razão: as comissões de opinião e as conferências tuteladas pelo homem dos cheques matam a literatura, mas não mataram o cinema, que não se reduz à emoção contida na magia das palavras. 306
Os melhores filmes em que Raymond Chandler colaborou como argumentista, como Double Indemnity (1944) de Billy Wilder e Strangers on a Train (1951) de Alfred Hitchcock, não partem de romances da sua autoria. Os melhores filmes adaptados de romances seus, como Murder, My Sweet (1944) de Edward Dmytryk e The Big Sleep (1946) de Howard Hawks, foram escritos por outros argumentistas. Consciente do paradoxo, Chandler só vê uma saída para os escritores que querem continuar a trabalhar no cinema — tornarem-se produtores e realizadores dos seus argumentos, de modo a garantirem o controlo do trabalho criativo a todos os níveis. Pela sua parte não estava interessado. Tinha esperança de poder vir a ser um grande escritor, pois se os seus livros fossem piores não o tinham convidado para Hollywood, mas se fossem melhores não teria aceite o convite. Foi sem dúvida Raymond Chandler, com Dashiell Hammett e James Caín, quem influenciou de modo decisivo o filme negro americano. Ele próprio definiu as regras do género na literatura, num ensaio publicado no The Atlantic Monthly de Dezembro de 1944, intitulado The Simple Art of Murder. O romance policial dos anos trinta, nomeadamente o de filiação inglesa, centrava o enredo na descoberta do criminoso e preparava toda a investigação do protagonista para o desfecho onde o mistério era desvendado graças ao exercício paciente da lógica dedutiva. Herdeiro da novela gótica, o romance-problema mantinha-se emoldurado pelos cenários fechados dos salões burgueses e das mansões aristocráticas, entre a inteligência invulgar de detectives cultos, amadores de arte e de charadas, e a elegância refinada de criminosos reputados mas sem escrúpulos. O romance negro americano (hard-boiled), cuja origem e estilo Chandler não hesita em atribuir a Dashiell Hammett, vem pôr em causa a crença racional na descoberta da verdade, na eficácia da justiça e na punição dos criminosos. No romance negro há muita violência impune, crimes que ficam por esclarecer, enigmas que escondem outros mais tenebrosos. A caça ao homem deixa de ser um mero esforço intelectual, facilitado pela comodidade dos belos cenários alcatifados, para se transformar num percurso doloroso, feito de becos sem saída, vigiado pelos olhos do cansaço, cortado pela humidade da noite, esculpido pelo labirinto da cidade, povoado por seres agressivos marcados pelo som e pela fúria de uma sociedade em que a sobrevivência se torna cada dia mais difí.. cil. Em poucas palavras, como diz Chandler, o romance negro coloca 307
o homicídio nas ruas e nas mãos de pessoas que o cometem por razões sólidas e não para fornecer um cadáver ao autor — a literatura policial perde as boas maneiras e torna-se canalha. O herói hard-boiled, seja ele polícia, detective particular ou jornalista, é um assalariado de passado duvidoso e futuro incerto, desiludido com as instituições, entregue ao cumprimento honesto de uma missão que legitima a sua superioridade moral num mundo sórdido ruído pela corrupção e pelo vício. O detective vende a sua força de trabalho sem se preocupar em saber se o cliente está dentro ou fora da lei. É por isso que, muitas vezes, se vê obrigado a enfrentar simultaneamente os bandidos e os polícias, uns e outros regidos por códigos de comportamento inquietantemente semelhantes. Sem a sua determinação individual muitos crimes ficariam por descobrir, sem o seu envolvimento pessoal a justiça seria uma palavra vã. A recusa de compromissos, indispensável à manutenção da integridade e da independência, faz do detective um homem só, amargurado entre a dureza dos actos e a fragilidade dos sentimentos. O herói hard-boiled é um personagem típico da cidade moderna criada pela sociedade industrial avançada, cenário ao mesmo tempo familiar e exótico, local de todas as seduções e perigos, refúgio de meliantes e marginais, painel de duplicidades e dissimulações onde a sociedade respeitável, detentora da propriedade e do poder, revela as fraquezas da condição humana. Os anos quarenta, marcados pelas cicatrizes da guerra e pelos inimigos visíveis e invisíveis que se lhe seguiram, foram os anos do grande medo, que a literatura policial e o filme negro reformularam num palco reconhecível do quotidiano, em intrigas de sexo, ganância e crueldade que lançavam alguma luz na actividade dos bastidores: a desagregação da família, a traição dos amantes, a expansão das grandes corporações, a avidez do luxo, a podridão venal da autoridade, a impotência perante os perigos derramados na complexa esquadria topográfica e imaginária da cidade, permanentemente envolta em sombras de inquietação que a noite ressuscita. O motivo mais comum das capas da literatura popular de crime (pulp fiction) da época mostra uma mulher escultural de pistola fálica em punho a ameaçar um homem perplexo e aparentemente sem recursos. E uma imagem que fazia vender as edições baratas, apresentadas em sugestivos desenhos de recorte colorido, e anunciava uma das figuras dominantes do filme negro: a mulher fatal. 308
Uma das explicações sociológicas para o medo masculino da mulher emancipada no período do pós-guerra refere a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, em parte justificada pela inclusão dos homens no esforço bélico. A independência económica da mulher e a escassez de postos de trabalho para os desmobilizados criou um clima de angústia social latente que se reflectia na iniciativa, na confiança e na estabilidade das relações sexuais. O fascínio e a ambivalência da imagem da mulher irresistível é patente no próprio aproveitamento militar do glamour de Hollywood, não só nos espectáculos organizados para as tropas como nas acções de combate: Gilda era o nome da bomba lançada pela aviação americana sobre Biquini, levando pintada na blindagem a figura de Rita Hayworth numa cena célebre do filme com o mesmo título. A mulher fatal, tão sedutora como ameaçadora, não seria mais do que a transfiguração mítica desse fenómeno difuso de ansiedade masculina ao nível da narrativa popular. A hipótese é convincente mas insuficiente, se considerarmos que desde os anos trinta autores como Hammett, Cain, McCoy e Woolrich advertem os seus heróis a não confiar nas mulheres, sejam elas virtuosas ou insaciáveis, protectoras ou predadoras. O medo da sexualidade feminina é sem dúvida um traço característico do filme negro, cuja narrativa é invariavelmente modulada pelo ponto de vista do protagonista masculino. Justamente, é a adesão da realidade representada à visão perturbada e confusa do herói que acentua a desconfiança nas mulheres, qualquer que seja o seu papel no desenrolar dos acontecimentos: como clientes que solicitam a investigação ao detective, como móbil do crime, como cúmplices, como obstáculos à descoberta da verdade. As mulheres não são mais perigosas do que os homens que o herói tem de enfrentar, revelam-se apenas mais enigmáticas no preciso momento em que o seu olhar tenta criar alguma ordem no caos do mundo. O envolvimento emocional é uma dificuldade acrescida porque reforça a inquietação existencial do investigador, já de si alimentada pelo comportamento paranóico da constante vigilância que a profissão o obriga a exercer, na acumulação obsessiva de provas de anormalidade, no deslindar meticuloso das aparências enganosas, na suspeita constante da conspiração que o ameaça. A mulher é fatal quando o herói se deixa enganar deitando a perder não apenas o resultado da missão de que foi incumbido como a afirmação da sua virilidade. 309
Mais do que um género, liminarmente definido pelos respectivos referentes e traços iconográficos, aos quais não faltam nem o crime urbano nem a penumbra da noite, ambos sintomas adequados à proliferação do espírito do mal, o filme negro caracteriza-se pelo ambiente desesperado e fatalista do seu universo dramático, sublinhado em tons de preto e branco típicos de uma época histórica cujas balizas temporais são The Maltese Falcon (1941) de John Huston e Touch of Evil ( 1958) de Orson Welles. Num ensaio célebre (Notes on Film Noir, 1972), o argumentista e realizador Paul Schrader sistematizou os principais elementos culturais e estilísticos do filme negro, salientando a sua importância na evolução das formas do cinema americano. São quatro os factores sócio-culturais determinantes apontados na emergência do filme negro: o pessimismo provocado pela guerra e pelas dificuldades de adaptação à nova ordem económica dela resultante; a impressão documental e realista aperfeiçoada pela rodagem dos filmes nas ruas e em cenários naturais; a influência da composição plástica e fotográfica do expressionismo alemão, devida aos inúmeros cineastas vindos da Europa; a tradição do romance hard-boiled, que forneceu os ambientes, os conflitos, os personagens e a tipologia dos enredos. Ao nível do impacto visual é por certo a técnica de iluminação que marca em primeiro lugar a presença de um estilo diferente no cinema americano, não obstante as tentativas anteriores dos melodramas de Sternberg e do ciclo de gangsters. No filme negro as cenas nocturnas são mesmo filmadas de noite, sem os filtros da noite americana (day-for-night), apostando, pelo contrário, nos projectores a reforçarem as luzes dos postes de iluminação das vias públicas e dos faróis dos automóveis, de modo a estabelecer zonas incertas de alto contraste que os personagens atravessam como fantasmas perdidos, encurralados entre as linhas diagonais dos enquadramentos e os volumes indefinidos, como se flutuassem em aquários de contraluz indiciando a total perda do controlo racional do espaço. A preferência pelas composições oblíquas e instáveis, numa referência directa à estética expressionista, obriga os actores a um jogo permanente de escondidas e cria tensões sensoriais e psíquicas eventualmente superiores às acções de pura violência física. O processo obteve resultados tão notáveis que se tomou um estilema fílmico muitas vezes utilizado fora do seu genuíno contexto dramático. Num popular manual de realização cinematográfica (On Screen Directing, 1984) Edward Dmytryk propõe-se ensinar 310
com indiscutível conhecimento de causa um naipe de recursos de iluminação do filme negro como se o chiaroscuro fosse um tópico curricular de prestígio, particularmente vocacionado para produções baratas e consagrado pela vontade retórica da simples manipulação visual. Outro elemento interessante de composição é a recorrência da água, quer em forma de chuva, transformando o asfalto numa superfície escorregadia e reflectora, quer junto aos cais e docas mal iluminados que aparecem como locais favoritos de encontros furtivos e de ajustes de contas. No que toca a estrutura narrativa o aspecto mais saliente é o uso frequente do flashback, que permite alterar a ordem cronológica das histórias de acordo com inesperadas ligações de intriga e faculta a distorção subjectiva do tempo, normalmente enfatizada pela voz sobreposta (voice over) do protagonista-narrador. A falta de perspectivas de futuro, problema com o qual se debatem muitos personagens centrais do filme negro, leva-os a refugiarem-se no passado ou a utilizarem a memória narrativa como processo terapêutico face à insegurança do presente. A argumentação de Schrader vai no sentido de sugerir que o filme negro criou um novo paradigma formal no cinema americano. O núcleo temático da corrupção social e do desespero individual, até então considerado uma aberração ideológica no sistema de referências optimistas do espectáculo, sempre protegido pelo final feliz, pelos valores morais compensatórios, pelo castigo providencial ou pela redenção instantânea dos personagens transviados, encontra enfim uma resposta estética radical, dificilmente recuperável pela tradição conformista da indústria. O filme negro convence o espectador a aceitar uma visão desencantada da América, não devido à relevância política ou moral dos conteúdos mas por força do seu impacto estilístico: «porque o filme negro foi antes de mais um estilo, porque expôs os seus conflitos em termos visuais e não apenas temáticos, porque estava consciente da sua própria identidade, foi capaz de criar soluções artísticas para problemas sociológicos». O filme social — na América como em toda a parte — tinha sido e continuaria a ser maioritariamente um cinema de mera ilustração funcional de assuntos mais ou menos polémicos, sem a ousadia de incorporar na matéria significante as dúvidas e os riscos de uma nova aproximação formal. Com o filme negro, a realidade preocupante que alastrou dos anos trinta a meados dos anos cinquenta encontrou um 311
tratamento fílmico adequado ao desassossego espiritual do tempo. Na esteira de Citizen Kane (1941), ponto de referência absoluto da época, o filme negro assumiu nos seus melhores momentos o modelo da arte reflexiva que se interroga sobre os seus próprios limites estéticos e narrativos sem abandonar a capacidade de sensibilização emocional e social que o tornou um dos géneros mais populares junto do público. William Faulkner e Leigh Brackett, uma jovem escritora de ficção científica, repartiram entre si os capítulos alternados de The Big Sleep e escreveram as respectivas cenas do argumento sem que cada um conhecesse o trabalho do outro. Além da fidelidade ao tom e às caracterizações do livro de Raymond Chandler, as indicações de Howard Hawks iam no sentido de não se preocuparem com o enredo e de trabalharem as cenas como unidades narrativas autónomas. Para Hawks uma boa história é antes de mais uma sucessão de situações fortes, se possível divertidas, com interesse dramático em si mesmas, apresentadas em cenas rápidas nas quais os actores possam construir os personagens a partir de diálogos oblíquos — ou almofadados, como Hawks gostava de dizer — cheios de insinuações, subentendidos, confrontos verbais, piadas indirectas e réplicas memoráveis. Por norma, a funcionalidade narrativa dos diálogos no cinema clássico desenvolve-se simultaneamente em vários níveis dando cumprimento aos seguintes objectivos: fornecer as informações que não são veiculadas pelas imagens; caracterizar e contrastar os personagens contribuindo para revelar as suas emoções em cada momento; explicitar os conflitos e comentar os aspectos temáticos da premissa dramática; fazer progredir o enredo estabelecendo a ligação entre as cenas. Os bons argumentistas fazem tudo isto com a aparente coloquialidade recomendada pela invisibilidade narrativa. Nos filmes de Hawks a consistência intrínseca da cena toma-se mais importante do que a composição plástica dos planos (caso de Sternberg) ou a dinâmica da montagem (caso de Hitchcock) porque a prioridade vai para os personagens, logo para o jogo de actores. Daqui a predominância dos planos médios sobre os grandes planos e a permanência da câmara à altura do olhar humano, sem interferência de adereços simbólicos, de movimentos gratuitos ou de cortes bruscos que possam desestabilizar o território do actor e o prazer do diálogo. Em The Big Sleep a transparência da mise-en-scène é contrariada pela opacidade da ficção, em nítida divergência com a regra 312
da clareza das relações de causalidade característica do enredo fechado. Apesar da obra de Hawks não se ajustar a todos os preceitos enunciados por Schrader — Hawks é o menos expressionista dos grandes cineastas americanos e The Big Sleep foi inteiramente rodado em estúdio —, o filme é justamente considerado um dos melhores exemplos do género. O detective privado Philip Marlow (Humphrey Bogart) é contratado pelo General Sternwood (Charles Waldron) para descobrir quem anda a fazer chantagem com a sua filha mais nova Carmen ( Martha Vickers). O inquérito encaminha Marlow para pistas inesperadas que o obrigam, com a cumplicidade de Vivian (Lauren Bacall), a filha mais velha do General, a ocultar o envolvimento de Carmen numa rede de pornografia e droga. Quando tudo parece resolvido Marlow insiste em prosseguir com as investigações, contrariando a vontade do cliente. Cada problema desemboca num novo problema, cada crime origina um outro crime, num padrão em xadrez sem origem nem centro em que tudo está ligado pela deriva do detective, cujo ponto de vista conduz a narrativa. Os mistérios que deram origem à contratação do detective são rapidamente resolvidos, o que porventura nunca chegaremos a conhecer são as razões profundas que levam Marlow a arriscar a vida em assuntos que já não lhe dizem respeito e que ficam por esclarecer. Na filmagem de uma das cenas, que mostra Marlow no cais a assistir à recuperação do carro que caiu à água e no qual se encontra o corpo do motorista assassinado, Bogart perguntou a Hawks quem era o criminoso, uma vez que não descobrira no guião nenhuma referência à solução daquele crime. Hawks ficou sem resposta: também não sabia. O realizador perguntou a Faulkner quem podia ser o assassino, ao que o argumentista respondeu que não fazia a mínima ideia, uma vez que o livro era omisso quanto à identidade do homicida. Hawks enviou um telegrama a Chandler com a pergunta fatídica e foi informado de que o escritor nunca se preocupara a deslindar esse pormenor. Nenhuma história pode ser totalmente contada. A estrutura da intriga depende sempre da perícia do narrador na gestão das lacunas de informação. A reconstrução do mundo da ficção pelo espectador depende tanto da visibilidade do que é representado e explicitado como das omissões e vazios que é obrigado a preencher. Sejam temporárias (quando são colmatadas no decurso da narrativa) ou permanentes, as lacunas da ficção são capitais na interpelação do interesse 313
e da imaginação do público, bem como na formulação dinâmica do enigma do discurso estético. Hawks aconselhava os argumentistas a não darem demasiadas explicações sobre a teia do enredo, desde que conservassem a tensão dramática nas situações e na caracterização dos personagens. Em The Big Sleep os nós da intriga geram pontos de indeterminação que dificultam o entendimento linear da história mas favorecem a imersão lúdica do espectador no jogo das formas, das convenções e dos actores. A intriga é apenas tão confusa como o mundo habitado pelo detective Marlow, para sempre associado à ambiguidade existencial do rosto de Humphrey Bogart. Apesar de Hawks ter aumentado as cenas com Bacall durante as filmagens, de modo a preparar o happy ending em contradição com o livro e com o género, o agente da actriz não estava satisfeito com o papel relativamente secundário que ela desempenhava. Sabia que a única maneira de a lançar definitivamente no mercado das estrelas de Hollywood era tirar partido da alquimia da sua relação com Bogart, tanto mais que ambos tinham casado durante a rodagem. Sabia também que, nestas circunstâncias, favorecer Bacall era aumentar o potencial económico do filme, já que em todas as antestreias (previews), em particular nas sessões prévias oferecidas aos soldados no Verão de 1945, a preferência dos espectadores se manifestava nos momentos em que Bogart e Bacall contracenavam. Jack Warner concordou e deu instruções para se recolherem todos os duplicados dos negativos do filme que tinham sido enviados para a Europa tendo em vista a tiragem de cópias para a estreia internacional. Hawks recorreu novamente a Jules Furthman, que escreveu os diálogos oblíquos das cenas adicionais, porventura dos mais sarcásticos que o filme negro conheceu. O êxito foi enorme e ninguém parece ter-se queixado das obscuras veredas da história, porventura ampliadas pelas sucessivas refilmagens e remontagens, algumas das quais devidas às exigências da Administração do Código de Produção. A companhia de Hawks e de Bogart tinha-lhe mitigado o sacrifício, mas agora que o filme estava acabado não queria perder nem mais um minuto a fazer uma tarefa para a qual não tinha apetência. William Faulkner largou o copo na secretária ao lado da máquina de escrever e começou a bater a carta para Jack Warner: «Sinto ter cometido um erro ao escrever para cinema, por isso perdi e continuo a perder tempo de que não posso dispor na minha idade. Durante três anos (incluindo 314
suspensões) na Warner fiz o melhor que pude em cinco ou seis argumentos. Apenas dois foram produzidos e tenho a sensação de que fui aceite não devido ao valor do meu trabalho mas, em parte, por causa da amizade do realizador Howard Hawks. Passei três anos a fazer um trabalho ( ou a tentar fazê-lo) que não é o meu forte e para o qual não estou qualificado. Desperdicei tempo que um romancista com 47 anos não se pode dar ao luxo de desperdiçar. E não me atrevo a desperdiçar mais». Faulkner não tinha a certeza de que o patrão da Warner fosse sensível ao apelo e o libertasse do contrato de exclusividade que lhe dava direito a tudo o que escrevia, mas não tinha outra alternativa. Não queria ficar preso a Hollywood. O seu mundo eram os livros. Os livros que tinham ficado por escrever e que considerava mais importantes do que todos os filmes possíveis, do que toda a glória mundana. Não se insurgia o detective Marlow contra aqueles que lhe pagavam e interferiam no seu trabalho com o propósito de não ir ao fundo das questões? Seria Chandler capaz de fazer o mesmo? No silêncio da noite, num gesto quase maquinal, Faulkner pegou pela última vez na edição usada de The Big Sleep, aproximou-se da luz baça do candeeiro e abriu o livro na última página, como se andasse à procura da resposta que conhecia de cor. Leu: «Que importa onde descansamos depois de morrermos? Que diferença poderá haver entre um reservatório imundo e uma torre de mármore, no cimo de uma montanha? Estamos mortos, dormimos o grande sono e essas preocupações não contam. Petróleo e água são o mesmo que vento e ar. Dormimos o sono eterno sem nos importarmos com a perversidade que nos matou nem onde caímos».
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Cooper: a defesa dos valores americanos.
33 SER OU NÃO SER ANTIAMERICANO Foram dois anos terríveis para Hollywood. Os primeiros sinais de alarme soaram em 1947 com o declínio da frequência do público e o encerramento de quase quatro mil salas de cinema nos Estados Unidos. Apesar do aumento do preço dos bilhetes em 40 por cento, os lucros combinados da produção, distribuição e exibição das Majors caíram cerca de 74 por cento, levando de imediato a uma política de contenção que afectou todos os ramos profissionais do cinema. Em 1947 havia setecentos e quarenta e dois actores contratados pelos estúdios, dez anos depois eram duzentos e vinte e nove. O pânico instalou-se em 1948 com a chegada da televisão, altura em que foram registados catorze mil aparelhos. No ano seguinte venderam-se cento e setenta e dois mil televisores, seis anos depois trinta e dois milhões. O fim da era dos estúdios pode, no entanto, associar-se a uma decisão jurídica da maior importância que, juntamente com a televisão, a mudança de hábitos de lazer do público e o congelamento dos lucros provenientes dos países europeus no pós-guerra, veio minar as bases económicas do sistema de oligopólio até então dominante. Em Maio de 1948 o Supremo Tribunal reconheceu por unanimidade que 317
as grandes produtoras violavam as leis antitrust em vigor e, em consequência, emanou directrizes no sentido de desmantelar a organização vertical da indústria cinematográfica. Os estúdios não podiam continuar a controlar o parque de salas através da propriedade das melhores praças de exibição. Os sectores da produção, da distribuição e da exibição deviam ter autonomia e funcionar livremente nos circuitos do mercado. Em teoria, o block booking (aluguer colectivo), o blind booking (aluguer às cegas) e os períodos de clearance para a exibição dos filmes de maior sucesso comercial nas salas periféricas ficavam interditos. Os produtores tinham de produzir e vender cada filme a título individual, perdendo assim parte do poder negocial que lhes permitia sustentar os respectivos planos anuais. Os contratos a médio e a longo prazo com técnicos, argumentistas e actores deixou, portanto, de interessar os estúdios. Apesar das inúmeras fugas à lei, foi esta uma das portas de abertura para a chamada produção independente que, em menos de uma década, iria mudar a estrutura administrativa de Hollywood. Como acontece nas intrigas bem construídas, um mal nunca vem só. Em Maio de 1947, a Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideais, uma organização de direita liderada por Sam Wood e Gary Cooper, apoiada pela imprensa de Hearst, fornece à Comissão de Actividades Antiamericanas — (House of Representatives on UnAmerican Activities, designada por HUAC), uma subcomissão do Senado presidida pelo republicano Pamell Thomas — centenas de nomes de profissionais de cinema que estariam a subverter Hollywood com propaganda comunista. Criada em 1938 pela Câmara dos Representantes, com o objectivo de combater a política do New Deal e as organizações que agissem na clandestinidade por conta de governos estrangeiros, a H U AC recebia denúncias da infiltração comunista em Hollywood praticamente desde a sua fundação. Com o eclodir da Guerra Fria e do clima de paranóia que se lhe seguiu, estavam reunidas as condições para se proceder ao saneamento político do sector profissional com maior cobertura jornalística internacional e, deste modo, dar uma lição de patriotismo ao país e ao mundo. Em Setembro de 1947 a HUAC intima quarenta e três personalidades do cinema a depor, dezanove das quais foram designadas testemunhas não amistosas por se recusarem a colaborar com as comissões de inquérito, ao abrigo da Primeira Emenda da Constituição, que 318
garante a liberdade de crença. Uma comissão liberal de apoio aos dezanove, mobilizada pelos realizadores John Huston e William Wyler, e pelo escritor Phillip Dunne, convenceu algumas estrelas a estarem presentes em Washington, aquando dos interrogatórios de Outubro, a fim de mostrarem a sua indignação pelos métodos inquisitoriais da HUAC. A primeira das dezanove testemunhas não amistosas chamadas a depor foi John Howard Lawson, que não só se recusou a responder à pergunta sacramental — era, ou tinha sido, filiado no Partido Comunista? — como acusou a HUAC de violar os direitos de cidadania e os princípios básicos da democracia americana. O tom estava dado. Lawson e os companheiros presentes na primeira sessão foram acusados de desrespeito perante uma comissão oficial do Congresso, enfrentando assim pena de prisão. Os Dez de Hollywood, como ficaram conhecidos, são: Edward Dmytryk, Herbert Biberman (realizadores), Adrian Scott (produtor), John Howard Lawson, Alvah Bessie, Lester Cole, Ring Lardner Jr., Albert Maltz, Samuel Ornitz e Dalton Trumbo ( argumentistas). Seis dos Dez eram argumentistas contratados pela Warner, sem dúvida a produtora que mais apoiara Roosevelt e contribuíra para a propaganda antifascista durante a Segunda Guerra. Foi pois com grande expectativa que os inquiridores ouviram Jack Warner na qualidade de testemunha amistosa. Depois de recusar terminantemente que qualquer dos filmes produzidos pelo seu estúdio pudesse conter propaganda comunista, Jack Warner acabou por confessar a sua desconfiança em relação aos escritores, sempre prontos a pregarem-lhe uma partida: «Alguns diálogos contêm tais insinuações e duplos sentidos que é preciso tirar oito ou dez cursos de direito em Harvard para se perceber o que querem dizer». Outras interrogações consistiram em apurar do que se falava quando se falava em ser antiamericano. As raízes ideológicas mais profundas remontam à mentalidade agrária e patriarcal que, desde a proclamação do destino manifesto, isolaram os Estados Unidos num nacionalismo dogmático. A componente moderna do americanismo, fruto da euforia da rápida expansão financeira e industrial, opõe-se a qualquer crítica das injustiças da vida contemporânea. De acordo com as definições ouvidas nas audiências da HUAC, eram sinais de antiamericanismo apresentar em filme uma pessoa rica no papel do vilão, mostrar um soldado desiludido com a experiência militar, ou acusar de 319
desonestidade um membro do Congresso. Indiferente às fraquezas humanas e às falhas do sistema, que prefere ignorar, o americanismo é a fé inabalável nas virtudes do capitalismo. Em 24 de Novembro de 1947, cinquenta membros da Associação de Produtores reuniram-se no Hotel Waldorf-Astoria de Nova Iorque a fim de tomarem medidas tendentes à auto-regulação da indústria, por forma a travarem a ameaça latente da censura e a tranquilizarem o governo e os accionistas da Wall Street. Dois dias depois, os produtores divulgaram um documento decisivo, designado Declaração do Astória, no qual se podia ler, entre votos piedosos de respeito pela liberdade de expressão e de recusa em fomentar um clima de medo e intimidação susceptível de atingir pessoas inocentes: «Procederemos ao despedimento, ou suspensão, sem indemnização, dos nossos empregados, e não voltaremos a empregar nenhum dos dez enquanto não for declarado inocente, ou não se tenha redimido do crime de desrespeito, e enquanto não declarar sob juramento que não é comunista». As listas negras estavam instituídas. Quem quisesse trabalhar em Hollywood tinha de prestar juramento de não ser comunista ou, tendo-o sido, de mostrar arrependimento sincero e público, numa daquelas cenas de transfiguração de que só o mundo do cinema é capaz. Como num guião de melodrama, o ritual dos remorsos e a traição das denúncias proporcionavam a redenção instantânea da consciência e, mais do que isso, a possibilidade de emprego e a tranquilidade da conta bancária. Apesar do FBI conhecer os nomes dos membros do Partido Comunista, a Comissão não abdicou da sua estratégia de humilhação: era preciso ser-se informador para provar a lealdade ao país e garantir a purificação. A intransigência dos Dez, em responder à Comissão e em esclarecer a sua posição política pela afirmativa, conduziu-os ao isolamento. Os sectores liberais, nomeadamente as Associações de Realizadores e de Actores, demarcaram-se. A própria Associação de Argumentistas afastou rapidamente os elementos de esquerda da direcção e ofereceu os seus ficheiros aos investigadores da HUAC. Em 1950 os Dez foram condenados a um ano de prisão. Num daqueles reveses irónicos da história, tão ao gosto do público popular, na prisão de Danbury foram encontrar o velho inimigo Parnell Thomas, entretanto destituído da presidência da HUAC e condenado por desvio de fundos. Na Primavera de 1951, quando começou a segunda vaga de interrogatórios, a Associação de Produtores (Motion Picture Association of 320
America) fez saber através da imprensa que todos os profissionais que não prestassem o juramento de lealdade ao governo federal, ou não denunciassem os colegas comunistas, limpando assim o nome de qualquer suspeita de actividade subversiva, teriam muita dificuldade em continuar activos em Hollywood. O endurecimento da campanha anticomunista no cinema reflectia por certo a situação política nacional e internacional. Entre 1947 e 1951, a estratégia da doutrina Truman, que visava dar apoio económico e militar aos países ameaçados pelo comunismo, consolidava posições sólidas, quer com o Plano Marshall, de ajuda económica aos países europeus devastados pela guerra, quer com a criação da NATO em Abril de 1949. A primeira experiência atómica soviética em Setembro de 1949 e a intervenção das tropas americanas na guerra da Coreia, a partir de Junho de 1950, reforçaram a devoção de americanismo que permitiu ao senador republicano Joseph McCarthy, responsável pela HUAC, lançar de novo o pânico em Hollywood. Um dos primeiros voluntários a comparecer nas audiências de limpeza de nome, em 25 de Abril de 1951, foi Edward Dmytryk. Ainda na prisão, Dmytryk fizera publicar nos jornais uma declaração de arrependimento, dissociando-se dos Dez. Agora apresentava-se para explicar que a sua breve militância comunista tinha sido um equívoco. Denunciou os camaradas e acusou Lawson de tentar controlar o conteúdo das películas que realizara durante o seu período no Partido. Realizador de alguns dos filmes negros e de problemática social mais radicais da RKO nos anos quarenta, tais como Hitler's Children (1943), Cornered (1945) e Crossfire (1947), Dmytryk aliava o gosto pelos temas controversos a um grande eclectismo de estilo. Depois da confissão, sentiu-se aliviado e patriota. Nunca mais lhe faltou trabalho. Outro dos voluntários que se prontificaram a denunciar os excamaradas e os estratagemas censórios dos comunistas, como se não chegassem os do Gabinete Hays, foi Budd Schulberg, em sessão de 23 de Maio de 1951. Estivera pouco mais de três anos no Partido, entre 1937 e 1941, sem nunca ter compreendido muito bem o alcance da teoria marxista e muito menos as reviravoltas da estratégia partidária. Saíra indignado com o modo como os comissários políticos tentaram ajudá-lo a corrigir o romance What Makes Sammy Run? (1941) antes da publicação, de modo a dar uma visão mais comprometida da vida social em Hollywood. O romance de Schulberg, que traça um 321
panorama avassalador do oportunismo e da hipocrisia reinantes na comunidade do cinema, através do percurso de um self-made-man sem escrúpulos que se torna um dos argumentistas mais temidos na profissão, não agradava a Lawson porque não elogiava o papel do Partido na consolidação da Associação dos Argumentistas e fazia demasiadas referências críticas ao anti-semitismo da esquerda na altura do pacto entre Hitler e Estaline. Problemas que chegassem já Schulberg tinha com o livro tal como foi editado: as boas referências jornalísticas não compensaram os dissabores que arranjou em Hollywood, onde alguns amigos se afastaram traumatizados com a ideia de terem servido de modelo às figuras caricatas demolidas pelo romance. John Howard Lawson nunca teve ilusões acerca da possibilidade de fazer um filme marxista em Hollywood, mas não resistia à tentação de dar conselhos aos que acatavam a disciplina partidária. Sabia melhor do que ninguém que a única maneira de escapar à vigilância dos produtores não era escrever diálogos de duplo sentido, como aqueles que Jack Warner se queixava de não compreender, mas sim libertar a produção do controlo do capital financeiro sedeado em Nova Iorque. Enquanto a produção e a exploração não fossem independentes dos circuitos de distribuição das Majors não era concebível escrever nem realizar filmes em defesa dos trabalhadores. Lawson não via outra solução que não fosse a de organizar grupos de pressão no seio do público, de modo a criar a procura de filmes sociais progressistas. Porém, depressa se deu conta do completo desinteresse do movimento operário americano pelo cinema como forma de luta ideológica. Os proletários, tal como os burgueses, preferiam sonhar com o luxo dos cenários de fantasia e a sedução das estrelas. Os depoimentos e as denúncias que fizeram correr mais tinta, dado o enorme prestígio intelectual de que desfrutava o seu autor, foram os de Elia Kazan. Nascido na Grécia, em Setembro de 1909, trazido pela família para os Estados Unidos aos 4 anos, Kazan instala-se em Nova Iorque e estuda no liceu de New Rochelle. Em 1932 frequenta a Yale Drama School e começa a trabalhar como actor em peças de Clifford Odets no Group Theatre, onde predomina a figura de Lee Strasberg. Dez anos passados, após a dissolução do Group Theatre, que Kazan considera, a par dos teóricos russos dos anos vinte, a maior influência do teatro deste século, vamos encontrá-lo na Broadway a encenar peças de Tennessee Williams e de Arthur Miller, entre outros, 322
que lhe valem ser considerado um dos melhores directores da cena americana dos anos trinta e quarenta. Entre 1934 e 1936 filia-se no Partido Comunista, cujo fervor pela idealização da vida na URSS e pelos cineastas soviéticos foi um factor fundamental da sua formação. Em 1937 e 1941 realiza documentários para a Frontier Films, uma cooperativa de produção independente alinhada com a defesa das medidas populares de Roosevelt e com o discurso antifascista. O êxito na Broadway leva ao inevitável convite para Hollywood, onde, entre 1944 e 1952, Kazan dirige oito longas metragens, a maior parte das quais produzidas na Twentieth Century-Fox por Darryl E Zanuck. Fiel ao seu programa de filmes de primeira página, que retomam em termos de ficção pedagógica os problemas relatados ou debatidos pela grande imprensa, Zanuck encontra em Kazan o realizador ideal, disciplinado e eficiente, atento às questões de dramaturgia, interessado em temas de análise social, seguro na direcção de actores, e pouco experiente na montagem, que deixa a cargo do produtor. Com Boomerang (1947), escrito por Richard Murphy, Gentleman's Agreement ( 1948), escrito por Moss Hart, Pinky (1949), escrito por Dudley Nichols e Philip Dunne, Panic in the Streets (1950), escrito por Richard Murphy e Daniel Fuchs, e Viva Zapata! (1952), escrito por John Steinbeck, filmes que explicitam com precaução alguns dos focos de conflito e de debate ideológico mais candentes na época, nomeadamente a corrupção municipal, o anti-semitismo, o racismo, a saúde pública e o estalinismo, Kazan e Zanuck estabelecem um novo padrão de cinema político, inconformado com as habituais restrições de Hollywood mas dentro dos estritos limites da boa consciência do espectáculo, que manda ter confiança nas instituições americanas. Quando começou a caça às bruxas em Hollywood, Elia Kazan ficou preocupado, por sentir que era a generosidade da geração intelectual do New Deal que estava a ser julgada. Em Outubro de 1947 ajudou financeiramente os Dez a travarem a batalha legal contra a HUAC. Durante cinco anos as pressões e as ameaças foram constantes. Os intimados que passaram a invocar a Quinta Emenda constitucional, que autorizava o silêncio e o direito de ninguém se auto-incriminar, podiam livrar-se da prisão mas não se livravam das listas negras. Em 14 de Janeiro de 1952 Kazan apresenta-se voluntariamente para testemunhar em privado e denuncia os membros da sua célula partidária do Group Theatre de Nova Iorque, onde as intervenções 323
do omnipresente Lawson foram também decisivas. Em 10 de Abril, Elia Kazan faz um segundo depoimento, por escrito, extenso e detalhado, no qual, além da enumeração das suas actividades em várias organizações culturais e políticas controladas pelo Partido, analisa, uma por uma, as obras teatrais e cinematográficas em que trabalhara, concluindo que o hipotético radicalismo das suas realizações artísticas não passara de um testemunho da liberdade de expressão concedida pela democracia americana. Quem por certo não usava processos democráticos, prosseguiu Kazan, era o Partido Comunista, do qual tinha saído por o obrigarem constantemente à prática degradante da autocrítica e à aceitação forçada de ideias das quais discordava e que interferiam nos seus espectáculos. Enquanto esteve no Partido, Kazan teve a sensação de viver num autêntico estado policial, em que os controleiros pensavam por ele e se serviam dele para fins de propaganda sem respeitarem a sua dignidade individual. Os investigadores da direita consideraram-se satisfeitos, sem porventura terem reparado que tudo o que o cineasta disse do Partido se ajustava perfeitamente ao perfil totalitário da própria HUAC. Budd Schulberg começou a frequentar as docas de Nova Iorque em 1950, com o fito de recolher informações para escrever um argumento sobre a corrupção dos sindicatos de estivadores, posta a descoberto numa série de artigos de jornal publicados por Malcom Johnson desde 1948. Ponto fulcral do poder e do movimento económico da cidade, o porto de Nova Iorque sofria de congestionamento crónico. Nos anos quarenta e cinquenta, as despesas de carregamento e descarregamento dos navios eram superiores a 50 por cento dos encargos das companhias marítimas de transportes. Qualquer atraso devido a problemas laborais nas docas podia ser catastrófico para as empresas. Dada a irregularidade do trabalho de estiva, as companhias preferiam contratar capatazes que angariavam os trabalhadores, em vez de terem estivadores fixos. Este acordo permitia uma contratação local aberta, deliberadamente instável, subordinada aos interesses dos capatazes, que apenas davam trabalho a quem se sujeitava às suas condições e ofertas salariais. Qualquer tentativa de greve ou de reivindicação por parte dos trabalhadores era violentamente reprimida pela ameaça do desemprego e pela violência física exercida por grupos de bandidos a soldo dos patrões. A situação nas docas de Nova Iorque era particularmente ignóbil devido ao facto dos capatazes, actuando às claras em 324
esquema de crime organizado, terem a cobertura institucional da direcção do sindicato de estivadores (International Longshoremen's Association). Provavelmente não iria conseguir vender o argumento, mas durante dois anos Budd frequentou o porto, tomou notas e assentou ideias. O capitalismo selvagem das docas era apenas a outra face da América hipócrita que abria os braços à chantagem da HUAC. Schulberg tinha pronta uma primeira versão da história de On the Waterfront (1954) quando foi contactado por Elia Kazan. Por coincidência, o cineasta pretendia retomar um projecto iniciado com Arthur Miller três anos antes cujo tema incidia precisamente nas relações entre o gangsterismo e os patrões da estiva. Durante mais um ano, até Maio de 1953, o argumento conheceu oito versões que foram apresentadas a vários executivos dos estúdios. Todos recusaram, incluindo Zanuck, que andava sempre à procura de dramas sociais contemporâneos. Harry Cohn, dono da Columbia, fez uma contraproposta insólita mas não inesperada: tinha dado o argumento a ler ao FBI e estava disposto a produzir o filme se Kazan aceitasse transformar os gangsters do sindicato em dirigentes comunistas. Foi Sam Spiegel quem se interessou pela produção. De origem austríaca, Spiegel trabalhara em Berlim como supervisor das versões francesas e alemãs dos filmes da Universal. Fugido aos nazis, instalase em Hollywood em 1935. A sua carreira oferece um exemplo típico do produtor independente dos estúdios mas que funciona na sua órbita, incapaz de sobreviver sem a distribuição internacional das Majors, segundo o modelo inaugurado por Selznick. Depois de produzir filmes de Orson Welles, de Joseph Losey e de John Huston, Spiegel apoia Kazan, com a condição de conseguirem convencer uma estrela que tranquilize as fontes de financiamento. O novo estilo de produção estava a tomar conta de Hollywood: privados do monopólio das boas salas, em vez da política de filmes em quantidade os estúdios preferem pegar em projectos seleccionados, de preferência auto-suficientes, susceptíveis de conquistar segmentos de mercado pela qualidade, pelo prestígio, pelo factor de criação do acontecimento. Compete ao produtor independente empacotar o projecto (the package) e apresentá-lo completo ao estúdio, com guião, elenco, realizador, equipa e financiamento. O estúdio fornece as infra-estruturas técnicas e os circuitos de distribuição, arrecadando a maior fatia dos lucros. A partir de 1955 as Majors começaram a vender os direitos de exibição dos 325
seus filmes às cadeias de televisão e a ocupar os estúdios de filmagem com a produção de séries e de programas televisivos, deixando uma larga margem de iniciativa aos produtores de cinema independentes. Em 1945 estavam inscritos nas finanças quarenta produtores independentes dos estúdios, em 1947 havia noventa e três, em 1957 o número de independentes atinge os cento e sessenta e cinco, altura em que a maior parte das longas metragens saídas de Hollywood é já produzida pelos independentes. Spiegel chega a um acordo com a Columbia. Apesar da relutância de Cohn, que insistia em construir os décors das docas em estúdio, Kazan teve carta branca para fazer o filme à sua maneira, graças à anuência de Marlon Brando. Depois de várias hesitações, Brando aceitou o papel principal e isso foi o suficiente para garantir ao realizador plena autoridade na definição artística do projecto. Em três anos e quatro filmes Brando tornara-se um dos dez actores com maior potencial de bilheteira nos Estados Unidos. Dois desses filmes, A Streetcar Named Desire ( 1950) e Viva Zapata! (1951), tinham sido realizados por Elia Kazan, que dera a grande oportunidade ao actor em 1947 na célebre encenação da peça de Tennessee Williams no Teatro Barrymore de Nova Iorque. As filmagens de exteriores, na sua maior parte executadas nas docas de New Jersey, ocuparam o elenco e a equipa entre Novembro de 1953 e Janeiro de 1954. Conhecendo as implicações da história, alguns actores e técnicos temeram que pudessem surgir complicações com os patrões da estiva, tanto mais que Kazan insistia em escolher os figurantes de entre os trabalhadores disponíveis, em nome do realismo das imagens. Marlon Brando, que conhecia bem Elia Kazan, a quem nunca negou a justiça de o considerar o melhor director de actores que encontrou, não se mostrou inquieto. Desde o primeiro dia que fora convidado, na companhia do realizador, para almoçar com os chefes da Mafia da zona, que controlavam o trabalho e a segurança do porto. Antes de levar a equipa para o local, Kazan assegurara a protecção e a cooperação daqueles cujas actividades o filme ia expor. A paixão pelo cinema e a obsessão pelo cumprimento dos objectivos traçados ultrapassavam em Kazan os escrúpulos do senso comum. Brando conhecia as traições e as manipulações de Kazan, conhecia o talento e a persuasão, a inquietação e a teimosia, o desafio e a inteligência. Havia circunstâncias em que Kazan pisava o limiar da abjecção mas, quando conseguia o que queria dos actores, era quase genial. 326
As críticas mais inflamadas de On the Waterfront consideraram o filme uma apologia da delação — a personagem de Brando denuncia a actuação dos mafiosos sindicalistas assim como Kazan denunciou os camaradas comunistas — implicando a ficção numa leitura metafórica da situação política americana e da vida pessoal do cineasta. É uma interpretação tão legítima como a que, invertendo os termos da questão, visse nas listas de trabalhadores elaboradas pelos gangsters do sindicato uma referência implícita às listas negras que afastaram de Hollywood alguns dos seus melhores argumentistas. A transformação positiva dos personagens, que uns apelidavam de tomada de consciência e outros preferiam incluir na tradição da narrativa redentora, tão ao gosto de Hollywood, encontrou o seu equivalente na cerimónia dos Óscares de 1955. Para uma produção independente, foi um acontecimento sem precedentes, só superado por Gone With The Wind ( 1939): doze nomeações e oito prémios para Spiegel, Kazan, Schulberg, Brando, Eve Marie Saint, o director de fotografia Boris Kaufman, o cenógrafo Richard Day e o montador Gene Milford. Hollywood perdoara Kazan mas, a avaliar pela inquietação dos filmes que se seguiram, Kazan teve dificuldade em perdoar a si próprio.
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A experiência do mundo: Viagem em Itália (1953), Rossellini.
34 A FÉ NA REALIDADE Quando a projecção acabou e as luzes da sala se acenderam Ingrid Bergman não se levantou logo. Deixou os espectadores saírem, secou as lágrimas e dirigiu-se para a saída com a convicção de ter visto um dos melhores filmes da sua vida. No átrio da pequena sala, situada no La Cienega Boulevard de Hollywood, viam-se cartazes de Roma Città Aperta (1945), a obra que consagrou Roberto Rossellini. Poucas semanas depois, em Nova Iorque, numa sala quase vazia da Broadway, viu Paisà (1946) e ficou de novo maravilhada. Se Rossellini trabalhasse com uma grande estrela, como ela, talvez tivesse mais público. Era a Primavera de 1948 e Ingrid Bergman tinha razões para se sentir segura: mantinha-se pelo terceiro ano consecutivo à frente das actrizes mais populares da indústria. Depois de ver os filmes de Rossellini não lhe apetecia continuar fechada nos estúdios a fazer as fitas românticas que lhe deram fama e proveito, queria participar daquele mundo transparente onde a diferença entre a arte e a realidade era imperceptível. Nos filmes de Rossellini «ninguém parecia um actor e ninguém falava como um actor. Havia escuridão e sombras, e às vezes não se ouvia, às vezes nem sequer se via. Mas a vida é assim... nem sempre vemos e 329
ouvimos, mas sabemos, quase para além do que é inteligível, que qualquer coisa está a acontecer. É como se tivessem tirado as paredes das casas e das salas, e pudéssemos ver dentro delas. Mais ainda. É como se estivéssemos ali, envolvidos nos acontecimentos, a chorar e a sangrar por eles» ( Bergman, My Story, 1980). A actriz decidiu-se. Escreveu uma breve carta com a qual esperava mudar o curso da sua carreira e da sua vida. «Caro Senhor Rossellini, Vi os seus filmes Roma Città Aperta e Paisà, dos quais gostei muito. Se precisar de uma actriz sueca que fala muito bem inglês, que não se esqueceu do seu alemão, que não se ajeita com o francês, e que em italiano só sabe dizer "ti amo", estou pronta a fazer um filme consigo. Ingrid Bergman». Rossellini recebeu a missiva em 8 de Maio de 1948, dia de aniversário dos seus 40 anos. Raramente ia ao cinema e não se lembrava de ter visto qualquer filme com Ingrid Bergman, mas a declaração da actriz pareceu-lhe uma prenda providencial. A resposta veio numa longa carta onde o cineasta italiano manifesta o desejo e o entusiasmo de trabalhar com Ingrid. Rossellini esboça um vago projecto localizado numa ilha e previne-a de que tem um método muito pessoal de dirigir: não prepara argumentos escritos porque limitam o campo de intervenção da rodagem, que prefere deixar aberta aos rasgos da improvisação: «Estou habituado a seguir meia dúzia de ideias básicas e a construí-las a pouco e pouco durante o processo de trabalho, de modo que muitas vezes as cenas brotam da inspiração directa da realidade». Obediente à disciplina dos estúdios, submetida ao rigor das planificações de Hitchcock e à vigilância constante dos produtores, Bergman não se preocupou com a advertência. Tinha visto o resultado do método de Rossellini em duas obras-primas e isso bastava-lhe. A inovação dos processos de filmagem do cinema italiano do pós-guerra foi um dos tópicos mais discutidos do movimento neo-realista, sensivelmente compreendido entre 1943 e 1953. Quando Rossellini filmou Roma Città Aperta e Paisà, os estúdios italianos estavam inoperantes, a economia debilitada, o país arrasado. O cinema descia à rua por necessidades de ordem técnica e económica mas também por razões de urgência cultural e de intervenção cívica. Com o eclodir da guerra os cineastas (não só na Itália) viram-se compelidos a trocar o 330
conforto dos estúdios e o mundo da ficção pela realidade crua dos acontecimentos, ora alinhados na pedagogia do documentário ora fustigados na veemência da propaganda. Muitas actualidades filmadas eram organizadas como se fossem obras de ficção, poucos filmes de ficção eram tratados como se fossem reportagens. Justamente, Roma Città Aperta começou a ser filmado em Janeiro de 1945 como um documentário — uma curta metragem sobre Don Morosini, um padre da Resistência abatido pelos nazis — e acabou por se transformar, no decurso do processo de produção, numa invulgar ficção humanista que muitas histórias do cinema apontam como sendo o filme fundador do neorealismo. Numa descrição sumária, pode-se caracterizar o cinema neo-realista a partir dos seguintes pontos nucleares: rodagem em décors reais, de preferência nos próprios locais onde decorrem os eventos; utilização de não-actores, ou de amadores misturados com actores profissionais; opção por narrativas baseadas em acontecimentos verídicos e contemporâneos; abandono dos heróis e das situações excepcionais a favor da vida e dos problemas das pessoas vulgares; contextualização das personagens a partir dos ambientes sociais que as definem; respeito pelas tomadas de vistas em tempo real; utilização da luz natural, não distorcida por efeitos de iluminação artificial; escusa de enquadramentos que revelem efeitos de composição plástica; renúncia à aplicação emocional da música de fundo; improvisação durante a rodagem, de modo a favorecer a espontaneidade dos actores e o tom documental das imagens; recusa dos processos de montagem que possam permear as imagens de sentidos que elas não continham no momento da filmagem, ou seja, não acrescentar às coisas representadas significados que advêm da manipulação dos materiais filmados. A grande contradição da estética neo-realista, aceite pelos cineastas como inevitável, prende-se com o facto de todos os filmes da época serem rodados sem som síncrono, estando portanto subordinados à dobragem, onde a alteração das vozes e dos sons era prática corrente. Embora seja difícil encontrar um filme que obedeça a todos os requisitos enunciados, o seu teórico mais radical — Cesare Zavattini, argumentista dos melhores filmes realizados por Vittorio De Sica — não se cansou de os difundir e debater em termos que marcam uma referência incontornável da doutrina neo-realista. Partindo de uma opinião que fez lei durante muitos anos, Zavattini considerava que 331
nenhum dos filmes produzidos durante o período fascista (1922-1943) merecia qualquer interesse. O destaque posto na revolução neo-realista, de que ele foi sem dúvida um dos maiores arautos, visava criar uma ruptura política com o passado a fim de colocar o cinema ao serviço da sociedade e das consciências, apelando à responsabilidade social dos cineastas na denúncia das injustiças e na reconstrução de uma Itália democrática. A exigência do realismo no cinema provinha da crença de que só a verdade é útil ao homem e capaz de mobilizar a solidariedade dos espectadores perante a situação de infortúnio dos seus semelhantes. Daí a prioridade neo-realista dada ao retrato do homem vulgar em situações banais. A prescrição de Zavattini, que ficou célebre, consistia em não inventar histórias que imitassem a realidade, mas em descrever a realidade como se fosse uma história, por forma a eliminar a distância entre a vida e o espectáculo. O filme ideal de Zavattini seria aquele que mostrasse hora e meia da vida de um homem a quem não acontece nada. Na formulação de Zavattini, o neo-realismo é, antes de mais, uma estética da rejeição, contra o paradigma do cinema clássico e o sistema de estúdios, contra a dramaturgia fechada e o culto das estrelas, contra o argumento literário e a retórica da montagem, contra a fábrica de sonhos e o puro entretenimento. Influenciado pelo exemplo da escola russa, em particular os filmes de Vertov, no que respeita a autenticidade das imagens e a subordinação da arte à sua função social, Zavattini opõe-se no entanto às operações de montagem como elementos aglutinadores do sentido, por achar que o estilo da montagem soviética introduz factores de interpretação do real e de propaganda que anulam a objectividade dos factos e a ambiguidade ontológica do real. Contra o malabarismo dos planos curtos, que reelaboram a nossa visão do mundo, Zavattini defende os planos longos que preservam a integridade do tempo real dos acontecimentos. Na mesma linha de raciocínio, o naturalismo utópico de Zavattini condena o argumento de ferro e os procedimentos narrativos da intriga dramática, por sujeitarem o espectador a tensões emocionais desprovidas da espontaneidade da vida. A ilusão realista perfeita seria a que não deixa lugar para a consciência da arte. Retomando o eco longínquo das polémicas entre Vertov, Eisenstein e Pudovkin, outro teórico do neo-realismo, muito interveniente na época, apontou os limites da intransigência formal do argumentista 332
de Ladri di Biciclettte (1948). Umberto Barbaro, escritor de formação marxista, professor (desde 1937) e director (desde 1944) do Centro Sperimentale di Cinematografia, discorda do ataque feito por Zavattini contra o argumento e a montagem. Definindo o guião como sendo não apenas o texto escrito da narrativa mas também uma previsão da montagem, Barbaro critica a adopção do automatismo do olhar como sendo a única ou a melhor postura da experiência neo-realista. As teses de Zavattini partem do corolário de que nenhuma actividade artística deve preceder ou transfigurar o trabalho da câmara no momento da filmagem, ao invés Barbaro inclui na especificidade do cinema todas as fases da concepção criativa, salientando a importância temática do argumento cinematográfico na luta ideológica. Para Barbaro o neo-realismo italiano é um ideário histórico indissociável do movimento de Libertação e do empenho antifascista. A desvalorização do argumento dramático era compreensível no período fascista, primeiro enquanto instância de afirmação do filme como obra de arte autónoma e não como mera ilustração de um texto prévio, depois enquanto estratégia para escapar ao controlo da censura e aos produtores comerciais que teimavam em copiar os métodos e o estilo de Hollywood. No contexto das dificuldades económicas e políticas do pós-guerra, Barbaro adopta os ensinamentos de Pudovkin e subalterniza o vanguardismo formal para dar prioridade aos conteúdos progressistas, que possam contribuir para a transformação da sociedade, e à preparação cuidada dos filmes em argumentos bem estruturados, como forma de unidade e de racionalização do trabalho colectivo e dos processos produtivo e artístico. Roberto Rossellini começou a trabalhar no cinema nos anos trinta, mas nenhum dos filmes que então fez deixava antever a excepcional obra do pós-guerra. Após a queda do regime fascista em Setembro de 1943 e a libertação de Roma pelos Aliados em Junho de 1944, Rossellini colaborou com vários argumentistas, entre os quais Sergio Amidei e Frederico Fellini, que o iriam acompanhar na preparação de Roma Città Aperta (1945) e Paisà (1946), as duas películas que consagram a vitalidade do neo-realismo e a contestação da dramaturgia clássica no cinema. Se Roma Città Aperta é já um exame da história no presente, praticamente concebido em cima dos acontecimentos e, em parte, rodado nos locais autênticos, com um estilo de fotografia que oscila entre a reportagem e a ênfase expressiva, o 333
filme não deixa de recorrer à utilização de actores populares e ao pendor narrativo do melodrama. Paisà é composto por seis histórias de gente simples em luta pela sobrevivência durante a guerra. Não há heróis, mas apenas vítimas anónimas de uma situação histórica que ninguém controla. Os seis episódios seguem a cronologia e a geografia da invasão de Itália pelos Aliados. Sicília, Nápoles, Roma, Florença, os montes Apeninos e o rio Pó são os itinerários por onde passa a câmara de Rossellini com o objectivo de conhecer e dar a conhecer a realidade da guerra, de filmar os homens e as coisas tais como são. A excepção do quinto episódio, passado num mosteiro dos montes Apeninos mas rodado na costa de Amalfi, as outras histórias são filmadas como se fossem documentários, nos próprios locais ou em locais idênticos aos dos indicados na ficção. Cada história é precedida de uma introdução em voz sobreposta, como era vulgar nos jornais de actualidades da época, e muitos planos de transição pertencem a excertos de reportagens que foram intercalados nos planos das sequências encenadas, sem que o espectador se dê conta da passagem de uns a outros. Facto e ficção, décor real e décor análogo, actores ocasionais e actores profissionais fazem parte da mesma dinâmica de autenticidade cuja pretensão não é iludir o espectador mas confrontá-lo com a aparência das coisas. Quando chegava a um exterior, Rossellini colocava a máquina de filmar na rua e deixava que a população se aproximasse para ver o aparato do cinema. Depois convencia as pessoas a contarem-lhe o que faziam e a assumirem o papel de si próprios na cena que ia filmar e que era, em larga medida, improvisada com a intromissão imprevisível dos curiosos no jogo dos actores profissionais. O problema de direcção não era pôr os amadores a representar, mas, pelo contrário, evitar que representassem, de modo a revelarem a sua verdadeira natureza. Ao organizar o filme em pequenas histórias separadas, sem vedeta e sem um herói central que conduza a acção e com quem o espectador se possa identificar, Rossellini põe em causa o esteio primordial do cinema clássico. Em simultâneo, Paisà não privilegia uns personagens em detrimento de outros, não destaca momentos de maior emoção através de grandes planos nem recorre à planificação analítica para conduzir a atenção e o raciocínio do espectador. A câmara segue os personagens sem os desenraizar dos décors, utilizando planos longos em continuidade, ou planos-sequência, que restituem a integridade 334
do tempo e do espaço narrativos, evitam o sentimentalismo da representação e impedem as composições visuais de índole psicológica. Os acontecimentos não são explicados nem há referência a motivações que visem criar a antecipação ou o suspense: as pessoas e os eventos são observados de fora, aparecem e acabam sem clímax nem conclusão, anulando a veleidade de qualquer mensagem ideológica, como se o mundo nascesse e se esgotasse na liberdade do olhar do espectador. Como notou André Bazin, a técnica de Rossellini conserva uma certa relação de inteligibilidade na sucessão dos factos, mas estes não engrenam uns nos outros como peças de urna roda dentada. Na dramaturgia clássica e na planificação analítica tudo está construído à medida da engrenagem, cuja fonte de alimentação, geradora de sentido, é o argumento. Nos filmes de Rossellini os factos acabam por adquirir um sentido, mas não por força de um instrumento extrínseco cuja matriz determina antecipadamente a forma. Por outras palavras, enquanto no cinema clássico o sentido é formado a priori, na escrita do argumento e na minuciosa previsão técnica do resultado das filmagens, no neo-realismo de Rossellini o sentido é dado a posteriori, uma vez que é produzido pelo acto da filmagem. Em textos magistrais (incluídos em Qu'est-ce-que le cinema?, vol. IV, 1962), André Bazin defendeu os filmes de Rossellini perante a perplexidade ou a animosidade de grande parte da crítica italiana da época. O neo-realismo de inspiração cristã, em particular a obra de Rossellini e algumas intervenções de Zavattini, vieram caucionar o axioma da objectividade em que se fundamenta a teoria de Bazin, dedicada à demonstração paciente da vocação realista do cinema. Influenciado pela fenomenologia existencial, Bazin considera que a ambiguidade da representação artística não é o resultado dos limites humanos do conhecimento mas sim um dado essencial da realidade. Partindo desta premissa, Bazin separa nitidamente o cinema em duas tipologias antagónicas. Uma que encara o cinema como instrumento expressivo da visão do mundo do cineasta: o filme não descobre o real porque é, desde a sua génese, um juízo de valor sobre a realidade representada. Nesta categoria incluem-se os grandes cineastas da manipulação, como Eisenstein ou Hitchcock, para quem o cinema incorpora a construção de um mundo próprio. Na outra concepção, que a poética de Bazin perfilha e que encontra em Rossellini o modelo sublime, 335
o cinema é um simples auxiliar da nossa experiência do mundo real. O bom filme faria emergir da realidade uma significação oculta que a nossa relação vivida com o mundo ainda não descobrira. A valorização do neo-realismo decorre assim do pressuposto idealista de que existiriam filmes não manipulados e de que a experiência do cinema seria um equivalente hipotético da experiência da vida. Nos debates dos anos quarenta e cinquenta sobre o neo-realismo, a estratégia de deslocamento da instância criadora do filme dos produtores, dos argumentistas, dos actores e dos montadores para o realizador, responsável pela coordenação da rodagem onde se decide a natureza da obra, permitiu lançar as bases teóricas do que viria a chamar-se a política dos autores, centrada na ideia de que a mise-en-scène com a câmara de filmar é semelhante ao gesto individual do escritor ou do pintor e que, portanto, o realizador é o único autor do filme. A rejeição do argumento escrito, do actor profissional e das luzes de estúdio descartava as películas da tentação do drama intimista e do retrato psicológico, obrigando os cineastas a convergir para os assuntos de índole social e económica. Rossellini manter-se-ia fiel à improvisação em exteriores naturais, mas a possibilidade de ter uma das maiores estrelas internacionais nos seus filmes abria horizontes profundos. Em Janeiro de 1949 partiu para Hollywood a fim de acertar um acordo de produção com Ingrid Bergman. Primeiro foi Samuel Goldwyn. Interessado em fazer um filme com Bergman, o produtor recebeu Rossellini e prontificou-se a estudar com o cineasta o argumento, o elenco, o orçamento e o mapa de trabalho. Num inglês desafinado, Rossellini explicou que dirigia sem argumento e que, à excepção de Ingrid Bergman, não precisava de actores profissionais. Também lhe era impossível apresentar um orçamento e um mapa de trabalho porque tudo iria depender das circunstâncias da rodagem numa pequena ilha siciliana chamada Stromboli, onde tencionava improvisar o filme ao sabor do momento. Goldwyn sorriu e chegou a tirar umas fotografias a apertar a mão a Rossellini, anunciando à imprensa a sua incursão no cinema de arte europeu, mas depressa confessou à actriz que lhe era impossível enterrar dinheiro naquela loucura. Depois foi Howard Hughes. Interessado em anexar Bergman à sua colecção de paixões-relâmpago, o multimilionário comprou os estúdios da RKO e ofereceu-os à actriz, que se limitou a aceitar o financiamento do filme de Rossellini. Como o dinheiro não era problema e Hughes não tinha 336
o mínimo interesse no projecto do italiano, a RKO encarregou-se da produção sem saber do que se tratava. Dois meses depois, com os contratos assinados, a actriz apanha o avião para Roma. No dia 4 de Abril, na companhia de Rossellini e de uma pequena equipa de técnicos de cinema e de pescadores, Ingrid Bergman desembarca em Stromboli. Stromboli, Terra di Dio (1949) é a história de Karin (Ingrid Bergman), uma prisioneira de guerra do norte da Europa que aceita casar com um pescador siciliano para escapar ao campo de refugiados. Em Stromboli, ilha vulcânica onde a existência é dura e os homens vivem da pesca, Karin sente-se isolada e deslocada, incapaz de aceitar os usos daquela gente rude a quem tenta escapar atravessando os montes que ladeiam as crateras em fogo. Quando se apercebeu das dificuldades da filmagem no local, sem o apoio de outros actores que não fossem os pescadores e as mulheres da ilha, sem guião escrito e sem o conforto logístico das grandes produções, Ingrid Bergman viu-se como a personagem, irmã de desventura, prisioneira de um mundo primitivo onde a única saída é a resignação. Numa das mais belas e comoventes interpretações da sua carreira, Bergman dá corpo e alma a uma nova fase da obra de Rossellini que abre caminho ao cinema moderno. Em vez da homogeneidade ficcional, temos a heterogeneidade radical, tanto ao nível dos actores — a maior vedeta de Hollywood perdida no meio dos habitantes de uma ilha antiga — como ao nível dos referentes — o documentário e a ficção entrelaçam-se e gerem sentidos imprevisíveis —; em vez dos tempos fortes da progressão narrativa da dramaturgia clássica, temos a deriva da personagem num conjunto de aparentes tempos mortos sem indícios de resolução; em vez da intriga edificada em torno de um mistério central, temos a proliferação de incidentes desconexos e a lenta desagregação da narrativa; em vez do universo coerente e fechado na esperança do final feliz, temos a perplexidade do futuro incerto e o caos do cosmos onde tudo fica em aberto como na aurora da criação do mundo. Em Stromboli, Terra di Dio os planos de Rossellini tomam-se mais longos, acompanham a desolação de Bergman pelos cantos da casa arruinada e pelos espaços desertificados, como se a objectividade das imagens resultasse da sua capacidade em filtrar a vibração do que são as qualidades existenciais de cada instante, estabelecendo uma tensão indelével entre a personagem e a paisagem, entre o seu estado de espírito e a natureza. O ponto de vista da câmara mantém-se exterior 337
à personagem mas a insistência desse olhar distanciado e desdramatizado acaba por revelar a perturbação dos seus sentimentos mais íntimos. Os primórdios do neo-realismo incidiram na descrição urgente da miséria social legada pela guerra e pelo fascismo, agora Rossellini inaugura um neo-realismo contemporâneo da miséria espiritual. O método do cineasta atinge neste filme o apogeu. Depois de várias tentativas para se adaptar à dureza da ilha e à mentalidade dos seus habitantes, Bergman vai assistir à pesca do atum, onde se encontra o marido, a fim de manifestar em público a sua vontade de inclusão naquele mundo. A faina autêntica, levada a cabo pelos pescadores, é filmada com o rigor e o pormenor do documentário, perante o olhar atónito de Bergman à distância, incapaz de aceitar o massacre dos peixes como parte integrante do ritual da vida na ilha. Pouco depois, em casa, num gesto banal, Bergman acende o fogão e apercebe-se de que o vulcão entrou em actividade, cuspindo pedras de fogo sobre a terra. E no mar que a população se refugia, o mesmo mar materno que lhe dá alimento e a cerca no isolamento. Os actos mais insignificantes da personagem parecem desencadear a cólera dos elementos, como se o universo adivinhasse a ingratidão e a incredulidade daquela estrangeira. Na sequência final, Bergman, grávida, tenta fugir da ilha. Exausta no cume do monte, perdida entre as correntes de lava, a imensidão do oceano e as estrelas remotas, deita-se na terra cálida e grita por Deus. Jamais saberemos se é um simples desabafo de sofrimento ou o sinal da graça divina. Talvez Bergman tenha encontrado a paz dentro de si e no espectáculo majestoso da cólera do mundo. Era de facto difícil, mesmo para Rossellini, explicar a um produtor americano, ou escrever nas palavras secas de um guião técnico, a ambição e a grandeza de um projecto que se cumpre na fidelidade a um método artesanal de filmar e no risco de enfrentar a realidade com a fé no cinema. E de fazer cinema com a fé na realidade. Como se as adversidades da rodagem em condições precárias não bastassem, alguns jornais italianos e americanos propagaram um escândalo inaudito, acusando Ingrid Bergman de ter abandonado o marido sueco e a comunidade de Hollywood por Rossellini. A pressão da imprensa foi de tal ordem que o assunto chegou a ser discutido no Senado americano, forçando Howard Hughes e Joseph Breen, responsável pela Administração do Código de Produção, a advertirem a 338
actriz sobre as consequências das notícias da sua relação com o cineasta: a liquidação da sua carreira como estrela. Ingrid permaneceu em Itália, casou com Rossellini em Maio de 1950 e fizeram juntos, além de três filhos, mais cinco filmes: Europa 51 (1952), Viaggio in Italia (1953), Ingrid Bergman (1953, episódio do filme colectivo Siamo Donne), Giovanna d' Arco al Rogo (1954) e La Paura (1954). De entre estes filmes, o mais odiado e o mais amado é sem dúvida Viaggio in Italia, a obra-prima de ambos. A viagem é a de um casal inglês — Katherine (Ingrid Bergman) e Alexander Joyce (George Sanders) — a Nápoles com o fito de venderem a casa que herdaram de um tio. A estadia em Itália aborrece-os e põe a claro a crise do casamento, até que a implausível reconciliação, no decorrer de uma procissão onde alguns fiéis julgam ver um milagre, provoca um novo estado de indeterminação. Nem intriga nem resolução: Viaggio in Italia é a digressão pura, sem uma linha nítida de progressão, onde os atalhos da reflexão são mais importantes do que as vias centrais do conflito, embora correndo o risco de não conduzirem ao destino. Durante os sete dias da viagem, além do contacto com outros personagens, que vincam o contraste entre o formalismo do casal inglês e o carácter passional dos latinos, a personagem de Bergman, sozinha ou acompanhada pelo marido, visita diversos locais turísticos nos quais o fascínio e o enigma da antiguidade se impõem aos estrangeiros como um fosso civilizacional. Viaggio in Italia é um filme estruturado como um ensaio em forma de narrativa. Os métodos e os objectivos de Rossellini desconcertaram George Sanders, vindo de Hollywood, vaidoso de colaborar com um dos mais prestigiados e discutidos cineastas europeus. Sanders depressa ficou desiludido. A ausência de guião, a impossibilidade de decorar os diálogos, que só lhe eram entregues pouco antes da rodagem, e o constante caos da produção, sujeita aos improvisos do realizador, levaram o actor ao desespero. O choque de culturas era uma referência essencial da ficção, como era uma realidade quotidiana nos locais de filmagens. Ingrid Bergman sintetiza assim a situação: «Roberto escrevia o guião dia após dia e George teve uma série de esgotamentos nervosos. Telefonava todas as noites para o seu psiquiatra em Hollywood. Roberto não podia acreditar. "Cinquenta dólares por hora só para falar com um psiquiatra! Em Itália confessamo-nos e o padre diz: reza vinte e cinco avemarias e vai em paz meu filho"». 339
As duas primeiras semanas de filmagens foram ocupadas com a sequência em que Bergman visita o Museu Arqueológico de Nápoles, que ocorre no terceiro dia, assim que o casal chega à cidade. Acompanhada do guia, Bergman contempla as esculturas greco-romanas enquanto a máquina de filmar, em posições e movimentos envolventes, descreve a forma e a textura da pedra talhada há séculos. Cada descrição termina no olhar insistente da actriz, sem explicações psicológicas que nos permitam avaliar a pertinência dramática da cena. Sanders assistiu às filmagens e ficou estupefacto: a cena não tirava partido do valor turístico das obras de arte, não aproveitava o talento de representação da actriz, não tinha qualquer relação com a história do casal, que o filme era suposto contar. Em cada uma das visitas turísticas — as ruínas da Sibila de Cuma, o Templo de Apolo, os pequenos Vesúvios de Pozzuoli, as catacumbas de Fontanelle — sentimos a distância entre a futilidade dos problemas do casal e a magnificência daquela terra fertilizada pelo tempo e por valores perpétuos, prenhe de rumores de eternidade de que o presente é apenas uma passagem insignificante. Na última visita, às escavações de Pompeia, Bergman e Sanders assistem à feitura do molde dos corpos de habitantes mortos aquando da erupção do Vesúvio, séculos antes. De repente, descobrem os corpos petrificados de dois amantes que morreram abraçados e abraçados ficaram para sempre. A junção nas mesmas imagens dos corpos do casal de Pompeia, num gesto de amor perfeito, e dos olhares de Bergman e Sanders, desprovidos de riqueza interior, estabelece a ponte que religa o passado e o presente, o passado e o futuro. É pela ligação à natureza e à História que o homem se revela imortal, é pela encarnação de sentimentos imemoriais que adquire a dimensão do sagrado. George Sanders não se enganou: o filme foi um fracasso comercial, como foram os restantes filmes que Rossellini fez com Ingrid Bergman. Convencida de que estavam a arruinar a carreira um do outro, a actriz decide retomar a actividade profissional fora de Itália. Bergman e Rossellini separam-se em 1955. Ela regressa à glória mundana das grandes produções, num gesto de transfiguração reservado aos filhos pródigos de que Hollywood tanto gosta. Ele parte para a Índia para fazer um modesto documentário que reinventa os postulados morais do neo-realismo. O mundo, afinal, era o mesmo, mas o cinema não voltaria a ser o que era. 340
Brando em Há Lodo no
Cais (1954), Kazan.
35 OS ESPELHOS DA ALMA Ao contrário da maior parte dos jovens actores, cujo sonho era ir para Hollywood em condições que lhes facultassem a continuidade da carreira no cinema, Marlon Brando recusou os famosos contratos de sete anos. Não queria sentir-se preso por tanto tempo, preferia estar disponível para as propostas pontuais mais interessantes. A atitude prudente de Brando estava em sintonia com o declínio do sistema dos estúdios, cada vez mais apoiados nos agentes artísticos e nos produtores independentes. Foi um destes produtores, Stanley Kramer, que convidou Brando para o seu primeiro filme. The Men ( 1950), escrito por Carl Foreman e realizado por Fred Zinnemann, era a história de um grupo de soldados que tinham ficado paraplégicos devido a ferimentos de combate e agora se encontravam num hospital da Califórnia. Brando gostou do argumento e em vez de se limitar a repetir no estúdio com os outros actores arranjou maneira de ser internado num hospital para deficientes militares durante as semanas que precederam as filmagens. Brando desconhecia a sensação de viver numa cadeira de rodas, nunca tinha falado com um paraplégico, não estava familiarizado com o ambiente de um hospital. 341
Durante o tempo em que conviveu com os paraplégicos, vivendo como eles, Brando aprendeu o que nenhum actor aprende a ler o guião ou a ensaiar num palco. No seu segundo filme, A Streetcar Named Desire (1951), escrito por Tennessee Williams e realizado por Elia Kazan, Marlon Brando interpreta o papel de Stanley Kowalski, um homem agressivo e pouco inteligente cujos instintos se sobrepõem à razão e à sensibilidade. Antes de entrar em cena, Brando praticava musculação e boxe, de modo a ficar com os músculos inchados, a pele a transpirar, a respiração alterada, o corpo relaxado. Quando falava mal se percebia o que dizia, era como se tivesse dificuldade em articular os pensamentos ou em controlar a dicção. Ao invés dos actores que definem a personagem exclusivamente pela caracterização exterior — roupa, maquilhagem, postiços, mímica — sem nunca perderem a clareza da fala, a amplitude dos gestos e a compostura da indumentária, Brando criava estímulos físicos que o aproximavam das circunstâncias existenciais da personagem e o impeliam a representar a partir do interior. A novidade do estilo de Marlon Brando no cinema é, em parte, fruto de um método de preparação do actor — precisamente chamado o Método — aplicado por Lee Strasberg e Stella Adler no Group Theatre a partir dos anos trinta, segundo os ensinamentos de Stanislavski. Em 1947, Elia Kazan, Robert Lewis e Cheryl Crawford fundam o Actors' Studio, onde as aulas de Strasberg, de Adler e do próprio Kazan atraem uma nova geração de actores, de que Brando se tornou o paradigma mítico. Basicamente, o método de Stanislavski tem por objectivo desenvolver no actor qualidades de percepção, de reflexão e de autoconhecimento que o previnem contra as convenções estereotipadas da representação mecânica. Porém, ao aconselhar o actor a comportar-se em cena como se estivesse na vida real o Método não pretende que o actor se identifique com a personagem por um passe de mágica, antes propõe a construção da personagem a partir de um trabalho aturado sobre o corpo e o aparelho psíquico. Não se trata, portanto, do actor recalcar a sua identidade a favor da identidade imaginária da personagem mas, pelo contrário, de explorar o seu próprio eu, de neutralizar os mecanismos usuais de defesa psicológica, de modo a favorecer o comportamento e as reacções espontâneas que teria se vivesse nas circunstâncias que definem a existência virtual da personagem. 342
Stroheim captava a verdade do lugar obrigando os actores a descer às galerias de uma mina ou a viver sob o sol do deserto, De Mille alugava jóias verdadeiras para convencer Gloria Swanson da riqueza da personagem. Ao tentarem transferir a autenticidade dos décors e dos adereços para o comportamento dos actores ambos os cineastas procuravam atingir a persuasão do realismo, por conhecerem a ligação íntima que existe entre as condições materiais da representação e a resposta orgânica dos intervenientes. Nas suas lições sobre a preparação do actor Stanislavski não recomenda outra coisa: «O ambiente exterior tem uma grande influência sobre a vida afectiva. E isto é verdadeiro tanto no teatro como na vida real. Nas mãos de um encenador hábil todos estes efeitos podem tornar-se um meio de criação artística. Quando o cenário está de acordo com as necessidades da peça, e cria o ambiente desejado, ele age sobre a vida psíquica e a sensibilidade do actor e ajuda-o a melhor penetrar o aspecto interior do seu papel». Quando Clara Bow pedia à orquestra de estúdio para tocar a música da sua infância miserável, que a entristecia e ajudava a chorar, conforme exigia a rubrica da cena, não estava só a exteriorizar o estado de espírito da personagem mas a reviver no íntimo a experiência do passado e a expor perante as câmaras de filmar os seus próprios sentimentos. Bow possuía pouca técnica e desconhecia por certo os meandros da teoria, mas tinha o instinto dos bons actores e isso chegou para fazer dela uma estrela. Esclarece Stanislavski: «Pode-se pedir emprestado um casaco, jóias, qualquer objecto, mas não nos podemos apoderar dos sentimentos dos outros. Podemos compreender um papel, simpatizarmos com a personagem e colocarmo-nos nas mesmas condições para agirmos como ela faria. Assim nascem no actor sentimentos análogos aos da personagem». No Método, a descoberta da personagem funda-se num trabalho subconsciente de descoberta do eu. O actor só pode viver de acordo com as vibrações do seu temperamento e da sua sensibilidade, já que a personagem não existe a não ser como projecção imaginária. Ao revelar a capacidade de agir e de sentir de acordo com as circunstâncias sugeridas num guião, como se o mundo da ficção fosse a realidade do mundo, o actor descobre novos horizontes de si próprio: é a exploração do eu enquanto exploração de ser outro. A esta capacidade de transfiguração, no limite dos vários constituintes da representação, chama Stanislavski a fé cénica, já que o actor tem de ser o primeiro a acreditar na verdade das emoções postas em jogo, quer ao nível das 343
situações dramáticas delineadas pela narrativa quer ao nível do dispositivo de encenação que justifica o papel e cria o sentido da realidade. A recusa da cenografia de estúdio e da fotografia concebida em função do glamour, bem como a insistência na rodagem em décors naturais, com os actores praticamente sem maquilhagem, misturados com figurantes não profissionais, constituem para Elia Kazan um dos elementos fundamentais da transposição da fé cénica para a natureza específica do cinema. Influenciado pela fotografia documental da Frontier Films, pelos cineastas soviéticos e pelo neo-realismo italiano, Kazan procura trazer de novo um prisma de realidade à fábrica de sonhos de Hollywood, aproveitando os filmes de problemática social que lhe são propostos por Zanuck. Boomerang (1947) e Panic in the Streets (1950) são filmados em exteriores naturais, numa encenação de estilo documental que inclui partes improvisadas nos locais, longe da vigilância dos assistentes de estúdio. Em Panic in the Streets, Kazan leva o esquema mais longe ao incluir na equipa de rodagem o dialoguista e o montador, que trabalham diariamente com o realizador nas alterações feitas em cima da hora. Sem a experiência destas películas e a minuciosa pesquisa documental de Budd Schulberg entre os trabalhadores das docas talvez Kazan não tivesse chegado ao apuro de On the Waterfront (1954), um dos primeiros filmes de Hollywood a consolidar o eixo de produção de Nova Iorque. Fora da comodidade do estúdio, Kazan teve de contrariar os protestos dos técnicos e do elenco para rodar em condições que não facilitavam a vida da equipa, às vezes convocada para filmar os exteriores de madrugada, a horas de luz crua e de frio intenso, para se sentir nas imagens o hálito da respiração dos actores. O processo mais utilizado por Kazan e Strasberg no Actors' Studio para desbloquear as resistências e treinar o aparelho psíquico dos comediantes, num processo por vezes semelhante ao da terapia comportamental, baseia-se num estímulo mental que Stanislavski designa por memória afectiva: «Assim como a memória visual pode reconstruir imagens mentais a partir de coisas visíveis, a memória afectiva pode ressuscitar sentimentos que se julgavam esquecidos até ao dia em que por acaso um pensamento ou um objecto os faz subitamente surgir de novo com mais ou menos intensidade». Nas primeiras páginas da autobiografia de Marlon Brando (Songs My Mother Taught Me, 1994) encontramos um excelente exemplo de 344
memória afectiva. O actor evoca imagens, sensações, aromas, sons da sua infância. Recorda a alegria das manhãs de domingo com o cheiro das torradas e do presunto com ovos a estalar na chama do fogão. «Tínhamos um velho fogão a lenha, feito em ferro fundido, que era a causa dos meus embaraços. Era um belo fogão, mas nesse tempo eu tinha vergonha dele porque fazia-me sentir que éramos pobres. Sempre que convidava amigos lá para casa e passávamos pela cozinha, tentava distraí-los e fixar o seu olhar em mim para não repararem no fogão». O que há de interessante nesta descrição do passado, do ponto de vista cénico, é ela cristalizar uma sensação forte (a vergonha da pobreza) num objecto (o fogão) que é simultaneamente o foco de sentimentos contraditórios associados ao prazer do pequeno almoço e às visitas dos amigos. Brando estabelece de imediato uma relação emocional entre o fogão e os seus movimentos, que consistem em desviar a atenção dos amigos sem dar a perceber o seu embaraço. Em termos dramáticos, o objecto torna-se assim um factor essencial de tensão visual, indutor da memória afectiva e da motivação concreta que define o propósito da cena e o comportamento do actor. Na cena recordada por Brando há alusões a locais, objectos, ambientes, atitudes, sentimentos, sensações, valores, imagens interiores e exteriores, mas não existe a lembrança de um único diálogo. A descrição das emoções sentidas concentra-se em dimensões do afecto e do pensamento irredutíveis à fala, embora alimentem a energia e o sentido subjacente das palavras. O que Brando faz nesta breve descrição da sua infância, e que fez como ninguém nos melhores filmes em que participou, é sugerir o carácter instável e volátil, mas determinante, do subtexto. Segundo Stanislavski, o subtexto é uma teia complexa e ininterrupta de sentimentos, crenças e valores na qual se entrelaça o tema e a linha de acção da trama. O subtexto é o que faz o actor dizer aquilo que diz, embora não corresponda exactamente ao que diz. O texto, aqui entendido como tudo o que se encontra escrito no guião, em particular os diálogos, só adquire dimensão estética quando animado pelo subtexto. O texto do guião não é a obra acabada, já que o subtexto só ganha vida no momento da representação, no corpo e na voz do actor, como se, uma vez pronunciadas no campo visual do espectáculo, as palavras já não pertencessem ao escritor, mas ao actor. Numa cena célebre de On the Waterfront Terry Malloy (Marlon Brando) passeia com Edie Doyle (Eve Marie Saint) pelas ruas da 345
cidade. Eve é irmã do trabalhador que foi assassinado pelos gangsters do sindicato com a cumplicidade involuntária de Brando. O crescente fascínio de Brando por Eve fá-lo sentir-se ainda mais culpado do crime. Num parque, Eve deixa cair inadvertidamente uma luva branca que tirara da algibeira do casaco. Brando apanha-a e, em vez de a devolver, continua a conversar, esticando os dedos da luva um por um. Embaraçado e cativante, Brando senta-se num baloiço do parque, enfia a luva na sua mão esquerda e continua a falar, como se os gestos fossem alheios ao teor da conversa, dispersa pelo passado de ambos, quando eram miúdos e ela estudava num colégio de freiras que proibia encontros com rapazes. Eve acaba por lhe tirar a luva da mão puxando-a pelos dedos. Kazan filma o episódio em plano-sequência, com a câmara a acompanhar os actores em escala média, sem aproximações de pormenor à luva que possam favorecer qualquer leitura simbólica. A acreditar em Kazan e em Brando, a queda da luva e o modo como o actor a reteve durante a cena, foram improvisados na filmagem. Seja como for, trata-se da utilização magistral de um objecto expressivo a vários níveis: como elemento de ocupação naturalista dos actores, como objecto imediato da sua concentração, como auxiliar da memória afectiva, enfim, como materialização do subtexto. A realização e o trabalho dos actores projectam os diálogos numa dimensão complexa de grande riqueza interior. O que Brando diz e faz é banal e verosímil, mostra a descontracção do marginal de bairro perante uma mulher tímida e delicada. Porém, ao reter a luva, Brando impede Eve de se ir embora, sugerindo um interesse erótico que as suas palavras não deixam adivinhar. Brando senta-se no baloiço, acentuando o lado infantil e imaturo da sua personalidade, enquanto enfia a luva de mulher na sua mão viril, revelando um desejo e uma determinação de que ela mal se apercebe. Entre a dicção e os gestos, Brando constrói uma ponte existencial irredutível ao texto do guião. A aplicação semântica dos objectos expressivos no cinema clássico é frequente, mas são raros os cineastas que souberam transformála em signos de uma poética singular. Se aceitarmos que é expressivo o objecto que é utilizado na narrativa com uma finalidade diferente daquela para que foi concebido no seu uso quotidiano, verificamos que desde o objecto-metáfora de Eisenstein até ao objecto-angústia de Hitchcock, passando pelo objecto-desejo de Sternberg ou pelo objectoemoção de Kazan, o mundo da ficção é impulsionado por uma 346
linguagem retórica dos objectos do mundo real através da qual se inscreve a representação daquilo que é literalmente invisível e que só o cinema pode mostrar. A luva feminina na mão de Brando anuncia ainda uma sensualidade ambígua até então ausente das estrelas masculinas da geração anterior. É difícil imaginar actores como Cooper ou Bogart a vestirem uma luva de mulher, mesmo por ironia ou acto de sedução, mas o toque parece perfeitamente natural em Brando, cujo poder de atracção bissexual foi na época uma componente essencial da sua postura subversiva. Assim como Marlene Dietrich aperfeiçoou o protótipo da androginia feminina dos anos trinta, Marlon Brando lança a imagem da androginia masculina dos anos cinquenta. Os silêncios eloquentes, nos momentos de pura alquimia em que as palavras se encontram substituídas pelo olhar e pela escuta, ou pelo magnetismo de um corpo em suspensão no plano, são das formas mais sensíveis de comunhão do subtexto fílmico. Por vezes, Elia Kazan prefere mostrar o rosto daquele que escuta em vez de mostrar o rosto daquele que fala, invertendo a ordem de prioridades do campo contracampo. Ao filmar um olhar em expectativa, hesitante, desolado ou desejoso, no contexto de um confronto verbalizado, Kazan fotografa literalmente a actividade psicológica dos personagens na relação física entre os actores, criando uma distensão emocional cujo equivalente dificilmente encontramos noutra forma narrativa fora do cinema. Às pausas lógicas, que marcam a determinação das intenções e a clareza do raciocínio, vêm juntar-se as pausas psicológicas, nas quais sentimos vibrar os ecos do indizível. A reacção de uma personagem pode ser mais pertinente do que o voluntarismo de outra. Trata-se, na formulação de Elia Kazan, de conjugar o dispositivo de mise-en-scène de maneira a transpor as fronteiras da intimidade: «A chave para dirigir as cenas psicológicas e dialogadas consiste em descobrir, em cada papel, os acontecimentos interiores, fazer com que os actores os experimentem e, em seguida, filmá-los em grande plano. A câmara revela o acontecimento interior que o olhar humano não teria notado, tornando o cineasta cúmplice dessa revelação». Os processos utilizados por Elia Kazan para induzir nos actores um estado de activação orgânica análogo ao das personagens vão desde a execução em cena das tarefas mais simples, aprendidas na tarimba do palco sob influência dos escritos de Stanislavski e de Vakhtangov, até à completa manipulação emocional das pessoas. O princípio da 347
sugestão realista implica que o actor esteja sempre a fazer qualquer coisa em cena, de preferência a falar de uma coisa e a fazer outra, como acontece em On the Waterfront com o momento da luva. Nada mais fatal para a ilusão de naturalidade no cinema do que a pose convencional do actor, imobilizado na luz, a debitar diálogos. As encenações de Kazan, neste domínio, são de uma justeza admirável. Os actores habitam os planos sempre atentos à acção dos outros e, sobretudo, ocupados consigo próprios, obcecados pelos seus problemas. Pequenos gestos banais ou marcações complicadas, o pegar e o largar de objectos, olhares furtivos ou ligeiros movimentos do corpo, são subtilmente postos ao serviço da libertação das tensões interiores que o contexto narrativo explicita. A acção física, decomposta em inúmeras tarefas parcelares, obriga o actor a encontrar uma resposta comportamental para a razão da cena e para a intranquilidade da personagem. Durante os ensaios que precediam as filmagens Kazan explicava aos actores o contexto dramático, os antecedentes e a justificação de cada sequência, depois deixava-os encontrar o seu próprio rumo. Entre cada repetição de um plano, incentivava o elenco na direcção pretendida, experimentava várias hipóteses antes de bloquear as marcações e o campo da câmara de filmar. Por vezes, quando se apercebia do desgaste das posições, dos movimentos e dos gestos, sugeria aos actores novas tentativas de improvisação, ou alterava deliberadamente alguns pormenores à última hora, para quebrar a rotina entretanto instalada. Em caso de dúvida, ou de divergência com os protagonistas, rodava versões diferentes, que depois escolhia na mesa de montagem. Noutras alturas filmava os ensaios sem prevenir os actores, na tentativa de encontrar um grau satisfatório de espontaneidade. Leitor atento de Stanislavski, Kazan sabia que o cansaço e um texto demasiado familiar, dito sempre no mesmo sítio e da mesma maneira, podem ser prejudiciais ao trabalho do actor. No decurso da carreira, Marlon Brando levou a prática do improviso ao extremo de se recusar a decorar os diálogos. Fixava cartões escritos fora de campo, nas roupas dos colegas com quem contracenava, ou ao lado da máquina de filmar, lia as deixas e apreendia o sentido geral da cena, que improvisava no próprio momento da filmagem no limite das marcações. O processo menos ortodoxo, mas particularmente eficaz, utilizado por Elia Kazan na direcção de actores consistia em provocar nos intervenientes choques emocionais antes da filmagem, recorrendo ao conhe348
cimento pessoal que tinha da vida dos seus colaboradores. Kazan inventava histórias, insinuava intrigas, orquestrava autênticos psicodramas que preparavam os actores para o estado emocional adequado à situação das personagens. Nas suas memórias, Brando dá um exemplo típico do processo que, tendo embora custado algumas inimizades ao realizador, produziu sempre excelentes resultados. Numa cena do filme Viva Zapata! (1952), Anthony Quinn tinha de se zangar com o seu irmão, interpretado por Marlon Brando. Antes de rodar o plano, Kazan atiçou Quinn contra Brando sugerindo que este não tinha qualquer consideração pelo seu trabalho. Quinn ficou furioso e Kazan deu voz de acção: a animosidade entre os irmãos foi perfeita. Tão perfeita que, durante anos, na vida real, Quinn deixou de falar a Brando. O método de transferir para as personagens as emoções verdadeiras experimentadas pelos actores, seja por indução psicodramática seja pela improvisação ou através da memória afectiva, tem por corolário um dos mais tenazes mitos que o Actors's Studio herdou de Stanislavski: quanto maior for a memória afectiva mais rico será o material da criação interior. Ou seja, quanto maior for o número de experiências vividas pelo actor maior será a sua capacidade intrínseca para recriar a paleta das emoções humanas. Elia Kazan é peremptório neste ponto. A matéria-prima da profissão é a experiência da vida. Os escritores, cineastas e actores que não têm experiência da vida e vivem fechados no mundo artificial de Hollywood arriscam-se a fazer filmes que se baseiam noutros filmes, encharcam-se de estereótipos e perdem o contacto com a realidade, reserva primordial da energia inventiva. Quando tinha de escolher novos actores para os seus filmes Kazan ligava pouco aos testes de estúdio exigidos pelos produtores, tentava antes conhecer os candidatos fora do palco, observava a sua personalidade no contexto do quotidiano em vez de analisar apenas os seus recursos técnicos em abstracto. À luz do Método, a argumentação de Kazan faz todo o sentido: «Em geral, os actores ou actrizes têm a sua quota-parte na acumulação de vivências do passado. A sua experiência de vida constitui o material do realizador. Podem ter todo o treino, todas as técnicas aprendidas com os professores — momentos privados, improvisações, substituições, memórias associativas, e assim por diante — mas se não têm dentro de si o precioso material, o realizador não pode pô-lo cá fora. Eis porque é tão importante o director ter um conhecimento íntimo das pessoas que escolhe para as suas peças. Se o material está lá, tem a 349
possibilidade de o pôr no ecrã ou no palco, se não, não. Os testes de leitura dizem muito pouco. Pelo contrário, podem ser enganadores» (Kazan, A Life, 1988). A estratégia de Kazan na escolha e na direcção dos actores levanta uma questão mais ampla particularmente pertinente nas disciplinas artísticas: a aptidão e o talento podem exercitar-se mas não dependem só do domínio da técnica. Resta saber se dependem da experiência do passado. O mestre consagrado, mas não incontestado, do Actors's Studio, Lee Strasberg, tinha poucas dúvidas a este respeito. Deixava os outros professores insistirem nas práticas corporais e vocais para dedicar as suas aulas a tentar resolver os problemas emocionais dos alunos, em autênticas sessões de análise que mais pareciam terapia de grupo. Strasberg entendia que nenhum actor é capaz de expressar convenientemente a complexidade emocional das personagens se estiver bloqueado por distúrbios funcionais. A desinibição criativa do actor passa pelo conhecimento de si próprio e pela aceitação da sua individualidade. Não admira que os grandes actores saídos do Studio se tenham notabilizado em papéis de inadaptados ou de marginais, como se a inscrição dos dramas humanos no grande painel dos conflitos sociais trouxesse consigo os sintomas da neurose. Os jovens inconformistas dos anos cinquenta batem-se prioritariamente contra o complexo de Édipo. Marlon Brando e James Dean são o modelo desses personagens revoltados, insatisfeitos, despolitizados, para quem todos os males vão esbarrar na autoridade das figuras parentais. Nos filmes de Kazan, alimentados pelas roturas familiares e pelos sentimentos ambivalentes, Brando encarna a vertente popular, ligada aos meios do proletariado, enquanto James Dean, em East of Eden (1954), representa o dilema burguês do filho mal amado. Em ambos os casos é a dificuldade em comunicar e a intensidade de exteriorização da ansiedade sentida que os torna eloquentes, de tal maneira que perduram no fio do tempo como paradigmas da crise juvenil e existencial da época. Se a insolência de Brando permanece mais radical do que a de Dean é sem dúvida porque as personagens dos seus primeiros filmes parecem incompatíveis com os valores das classes médias. Nos anos trinta, os gangsters interpretados por James Cagney ou Paul Muni violavam a lei porque queriam triunfar e pertencer à ordem social que os excluía. Nos anos cinquenta, os marginais e os inadaptados com a silhueta de Brando — na esteira de um filme menor 350
mas carismático, The Wild One (1953), com argumento de John Paxton segundo uma história de Frank Rooney, realizado por Laslo Benedek — violam a lei sem razão aparente e recusam qualquer partilha dos ideais estabelecidos. Marlon Brando, que não apreciava o autoritarismo paternalista de Strasberg, é, no entanto, um genuíno produto da ideologia do Actors's Studio e porventura o mais brilhante actor que o cinema conheceu. Como Kazan, como tantos outros encenadores e actores desta escola, Brando fez psicanálise durante a maior parte da vida de adulto. E, ao reflectir sobre a natureza do trabalho do actor, não pode deixar de reconhecer que o segredo das suas invulgares qualidades se encontra e se esconde no íntimo dos sofrimento de infância. «Sabendo o que sei hoje, creio que a minha insegurança emocional em criança — as frustrações de não me deixarem ser quem era, de querer ser amado e não o conseguir, de me considerar destituído de valor — pode ter-me ajudado como actor, pelo menos em parte. Provavelmente deu-me uma certa intensidade a que pude recorrer e que a maior parte das pessoas não tem. Deu-me também a capacidade da mímica, porque quando se é uma criança não desejada, e a essência daquilo que somos parece inaceitável, procuramos uma identidade que seja aceitável. Normalmente encontramos essa identidade nos rostos com quem falamos. Habituamo-nos a estudar as pessoas, a analisar a maneira como falam, as respostas que dão, os pontos de vista que têm. Depois, como forma de autodefesa, reflectimos sobre o que vemos nesses rostos e como agem, porque a maior parte da gente gosta de ver reflexos de si própria. Por isso, quando me tornei actor, tinha uma vasta gama de representações dentro de mim para provocar reacções nas outras pessoas. Penso que isto me serviu tanto quanto a minha intensidade». Ao escutar Brando, temos a sensação de que a simples actividade do actor é já um substituto da terapia. Por breves instantes, ele pode recriar sentimentos e valores que não se atreveria a experimentar na vida real. Em vez de recalcar as divisões da personalidade que o perturbam o actor liberta-se delas através da vivência dos personagens. A tónica sistemática do Método no fortalecimento do eu e no culto da personalidade dos actores revelou-se particularmente ajustada ao mundo do espectáculo, desde cedo organizado em torno do sistema das estrelas como factor decisivo da estabilização do mercado. As revistas de fans e o jornalismo amarelo, também camuflado nas rubricas frívolas dos jornais sérios, não se cansam de falar da perso351
nalidade dos actores e de confundir deliberadamente a sua vida privada com os papéis que desempenham na tela. O triunfo generalizado do Método no cinema americano do pós-guerra coincidiu com a individualização crescente dos conflitos dramáticos no filme moderno. As histórias que se afastavam das convenções do cinema de géneros passaram a ser cada vez mais centradas nas personagens e menos nas peripécias da intriga. O estudo de carácter, a apetência de introspecção, o itinerário à deriva e a lenta desagregação do império do enredo prestavam-se às mil maravilhas à intervenção sensível dos actores preparados pelo Método. A extrema disciplina e o carácter experimental do Actors' Studio favoreceu, paradoxalmente, a gestação e a reciclagem da geração de estrelas dos anos cinquenta e sessenta que veio dar novo alento à indústria. A expansão da televisão e o consequente aumento do número de grandes planos, a precaver as necessidades do pequeno ecrã, vieram reforçar ainda mais o patamar de interioridade psicológica em que as cenas de diálogos são desenvolvidas. Filmados à escala do rosto, a que Stanislavski gostava de chamar o espelho da alma, os actores despertam a memória afectiva do público, deslumbram-nos e deslumbram-se em vagas de mútuo narcisismo.
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Um mundo feito
de histórias.
3 6 CONCLUSÃO É graças à faculdade narrativa das imagens em movimento que o cinema se transforma em espectáculo popular e se organiza em indústria. No período primitivo do cinema mudo, sensivelmente até 1908, o argumentista inventariava mais do que inventava, os quadros, as cenas, as personagens e as histórias que o operador de câmara, o realizador e os actores desenvolviam no momento da filmagem. Na fase da montagem, o escritor resumia em breves legendas as falas, as localizações e as situações que as imagens não tinham conseguido tornar inteligíveis para um público considerado, por definição, pouco letrado. Com a organização industrial do cinema e o alongamento progressivo da duração dos filmes de ficção, em meados dos anos dez, aparece o escritor de continuidade (continuity writer) cuja função consistia não apenas em fornecer o assunto e a estrutura das histórias mas também em assegurar que tais histórias, quando adaptadas, fossem concebidas em termos de exposição clara, de unidade narrativa, de progressão dramática e de coerência visual, de modo a refrear a natureza fragmentária e planificada da ficção cinematográfica. 353
A divisão mercantil dos filmes em géneros, a especialização dos vários estúdios, o recurso sistemático às narrativas, aos temas e aos mitos do repertório clássico da literatura e do teatro, e, sobretudo, a popularidade dos actores, cujo êxito de bilheteira era preciso alimentar a fim de assegurar a expansão da indústria, contribuíram para subalternizar o papel do operador, que dominou a fase inicial do modo de produção do cinema no período mudo, e favoreceram a supremacia do realizador como o técnico mais qualificado para encenar e coordenar o conjunto das tarefas de rodagem. Porém, à medida que os custos de produção e a duração dos filmes aumentavam, e crescia a quantidade de filmes indispensável à rentabilização do parque de salas, os produtores sentiram a necessidade de reduzir as despesas de improvisação durante a rodagem e de oferecer aos promotores financeiros garantias da qualidade comercial dos projectos. Ambos os objectivos foram alcançados através do controlo da escrita do argumento, através do qual o produtor, a partir do final dos anos dez, se sobrepõe à autoridade do realizador como sendo a figura central do sistema de produção industrial. O guião passou a ser uma espécie de maqueta do filme, por vezes complementado com desenhos de cenografia e de composição de planos (storyboard), de molde a facilitar a preparação das filmagens, o aproveitamento de materiais cénicos de outras produções e a reduzir a duração das filmagens. O argumento teve um papel fundamental no processo de racionalização do trabalho fabril dos estúdios, no aperfeiçoamento das técnicas de economia de escala, nos planos anuais de produção e na eficiência dos vários tipos de censura, seja ao nível do domínio dos produtores sobre os realizadores, com a aplicação da célebre palavra de ordem filme-se como está escrito, seja ao nível institucional da Administração do Código de Produção na América — e das Comissões de Censura prévia noutros países. O triunfo do filme narrativo e do guião de ferro, como pilares da implantação comercial do espectáculo cinematográfico em todo o mundo, foi alvo de ataques esporádicos, desde o impressionismo francês dos anos vinte até à nouvelle vague dos anos sessenta, passando pelo futurismo russo e pelo filme rítmico alemão, que os movimentos de vanguarda mobilizaram contra o argumento de ficção. Salvaguardando as especificidades formais e o contexto histórico de cada contestação, pode dizer-se que tais movimentos procuraram reivindicar uma pureza cinematográfica essencialista que a ficção narrativa e o 354
conflito dramático viriam perverter, contaminando o cinema com a herança do romance e do teatro, ambos associados à cultura burguesa do século passado. Arte impura por natureza, aglutinando sem complexos o que melhor lhe convinha de cada uma das artes anteriores, o cinema incorporou o som e recorreu à contratação de escritores profissionais provenientes de outras áreas. Os anos trinta conheceram um enorme afluxo de escritores a Hollywood e, em menor escala, a outros centros internacionais de produção. A maior parte desses escritores provinha do jornalismo, do teatro e do romance. Consagrou-se a designação dum novo tipo de escritores: escritores para o ecrã (screenwriters) nos países anglo-saxónicos e escritores de cena noutros locais (scénariste em França, sceneggiatore em Itália). Na indústria americana durante o período clássico era usual o argumentista trabalhar em regime de contrato de exclusividade, renovável anualmente, com salário semanal, no interior de um dos grandes estúdios. Os escritores residentes eram mais bem pagos do que em qualquer outra actividade do espectáculo ou da edição, o que não evitou o ressentimento contra os produtores, num sistema que lhes retirava qualquer capacidade de decisão sobre a execução dos filmes ou sobre a forma final das suas próprias histórias, invariavelmente rescritas por outros argumentistas. Apesar da depressão económica e das oscilações da frequência ao cinema os estúdios consolidaram o seu poder económico, constituído numa estrutura vertical de oligopólio que incluía as melhores salas de estreia no território americano e os grandes circuitos de distribuição no estrangeiro. Com o declínio do sistema dos estúdios e a consolidação da figura do produtor independente, entre 1948 e 1955, o estatuto do argumentista muda. A crescente popularidade da televisão, os permanentes aumentos do custo de produção dos filmes e a queda das taxas de audiência levaram os produtores a cortar o maior número possível de encargos fixos das empresas, reduzindo os quadros do pessoal contratado. O argumentista passa a ser solicitado a colaborar pontualmente em determinado filme, no seio de um mercado mais vasto e menos homogéneo, uma vez que as cadeias de televisão precisam de escritores experientes nas técnicas narrativas uniformizadas por anos de funcionalidade. Esta situação veio dar ao argumentista um poder que antes não tinha. Na época dos estúdios era o produtor que montava 355
os projectos com os técnicos sob contrato, a partir dos anos cinquenta o financiamento dos projectos assenta prioritariamente no interesse do argumento, em torno do qual o produtor independente ou o agente artístico dispõe o seu pacote negocial com os actores e o realizador. Sem um argumento sólido no qual apostem as estrelas e os distribuidores não aparece o financiamento, venha ele da banca, da indústria, da televisão ou dos subsídios. Antes do argumentista acabar o seu trabalho não há trabalho para mais ninguém. Com a fundação da Academy of Motion Picture Arts and Sciences em 1932 e a formação da Screenwriters Guild em 1933 o formato dos argumentos institucionalizou-se em moldes que se tornaram compulsórios nos centros de produção industrial, dentro e fora de Hollywood. A uniformização da apresentação gráfica e da duração fez-se acompanhar da uniformização da narrativa, quase sempre dividida em três actos, separados por nós de intriga, com o protagonista a combater e a dominar, após inúmeros obstáculos, o espírito do mal que se infiltra nas brechas da harmonia comunitária. O final feliz seria a voz da consciência de uma indústria onde se acredita, ontem como hoje, que ninguém vai ao cinema para ficar deprimido.
Nos seus traços fundamentais, a composição dramática do cinema clássico remonta a uma tradição retórica e normativa que tem na Poética de Aristóteles o seu ponto de partida. A regra principal — a história com princípio, meio e fim — propõe um mundo de ficção completo e autónomo, fechado sobre si próprio, com leis de coerência interna que advêm do respeito pelas unidades de acção, de espaço e de tempo, bem como da observância dos preceitos da verosimilhança. O papel do poeta não consiste em dizer o que aconteceu realmente, mas o que podia ter acontecido na ordem do verosímil. Os factores de arbitrariedade da ficção são transformados em princípios de necessidade que visam garantir a credibilidade e a saciedade afectiva do público: as histórias podem começar por acaso mas não devem acabar nem por acaso nem mercê de qualquer coincidência que poupe o esforço do herói no sentido de restabelecer a ordem do mundo. Cada parte do discurso — exposição, confronto, resolução — tem a sua função específica, embora todas concorram para o objectivo comum: representar o maior número de pormenores com o máximo de clareza e de eficácia no mínimo de tempo, de maneira a mobilizar 356
o interesse e a emoção do espectador através da sucessão dos acontecimentos cujo artifício é dissimulado pelas regras de articulação da montagem invisível. A surpresa e a energia das peripécias suprimem ou disfarçam a indolência dos tempos mortos, alteram o destino do herói e forçam-no a enfrentar as adversidades que o lançam nos labirintos do enigma ou do infortúnio. Os reveses da fortuna e as falhas trágicas, que Aristóteles incluía nos desígnios da hamartia, desencadeiam os conflitos e conduzem à catástrofe, momento final de grande intensidade no qual a recompensa, o castigo e a redenção esperam os protagonistas e os antagonistas. Desde o início da narrativa que se estabelece um vínculo afectivo entre as personagens e o público. Esta relação de empatia, indispensável à eficácia da ficção dramática, tem uma característica definida pela própria natureza do espectáculo: o espectador assume uma atitude passiva e delega o poder da acção no protagonista. Como a personagem se parece connosco, ou é assumida como um duplo dos vícios e das virtudes da natureza humana, o público vive de modo vicariante tudo o que vive a personagem. As emoções empáticas básicas de piedade e de terror, que sustentam o processo catártico da representação dramática no sistema aristotélico, servem para libertar o espectador de ansiedades inomináveis e, deste modo, para justificar a função social do espectáculo. • Embora seja raro os manuais americanos de escrita do argumento referirem-se de modo explícito à Poética de Aristóteles, o sistema está subjacente na maior parte das prescrições normativas que os filmes reflectem com a ponderação inerente às convenções de cada género. No cinema clássico de Hollywood a dramaturgia aristotélica alia-se de modo indelével ao espírito pragmático típico do modo de ser americano. Nos filmes, o pragmatismo seria uma filosofia dos homens de acção para quem tudo o que é verdadeiro é útil e tudo o que é útil é verdadeiro. O risco da experiência, o prazer da descoberta e o voluntarismo na solução dos conflitos e dos problemas concretos parece incompatível com as dúvidas metódicas e digressivas que paralisam os heróis do cinema europeu. Esta aliança congénita, entre uma dramaturgia fechada e homogénea com uma determinação incansável de tomar decisões e de atingir objectivos palpáveis, originou filmes animados por uma extraordinária eficácia narrativa, povoados de heróis dinâmicos, aptos a fomentar a simpatia das estrelas. 357
Apesar dos factores de estandardização produtiva e de estabilidade dramática, que permitem demarcar o período clássico na América e, por analogia, na própria história da sétima arte, os filmes no seu conjunto estão longe de oferecer um panorama estático ou monolítico das práticas do cinema. Realizadores como Stroheim, Sternberg, Hawks, Welles ou Kazan, trabalhando na fronteira dos princípios formais instaurados por Griffith e no interior de um modo de produção talhado por homens como Zukor, Schulberg, Thalberg, Zanuck e Selznick, souberam criar um mundo de ficção próprio, por vezes ao arrepio das convenções da indústria. A visão do realizador no planeamento e na execução do filme, dentro e fora dos constrangimentos institucionais, não pode minimizar a importância do trabalho colectivo, em particular o contributo dos produtores, dos argumentistas, dos directores de fotografia, dos montadores, dos músicos e, evidentemente, dos actores, que dão corpo e voz ao fascínio da existência cinematográfica. Daí que, no levantamento de alguns dos traços dramáticos e narrativos determinantes do período clássico, se tenha dedicado particular atenção às circunstâncias, às personalidades, aos contextos de produção e à recepção inaugural de filmes a que a passagem do tempo e a inscrição na história deram um estatuto canónico. A recente revalorização do argumentista nos estudos históricos e teóricos do cinema, contrariando a aplicação dogmática da política dos autores centrada na figura do realizador como única instância geradora de sentido, não invalida a importância histórica de alguns dos pressupostos mais produtivos dessa política, desencadeada em tom polémico nos anos cinquenta nos Cahiers du Cinéma e que marca o aparecimento de um paradigma reflectido da crítica cinematográfica, de resto coincidente com a emergência do cinema moderno. A pedra de toque da política dos autores consistia em mostrar a unidade formal e as obsessões pessoais de certos realizadores cuja obra se impunha como um leque de variações sobre os mesmos temas fundamentais, apesar de colaborarem com diferentes argumentistas, de trabalharem para diversos produtores e de escolherem quadros narrativos de entre os vários géneros impostos pela indústria. O mérito da política dos autores, numa época em que a crítica de cinema não ultrapassava o impressionismo mais anedótico, permitiu ainda sublinhar o carácter singular da composição visual e plástica do filme: a matéria do filme tornase a maneira de fazer o filme e a maneira de fazer o filme toma-se 358
o traço de assinatura do autor. Não é por certo uma coincidência que os grandes cineastas tenham trabalhado com alguns dos melhores argumentistas, ou que tenham eles mesmos concebido o dispositivo narrativo e imagético das suas obras. Stroheim dramatiza as emoções nos décors, Stemberg transfigura a ficção com a luz, Eisenstein rescreve o argumento na mesa de montagem, Welles monta na filmagem, Hitchcock filma e monta no storyboard que acompanha o guião de ferro, Rossellini inventa o argumento com a câmara de filmar, Kazan encontra a personagem no actor. O vínculo de modernidade no cinema, a partir do final dos anos cinquenta, no qual domina a subjectividade e a autoridade do realizador contra a disciplina da indústria cristalizada no argumento, é ainda fruto de uma concepção romântica da arte na qual o autor se insurge contra as regras e as tradições que constrangem a originalidade e a liberdade de criação individual. A proliferação das práticas e dos modelos do chamado cinema novo, com o ressurgimento das cinematografias europeias e terceiro-mundistas nas décadas de sessenta e setenta, veio confirmar a liquidação de uma ordem institucional reguladora das normas que sustentaram o cinema clássico. Os filmes do período esquematicamente compreendido entre 1908 e 1955 não podem ser apreciados sem atendermos às condições sociais da propagação do imaginário cinematográfico, numa época em que quase tudo parecia estar por descobrir, ou podia ser repetido vezes sem conta como se estivesse a ser feito pela primeira vez. Não se trata de atribuir aos filmes desse período — ou a alguns desses filmes — uma inocência mítica ou uma superioridade estética inabalável, mas de reconhecer que o cinema ocupou um espaço cultual na história dos espectáculos deste século que já não é o seu. O encantamento dos filmes não advinha dos truques ópticos, mecânicos ou laboratoriais que desde cedo a indústria desenvolveu. O melhor dos efeitos especiais era o efeito de realidade inseparável dos efeitos de ficção, suportados por uma retórica visual exímia, despojada de ostentação artística ou tecnológica. As inovações estéticas mais arrojadas surgiram da intervenção de cineastas que trabalhavam por encomenda, por vezes em condições penosas de liberdade vigiada, ditada pelo gosto popular e pelas receitas de bilheteira. O mundo era feito de histórias nas quais os personagens acreditavam que as histórias podiam salvar o mundo do caos, da injustiça social e da incoerência 359
existencial. No refluxo dos artifícios permitidos pelo mundo isolado do estúdio havia uma confiança na capacidade mimética do cinema que se traduzia na obstinação com que os filmes escutavam e registavam, pela transfiguração específica das imagens e dos sons, as vibrações da realidade. A aceitação do cinema como visão do mundo não se aplicava apenas aos cineastas, aos escritores e aos produtores, mas também aos espectadores, na medida em que o regime de consumo e fruição dos filmes no período clássico é indissociável da sessão na sala escura, onde a projecção das imagens no ecrã surge como a materialização volátil de um imaginário colectivo partilhado em rituais de reconhecimento.
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AGRADECIMENTOS
Este livro é, em parte, o resultado de um trabalho académico de investigação levado a cabo no seio de duas instituições de ensino superior que dedicam ao cinema um lugar privilegiado: a Escola Superior de Teatro e Cinema, integrada no Instituto Politécnico de Lisboa, e o Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. No termo do labor de escrita, tendo em vista as provas de doutoramento, é com prazer que exprimo o meu reconhecimento aos colegas da Comissão Científica de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, na pessoa do Prof. José Bogalheiro, que soube encorajar este projecto com a discrição que lhe é particular, bem como aos membros da Comissão Científica do Departamento de Ciências da Comunicação, na pessoa do Prof. Doutor Tito Cardoso e Cunha, que manifestou a paciência, o entusiasmo e a amizade de me acompanhar pelos filmes e pelos livros que povoam estes mundos do cinema. Filmes, livros, revistas e fotografias que encontrei disponíveis na Cinemateca Portuguesa, graças à amabilidade e à competência dos funcionários do Centro de Documentação, a quem agradeço na pessoa do Dr. Rui Santana Brito. Ao Dr. David Prescott, primeiro leitor atento das várias versões do texto, e ao Dr. António Baptista Lopes, que desde o início se prontificou a publicá-lo, expresso também a minha gratidão. Algumas das questões aqui referidas têm sido abordadas com os meus alunos de História das Teorias e da Crítica de Cinema, a quem dedico, na pessoa do Ricardo Gross, as páginas de cinefilia inveterada. Para terminar, gostaria de evocar a memória do Arq. Manuel Machado da Luz, companheiro primordial das lides da crítica e da escrita de argumento, e de declarar a minha estima e admiração pelo Prof. Doutor Abílio Hernandez Cardoso, a quem devo mais do que ele pode imaginar. Para a Rossana, como sempre, vai o que fica dito e tudo o que ficou por dizer. 361
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soggetti, Bompiani, Milano, 1978 ZUKOR, Adolph, The Public is Never Wrong, Putnam, New York, 1953
374
ÍNDICE ONOMÁSTICO Abílio Hernandez Cardoso, 8 Abraham Lincoln, 62 Adolf Hitler, 121, 185, 322 Adolph Zukor, 29-35, 67-68, 100, 141, 145, 190-192, 207, 220, 358 Adrian Scott, 319 Albert Maltz, 319 Alberto Cavalcanti, 190 Alexandrov (assistente de Sergei Eisenstein), 189-190, 192 Alfred Abel, 176 Alfred Hitchcock, 149, 196, 207216, 218, 249-250, 252-258, 266, 272, 278-279, 286, 291293, 296-302, 307, 312, 330, 335, 346, 359 Alfred Hugenberg, 175-176 Allan Dwann, 188 Alphonse Capone, 237 Alvah Bessie, 319 Anatoly Lunatcharsky, 84-85, 90-91 André Bazin, 157-158, 264-265, 335 Anita Loos, 38, 46-47, 50-54, 56, 61, 70, 78, 86, 99, 148, 239-241, 244-245 Anthony Quinn, 349 Antonin Artaud, 133 António Baptista Lopes, 8
Arbatov (argumentista soviético), 113 Aristóteles, 356-357 Arnold Schonberg, 133 Arthur Conan Doyle, 216 Arthur Miller, 322, 325 Arthur Schopenhauer, 123 Athole Hawks, 229 Auguste Lumière, 16 Béla Balazs, 162, 190 Belshazar, 60 Ben Hecht, 149-154, 165, 229, 237, 289, 291-294, 296, 299-300 Benjamim Percival Schulberg, 34-35, 68-69, 71, 100-101, 144, 148-149, 152, 165, 169-171, 173, 191-196, 203-204, 247, 251, 358 Benno Vigny, 173 Bernard Herrmann, 260 Bertolt Brecht, 133, 171, 181, 190 Billy Bitzer, 21-22 Billy Wilder, 239, 305, 307 Blaise Cendrars, 193 Blanche Sweet, 23 Bogdanov, 90-91, 120 Boris Kaufman, 327 Brigitte Helm, 176, 178 Bryan Foy, 231
375
Budd Schulberg, 35, 68-69, 73-74, 100-101, 191, 193-196, 246-247, 321322, 324-325, 327, 344 Carl Foreman, 341 Carl Laemmle, 79-80 Carl Theodor Dreyer, 123 Carl Zuckmayer, 172 Cary Grant, 203-204, 209, 256, 258, 300-302 Cecil B. De Mille, 30, 39-40, 42, 58, 65-68, 107, 141, 144, 272 Cesare Zavattini, 331-333, 335 Charles Baudelaire, 133 Charles Bennett, 212, 214, 218 Charles Chaplin, 31, 67, 166-167, 169, 188, 191, 193, 224 Charles Dickens, 84, 224 Charles Gardner Sullivan, 42 Charles MacArthur, 150 Charles Perrault, 47-48, 53 Charles Waldron, 313 Charlotte Smith, 31, 33 Cheryl Crawford, 342 Chico Marx, 149 Ciro, 60 Clara Bow, 71-74, 140, 191, 343 Clark Gable, 52 Claude Rains, 300, 302 Clifford Odets, 322 Clifton (assistente de David Griffith), 75 Constance Talmadge, 52, 240 Cornell Woobrich, 309 Dalton Trumbo, 319 Daniel Fuchs, 323 Daniel Lord, 143 Daphne du Maurier, 249, 252 Darryl F. Zanuck, 110, 230-233, 282-283, 323, 325, 344, 358 Dashiell Hammett, 307, 309 David Llewelyn Wark Griffith, 12, 15, 17-23, 25-28, 31, 37-38, 40, 46, 376
55-64, 67, 75-77, 79, 83-86, 97, 114, 136, 140, 158, 188, 193, 211, 225, 263, 272, 358 David O. Selznick, 170-171, 185, 188, 194-196, 218, 220, 232, 242, 247, 249-255, 271-275, 277-279, 291-292, 296, 299-301, 325, 358 David Prescott,364 Denis Diderot, 94 Desmond Tester, 215 Donald Ogden Stewart, 243 Dorothy Gish, 23, 38 Douglas Fairbanks, 45-46, 52, 78, 86, 103, 167, 187-188, 191, 193 Dudley Nichols, 105, 323 Dupont (realizador), 123 Dziga Vertov, 88-90, 118-120, 332 Edgar Allan Poe, 210 Edgar Hoover, 301 Edgar Morin, 51 Edmund Meisel, 187, 189 Edna Best, 213 Edna Purviance, 169 Edouard Tissé, 189-190,192 Edward Dmytryk, 155-156, 161, 305, 307, 310, 319, 321 Edward G. Robinson, 232 Edward Morgan Forster, 49-50, 224 Edwin Piscator, 171, 190 Edwin S. Porter, 15-19, 30-31, 34 Elia Kazan, 322-327, 341-342, 344, 346-351, 358-359 Elinor Glyn, 72 Emil Jannings, 165, 169, 171-172 Émile Coutard, 166 Émile Zola, 95, 97 Erich von S'troheim, 75, 77-82, 93-102, 152, 166, 168-169, 193, 211, 343, 358-359 Erich Maria Remarque, 246 Erich Pommer, 171-172, 175, 185, 209 Emest Hemingway, 276, 281, 283284, 288-289
Ernst Lubitsch, 149, 165, 256 Estaline (Iosif Vissarionovitch Dzhugachvili), 189, 322 Esther Shub, 83-84, 114 Esutace Hale Ball, 56 Eugene Vakhtangov, 347 Eve Marie Saint, 327, 345-346 Ezra Pound, 133 Fay Wray, 101 Filipo Tommaso Marinetti, 88, 179 Fiodor Mikhailovitch Dostoievski, 150, 256 Fleming (assistente de David Griffith), 75 Frances Marion, 70-71 Francis Beeding, 292 Francis Iles, 255 Francis Scott Fitzgerald, 240-241, 244-248 François Truffaut, 213, 215 Frank Borzage, 168, 246 Frank Capra, 168, 272, 277 Frank Lloyd, 169 Frank Norris, 82, 93, 95-97 Frank Rooney, 351 Frank Woods, 24-25, 27, 37, 58, 60-61 Franklin Delano Roosevelt, 319, 323 Franz Lehar, 88 Fred Zinnemann, 341 Frederick Palmer, 45, 56, 70, 106 Frederick Winslow Taylor, 176 Frederico Fellini, 333 Friedrich Nietzsche, 123-124 Friedrich Wilhelm Murnau, 123, 169, 171, 190, 209, 211 Fritz Lang, 114, 121-126, 171-172, 175-185, 190, 209, 211, 246, 272 Gardner Sullivan, 103-104, 243 Gary Cooper, 72, 103, 191, 193, 224, 276-277, 281, 317-318, 347 Gene Milford, 327 Georg Kaiser, 172
Georg Wilhelm Pabst, 172, 181 George Bernard Shaw, 44, 191 George Cukor, 241, 277 George Fitzmaurice, 208 George Grosz, 133, 172, 190 George K. Arthur, 167 George Marshall, 321 George Raft, 237 George Sanders, 339-340 George Schaefer, 261, 268-269 George Stevens (realizador), 149 Gloria Swanson, 65-67, 71, 140-141, 195, 343 Gordon Craig, 133 Graham Cutts, 208-209 Graham Greene, 43-44, 275 Gregg Toland, 262-264, 269 Gregory Peck, 293, 297-298 Greta Garbo, 139, 191, 202, 208, 274 Grouxo Marx, 149 Gustav Frohlich, 176 Gustav Molander, 271, 273 Hal Wallis, 231-234, 276 Hans Dreier, 170 Hans Richter, 190 Harpo Marx, 149 Harry Cohn, 325-326 Harry Truman, 321 Heinrich Mann, 172-173 Henabery (assistente de David Griffith), 75-76 Henry David Thoreau, 62 Henry Ford, 176 Henry James, 253 Henry King, 7, 277 Herbert Biberman, 319 Herbert Brenon, 241 Herbert George Wells, 189, 191, 193, 260 Herbert Marshall, 203-204 Herman Mankiewicz, 148-149, 151152, 154, 165, 243-244, 246, 259, 261-262, 268-269 377
Honoré Daumier, 190 Horace McCoy, 309 Howard Hawks, 107, 149-150, 153154, 229-232, 236, 238-239, 272, 281-289, 292, 305, 307, 312-315, 358 Howard Hughes, 230, 237, 336, 338 Howard Koch, 260 Hugo Munsterberg, 158-159 Humphrey Bogart, 104, 111, 224, 271, 275-277, 281, 283-285, 287, 289, 305, 313-314, 347 Immanuel Kant, 158 Ingrid Bergman, 111, 249, 271, 273278, 281, 291-293, 297, 299-302, 305, 329-330, 336-340 Irene Mayer Selznick, 291-292, 299 Irving Thalberg, 70, 79-82, 93, 98-100, 102, 110, 112, 144, 168, 170, 229-230, 232, 239-242, 244-245, 251, 255, 282, 358 Ivan Pavlov, 116-117, 131 Ivor Montagu, 189-193, 196, 211-212, 218 Ivor Novello, 209 Jack Conway, 241 Jack London, 113 Jack Warner, 230-232, 283, 314, 319, 322 Jacob Grimm, 47, 53 James Cagney, 103, 235, 350 James Cain, 305, 307, 309 James Dean, 350 James Joyce, 133, 135, 192 James K. McGuiness, 244 James Stewart, 209 Jane Russel, 239 Jason Joy, 204 Jean Epstein, 198-200 Jean Harlow, 52, 240-241 Jean Hervé Bazin, 94 Jean Mitry, 161 378
Jean Moliére, 224 Jeannie Macpherson, 67 Jennifer tones, 277-278, 291, 299-300 Jesse Lasky, 30, 39, 42, 191-193, 207 Jesus Cristo, 60, 63, 105 Joan Fontaine, 252-258, 277-278 Joan Harrison, 250 João Bogalheiro, 8 Jock Whitney, 271, 301 Joe May, 123-124, 234 John Buchan, 214 John Cromwell, 278 John Emerson, 46-47, 50-54, 56, 7778, 99 John Ford, 105 John Goodrich, 165 John Hersholt, 97 John Houseman, 259, 262 John Howard Lawson, 206, 235-236, 243-244, 295-296, 319, 321-322, 324 John Huston, 276, 310, 319, 325 John Lee Mahin, 237, 244 John Maxwell, 211 John Monk Saunders, 165 John Paxton, 351 John Steinbeck, 323 John Wayne, 277 Josef von Sternberg, 70, 102, 152-154, 165-174, 190-191, 193, 196-198, 200-206, 229, 274, 285, 310, 312, 346, 358-359 Joseph Breen, 145-146, 256, 338 Joseph Conrad, 215, 261 Joseph Paul Goebbels, 121-123, 128, 185 Joseph Losey, 325 Joseph Mankiewicz, 148, 246 Joseph McCarthy, 321 Joseph Rudyard Kipling, 213 Judith Anderson, 252 tules Furthman, 148, 154, 170, 203, 283-285, 288, 314 Júlio Verne, 7, 123
Karel Reisz, 107 Karl Marx, 135 Karl May, 123 Karl Meixner, 183 Karl Menninger, 299 Kay Brown, 271 Kazimir Malevich, 133 King Vidor, 70 Konstantin Stanislavski, 113, 297, 342343, 345, 347-349, 352 Lajos Biro, 165 Lajos Egri, 294-296 Lamar Trotti, 203-204 Laslo Benedek, 351 Lauren Bacall, 281, 284-285, 289, 305, 313-314 Laurence Olivier, 252 Lee Pirinski, 243 Lee Strasberg, 322, 342, 344, 350-351 Leigh Brackett, 312 Lenine (Vladimir Ilich Ulianov), 85, 89-91 Leo Carrol, 293 Léon Moussinac, 190 Leslie Banks, 213 Leslie Howard, 275 Lester Cole, 319 Lev Kulechov, 86-87, 91, 114, 135136, 298 Lewis J. Selznick, 110, 112, 139, 170 Lillian Gish, 23, 27-28, 38, 57, 62, 77 Linda Arvidson, 22-23, 37 Lionel Barrymore, 38 Lionel Montagu, 190 Louis B. Mayer, 98-99, 145, 170, 259, 268, 291 Louis Delluc, 198-200 Louis Lumière, 16 Luigi Pirandello, 190 Mack Sennet, 40, 66 Mae Marsh, 23 Malcom Johnson, 324
Manuel Machado da Luz, 8 Margaret Sullivan, 246 Marilyn Monroe, 239 Marlene Dietrich, 154, 165-166, 172174, 190-191, 193, 195-198, 201206, 274, 284-285, 305, 347 Marlon Brando, 104, 326-327, 341342, 344-351 Martha Vickers, 313 Martin Quigley, 143 Mary Pickford, 23, 29, 31-34, 38, 69-71, 77, 167, 187-188, 191 Max Reinhardt, 152, 171, 173 May Romm, 291-293, 299 Mervyn LeRoy, 230, 234-235 Michael Balcon, 208-212, 218 Michael Chekhov, 293 Michael Curtiz, 111, 161, 234, 271, 276 Michael Hogan, 250 Michel Eyquem de Montaigne, 150 Miklos Rozsa, 299 Montgomery Clift, 297 Moss Hart, 323 Mozhukin (actor soviético), 87 Myron Selznick, 278 Nathanael West, 282 Nicholas Schenck, 268 Norbert Jacques, 123 Norma Shearer, 229, 241 Norma Talmadge, 52 Nova Pilbeam, 213 Orson Welles, 252, 259-269, 310, 325, 358-359 Oscar Homolka, 215 Otto Dix, 172 Otto Preminger, 149 Otto Wernicke, 183 Owen David, 241 Pablo Ruiz Picasso, 133 Pamell Thomas, 318, 320 379
Paul Muni, 235-236, 350 Paul Newman, 297 Paul Schrader, 310-311, 313 Perry Ferguson, 262, 269 Peter Lorre, 180-181 Petter Lindstrom, 297 Philip Dunne, 319, 323 Philip MacDonald, 250 Pierre Fresnay, 213 Pieter Paul Rubens, 188, 195 Pola Negri, 208 Rafael (Raffaelo Sanzio), 188, 195 Ralph Dawson, 232 Ralph Valdo Emerson, 62 Raymond Chandler, 305-307, 312-313 Ricardo Gross, 8 Richard Day, 327 Richard Murphy, 323 Richard Wagner, 122 Ring Lardner Jr., 319 Rita Hayworth, 309 Robert Donat, 214 Robert Lee, 153 Robert Lewis, 342 Robert Liebmann, 172 Robert Sherwood, 253 Robert Warshow, 236 Roberto Rossellini, 329-330, 333-340, 359 Ronald Colman, 208 Rossana Geada,3651 Rudolf Klein-Rogge, 126, 176, 183 Rudolfo Valentino, 208 Rudolph Arnheim, 10 Rui Santana BritoUrli
Samuel Hoffenstein, 196 Samuel Marx, 241, 282 Samuel Ornitz, 319 Sarah Bemhardt, 30, 166 Sergei Mikhailovitch Eisenstein, 83-85, 90-91, 113-121, 129-137, 173, 187-196, 211-212, 267, 332, 335, 346, 359 Sergio Amidei, 333 Seton Miller, 237 Seymour Nebenzal, 180 Siegmann (assistente de David Griffith), 75 Sigmund Freud, 131, 291 Spencer Tracy, 275 Stanley Kramer, 341 Stella Adler, 342 Sylvia Sidney, 215 T. C. Wright, 234 Tay Garnett, 283 Ted Paramore, 246 Tennessee Williams, 322, 326, 342 Thea von Harbou, 122-124, 176, 180, 185 Theodore Dreiser, 193-194, 196 Thomas Alva Edison, 15-17, 20, 30, 34, 80 Thomas Dixon, 58 Thomas Ince, 40-42, 58, 81, 103, 110, 232 Thomas Woodrow Wilson, 35 Thomy Bourdelle, 183 Tito Cardoso e Cunha, 8 Trotsky (Lev Davidovitch Bronstein), 189
S. K. Lauren, 203 Salvador Dali, 2W9 Sam Spiegel, 325-327 Sam Wood, 243, 281, 318 Samson Raphelson, 256 Samuel Goldwyn, 44, 82, 93, 98, 220, 336
Umberto Barbaro, 333 Upton Sinclair, 196
380
Van Dyke (assistente de David Griffith), 75 Viktor Sklovski, 7, 91, 132-134 Vittorio De Sica, 331
Vivien Leigh, 273 Vladimir Maiakovski, 115, 120 Vladimir Tatlin, 133 Vsevolod Pudovkin, 108, 135-137, 332333 Vsievolodov Emilievic Meyerhold, 84, 113-114, 120, 133 W. R. Burnett, 237 Wallace Berry, 282 Walsh (assistente de David Griffith), 75 Walter Ruttmann, 190 Walter Wanger, 246-247, 255 Warren Gamaliel Harding, 139 Wassili Kandiski, 133 Wilhelm Grimm, 47, 53 William Daniels, 96
William De Mille, 38-40, 42-43, 165 William Faulkner, 107, 281-283, 285, 288, 312-315 William Fox, 230 William Hays, 139-146, 203-205, 236-237, 256, 321 William James, 158 William Randolph Hearst, 42, 262, 268, 318 William S. Hart, 41, 103 William Seiter, 240 William Shakespeare, 107, 259 William Somerset Maugham, 215 William Wellman, 149, 165, 168, 230, 234, 247 William Wyler, 319 Zelda Fitzgerald, 240, 245, 247
381
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO......................................................................................... 9 A impressão de realidade. Os efeitos de ficção. Os mundos possíveis O cinema clássico. O cânone. A História e a narrativa. 2. O GESTO DO REALIZADOR................................................................... 15 1903-1907. Edison. Porter. Griffith. O cinema primitivo. Predomínio do operador de câmara. A fragmentação do espaço. O poder de ubiquidade. O triunfo do filme de ficção. 3. ADMIRÁVEL MUNDO NOVO............................................................... 21 1908-1913. Griffith. Bitzer. Arvidson. Woods. Gish. Os ensaios teatrais. Histórias e actores de repertório. O conferencista. O raccord Os cortes. A ilusão de continuidade. O espaço fílmico e o espaço dramático. A montagem alternada e a montagem paralela. A elipse A amplificação. O grande plano. O rosto do actor e a luz interior O declínio da representação histriónica. A noção de transparência A função autor. 4. OS PASSOS EM VOLTA.......................................................................... 29 1912-1916. Zukor. Pickford. B. P. Schulberg. Actores famosos em peças famosas. Filmes de Classe A e de Classe B. Block booking ( 383 distribuição conjunta). First running (circuitos de estreia) e reprise ( reposição). O contrato e o salário da estrela. A matéria-prima e os
5. AS RECEITAS E OS COZINHEIROS..................................................... 37 1912-1916. Woods. Loos. C. B. De Mille e W. De Mille. Ince. Sullivan Greene. Goldwyn. A sequência cinematográfica. Os valores humanos universais. O orçamento e o desgloso (script breakdown). O argumento (story script) e o guião (shooting script). Filmar como está escrito. Os relatórios de produção. Os concursos de histórias. Os departamentos de argumentos Os leitores. A sinopse. A propriedade literária. Os autores eminentes 6. O ESPÍRITO DO MAL............................................................................ 45 Palmer. Loos e Emerson. Fairbanks. Forster. Como escrever filmes O paradigma do Lobo Mau. O drama e o conflito. As acções mentais A harmonia do mundo. O nó da intriga (plot point). A antecipação, o retardamento e o resultado previsto (pay off). O princípio do prazer. A história e o enredo. As motivações. A rapidez e a unidade de acção. As estruturas de concentração emocional. Os problemas da adaptação. A simpatia das estrelas. O herói e as paixões. A revelação, o clímax e a resolução. O final feliz. O acaso e a coincidência 7. O TEMA AMERICANO........................................................................ 55 1908-1916. Griffith. Woods. Ball. Palmer. Loos e Emerson. Os palácios de cinema. O cinema como escola e como museu: a missão reformadora. O tema. A linguagem ecuménica. Planos de filmagem (takes) e planos de montagem (shots). O cinema-espectáculo. A dissecação da cena. A variedade visual. A liberdade de expressão. A amálgama entre História e ficção. A superioridade da democracia. 8. ESTRELAS QUE CHORAM.................................................................. 65 1916-1927. Swanson. Sennett. C. B. De Mille. Macpherson. Budd Schulberg. Pickford. Marion. Bow. Glyn. Os adereços e os cenários A dimensão humana da representação. A ética hedonista. Os figurantes. Os filmes de mulher. O paradigma da Cinderela. Da mulher-criança à mulher independente. A atracção bissexual. A idolatria dos fans. Os reveses da fortuna. O sonho americano. 9. A FICÇÃO E A MENTIRA.................................................................... 75 1916-1923. Griffith. Stroheim. Loos. Emerson. Laemmle. Thalberg Mais figurantes e mais cenografia. A logística da produção. O assistente de realização. O ódio e o vilão. A ficção e a mentira. A imaginação melodramática. O estúdio como fábrica de filmes. Contratos e padrões de trabalho. 384
10. DOMINAR, DESTRUIR, REINVENTAR 83 1917-1923. Schub. Eisenstein. Lunatcharsky. Meyerhold. Lenine Kulechov. Vertov. Bogdanov. Sklovski. A revolução aprende com o cinema capitalista. O entretenimento e a propaganda. A montagem em planos curtos. A tipagem social. O efeito Kulechov. A geografia criativa. As pontes semânticas. Os futurismos contra o argumento e a ficção. O cine-olho e as cine-sensações. O Proletkult. A arte utilitária. 11. CONTRA FACTOS NÃO HÁ ARGUMENTOS
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1924-1928. Goldwyn. Stroheim. Diderot. Zola. Daniels. Hersholt Mayer. Thalberg. Schulberg: pai e filho. Sternberg. Os locais naturais e os homens autênticos: o realismo absoluto. O drama naturalista A verdade cénica. Os espaços habitados. A deriva estética e a proliferação de sentidos. Mais estrelas do que há no céu. Fetichismo e perfeccionismo. 12. A SITUAÇÃO, A DECISÃO, A TRANSPARÊNCIA
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Sullivan. Ince. Hart. Nichols. Curtiz. Ingrid Bergman. Bogart. Heróis determinados e relutantes. O pragmatismo contra a indecisão. A organização da narrativa em três actos. A cena de transfiguração e a redenção instantânea. Uma cultura de afirmação e integração. A situação dramática. O anacronismo. O observador ubíquo e invisível. Composição central e frontal. A hierarquia expressiva. O sentido óbvio. A transparência narrativa. As estruturas interna e externa. Mise en scène, mise en cadre, mise en chafne. A escrita do argumento e a escrita do filme O sistema dos estúdios. Refazer os filmes. 13. OS EXCITANTES ESTÉTICOS
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1923-1924. Eisenstein. Meyerhold. Koulechov. Shub. Vertov. O construtivismo. A biomecânica. O Proletkult. A montagem das atracções Os reflexos condicionados. Pragmática e contexto comunicacional O herói colectivo. A tipagem social. A forma do filme. O conceito de plano. A máquina de semear ideias. O cine-punho contra o cineolho. 14. A MÁSCARA E A HIPNOSE
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1922-1924. Goebbels. Harbou. Lang. O ideal do filme nazi. O folhetim. O maniqueísmo. O expressionismo. Os disfarces. O tirano e o caos. A palavra de ordem. A relação hipnótica. 385
15. ESTRANHOS OBJECTOS POÉTICOS................................................ 129 1925-1929. Eisenstein. Sklovski. Pudovkin. A sinédoque. A metáfora e a metonímia. A composição orgânica. O êxtase e o patético. Os formalistas russos. O efeito de estranheza. O objecto em contexto. A vanguarda. A imagem como signo. O cinema intelectual. A escrita ideogramática. A ditadura do sentido. A tomada de consciência. O guião de ferro. O manifesto do cinema sonoro. 16. O PARAÍSO PERDIDO....................................................................... 139 1921-1934. Hays. Swanson. De Mille. Quigley. Padre Lord. Breen. A censura. Os escândalos das estrelas. O cinema na vez do padre e do professor. O perigo dos escritores. A Fórmula Hays. Os Interditos e as Precauções O Código de Produção. Os Dez Mandamentos. O prazer do mal. O poder, o crime e o sexo. Estrelas despertam o desejo de imitação. 17. O COMÉRCIO DA IMAGINAÇÃO.................................................... 147 1926-1932. B. P. Schulberg. H. Mankiewicz. Furthman. Hecht Stemberg. Os diálogos. A experiência jornalística. A máquina de fazer dinheiro. O mau da fita. Ser ou não ser o autor. Os tarefeiros. 18. A PLANIFICAÇÃO E A MONTAGEM ANALÍTICAS....................... 155 Dmytryk. Bazin. Munsterberg. Balazs. O raccord. A anotadora. A invisibilidade da técnica. Tempos fortes e tempos mortos. A elipse A mudança do plano. A montagem analítica. O cinema como processo mental. A atenção, a memória e a imaginação. O campo contracampo. O grau zero da escrita. Cineastas funcionais e problemáticos O som indivisível. A escuta e o fora de campo. A música de fundo 19. O TOQUE DO OLHAR....................................................................... 165 1927-1931. B. P. Schulberg. Stemberg. Pickford. Thalberg. Jannings Furthman. Selznick. H. Mann. Dietrich. Eisenstein. A pintura. A pose Filmar o pensamento. A ordem fabril. As retakes e as previews. A imagem do estúdio. Produção centralizada versus unidades de produção Rushes. Os actores como pedra para esculpir. Obsessões que sobrevivem 386 20. AS MÁQUINAS DO FUTURO........................................................... 175
21. MONÓLOGO A VÁRIAS VOZES...................................................... 187 1930-1933. Eisenstein. Pickford. Fairbanks. Selznick. Tissé. Alexandrov Montagu. Dietrich. Stemberg. Zukor. Lasky. Schulberg: pai e filho Cooper. Joyce. Dreiser. O melhor filme do mundo. Os departamentos de publicidade. O pensamento íntimo das estrelas. O monólogo interior. O filme como tribunal. 22. FOTOGENIA, GLAMOUR, VOYEURISMO...................................... 197 1930-1933. Dietrich. Sternberg. Delluc. Epstein. Trotti. Lawson A mulher fatal. O corpo e a voz. A composição plástica. A fotogenia O inconsciente do real. A inteligência do cinema. O glamour. A pose A suspensão da narrativa. A imagem-fetiche. Os espaços mortos dos planos. Voyeurismo e exibicionismo. O passivo e o activo. Androginia feminina e sedução bissexual. Os personagens instantâneos. Os décors exóticos. Os valores morais compensatórios. O ciclo da mulher perdida. 23. O PRAZER DA ANSIEDADE.............................................................. 207 1921-1939. Zukor. Lasky. Hitchcock. Balcon. Montagu. Histórias visuais. O storyboard. A ansiedade profissional. A percepção do medo A imagem do realizador. Começar pelo fim. O MacGuffin. A dupla perseguição. O filme-itinerário. O protagonista passivo. O mistério, a surpresa e o suspense. 24. OS ESTÚDIOS E OS GÉNEROS..........................................................219 1928-1948. O sistema dos estúdios. O oligopólio vertical: produção, distribuição, exibição. As salas de estreia. Block booking e blind booking. O período de clearance. A economia de escala. A sessão dupla. Õs filmes de série B. O efeito de reconhecimento. A fábrica de sonhos. As convenções de género. Biografia e padronização psicológica. Personagens lisos e redondos. A procura da felicidade O prazo limite. As duas linhas de enredo. A intertextualidade A verosimilhança. 25. A GLÓRIA DO TRIUNFO.................................................................. 229 1924-1934. Hawks. Hecht. Hughes. Zanuck. Warner. Wallis. Foy Lawson. Hays. Histórias de cão. A reciclagem dos argumentos. A série B A rapidez de acção. A cidade e a noite. Os filmes de primeira página O relatório de produção. O darwinismo social. O ciclo dos gangsters Os heróis fascistas. A escola do crime. O prazer do mal. 387
26. O SONHO E O RESSENTIMENTO.................................................... 239 1931-1940. Loos. Thalberg. Scott Fitzgerald. Samuel Marx. Harlow Herman e Joseph Mankiewicz. Lawson. Wanger. Budd Schulberg Previews e retakes. Filmes só de estrelas. O argumento não é literatura A escrita em grupo. Os nomes no genérico. A Associação de Argumentistas. O comissário político. Os direitos de autor. A equação fílmica. O último magnata. Ideias que andam no ar. 27. A LETRA E O ESPÍRITO..................................................................... 249 1935-1942. Hitchcock. Selznick. Du Maurier. James. Fontaine. A fidelidade aos romances. A sinergia comercial. O filme-acontecimento Filmes caros ou baratos. Chamariz publicitário e controlo da imprensa A voz sobreposta. O olhar subjectivo e a consciência reflectora A montagem na câmara. O triunfo da unidade de produção. A suspeita e a culpa universais. O filme como relação mental. A direcção de espectadores. 28. CADA UM É TANTA GENTE............................................................ 259 1939-1942. H. Mankiewicz. Welles. Houseman. Schaefer. Hearst Perguson. Toland. Bazin. O teatro radiofónico. Os efeitos sonoros A voz subjectiva e a voz sobreposta. Os truques de cenografia. A grande angular. O plano-sequência e a profundidade de campo. A ambivalência ontológica da realidade. A montagem no interior dos planos O espaço narrativo. A corrente de consciência. O flashback. A imagem do sujeito. 29. O VERDADEIRO E O FALSO............................................................. 271 1939-1944. Ingrid Bergman. Kay Brown. Selznick. Whitney. Bogart Curtiz. Cooper. Jennifer Jones. Fontaine. A estratégia das remakes O trabalho de copista. Divinização e aburguesamento das estrelas O brilho na ponta do nariz. O aluguer de estrelas. A análise das personagens. 30. NINGUÉM É UMA ILHA.................................................................... 281 1944-1945. Hemingway. Hawks. Faulkner. Samuel Marx. Thalberg Zanuck. Warner. Furthman. Bacall. Backstory: de onde vêm as personagens? A mulher insolente. The Look. A direcção de actores e a arte do convívio. O trabalho em grupo. A firmeza de carácter. A segunda oportunidade. A perícia profissional. O isolacionismo. A ética da amizade. Liberdade e ideologia. 388
31. OS DEMÓNIOS CONTRA A RAZÃO................................................ 291 1945-1946. Selznick. May Romm. Irene Mayer. J. Jones. Hitchcock Hecht. Bergman. Lajos Egri. Lawson. Peck. Whitney. Psicanálise e terapêutica. O culpado é o inconsciente. As dimensões do comportamento humano. Realismo psicológico e social. A naturalidade falseada. A representação negativa. O plano de reacção. Os actores sob o efeito Kulechov. O trabalho do sonho e o trabalho do filme. As figuras do pensamento. A implicação semântica. 32. NEGRO A PRETO E BRANCO........................................................... 305 1944-1946. Bacall. Bogart. Hawks. Chandler. Schrader. Dmytryk Faulkner. Brackett. Furthman. As críticas ao escritor. A magia das palavras. A arte do crime. O romance problema e a literatura canalha. Pulp fiction. O filme negro. A mulher fatal. O sexo e o medo A paranóia e a instabilidade. A arte e a sociologia. Os diálogos oblíquos. A opacidade e os vazios da ficção. 33. SER OU NÃO SER ANTIAMERICANO............................................. 317 1947-1954. Lawson. Warner. McCarthy. Dmytryk. Budd Schulberg Kazan. Spiegel. Cohn. Brando. O pânico da televisão. A lei antitrust A comissão das Actividades Antiamericanas. Os Dez de Hollywood O americanismo. As listas negras. A delação. O fracasso dos filmes progressistas. A liberdade de expressão. O gangsterismo sindical 34. A FÉ NA REALIDADE........................................................................ 329 1945-1953. Bergman. Rossellini. Zavattini. Barbaro. Goldwyn. Hughes Sanders. O neo-realismo. A verdade e a justiça. Uma estética da rejeição. Os planos longos e a integridade do tempo. Os não-actores. A desdramatização. Os lugares e as coisas tais como são. A improvisação O axioma da objectividade e a ambiguidade da arte. O filme como experiência do mundo. A política dos autores. O cinema moderno A miséria espiritual. Nem intriga nem resolução. O padre e o psiquiatra. O choque de culturas. O turismo e o sagrado. 35. OS ESPELHOS DA ALMA.................................................................. 341 1947-1955. Brando. Kazan. Stanislavksi. Strasberg. Adler. Bow. Schulberg Aprender com a vida. A representação do interior. O Método e o Actor's Studio. A construção da personagem. A exploração do eu enquanto outro. A fé cénica. A memória afectiva. O subtexto. O objecto expressivo. O filme mostra o invisível. Androginia masculina e sedução bissexual
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O rosto que escuta. A manipulação emocional do actor. As tarefas parcelares. A indução psicodramática. A desinibição criativa. A revolta e o sofrimento de infância. O culto da personalidade dos actores. 36. CONCLUSÃO..................................................................................... 353 A narrativa e a organização industrial do cinema. O controlo do filme a partir do argumento. Uma arte impura. O estatuto do argumentista Ninguém vai ao cinema para ficar deprimido. A Poética de Aristóteles Estandardização e práticas de ruptura. O trabalho colectivo. A política dos autores. O vínculo de modernidade. Um mundo feito de histórias. A sala escura. Os rituais de reconhecimento.
BIBLIOGRAFIA....................................................................................... 361
ÍNDICE ONOMÁSTICO........................................................................... 375
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ISBN 972-46-0955-3 11 11111 1
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9 789724 609553