DEPOIS DO GELO Uma História Humana Global 20.000 - 5.000 a.C. Volume 01 Steven Mithen
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DEPOIS DO GELO Uma História Humana Global 20.000 - 5.000 a.C. Volume 01 Steven Mithen
Tradução Marcos Santarrita IMAGO
Para meus pais Pat e Bill Mithen
SUMÁRIO
Prefácio
11
O COMEÇO 1. O Nascimento da História 17 Aquecimento global, indícios arqueológicos e história humana 2. O Mundo em 20000 a.C. 22 Evolução humana, causas de mudança do clima e a datação por radiocarbono ÁSIA OCIDENTAL 3. Fogos e Flores 35 Caçadores-coletores e a estepe florestal, 20000-12300 a.C. 4. Vida na Aldeia na Floresta de Carvalhos 45 Primeiras comunidades caçadoras-coletoras natufianas, 12300-10800 a.C. 5. Nas Margens do Eufrates 56 Abu Hureyra e o surgimento do sedentarismo dos caçadorescoletores, 12300-10800 a.C. 6 . Mil Anos de Seca 62 Economia e sociedade durante o Jovem Dryas 10800-9600 a.C. 7. A Fundação de Jericó 72 Arquitetura neolítica, enterro e tecnologia do vale do Jordão, 9600-8500 a.C. 8. Pictogramas e Colunas 78 Ideologia, simbolismo e comércio neolíticos, 9600-8500 a.C. 9. No Vale dos Corvos 88 Arquitetura, têxteis e domesticação de animais, 8500-7500 a.C. 10. A Cidade dos Espectros 96 Ritual, religião e colapso econômico, 7500-6300 a.C. 11. Céu e Inferno em Çatalhöyük 105 Florescimento do neolítico na Turquia, 9000-7000 a.C. 12. Três Dias em Chipre 114 Extinções, colonização e estase cultural, 20000-6000 a.C. EUROPA 13. Pioneiros nas Terras do Norte
129
A recolonização do noroeste da Europa, 20000-12700 a.C. 14. Com Caçadores de Renas 142 Economia, tecnologia e sociedade, 12700-9600 a.C. 15. Em Star Carr 154 Adaptações às primeiras florestas do Holoceno no norte da Europa 9600-8500 a.C. 16. Os Últimos dos Pintores das Cavernas 163 Mudança econômica, social e cultural no sul da Europa, 9600-8500 a.C. 17. Catástrofe Litorânea 171 Mudança do nível do mar e suas conseqüências, 10500-6400 a.C. 18. Duas Aldeias no Sudeste da Europa 179 Caçadores-coletores sedentários e agricultores imigrantes, 6500-6200 a.C. 19. As Ilhas dos Mortos 189 Enterro e sociedade mesolíticos no norte da Europa, 6200-5000 a.C. 20. Na Fronteira 200 A disseminação da agricultura na Europa Central e seu impacto na sociedade mesolítica, 6000-4400 a.C. 21. Um Legado Mesolítico 210 O neolítico no sul da Europa, 6000-4000 a.C; debates de lingüística e genética históricas 22. Um Enviado Escocês 219 Colonização, estilos de vida mesolíücos e a transição para o neolítico no oeste da Escócia, 20000-4300 a.C. AS AMÉRICAS 23. Em Busca dos Primeiros Americanos 235 A descoberta de colonização da era do gelo, 1927-1994 d.C. 24. O Passado Americano no Presente 246 Testemunho dentário, lingüístico, genético e esquelético para o povoamento das Américas 25. Nas Margens do Chinchihuapi 254 Escavação e interpretação de Monte Verde, 1977-1997 d.C, 12500 a.C 26. Exploradores numa Paisagem Agitada 261 Fauna, evolução da paisagem e colonização humana norte-americanas, 20000-11500 a.C. 27. Caçadores Clovis em Julgamento 272
Extinção da megafauna e estilos de vida Clovis, 11500-10000 a.C. 28. Virgindade Reconsiderada 284 Caçadores-coletores da Terra do Fogo e no Amazonas 11500-6000 a.C. 29. Pastores e o "Menino Jesus" 292 Domesticação animal e vegetal nos Andes, e forrageiros litorâneos, 10500-5000 a.C 30. Um Duplo Olhar ao Vale de Oaxaca 300 A domesticação de milho, abóbora e feijões no México, 10500-5000 a.C. 31. Rumo a Koster 312 Estilos de vida caçadora-coletora na América do Norte, 7000-5000 a.C. 32. A Pesca do Salmão e a Dádiva da História 322 Complexos caçadores-coletores da costa noroeste, 6000-5000 a.C. A GRANDE AUSTRÁLIA E O LESTE ASIÁTICO 33. Revelação de um Novo Mundo 331 Caçadores-coletores tasmanianos, 20000-6000 a.C. 34. Escultura Corporal no Pântano Kow 339 Enterro e sociedade no sudoeste da Austrália, 14000-6000 a.C, e extinções da megafauna 35. A Travessia do Árido Deserto 346 Adaptações dos caçadores-coletores ao Deserto Central Australiano, 30000 a.C-1966 d.C. 36.Combatentes e o Nascimento de uma Serpente 354 Arte, sociedade e ideologia no norte da Austrália, 13000-6000 a.C. 37. Porcos e Pomares nas Montanhas 364 A criação da horticultura tropical nas montanhas da Nova Guiné, 20000-5000 a.C. 38. Solitário em Sundaland 375 Caçadores-coletores nas florestas tropicais do sudeste asiático, 20000-5000 a.C. 39. Yangtsé Abaixo 386 A origem do cultivo do arroz, 11500-6500 a.C. 40. Com o Jomon 398 Complexos caçadores-coletores no Japão e a mais antiga cerâmica, 14500-6000 a.C. 41. Verão no Ártico 410
A estepe dos mamutes e a colonização do Alto Ártico, 19000-6500 a.C. SUL DA ÁSIA 42. Passagem pela Índia 427 Arte rupestre indiana e aldeias na planície do Ganges, 200000-85000 a.C. 43. Uma Caminhada Pelo Hindu Kush 438 Agricultura inicial no sul e centro da Ásia; a domesticação do algodão, 7500-5000 a.C. 44. Abutres das Zagros 451 As raízes da civilização mesopotâmia, 11000-9000 a.C. 45. Surge a Civilização na Mesopotâmia 461 O desenvolvimento das cidades e do comércio, 8500-6000 a.C. ÁFRICA 46. Peixe Assado à Margem do Nilo 475 Caçadores-coletores do norte da África e do vale do Nilo, 20000-11000 a.C. 47. Na Colina Lukenya 486 O desenvolvimento das paisagens e faunas do leste africano após 20000 a.C. 48. Patas de Rã e Ovos de Avestruz 495 Caçadores-coletores no deserto de Kalahari, 12500 a.C 49. Uma Excursão pelo Sul da África 502 Mudanças ambientais, dieta e vida social, 12500-7000 a.C. 50. Raios nos Trópicos 516 Caçadores-coletores na África Central e Ocidental; mudança ambiental na África Oriental, 7000-5000 a.C. 51. Carneiro e Gado no Saara 523 O desenvolvimento do pastoralismo no norte da África, 9600-5000 a.C. 52. Agricultores no vale do Nilo e Além 532 A chegada da agricultura de cereais ao norte da África, 55000-4000 a.C. Epílogo: "A Bênção da Civilização" 537 Impactos passados, presentes e futuros do aquecimento global na história humana
PREFÁCIO Este livro é uma história do mundo entre 20.000 e 5.000 a.C. Foi escrito para aqueles que gostam de pensar no passado e desejam saber mais sobre as origens da agricultura, das cidades e da civilização. E também para os que pensam no futuro. O período em discussão foi o de aquecimento global, durante o qual surgiram novos tipos de plantas e animais — espécies domésticas que sustentaram a revolução agrícola. Essas novas variantes genéticas de espécies selvagens têm uma incrível ressonância com os organismos geneticamente modificados que hoje se fabricam, enquanto o aquecimento global também recomeçou. Aqueles que se preocupam com o impacto com a maneira como os OGMs (Organismo Geneticamente Modificado) e a mudança do clima afetarão nosso mundo talvez desejem saber como novos tipos de espécies e aquecimento global já afetaram nosso passado. Por si só, o passado é digno de estudo independente de qualquer lição que encerre para os dias atuais. Este livro faz as simples perguntas sobre a história humana: o que aconteceu, quando, onde e por quê? Oferece respostas entremeando uma narrativa histórica com argumentos causais. Ao fazê-lo, atende também aos leitores que perguntarão: "como sabemos disso?" — muitas vezes uma pergunta muito apropriada quando os indícios arqueológicos parecem tão escassos. E Depois do Gelo faz outro tipo de pergunta sobre o passado: como era viver em tempos préhistóricos? Qual era a experiência do dia-a-dia daqueles que viveram o aquecimento global, uma revolução agrícola e a origem da civilização? Tentei escrever um livro que torne acessível a um vasto público os indícios da pré-história, mantendo ao mesmo tempo os mais altos níveis de erudição acadêmica. A popularização da arqueologia na TV e em muitos livros recentes às vezes adota uma atitude condescendente para com seus espectadores e leitores, oferecendo versões superficiais e
imprecisas de nosso passado. Por outro lado, muitos dos fatos mais notáveis da pré-história permanecem ocultos de todos, com exceção de uns poucos acadêmicos e leitores especializados em obras eruditas, de prosa impenetrável e carregada de jargão. Tentei tornar o conhecimento arqueológico mais facilmente disponível, atendendo também aos que desejam avaliar criticamente minhas afirmações e empreender maiores estudos eles próprios. Para isso, incluí uma abrangente bibliografia e extensas notas de rodapé que especificam fontes primárias, discutem questões técnicas e oferecem opiniões alternativas. Há, porém, extraopcionais: meu principal objetivo foi produzir uma "boa leitura" sobre um espantoso período da história humana. Este não foi um livro fácil de escrever. Tendo começado o trabalho há vários anos, a composição seguiu aos arrancos, devido às exigências da vida acadêmica e familiar. Novos temas viviam surgindo: a história do pensamento acadêmico, a (im)possibilidade de compreender outras culturas, a viagem como metáfora para leitura e escavação. O fato de ter podido completar Depois do Gelo deveu-se apenas ao apoio generoso da família, amigos e colegas. Como se baseia na pesquisa e no ensino feitos na última década, devo inicialmente agradecer a meus colegas do Departamento de Arqueologia da Universidade de Reading, por proporcionarem um ambiente estimulante e solidário durante todo esse tempo. Desses colegas, sou particularmente grato a Martin Bell, Richard Bradley, Bob Chapman, Petra Dark, Roberta Gilchrist, Sturt Manning e Wendy Matthews, que responderam a perguntas específicas ou forneceram opiniões pertinentes. Também sou grato a Margaret Matthews, por seus conselhos e ajuda na preparação das ilustrações em cores, e a Teresa Hocking, pelo meticuloso cuidado na verificação do meu texto. O departamento de empréstimos interbibliotecas da Biblioteca da Universidade merece especial agradecimento por atender com tanta eficiência aos meus copiosos pedidos. Vali-me muitíssimo da bondade de arqueólogos de todo o mundo, que me forneceram conselhos, trabalhos inéditos, excursões em suas escavações e visitas a sítios arqueológicos. Além dos mencionados acima, gostaria de agradecer em particular a Soren Andersen, Ofer Bar-Yosef, Bishnupriya Basak, Anna Belfer-Cohen, Peter Rowley-Conwy, Richard Crosgrove, Bill Finlayson, Dorian Fuller, Andy Garrard, Avi Gopher,
Nigel Goring-Morris, David Harris, Gordon Hillman, Ian Kuijt, Lars Larsson, Paul Martin, Roger Matthews, Edgar Peltenburg, Klaus Schmidt, Alan Simmons, C. Vance Haynes e Trevor Watkins. Outros responderam generosamente a perguntas específicas — muitas das quais acabei sendo incapaz de usar. E assim gostaria de agradecer a Douglas Anderson, Françoise Audouze, Graeme Barker, Gerhard Bosinski, James Brown, o Projeto Çatalhõyük, Jacques Cinq-Mars, Angela Close, Creswell Crags Heritage Trust, John Curtis, Rick Davis, Tom Dillehay Martin Emele, Phil Geib, Ted Goebel, Jack Golson, Harald Hauptmann, Ian Hodder, Keiji Imamura, Sibel Kusimba, Bradley Lepper, Curtis Marean, Paul Mellars, David Meltzer, Andrew Moore, J. N. Pai, John Parkington, Vladimir Pitufko, John Rick, Lawrence Robbins, Gary Rollefson, Michael Rosenberg, Daniel Sandweiss, Mike Smith, Lawrence Straus, Paul Taçon, Kathy Tubb, François Valia, Lyn Wadly e João Zilhão. Agradeço a meu irmão Richard Mithen pelos conselhos sobre práticas agrícolas, genética de plantas e desenvolvimento de colheitas. Sou imensamente agradecido aos que leram e comentaram um ou mais dos meus capítulos: Angela Close, Sue Colledge, Tom Dillehay, Kent Flannery Alan James, Joyce Marcus, Naoko Matsumato, David Meltzer, James O'Connell, Anne Pirie e Lyn Wadley. Dois desses — Anne e Sue — merecem agradecimentos especiais por lerem mais que seu justo quinhão e aconselharem sobre o conteúdo e estilo do livro em geral. Também gostaria de agradecer a Toby Mundy, que encomendou este livro quando estava na Weidenfeld & Nicolson, e a Tom Wharton, que ofereceu detalhado conselho editorial sobre todo o texto, para imenso benefício deste. Quatro outros arqueólogos merecem menção especial: Robert Braidwood, Jacques Cauvin, Rhys Jones e Richard MacNeish. Todos foram destacados arqueólogos e morreram quando eu me achava nos estágios finais da composição da obra. Suas escavações e idéias estão documentadas em Depois do Gelo, e desejo agradecer a seminal contribuição deles à nossa compreensão do passado. A conclusão deste livro antes do fim de 2002 tornou-se possível pela Academia Britânica, cujo prêmio de Leitura de Pesquisa em outubro de 2001 proporcionou a folga necessária de meus deveres acadêmicos normais. Antes disso, grande parte da composição, porém, foi feita em
tempo roubado. Roubado de meus alunos, quando devia estar cuidando de suas redações e preparando aulas; de meus colegas, quando devia ser mais pontual nas reuniões do departamento; de minha equipe de campo em Wadi Faynan, quando devia estar escavando. Mas, acima de tudo, roubado de minha família. É a eles que apresento minhas desculpas e maiores agradecimentos. Agradeço em especial a Heather pela tarde em que voltou para a casa direto da hora de alfabetização na escola e me lembrou de "usar verbos e substantivos, assim como adjetivos", em meu livro. Também a Nicholas pela sugestão do título "Atolado na Lama" — que deve resumir sua infeliz experiência com a arqueologia. E a Hannah por ter sido a primeira a reconhecer que "O livro de papai é na verdade um projeto de família". De fato era, um projeto que não poderia ser completado sem o apoio deles. E com Sue, minha esposa, que tenho a maior dívida simplesmente por estar no centro do meu mundo. E é com imenso amor e gratidão que dedico este livro a meus pais, Pat e Bill.
O COMEÇO 1 O Nascimento da História Aquecimento global, indícios arqueológicos e história humana A história humana começou em 50.000 a.C. ou por aí. Talvez 100.000 a.C., mas certamente não antes. A evolução humana tem um pedigree bem mais longo — pelo menos 3 bilhões de anos se passaram desde a origem da vida, e 6 milhões desde que nossa linhagem se cindiu à do chimpanzé. A história, desenvolvimento cumulativo de fatos e conhecimento, é assunto recente e surpreendentemente curta. Pouca coisa de importância aconteceu até 20.000 a.C. — as pessoas apenas continuaram vivendo como caçadores-coletores, exatamente como vinham fazendo seus ancestrais por milhões de anos. Viviam em pequenas comunidades e jamais permaneciam muito tempo em um assentamento. Pintaram-se algumas paredes de cavernas e fizeram-se algumas armas de caça mais ou menos excelentes; mas não houve fatos que influenciassem o curso da história futura, que criassem o mundo moderno. Então vieram uns espantosos 15 mil anos que testemunharam a origem da agricultura, das cidades e da civilização. Em 5.000 a.C., as fundações do mundo moderno já se haviam estabelecido, e nada do que veio depois — a Grécia clássica, a Revolução Industrial, a era atômica, a Internet — jamais se igualou ao significado desses fatos. Se 50.000 a.C. assinalou o nascimento da história, 20.000-5.000 a.C. foi a sua maioridade. Para que a história começasse, as pessoas precisavam da mente moderna — uma mente bem diferente da de qualquer ancestral humano ou de outras espécies hoje vivas. É uma mente com poderes de imaginação, curiosidade e invenção aparentemente ilimitados. A história de suas origens é a que contei — ou pelo menos tentei contar — em meu livro The Prehistory of the Mind [A Pré-história da Mente], de 1996. Se a teoria que propus— de que múltiplas inteligências especializadas se fundiram para criar uma mente "cognitivamente fluida" — é inteiramente correta, errada ou alguma coisa intermediária, isso não constitui problema para a história que vou contar agora. O leitor tem apenas de aceitar que há
50 mil anos evoluiu uma mente singularmente criativa. Este livro trata de uma questão simples: que aconteceu depois? O auge da última era do gelo ocorreu por volta de 20.000 a.C. e é conhecido como o último máximo glacial, ou LGM (na sigla inglesa). Antes dessa data, as pessoas eram escassas na Terra e lutavam com um clima em deterioração. Sutis mudanças na órbita do planeta em redor do Sol haviam feito com que enormes camadas de gelo se expandissem por grande parte da América do Norte, norte da Europa e Ásia. O planeta foi inundado pela seca; o nível do mar baixara, deixando à mostra vastas planícies costeiras, muitas vezes estéreis. As comunidades humanas sobreviveram às mais severas condições retirando-se para refúgios onde ainda se podiam encontrar lenha e alimentos. Logo após 20.000 a.C, começou o aquecimento global. Inicialmente, foi meio lento e desigual — muitas pequenas subidas e descidas na temperatura e chuva. Em 15.000 a.C., as grandes camadas de gelo começaram a derreter-se; em 12.000 a.C., o clima começara a flutuar, com impressionantes ondas de calor e chuva seguidas por súbitos retornos de frio e seca. Logo depois de 10.000 a.C., houve um assombroso surto de aquecimento global que pôs fim à era do gelo e introduziu o mundo do Holoceno, em que vivemos hoje. Foi durante esses 10 mil anos de aquecimento global e seu resultado imediato que o curso da história humana mudou. Em 5.000 a.C., muita gente em todo o mundo vivia da agricultura. Novos tipos de animais e plantas — espécies domesticadas — haviam aparecido; os camponeses habitavam aldeias e cidadezinhas permanentes, e sustentavam artesãos especializados, sacerdotes e chefes. Na verdade, pouco diferiam de nós; cruzara-se o Rubicão da história — de um estilo de vida de caça e coleta para o da agricultura. Os que continuaram como caçadores-coletores também viviam de maneira bastante diferente da de seus ancestrais no LGM. O objetivo desta história é examinar como e por que ocorreram tais fatos — se levaram à agricultura ou a novos tipos de caça e coleta. É uma história global, de todas as pessoas que viviam no planeta Terra entre 20.000 e 5.000 a.C. Não foi a primeira vez que o planeta passou por um aquecimento global. Nossos ancestrais e parentes — o Homo erectus, H. heidelbergensis e o H. neanderthalensis da evolução humana — haviam atravessado períodos
equivalentes de mudança de clima quando o planeta ia e vinha de eras de gelo a cada 100 mil anos. Eles reagiam fazendo em grande parte o mesmo que sempre haviam feito: as populações expandiam-se e contraíam-se, adaptavam-se a ambientes diferentes e ajustavam as ferramentas que fabricavam. Em vez de criarem história, simplesmente empenhavam-se numa interminável ronda de adaptação e readaptação a seu mundo instável. Tampouco foi a última. No início do século XX d.C., o aquecimento global começou de novo e hoje continua à toda. Mais uma vez, criam-se novos tipos de plantas e animais, desta vez por meio de engenharia genética intencional. Como esses novos organismos, nosso atual aquecimento global é um produto apenas da atividade humana — queima de combustíveis fósseis e desflorestamento em massa. Isso aumentou a extensão de gases de estufa na atmosfera e pode elevar as temperaturas globais muito além do que poderia fazer a natureza sozinha. Os futuros impactos de um novo aquecimento global e organismos geneticamente modificados em nosso ambiente e sociedade são inteiramente desconhecidos. Um dia, se escreverá uma história de nossos tempos futuros para substituir a multidão de especulações e previsões com as quais nos debatemos hoje. Mas antes disso temos de ter uma história do passado. As pessoas que viveram entre 20.000 e 5.000 a.C. não deixaram cartas nem diários descrevendo suas vidas e os fatos que geravam e testemunhavam. Era preciso que houvesse cidades, comércio e artesãos para que ocorresse a invenção da escrita. Assim, em vez de usar registros escritos, esta história examina o lixo que as pessoas deixaram para trás — pessoas cujos nomes e identidades jamais serão conhecidos. Nossa história se apóia em instrumentos de pedra, vasos de cerâmica, detritos de alimentos, moradas abandonadas e muitos outros objetos de estudo arqueológico, como monumentos, túmulos e arte rupestre. Usa indícios de mudança ambiental passada, como grãos de pólen e asas de besouro presos em antigos sedimentos. De vez em quando, ganha alguma ajuda do mundo moderno, porque os genes que trazemos e as línguas que falamos podem nos falar do passado. O risco de ter de depender de tais indícios é que a história resultante pode tornar-se pouco mais que um catálogo de artefatos, um compêndio
de sítios arqueológicos ou uma sucessão de ''culturas" espúrias. História mais acessível e atraente é a que oferece uma narrativa sobre as vidas das pessoas; que trata da experiência de viver no passado e reconhece a ação humana como causa de mudança econômica e social. Para conseguir tal história, este livro conduz alguém dos tempos modernos aos préhistóricos: alguém para ver os instrumentos de pedra sendo feitos, os fogos ardendo nos lares e as moradas ocupadas; alguém para visitar as paisagens do mundo da era do gelo e vê-las mudar. Escolhi um rapaz chamado John Lubbock para essa tarefa. Ele visitará cada um dos continentes, começando no oeste da Ásia e seguindo pelo mundo afora: Europa, as Américas, Austrália, leste da Ásia, sul da Ásia e África. Viajará da mesma forma como os arqueólogos escavam — vendo os mais íntimos detalhes das vidas das pessoas, mas incapaz de fazer qualquer pergunta e com sua presença inteiramente desconhecida. Farei comentários para explicar como os sítios arqueológicos foram descobertos, escavados e estudados; as formas como contribuem para nossa compreensão de como surgiram a agricultura, as cidades e a civilização. Quem é John Lubbock? Ele vive em minha imaginação como um rapaz interessado no passado e com medo do futuro — não o seu próprio, mas o do planeta Terra. Tem o mesmo nome de um polímata vitoriano que, em 1865, publicou seu próprio livro sobre o passado e intitulou-o Prehistoric Times [Tempos pré-históricos], O John Lubbock vitoriano (1834-1913) era vizinho, amigo e seguidor de Charles Darwin. Foi um banqueiro que instigou reformas financeiraschave, um membro liberal do Parlamento que apresentou a primeira legislação para proteção de monumentos antigos e férias em bancos (públicos), um botânico e entomologista com muitas publicações científicas em seu nome. Prehistoric Times tornou-se um livro didático padrão e best-seller, com a sétima e final edição publicada em 1913. Foi uma obra pioneira, uma das primeiras a rejeitar a cronologia bíblica que dizia que o mundo teria uns meros 6 mil anos: introduziu os termos paleolítico e neolítico, Velha e Nova Idades da Pedra, hoje reconhecidas como períodos-chave do passado pré-histórico. Mas as intuições do John Lubbock histórico eram igualadas por uma pavorosa ignorância. Ele pouco sabia da data e duração da Idade da Pedra:
seus indícios de estilos de vida e ambientes antigos eram escassos: jamais ouvira falar de Lascaux, da Jericó pré-histórica e de inúmeros outros sítios hoje conhecidos como marcos milenares do passado humano. Quando planejava este livro, pensei em mandar o John Lubbock vitoriano a tais sítios, como gratidão por ele ter escrito Prehistoric Times. Mas o tempo dele passou; mesmo com a experiência de Lascaux e Jericó, julguei improvável que abandonasse a atitude vitoriana padrão de que todos os caçadores-coletores eram selvagens com mentes de criança. Um beneficiário mais adequado de uma viagem pré-histórica é alguém que ainda não deixou sua marca no mundo. E,assim vou mandar um John Lubbock dos dias de hoje para os tempos pré-históricos, levando um exemplar do livro de seu xará. Lendo-o em remotos cantos do mundo, ele apreciará tanto os feitos do John Lubbock vitoriano quanto o notável progresso que os arqueólogos fizeram desde a publicação de Prehistoric Times menos de 150 anos atrás. Uso John Lubbock para assegurar que esta história é mais sobre vidas de pessoas que apenas os objetos que os arqueólogos encontram. Meus próprios olhos não podem escapar do presente. Sou incapaz de ver além dos descartados instrumentos de pedra e detritos de alimentos, das ruínas de casas vazias e lareiras frias ao toque. Embora as escavações ofereçam portas para outras culturas, essas portas só podem ser entreabertas à força, jamais atravessadas. Posso, porém, usar a imaginação e espremer John Lubbock por entre as frestas, para que ele veja o que é negado a meus olhos, e tornar-se o que o escritor de narrativas de viagem Paul Theroux descreveu como um "estranho em terra estranha". Theroux escrevia sobre seu desejo de experimentar a "alteridade até o limite"; o fato de tornar-se um estranho permitia-lhe descobrir quem era e o que representava. É isso que a arqueologia pode fazer por todos nós hoje. À medida que a globalização conduz a uma delicada homogeneidade cultural em todo o mundo, a viagem imaginativa a tempos pré-históricos talvez seja a única forma de podermos agora obter essa extrema alteridade por meio da qual nos reconhecermos. E foi a única forma que encontrei de traduzir os indícios arqueológicos no tipo de história humana que desejo escrever. Quando olho as moradas desertas descobertas por minhas escavações, muitas vezes partilho os pensamentos de outro grande escritor de
narrativas de viagem, Wilfred Thesiger. Em 1951, ele viveu com os árabes do pântano do sul do Iraque. Ao voltar lá no ano seguinte, chegou ao amanhecer e viu os vastos capões de juncos silhuetados contra o nascer do Sol. Lembrou a primeira visita — as canoas nos ribeirões, o grasnar dos gansos, casas vermelhas construídas sobre a água, os búfalos molhados, meninos cantando na escuridão, o coaxar das rãs. "Uma vez mais senti", escreveu depois, "o anseio de partilhar aquela vida, e ser mais que um mero espectador." As técnicas da arqueologia possibilitaram-nos tornar-nos espectadores da vida pré-histórica — embora através de lentes embaçadas. Como Thesiger, anseio por ir além: experimentar a própria vida pré-histórica, e usar essa experiência para escrever história humana. Thesiger podia partir em sua canoa; tenho apenas a imaginação, informada por um meticuloso e exaustivo estudo de indícios arqueológicos. E assim, nas páginas deste livro, Lubbock realiza meu desejo de tornar-me mais que um mero espectador. Por meio dele, torno-me igual a Theroux e Thesiger, um estranho viajando por terras estranhas — no meu caso, as dos tempos préhistóricos.
2 O Mundo em 20.000 a.C. Evolução humana, causas de mudança do clima e a datação por radiocarbono O mundo em 20.000 a.C. é inóspito, um planeta frio, seco e ventoso, com freqüentes tempestades e uma atmosfera coberta de poeira. O baixo nível do mar juntou algumas massas de terra e criou extensas planícies costeiras. Tasmânia, Austrália e Nova Guiné são uma só; também o são Bornéu, Java e Tailândia, que formam cadeias de montanhas dentro da maior extensão de floresta tropical do planeta Terra. O Saara, Gobi e outros desertos de areia aumentaram muito de tamanho. A Grã-Bretanha não é mais que uma península da Europa, o norte soterrado sob o gelo, o sul um deserto polar. Grande parte da América do Norte está abafada sob um gigantesco domo de gelo. As comunidades humanas foram obrigadas a abandonar muitas regiões que habitavam antes do último máximo glacial, ou LGM; outras regiões têm condições de assentamento, mas permanecem desocupadas, porque todas as rotas de colonização foram bloqueadas por secos desertos e muralhas de gelo. As pessoas sobrevivem onde podem, enfrentando temperaturas congelantes e seca persistente. Pensem, por exemplo, nas que vivem num lugar da Ucrânia de hoje que se tornará conhecida dos arqueólogos como Pushkari. Nesse período, cinco moradias formam mais ou menos um círculo na tundra. Dão para o sul, longe do frio mordente e perto do meandro de um rio semicongelado. As casas parecem iglus, mas foram construídas com osso e couro de mamute, em vez de blocos de gelo. Cada uma tem uma entrada imponente, formada por duas presas desse animal, com as pontas para cima formando um arco. As paredes têm enormes ossos como suportes verticais, entre os quais se empilharam mandíbulas para criar uma densa barreira ao frio e ao vento. Outras presas foram empregadas no telhado, para prender no lugar couros e torrões de turfa sustentados por uma estrutura de ossos e galhos. A fumaça sai suavemente pelo telhado de
uma casa; os gritos de um bebê varam o grosso couro de outra. Adiante da aldeia, um trenó carregado de imensos ossos é puxado do rio. Os que trabalham têm os rostos envoltos em nuvens de quente respiração, por trás das quais bastas barbas e cabelos compridos pouca pele deixam à mostra. Vestem roupas forradas de peles. Não simples invólucros de couro, mas roupas costuradas com arte. E meados do inverno, e essa aldeia fica não mais de 250 quilômetros ao sul das geleiras. A temperatura pode cair a 30°C negativos, e são nove meses disso para suportar. O rio fornece materiais de construção: ossos de animais que morreram no norte e as carcaças foram arrastadas corrente abaixo. A vida é dura: puxar os ossos, construir e consertar casas, cortar e quebrar presas em partes para que os artesãos da aldeia possam fazer utensílios, armas e jóias. A luz do Sol é preciosa — apenas umas poucas horas por dia, e depois longas horas na escuridão, contando histórias em torno das fogueiras. Uma pequena fogueira arde constantemente entre as choupanas, a chama fornecida por um único toro nodoso. Isso oferece um foco para meia dúzia de homens e mulheres que se sentam muito juntos, joelhos encolhidos contra o peito e braços cruzados, minimizando a exposição ao vento enquanto costuram novas roupas. Perto da fogueira, mata-se um animal, e o ar recende a carne e sangue. Era uma rena, encontrada a vagar isolada do rebanho — uma bem-vinda surpresa para um grupo que fora buscar pedras de um afloramento próximo. Mataram-na e agora podem comer carne sem esgotar a caça guardada no congelador — um buraco no chão. Nada se perderá da carcaça. A carne será dividida entre as cinco famílias que vivem em Pushkari nesse inverno. Da galhada se farão cabos de faca e arpões, roupas e sacos do couro, os tendões fornecerão linha e corda. O coração, pulmões, fígado e outros órgãos serão comidos como pitéus, os dentes brocados para fazer pingentes decorativos, o osso guardado para combustível. Uma das moradas tem o interior iluminado pela pequena chama de uma lâmpada de gordura animal. É quente, abafado e encardido lá dentro. O piso é macio, atapetado com couros e peles que cercam uma lareira central cheia de cinzas. Crânios e ossos de pernas de mamutes provêm os móveis; uma variedade de sacos de couro, vasos de osso e madeira, instrumentos de galhada e pedra espalham-se pelas paredes e pendem dos
caibros — uma cena de bagunça doméstica da Idade da Pedra. A luz tremulante mostra o rosto de um homem. Parece velho, mas pele e osso envelhecem depressa no mundo da era do gelo. Esse homem usa o cabelo em trancas, tem pingentes de marfim e dentes furados em torno do pescoço. Os dedos trabalham rápido com uma agulha e um fio de tendão. Do lado de fora da morada, um homem e algumas mulheres sentam-se juntos batendo nódulos de pedra apoiados nos joelhos. Tiram lascas, cujas maiores são cuidadosamente postas de lado; outras são deixadas onde caíram ou jogadas ao acaso entre as lascas espalhadas em volta. Há conversas e uma ou outra risada; algum xingamento quando um golpe atinge um polegar, em vez da pedra. O interior de outra morada não tem sinal algum de vida doméstica. O piso é coberto de densas peles; um crânio de mamute particularmente grande domina o aposento, pintado com listras vermelhas. Junto a ele, baquetas e flautas feitas de ossos de pássaros. Numa laje de pedra, duas estatuetas de marfim, cada uma de não mais que alguns centímetros de altura. Fora isso, a morada está inteiramente vazia. É aí que se fazem as reuniões especiais; quando chegam visitantes, quase toda a aldeia se reúne aí dentro para ouvir as notícias e trocar presentes. Torna-se muito quente e malcheiroso; e também barulhento, quando todos se põem a cantar. Mas por enquanto, o único barulho é o da vida diária no LGM: o estalar de pedra contra pedra, a suave conversa de vozes humanas, os arquejos do trabalho pesado. Esses sons são levados tundra afora pelo vento gelado e implacável, que ganhará força com o uivo dos lobos ao cair a escuridão. Quando isso acontece, as pessoas de Pushkari se amontoam em redor da fogueira. Carne assada foi dividida, histórias contadas. A temperatura cai outra fração e cruza um tácito patamar que faz as pessoas dispersarem-se para suas moradas e o conforto das peles. Os que vivem em Pushkari são Homo sapiens — seres humanos modernos, anatômica e mentalmente iguais a vocês e eu. Em 20.000 a.C., todas as outras espécies humanas já se extinguiram, de modo que esse é o único tipo que John Lubbock vai encontrar em suas viagens. Uma breve explicação de quando e por que isso aconteceu é portanto um útil prelúdio à história que está para começar. O registro fóssil da evolução humana começa 7 milhões de anos atrás, com um espécime descoberto em 2002 d.C. no Chade, no centro-norte da
África, uma das mais importantes descobertas de todos os tempos, e designado como Sahelanthropus tchadensis. Após 4,5 milhões de anos atrás, várias espécies de criaturas semelhantes a macacos, que andavam sobre duas patas e usavam instrumentos de pedra, são conhecidas pelo registro fóssil da África. Logo após 2 milhões de anos atrás, apareceu a primeira espécie semelhante à humana, que os arqueólogos chamam de Homo ergaster. Foi o primeiro dos nossos ancestrais que se espalharam pela África, Fez isso com extraordinária rapidez, alcançando o sudeste asiático talvez há 1,6 milhão de anos. O Homo ergaster teve pelo menos dois descendentes, H. erectus no leste da Ásia e H. heidelbergensis na África. O último dispersou-se na Europa e deu origem aos Neandertais — Homo neanderthalensis — por volta de 250 mil anos atrás. Os Neandertais foram um beco sem saída evolucionário, como o foi o H. erectus na Ásia. Mesmo assim, os dois foram espécies de extremo êxito, que atravessaram grandes oscilações do clima. Foi durante um período glacial especialmente severo, à 130 mil anos atrás, que o Homo sapiens evoluiu na África — sendo o primeiro espécime descoberto em Omo Kibish, na Etiópia. Essa nova espécie comportava-se de maneira bastante diferente das que a antecederam: o registro arqueológico começa a mostrar vestígios de arte, ritual e numa nova gama de tecnologia, refletindo uma mente mais criativa. O H. sapiens logo substituiu todas as espécies humanas existentes, empurrando os Neandertais e o H. erectus para a extinção. Logo após 30.000 a.C, o Homo sapiens era o único tipo de humano que restava no planeta; foi descoberto em toda a África, Europa e grande parte da Ásia. Uma admirável sede de viagem levou alguns de seus membros aos extremos limites sul da Australásia, que se tornariam a futura ilha da Tasmânia. A essa altura, porém, o clima se encaminhava para as profundezas da última era do gelo: a temperatura despencava; as secas eram persistentes; geleiras, camadas de gelo e deserto expandiam-se; o nível do mar baixava. Plantas, animais e pessoas tinham que se adaptar onde e como viviam ou ser extintos. Quantas pessoas havia vivas no planeta no LGM? Levando-se em conta as grandes áreas de regiões inabitáveis, as severas condições climáticas que levavam à mortalidade precoce, e o fato de que a moderna genética sugeriu que apenas 10 mil seres humanos modernos estavam vivos 130
mil anos atrás, podemos supor uma cifra de em torno de 1 milhão. Mas trata-se de fato de uma suposição; tentar estimar tamanhos de populações passadas é uma das mais difíceis tarefas que enfrentam os arqueólogos. Enquanto os caçadores de Pushkari constroem suas moradas e lascam suas pedras, um enorme rebanho de mamutes procura comida do outro lado do mundo, na América do Norte, numa vizinhança do que se tornaria conhecido como Hot Springs, em Dakota do Sul. É uma tarde de inverno, e a luz do Sol se vai enquanto os grandes animais reviram a neve com as presas para encontrar o mato embaixo. Dirigem-se para matagais mais extensos e pequenas moitas que cercam as águas fumegantes de um lago próximo. Em 20.000 a.C., as Américas continuam inteiramente desprovidas de assentamento humano, embora suas paisagens sejam ricas em caça, de modo que esses animais não temem caçadores humanos. O aquecimento global a caminho irá não apenas condicionar a história humana que John Lubbock experimentará, mas a de todas as outras espécies, algumas das quais — como os mamutes — serão extintas antes que ele complete suas viagens. Ao contrário do aquecimento global que enfrentamos hoje, o que veio após 20.000 a.C. foi inteiramente natural. Foi apenas a mais recente virada de um período "quente e úmido" para outro ''seco e frio" na história da Terra — de um estado "glacial" para um "interglacial". A última causa de tal mudança climática está nas alterações regulares da órbita da Terra em torno do Sol. O cientista sérvio Milutin Milankovitch avaliou pela primeira vez o significado dessa mudança orbital na década de 1920. Com base em suas teorias, os cientistas estabeleceram que a cada 95.800 anos a órbita da Terra muda de mais ou menos circular para elíptica. Quando isso acontece, o Hemisfério Norte desenvolve maior sazonalidade, e o contrário acontece no Sul. Isso provoca o surgimento de camadas de gelo no Norte. Quando retorna a órbita circular, reduzem-se os contrastes norte-sul na sazonalidade, ocorre o aquecimento e as camadas de gelo se derretem. As alterações na inclinação da Terra durante sua órbita também têm implicações climáticas. A cada 41 mil anos, a inclinação da Terra muda de 21,39 para 24,36 graus e retorna. Quando esse ângulo aumenta, as estações se tornam mais intensas: verões mais quentes, invernos mais frios. A Terra também tem uma oscilação regular em seu eixo de rotação,
com seu próprio ciclo de 21 mil 700 anos. Isso influencia o ponto na órbita em torno do Sol em que a Terra se inclina com o Hemisfério Norte dirigido para o Sol. Se isso se dá quando a Terra está relativamente próxima do Sol, os invernos são curtos e quentes; e o contrário, se a Terra se acha relativamente distante do Sol quando assim inclinada, os verões são mais longos e mais frios. Embora essas mudanças na forma, inclinação e oscilação da órbita da Terra alterem o clima, os cientistas pensam que não são suficientes, em si, para responder pela imensa magnitude e rapidez de mudanças climáticas do passado. Processos que acontecem no próprio planeta devem ter amplificado substancialmente as leves mudanças que elas produziram. Vários são conhecidos: mudanças em correntes oceânicas e atmosféricas, acúmulo de gases de estufa (sobretudo dióxido de carbono) e o aumento das próprias camadas de gelo (que refletem cada vez mais radiação solar quando crescem de tamanho). O impacto combinado de mudança orbital e mecanismos de ampliação tem sido o vaivém do clima de glacial para interglacial e vice-versa a cada 100 mil anos, muitas vezes com uma mudança extraordinariamente rápida de um estado para outro. Uma das mais impressionantes dessas mudanças ocorreu em 9.600 a.C., resultante de 10 mil anos de altos e baixos em precipitação pluvial e temperatura desde o extremo climático do LGM. A linha dentada no gráfico anterior mede a mudança de temperatura global entre 20.000 a.C. e o tempo atual. Baseia-se em mudanças na composição química do gelo de um núcleo retirado da Groenlândia, como uma medida por '"procuração" — uma medida indireta da temperatura global. Mais especificamente, as proporções entre dois isótopos de oxigênio, 16O e 18O, são registradas como desvios relativos de um padrão de laboratório (180%o). Quando esse valor é alto, significa que o planeta estava relativamente quente e úmido; quando baixo, frio e seco. Como se vê no gráfico, a linha que mede esse valor e aumenta irregularmente aos poucos de um ponto baixo em 20.000 a.C. até 12.700 a.C. é alcançada; nessa data, dispara para cima, assinalando o início de um período de relativo calor e umidade conhecido como interestadial glacial tardio. Há vários pequenos picos nesse período, sendo o primeiro conhecido como Bolling e o segundo Allerod, mas só na Europa eles podem ser distinguidos. O traço-chave a notar é simplesmente o período geral de calor entre 12.700 e 10.800 a.C.
O grande mergulho seguinte é chamado de Jovem Dryas, e desempenha um grande papel na história humana no Hemisfério Norte, mas também nesse caso não pode ser notado no Sul. Suas condições muito frias e secas tiveram um fim súbito em 9.600 a.C., quando houve um segundo aumento impressionante de temperatura; isso assinala o verdadeiro término da última era do gelo. Na verdade, assinala a transição entre dois grandes períodos na história da Terra, o Pleistoceno e o Holoceno. Após essa grande elevação, a linha continua a flutuar, chegando aos poucos a um pico em 7.000 a.C. e dando um visível mergulho em 6.200 a.C. Fora isso, o clima do Holoceno na Terra tem sido notavelmente estável — embora esta estabilidade possa agora chegar ao fim, pois começou recentemente um novo período de aquecimento global causado pelo homem. A construção de moradas de ossos de mamute, a costura de roupas, a feitura de instrumentos de pedra e a aquisição de comida não eram as únicas atividades humanas em andamento no LGM. Os artistas trabalham nas cavernas do sudoeste da Europa. Um conjunto de lâmpadas alimentadas a gordura animal arde no chão da caverna que se tornará conhecida como Pech Merle na França. Outra lâmpada é segura no alto por um menino para oferecer iluminação aos rápidos movimentos da mão de um pintor. Este é um homem velho mas lépido, de compridos cabelos grisalhos, nu mas com a pele pintada. Faz parte de uma comunidade que vive da caça de renas na tundra do sul da França. Em meio às lâmpadas
estão suas pinturas. Torrões de ocre-vermelho foram reduzidos a pó e depois misturados numa gamela com água de poças no chão da caverna. Outra gamela contém um pigmento negro; bastões de carvão espalham-se entre elas, junto com pedaços de couro e pele, bastões esfiapados e pincéis de pêlos. Um cheiro gostoso paira no ar; ervas fumegam sobre um fogo. Aos poucos, o artista se ajoelha e inala profundamente, para renovar a visão em sua mente. Na parede, dois cavalos foram pintados de perfil, costa com costa e traseiros sobrepondo-se. O pintor cria grandes manchas dentro da silhueta; toma bocados de tinta na boca e cospe-a através de um decalque de couro para fazer círculos na parede. Sua respiração é o elemento-chave para fazer os cavalos ganharem vida. Depois volta às ervas, troca o pigmento e agora põe a mão na parede para cuspir e deixar a silhueta dela. O artista trabalha hora após hora, parando apenas para trocar o pigmento ou o decalque, o pincel ou a esponja, tornar a pôr gordura dentro das lâmpadas e intoxicar a mente. Fala e canta para os cavalos, cai de quatro e empina como um garanhão. Faz novas manchas e decalques com a mão. As cabeças e pescoços dos cavalos são pintados de preto. Quando chega ao fim, o artista está fisicamente exausto e mentalmente esgotado. Os arqueólogos só ficaram sabendo da data em que as moradas de osso de mamute foram construídas em Pushkari e as pinturas feitas em Pech Merle com o uso de seu mais precioso instrumento científico — a datação por radiocarbono. Sem essa técnica, seria inteiramente impossível escrever uma história humana dos tempos pré-históricos, pois os arqueólogos não saberiam pôr os sítios que escavam — os assentamentos vivos que John Lubbock vai visitar — na ordem cronológica certa. E assim, como um prelúdio final à história que se segue, convém oferecer um breve resumo dessa notabilíssima técnica da ciência arqueológica. O princípio por trás é bastante direto. A atmosfera contém três isótopos de carbono: 12C, 13C e 14C. São átomos de carbono com diferentes números de nêutrons (seis, sete e oito respectivamente). As coisas vivas absorvem os isótopos de carbono no corpo na mesma proporção que eles existem na atmosfera. Com a morte, o 14C dentro do corpo começa a decompor-se, enquanto os outros permanecem inteiramente estáveis. Pode-se estabelecer a data em que ocorreu a morte medindo-se a proporção de 12C
para 14C e sabendo-se o ritmo em que o 14C se decompõe. Para ser datado, um objeto tem de conter carbono, o que significa que deve ter sido vivo um dia. Os instrumentos de pedra, a descoberta préhistórica mais ubíqua, não podem ser diretamente datados eles próprios, nem as paredes ou vasos de barro. Em vez disso, os arqueólogos precisam depender da descoberta de artigos em estreita associação com material datável, como ossos de animais ou restos de plantas, sendo o ideal o carvão. Também tem de restar 14C suficiente na amostra. Infelizmente, isso não ocorre em qualquer amostra anterior a 40.000 a.C, o que estabelece o limite cronológico para a datação por radiocarbono. Há mais duas complicações. A primeira é que a data por radiocarbono jamais é um valor exato, mas apenas uma estimativa definida por uma média e um desvio-padrão, como, por exemplo, em 7500 ± 100 AP. "AP" é o termo usado pelos arqueólogos para referir-se a "Antes do Presente" (tendo-se combinado que o presente é 1950). Neste exemplo, o 7500 oferece a média e o 100 o desvio-padrão para a distribuição de datas dentro das quais se situa a verdadeira data. Isso nos diz que há 68% de possibilidade (i. e., duas possibilidades em três) de que a verdadeira data se situe dentro de um desvio-padrão da média, neste caso entre 7.400 e 7.600, e uma possibilidade de 95% de que se situe entre dois desviospadrão, i.e., entre 7.300 e 7.700 AP. Prefere-se, claro, o menor desvio possível. Mas como é improvável que isso caia abaixo de 50 anos, as datas de acontecimentos passados permanecerão sempre aproximadas. A segunda complicação é que os anos do radiocarbono não têm a mesma extensão dos do calendário, e na verdade não têm a mesma extensão uns dos outros. Um artefato que o radiocarbono data de 7.500 AP não é 100 anos de calendário mais velho que um artefato com uma data de 7.400 AP. Isso se dá porque a concentração de 14C na atmosfera decresceu com o tempo, o que faz o ano parecer mate longo. Felizmente, pode-se resolver esse problema "calibrando-se" a data de radiocarbono com a dendocronologia, também conhecida como datação por anéis de idade das árvores. Com os anéis das árvores, pode-se contar para trás no passado anos de calendário individuais. Ligando madeiras de diferentes idades, estabeleceu-se uma seqüência contínua de árvores pelos últimos 11 mil anos. A madeira de qualquer um desses círculos pode ser datada por métodos de radiocarbono, e daí derivou o desvio entre a data do
calendário real e a do radiocarbono. Assim, quando se adquire uma data por radiocarbono de um sítio arqueológico, pode-se levar em conta esse desvio e estabelecer uma data nos anos do calendário. Quando as datas são calibradas, são também muitas vezes convertidas de AP (antes de 1950) para a.C. (antes de Cristo, i.e. "0"; às vezes, isso é expresso como AEC, "Antes da Era Comum"). Assim, após a calibração, a data por radiocarbono de 7500 ± 100 AP indica que a verdadeira data tem 68% de possibilidade de se situar entre 6434 e 6329 a.C. Não se dispõe de anéis de troncos de árvores de antes de 11 mil anos atrás, mas os arqueólogos descobriram novos meios de calibrar suas datas. Isso mostrou que a distância entre os "anos do radiocarbono" e os "anos do calendário" alarga-se aos poucos (embora de forma irregular) à medida que se recua no tempo. Em 13 mil anos atrás, há uma diferença de mais de 2 mil anos entre uma data proporcionada pelo método do radiocarbono e sua verdadeira idade em anos do calendário. Todas as datas que se seguem neste livro são em anos a.C. do calendário; minhas notas finais oferecem as próprias datas de radiocarbono junto com seus valores exatos calibrados segundo um desvio-padrão. Enquanto as pessoas de Pushkari costuram suas roupas e o artista pinta dentro de Pech Merle, outros caçam cangurus nos matagais da Tasmânia, antílopes nas savanas do leste africano e pescam no Mediterrâneo e no Nilo. Esta história visitará esses e outros caçadores-coletores, e depois examinará como o aquecimento global mudou as vidas de seus descendentes. Começa, porém, no Crescente Fértil — um arco de montanhas ondulantes, vales fluviais e bacias lacustres hoje coberto pela Jordânia, Israel, Palestina, Síria, sudoeste da Turquia e Iraque. É onde surgirão os primeiros camponeses, cidades e civilizações. Um sítio de acampamento de caçadores-coletores floresce na margem oeste do lago Tibérias, também conhecido como mar da Galiléia. Quando escavado por arqueólogos, o sítio será chamado de Ohalo e reconhecido como um dos assentamentos mais bem preservados do LGM. Localizado longe das camadas de gelo e paisagens de tundra, a floresta de carvalho não fica distante. As moradas são feitas de galhos de arbustos, as pessoas usam roupas de couro e fibras vegetais. Uma nova choupana está em construção: arbustos cortados foram enfiados no chão e são trançados para formar um domo. Montes de galhos folhudos e couros de animais foram
preparados para ser usados como material para o telhado. Esse trabalho de construção envolve muito menos esforço que o necessário em Pushkari; na verdade, a vida em Ohalo parece mais atraente em todos os aspectos. Muita gente se espalha ao longo da margem do lago: alguns grupos conversam sentados, crianças brincam, velhos dormitam ao sol da tarde. Uma mulher aproxima-se das choupanas, vindo da beira d'água, com uma cesta de peixes recém-pescados, e outras penduram redes sobre barcos recobertos de couro para secar. A mulher chama os filhos para entrar com ela em sua moradia, onde os peixes serão enfiados em cordões e pendurados para secar. Duas mulheres saem da mata trazendo raposas e lebres recém-abatidas. Seguem-se vários homens com uma gazela amarrada numa vara. Aparecem mais mulheres, e depois crianças, com sacos e cestos carregados de todas as formas imagináveis — na cabeça, arrastados pelo chão, pendurados nos ombros, amarrados na cintura. As carcaças são postas junto de uma fogueira e sacos e cestos esvaziados em couros. Caem montes de frutas, sementes, folhas, raízes, cascas e talos de plantas. Haverá um banquete esta noite. Um rapaz está parado no meio dessa movimentada cena aldeã, inteiramente despercebido pelos que trabalham e brincam. É John Lubbock, e Ohala em 20.000 a.C. é onde começam suas viagens pela história humana.
ÁSIA OCIDENTAL
3 Fogos e Flores Caçadores-coletores e a estepe florestal, 20.000 - 12.300 a.C. Incapaz de dormir, John Lubbock fica sentado à beira do lago, vendo os morcegos em ação e desfrutando a brisa noturna. Do outro lado da água, silhuetas de gamos que pastam recortam-se ao luar na borda da mata. Ele tem às suas costas as choupanas de Ohalo, a alguns metros da beira d'água e agora inteiramente vazias, pois as pessoas dormem sob as estrelas, em torno da fogueira fumegante. Os pisos da choupana foram deixados sujos — alguns com lascas de pedra espalhadas, outros com os detritos de uma refeição recente. Fieiras de peixes e feixes de ervas pendem dos caibros lá dentro, cestos de vime e gamelas amontoam-se contra as paredes. Alguém suspira e se vira, uma criança chora e é consolada. As árvores farfalham quando uma brisa forte sopra entre as choupanas de Ohalo; a fogueira emite um estalo e uma faísca fulgente eleva-se no ar. Sobe em espiral e depois desce flutuando, não na fogueira, mas adiante, no mato seco que cobre o telhado de uma choupana. Fumaça de madeira. Lubbock inspira-a fundo, supondo que vem como uma fagulha do fogo que morre. Mas a fumaça continua e aumenta; tornase uma nuvem pungente, visível. Tossindo e voltando-se, ele vê a choupana em chamas. As pessoas acordaram e a desmontam, abafando o fogo com os pés e correndo em busca de água. Mas a brisa suave derrota com facilidade tais esforços frenéticos — levanta uma dezena de talos, folhas e galhos ardentes e espalha-os por toda a volta. Uma segunda e uma terceira choupana estão agora em chamas. As pessoas se retiram. Protegendo os rostos e apertando com força as crianças, juntam-se à beira do lago para ver arder seu acampamento. O incêndio em Ohalo pode não ter levado mais de alguns minutos para reduzir um grupo de choupanas a círculos de tocos calcinados. Se começou dessa forma ou por outro meio, não se sabe em absoluto — talvez fosse um incêndio deliberado das choupanas infestadas de pulgas e
piolhos. Mas o que pode ter sido trágico para as pessoas de Ohalo foi uma bênção para os arqueólogos do século XX. Dentro de poucos anos, a água do crescente nível do lago inundou o sítio, protegendo-o da decomposição. Ohalo perdeu-se da vista e da memória humanas até que uma seca em 1989 causou uma queda de 9 metros no nível da água e deixou à mostra círculos de carvão onde antes havia as moradas feitas de arbustos. Dani Nadel, da Universidade de Haifa, iniciou a meticulosa escavação de um sítio realmente notável; ele e arqueólogos de todo o mundo ficaram pasmos com a diversidade de plantas e animais que haviam sido usados pelas pessoas de Ohalo no LGM. Após a imensa excitação dessa primeira temporada de escavação, seguiu-se uma espera de 10 anos até os níveis da água ficarem de novo suficientemente baixos para Nadei continuar. Por muita boa sorte, eu estava lá quando ele começou a fazê-lo em 1999. Foi a escavação mais idílica que já vi — sol quente, água azul reluzente, valas sombreadas revelando os detritos de vidas antigas. De manhã, as pessoas de Ohalo vasculham as cinzas quentes e os restos ainda fumegantes de seu acampamento. Pegam uns poucos artigos valiosos — um cabo de faca de osso com lâmina de pedra encaixada, um tapete tecido que escapou às chamas, um arco queimado que pode ser consertado. Com essas coisas, partem para a floresta de carvalho, em busca de outro lugar para acampar. Fossem eles camponeses, em vez de caçadores-coletores, o incêndio teria destruído mais que choupanas de arbustos; com muita probabilidade, moradas feitas de madeira, currais de animais, cercas e grãos armazenados; seus rebanhos poderiam ter fugido ou mesmo morrido nas chamas. Em vez de abandonar o sítio à natureza, os camponeses teriam tido de permanecer e reconstruir, por causa de seu investimento na Terra em volta: abertura de clareiras na floresta, construção de cercas e plantio de safras. Mas as pessoas de Ohalo podem simplesmente desaparecer na mata, dirigindo-se para a planície costeira mediterrânea a oeste. Lubbock decide que a mata pode esperar e parte para contornar o lago, meter-se no matagal e entre as árvores, rumo às baixas colinas a leste. A estepe florestal — uma paisagem de matagais, arbustos e flores que crescem exuberantes sob árvores muito esparsas — foi crítica para o curso
da história humana. Isso se deu porque a imensa diversidade de alimentos vegetais que ofereceu aos caçadores-coletores incluía os parentes selvagens das primeiras safras domesticadas: trigo, cevada, ervilha, lentilha e linho. Comunidades de plantas comparáveis dificilmente existem hoje, e certamente não mais se encontram nas Colinas de Golan, nome de hoje das colinas a leste do lago Tibérias. A reconstituição da capa de vegetação de paisagens pré-históricas é uma exigência para compreender o passado. Muitas vezes consegue-se isso pela análise de grãos de pólen: as células reprodutivas masculinas, ou gametas, de sementes de plantas cujo objetivo é alcançar a parte fêmea da flor, onde ocorre a fertilização. Felizmente, muitas não conseguem e caem inutilizadas no chão. Se recuperada pelos cientistas, talvez muitos milhares de anos depois que as flores morreram, podem cumprir um papel diferente — o de dizer-nos que planta floresceu um dia nas paisagens em evolução do mundo da era do gelo. Os grãos de pólen de diferentes espécies de plantas são bastante distintos. São minúsculos ciscos a olho nu, mas parecem únicos quando vistos sob um microscópio binocular. Os grãos de pólen de pinheiro, por exemplo, têm duas bolsas laterais, enquanto os de carvalho parecem granulares, com três cortes em torno de cada borda. Quando ampliados com um microscópio eletrônico, apresentam uma exótica gama de esferas espinhosas em três dimensões e outras formas maravilhosas. Os grãos de pólen caem aos montes das flores de capins, arbustos e árvores, e muitas vezes se entranham na lama de um poço ou lago. São enterrados quando mais lama se acumula, com seu próprio pólen. Quanto mais lama, mais pólen, talvez vindo de um conjunto de plantas inteiramente diferente que começaram a brotar perto. E assim por diante, talvez durante milhares de anos, até o lago ser completamente coberto de aluvião. Pode-se extrair um "núcleo" desses sedimentos, uma fina coluna da muda ou turfa, cada centímetro da qual nos leva de volta no tempo. Os palinologistas — os que se especializam no estudo de grãos de pólen — fatiam esses núcleos como salame. Retiram os grãos de pólen de cada fatia separada e descobrem quais plantas davam na vizinhança quando aquela camada particular de lama se achava na superfície. Comparando o pólen de sucessivas fatias, reconstroem como a vegetação mudou no correr do tempo. E obtendo datas de radiocarbono de fragmentos de talo,
folha ou semente presos dentro do núcleo, podem estabelecer a história da mudança da vegetação. Enquanto Lubbock viaja pela Europa, terá muitos "núcleos de pólen" para examinarmos. Eles mostram como suas tundras viraram florestas e retornaram ao primeiro estado. Mas o oeste da Ásia tem muito poucos núcleos, e dificilmente algum desses estará muito fundo ou terá pólen bem preservado. Um núcleo, porém, é de imenso valor, pois foi extraído dos sedimentos da bacia de Hula, 20 quilômetros ao norte do lago da Galiléia. Com 16,5 metros de extensão, remonta aos sedimentos deitados no LGM, quando as pessoas de Ohalo acampavam à margem do lago; poderá nos dizer que pólen flutuava no ar. O indício do pólen deixa claro que quando os caçadores-coletores se mudaram para leste, afastando-se das terras costeiras mediterrâneas, a floresta desapareceu, deixando algumas árvores espalhadas dentro de matagais, arbustos e ervas — uma estepe florestal. Assim que se cruzava o Jordão, as árvores se tornavam menos abundantes, embora sobrevivendo nas encostas que levavam ao planalto; e quando se andava mais para leste, os próprios matagais e arbustos diminuíam até vir o deserto — exatamente como existe hoje. Mas dentro desse deserto havia oásis, notadamente em Azraq, onde lagos interiores atraíam não apenas muitos pássaros e animais, mas também caçadores e coletores. E é para Azraq que Lubbock se dirige agora, após um descanso em meio a um campo de vibrantes papoulas vermelhas na estepe. O indício do pólen por si só não é capaz de oferecer um quadro exato da estepe na era do gelo. Diferentes espécies de mato — incluindo o cereal selvagem — não podem ser facilmente distinguíveis por seus grãos de pólen, e quaisquer plantas polinizadas por inseto ficariam subrepresentadas, devido à limitada quantidade de pólen que produzem. Assim, os arqueólogos examinaram as poucas áreas restantes de estepe no oeste da Ásia, sobretudo as que escapam da forte pastagem de carneiros e cabras, como reservas naturais e terrenos de treinamento militar. Essas áreas proporcionam intuições sobre antigas comunidades de plantas que não podem ser recolhidas apenas dos indícios arqueológicos. Gordon Hillman, do Instituto de Arqueologia de Londres, é um dos mais destacados "arqueobotânicos" do mundo. Durante mais de 30 anos, ele vem estudando modernas comunidades de estepes, e influenciou toda uma geração de alunos a fazer o mesmo. Mostrou que a estepe pré-
histórica teria sido composta de arbustos perenes à altura dos joelhos, com pequenas folhas carnosas, conhecidas dos botânicos como losna e quenópodes (membros da família dos pés-de-pato), e uma rica mistura de matos. Alguns destes se haveriam transformado em pequenas moitas rijas, enquanto o mato emplumado mais alto produzia — nas palavras de Hillman — um mar de plumas prateadas ondulando ao vento. Toda primavera a estepe explodia em cores e cheiros — o desabrochar de cardos centáureas, funcho silvestre e miríades de outras plantas. Os arqueobotânicos estudaram não apenas as comunidades de estepes sobreviventes, mas também como as pessoas de sociedades tradicionais, como os nativos americanos e os aborígines australianos, exploraram essas plantas para obter alimento. Mostraram que a estepe estaria transbordando de comidas básicas e petiscos para os que tinham conhecimento botânico sobre o que comer. Plantas como gerânio, pelargônio e pastinaga selvagens podiam oferecer raízes densas e bulbosas; as quenópodes dariam abundantes quantidades de sementes; e os matos selvagens forneceriam grãos. Uma compreensão do valor nutritivo dessas plantas é vital para reconstituir a vida pré-histórica na estepe. Infelizmente, são muito limitados os indícios sobre quais plantas específicas se colhiam. Ao contrário dos artefatos de pedra, os restos de plantas se decompõem quase na mesma hora quando jogados fora, a não ser que isso seja inibido por extrema aridez, inundação ou intenso calcina-mento — como aconteceu em Ohalo. Mas mesmo dentro dos restos queimados desse sítio não havia vestígios de legumes e folhas carnosos, os mais prováveis de terem sido colhidos. Com a visão retrospectiva da história, sabemos que os cereais selvagens eram as plantas mais importantes a dar na estepe florestal. A diferençachave entre as variedades selvagens e domesticadas está nas espigas de grãos. Nas formas selvagens, elas são muito quebradiças, de modo que, quando maduras, se rompem espontaneamente e o grão se espalha pelo chão. As formas domesticadas não fazem isso; as espigas permanecem intatas e o grão precisa ser retirado na debulha. Assim, sem cuidado humano, as formas domesticadas não sobrevivem, pois elas próprias são incapazes de se reabastecer de sementes. O mesmo ocorre com ervilhas, lentilhas, ervilhaca e grão-de-bico — os
outros grãos domesticados primeiro. Como explicou certa vez Daniel Zohary, especialista em genética de cereais selvagens e domesticados da Universidade Hebraica em Jerusalém, as formas domesticadas de cereais e legumes "esperam pelo comedor". Ele revelou que a mudança de uma para outra depende da mutação de um único gene. Outra conseqüência é a mudança no padrão de germinação. Diferentes indivíduos dentro de um bosque de plantas selvagens germinam e amadurecem em tempos ligeiramente diferentes — isso garante que alguns deles pelo menos amadureçam e forneçam semente para o ano seguinte em condições de chuva imprevisíveis. As variedades domésticas, porém, germinam e amadurecem todas ao mesmo tempo; não apenas esperam pelo colhedor, mas também tornam muito mais fácil a vida dele — ou provavelmente dela. A origem da agricultura está intimamente ligada ao surgimento dessas variedades domesticadas de cereais e legumes, assim como do linho usado para produzir os primeiros tecidos dessa fibra. Como veremos, isso só poderia ter acontecido com a intervenção humana no ciclo vital das plantas — as pessoas estão no ramo de modificação genética dos alimentos há muito tempo mesmo. Mas não as pessoas de Ohalo e seus contemporâneos. Eles colhiam cereais selvagens batendo nas plantas com paus para que o grão caísse em cestos seguros embaixo. Esse era o método usado por muitos povos recentes, como os índios norte-americanos, quando colhiam sementes de mato selvagem. Para ser eficiente, deve-se fazer a colheita no tempo certo — se os cereais não amadureceram, poucos dos grãos cairão nos cestos; ao contrário, se os cereais passaram do ponto, muito do grão já terá caído no chão. Alguns entravam em fendas, eram mantidos aquecidos, regados pela chuva, e forneciam novos brotos na primavera; outros grãos — na certa a grande maioria — seriam avidamente devorados pelos pássaros e roedores. As plantas eram importantes para as pessoas de Ohalo; também o eram os animais que viviam na mata e estepe. A presa favorita delas em toda a região era a gazela, presente em várias espécies diferentes, cada uma adaptada a um diferente habitat: a gazela montanhesa na zona mediterrânea, as dorcas nas regiões pedregosas, a persa na estepe oriental. O gamo pastava nas regiões montanhosas do Líbano, o jumento selvagem na estepe e a cabra selvagem entre os penhascos das áreas altas. Bisões
(bois selvagens), alcéfalos e javalis foram descobertos dentro das matas, junto com muitos mamíferos menores, pássaros e répteis. Os ossos de animais escavados de Ohalo nos dizem que várias dessas espécies eram caçadas. Pegava-se peixe no mar da Galiléia, e talvez no Mediterrâneo. A linha costeira pode ter oferecido muitas variedades, junto com caranguejos, algas e moluscos. Mas se estes eram coletados, podemos apenas especular: muito antes de os arqueólogos poderem trabalhar, a linha costeira foi inundada e quaisquer assentamentos costeiros que tivesse foram varridos pelo nível ascendente do mar, causado pelas águas derretidas das grandes camadas de gelo no norte. Azraq, o lugar que T. E. Lawrence chamou de rainha dos oásis, aparece quando John Lubbock sobe o último cume de pedregulhos de lava. Ele viajou 100 quilômetros desde o mar da Galiléia, grande parte deles estéril deserto com temperaturas noturnas enregelantes. Agora olha o outro lado por cima das águas do lago, que reluzem aos primeiros raios do sol matinal. Gazelas atravessam delicadamente o pântano em volta; o que fora uma simples mancha roxa adiante transforma-se em folhagem, uma rica seleção de verdes, amarelos e marrons, à medida que as árvores ganham forma; o novo dia é recebido por pássaros de doce canto e minúsculos fiapos de fumaça de fogueiras nos muitos acampamentos que cercam o lago. São de caçadores que se reuniram em Azraq para os meses de inverno, depois de passarem o verão dispersos por toda a estepe e o deserto. Agora tornam a juntar-se para trocar notícias, renovar amizades e talvez celebrar um casamento. Também trazem artigos de comércio; conchas das margens do mar Vermelho e do Mediterrâneo, gamelas de madeira escavada e peles. Lubbock passa o dia explorando os pântanos, vendo as aves andar e nadar no lago. Quando descansa, folheia seu exemplar encadernado em couro e meio esbagaçado de Tempos pré-históricos, impressionado com os elegantes desenhos de artefatos e tumbas. O título completo é bastante revelador: Tempos pré-históricos ilustrados com restos antigos e as maneiras e costumes de selvagens modernos. Grande parte do livro é dedicado aos últimos, com descrições de povos tribais como os aborígines australianos e os esquimós (Inuit) como representantes vivos da Idade da Pedra. Lubbock escolhe um capítulo para ler ao acaso, e descobre que
embora o autor vitoriano achasse que as pessoas pré-históricas tinham mentes infantis, apreciou as habilidades delas na fabricação de instrumentos, sobretudo no trabalho em pedra, No fim da tarde, Lubbock chega a um pequeno acampamento logo abaixo do afloramento de basalto e ao lado de um poço de água doce que brota de uma fonte. Tem um abrigo simples: couros de gazela amarrados com tendões e apoiados num pau de cumeeira e estacas mantidas eretas por calços de pedra. Nada desse abrigo restará para os arqueólogos descobrirem, em contraste com as atividades do lado de fora, onde um homem e uma mulher geram uma enorme quantidade de lascas de pedra enquanto fazem instrumentos. Sentam-se de pernas cruzadas, usando colares feitos de conchas tubulares conhecidas por nós como dentálio. Uma criança sentada ali perto brinca com nódulos de pedra, e sem o saber aprende as artes de fazer instrumentos. Uma outra muito mais jovem dorme à sombra do abrigo, onde uma velha mói devagar sementes num pilão de basalto. Uma lebre pende do pau de cumeeira. Outro membro do grupo empenha-se numa tarefa crucial para a sobrevivência humana em todo o mundo pré-histórico: fazer fogo. Uma jovem agachada prende um pedaço de madeira no chão com os dedos dos pés. Tem nas mãos uma fina vareta de madeira mais mole, que gira com muita rapidez num pequeno buraco na madeira mais dura, tendo acrescentado alguns grãos de areia para aumentar o atrito. Dentro de poucos instantes, acumula-se um montinho de pó, que depois arde. Ela põe uns fiapos de mato seco e logo tem fogo para uma fogueira próxima. Lubbock verá essa técnica usada repetidas vezes em todo o mundo; uma técnica que ele próprio vai aperfeiçoar. Também verá outra: fazer fagulhas batendo pedras quebradiças uma na outra. Mas no momento, seu interesse é observar a fabricação de instrumentos de pedra, para ver se seu xará vitoriano estava correto sobre o grau de habilidade exigido. Os nódulos de pedra — ou núcleos — usados vêm dos afloramentos de calcário perto de Azraq, salpicados com blocos de sílex. Empregando martelos de basalto, formam-se os núcleos tirando-se grossas lascas da crosta do calcário. Uma vez preparadas, estas finas estilhas de sílex são cuidadosamente retiradas do redor das bordas dos núcleos. Essas estilhas, ou lâminas, variam de 5 a 10 centímetros de comprimento; muitas são jogadas fora com os outros detritos, mas umas poucas são postas de lado. Os que trabalham com pedra conversam enquanto o fazem, às vezes
praguejando quando uma ótima lâmina se quebra acidentalmente, às vezes comentando uma concha fóssil que aparece quando o nódulo se parte pela metade. Lubbock pega um nódulo e um martelo de pedra e tenta fazer uma lâmina; mas consegue apenas duas grossas lascas e um dedo ensangüentado. Lembra-se de um trecho de Tempos pré-históricos sobre instrumentos de pedra: "Por mais fácil que pareça fazer tais lascas, um pouco de prática convencerá qualquer um que tente fazê-lo, de que é preciso um certo jeito; e que também é necessário ter cuidado na escolha da pedra." Os quebradores de pedra modelam as lâminas escolhidas com imensa habilidade, usando pedras pontudas para tirar minúsculas lascas e transformar as lâminas numa variedade de minúsculos instrumentos — alguns de ponta afiada, outros de costas curvas ou pontas em forma de cinzel. Mais exatamente, são pedaços de instrumentos: esses microlitos — como os chamam os arqueólogos — são inseridos em juncos usados como varas de flecha e em cabos de osso para fazer facas. As pontas quebradas e rombudas já terão sido retiradas e jogadas no monte de detritos. Qualquer novo microlito que não se encaixe é também jogado fora — os artesãos preferem passar alguns momentos fazendo outros a arriscar-se a danificar a muito mais preciosa vara. As pessoas de Ohalo fizeram microlitos semelhantes; na verdade, tais artefatos foram feitos por todo o oeste da Ásia desde o LGM, e continuarão a ser produzidos durante muitos milhares de anos. Coleções de microlitos — em várias formas e tamanhos — e o detrito de sua fabricação dominam o registro desse período no oeste da Ásia e são usados para definir a "cultura Kebaran". Os conjuntos de microlitos e lascas de pedra cuja fabricação Lubbock observou acabou sendo escavado por Andy Garrard, hoje na Universidade de Londres. Na década de 1980, como diretor do Instituto Britânico em Amã, Jordânia, ele empreendeu um grande programa de escavações na bacia de Azraq, documentando a presença de caçadores-coletores e camponeses pré-históricos. Em Wadi el-Uwaynid, a 10 quilômetros do lago Azraq, encontrou dois densos ajuntamentos de lascas e microlitos, junto com uma mó de basalto, algumas contas de dentálio, ossos de gazela, tartaruga e lebre. O trabalho de Garrard revelou um grande número desses sítios, e
demonstrou que alguns haviam sido usados repetidas vezes durante muitos milhares de anos, resultando em imensos depósitos de artefatos. A atração de Azraq teriam sido os rebanhos de gazelas que iam beber e pastar na vegetação da beira do lago; muito provavelmente faziam isso em grandes números e em momentos previsíveis do ano e do dia. Os caçadores-coletores teriam sabido desses momentos e chegado em massa para capturar a presa vulnerável, na certa retornando ao acampamento que tinham usado no ano anterior. Instrumentos desgastados, e os detritos da feitura de novos, eram jogados nas grandes pilhas já presentes — contribuindo para o que seria um dia o desafio de escavação de Andy Garrard. Quase 20 mil anos antes de Garrard iniciar seu trabalho, Lubbock observa dois homens chegarem ao acampamento em Wadi el-Uwaynid. Eles andaram caçando sem muito sucesso. Com o cair da noite, a lebre é assada num espeto e comida com uma grossa papa servida em cascos de tartaruga. Chegam visitantes de acampamentos próximos, exigindo que se prepare mais comida e se ponha mais lenha na fogueira. Logo, pelo menos vinte pessoas estão reunidas, e suas conversas fundem-se imperceptivelmente num canto baixo. Lubbock sobe num penhasco de basalto próximo e olha o tênue abrigo embaixo, a fogueira e a multidão sentada. Estrelas surgem e a lua sai. É uma cena repetida não apenas por todo Azraq, mas também por todo o oeste da Ásia — um mundo de caçadores-coletores conhecido dos arqueólogos apenas pelos depósitos de artefatos de pedra que deixaram para trás. Nos 4.500 anos seguintes, as plantas e as pessoas nessa região se tornarão muito mais densas no terreno. O que fora estéril deserto a oeste de Azraq estará coberto de matagal, arbustos e flores em 14.500 a.C. As árvores se espalharão pelo que foi estepe descampada. À medida que o oeste da Ásia se tornava mais quente e úmido, plantas e animais tornavam-se mais abundantes. Indícios diretos dessa mudança ambiental vêm do núcleo de Hula que, de cerca de 15.000 a.C, mostra um acentuado aumento em densas matas com carvalho, pistache, amêndoas e pêra. Esse período de calor e umidade crescentes culmina em 12.500 a.C. — o interestadial glacial tardio. Essas mudanças na vegetação levam a um vasto aumento na existência de plantas comestíveis na estepe. Plantas com raízes comestíveis antes
raras são agora abundantes — nabos, crocos e muscari selvagens. Os capins selvagens florescem, desfrutando não apenas de condições mais clementes, mas também do aumento de sazonalidade — invernos mais frios e úmidos e verões mais quentes e secos. Devemos imaginar vastos campos de trigo, cevada e centeio selvagens aparecendo na estepe, cercados por árvores espalhadas. Na verdade, houve um vasto aumento na oferta de plantas comestíveis selvagens para os caçadores-coletores em todo o Crescente Fértil. A população humana aumentou nesse mundo mais quente e mais úmido; com melhor alimentação, as mulheres puderam ter mais filhos, e mais destes sobreviveram à infância e acabaram por reproduzir-se no devido tempo. Dispersaram-se pelas novas matas e estepes; começaram a caçar nos planaltos antes demasiado frios e secos. Embora as populações fossem maiores, os estilos de vida humanos pouco se modificaram em relação ao das pessoas que acampavam em Ohalo e Azraq no LGM. Mesmo assim, os arqueólogos descobrem uma nova uniformidade na cultura humana. Depois de 14.500 a.C., as pessoas, do rio Eufrates ao deserto do Sinai, e do Mediterrâneo à Arábia Saudita, já haviam adotado microlitos e métodos de fabricação semelhantes. Com maiores números, viagens mais extensas e freqüentes ajuntamentos de pessoas, as velhas e diversas tradições de feitura de instrumentos se eclipsaram. As pessoas em toda essa região preferiam microlitos retangulares e trapezoidais, favorecidos sobre todos os demais durante os 2 mil anos seguintes. Os maiores sítios continuam sendo encontrados na bacia de Azraq e nas matas das colinas mediterrâneas. Surgem novos assentamentos, como o de Neve David, estabelecido no pé das encostas ocidentais do monte Carmelo em Israel. Escavações feitas por Daniel Kaufman, da Universidade de Haifa, revelaram os restos de uma pequena cabana circular e muro de pedra, junto com muitos instrumentos de pedra, um pilão e sua mão de basalto, tigelas de calcário, contas feitas de conchas marinhas e uma tumba humana. O esqueleto fora posto sobre o lado direito, com os joelhos fortemente dobrados sob o corpo. Entre as pernas, pusera-se uma mó, um pilão quebrado sobre o crânio e uma tigela quebrada atrás do pescoço e ombro. A colocação de instrumentos de triturar grãos na cova sugere a importância dessa atividade e fonte de alimento para o povo de
Neve David. Kaufman julga importante o fato de o pilão estar quebrado: assim estava "morto", como a pessoa na cova. De Wadi el-Uwaynid, Lubbock viajou 150 quilômetros e mais de seis milênios para chegar de volta às densas matas da região mediterrânea. A data é 12.300 a.C., e ele está parado na margem ocidental do lago Hula numa tarde de outono, olhando as colinas cobertas de carvalhos, amêndoas e pistache a oeste. Aninhado na encosta voltada para o leste, vê-se um assentamento com os vermelhos, castanhos-avermelhados e marrons de moradas de couro e arbustos fundindo-se de forma quase inconsútil com a mata em volta. É muito maior que qualquer outro assentamento que Lubbock já viu, e merece realmente ser chamado de aldeia.
4 Vida na Aldeia na Floresta de Carvalhos Primeiras comunidades caçadoras-coletoras natufianas, 12.300 - 10.800 a.C. Por entre brechas nas folhudas árvores John Lubbock vê cinco ou seis moradas alinhadas ao longo da mata da encosta. São cortadas na própria Terra, com pisos subterrâneos e baixas paredes de pedra que sustentam telhados de palha e couro. Com moradas tão bem construídas e ordenadas, a aldeia parece muito diferente do que agora parecem assentamentos planejados ao acaso e construídos às pressas em Ohalo e Azraq. É evidente que as pessoas planejaram viver nessa aldeia o ano todo. É Ain Mallaha, uma aldeia do novo estilo de vida surgido dentro das florestas de carvalho que crescem por todas as montanhas mediterrâneas. Mais que um novo estilo de vida — uma cultura completamente nova, que os arqueólogos chamam de natufiana. Ofer Bar-Yosef, professor de arqueologia em Harvard e deão da arqueologia do oeste asiático, acredita que essa cultura seja o "ponto sem retorno" na estrada para a agricultura. Parado no limiar da aldeia, Lubbock observa sua gente a trabalhar. São altos e saudáveis, bem vestidos com roupas feitas de pele, alguns usando pingentes de conchas e contas de osso. Exatamente como em Ohalo, o trabalho principal é transformar plantas selvagens em comida, plantas colhidas na mata e na estepe florestal. Mas o empreendimento deles é agora bastante diferente, em escala muito maior e trabalho muito mais árduo. Os pilões de pedra que usam têm proporções de rochedos. São muitos braços no trabalho — moendo, malhando, debulhando e cortando. Cestas de glandes e amêndoas esperam para ser abertas e depois trituradas em farinha e pasta. Lubbock passeia entre os trabalhadores, olhando por cima de seus ombros, roubando um pouco de polpa de amêndoa para provar. Aromas de gostos vegetais triturados e fumaça de lenha fundem-se com o pilar ritmado dos pilões, a conversa em voz baixa dos adultos e o riso das crianças. Mas nem todos os adultos trabalham; alguns sentam-se ociosos ao sol da tarde; pelo menos duas mulheres estão no término da gravidez. Outra encosta-se na parede de uma morada com um cachorro adormecido
no colo. Lubbock passa e entra na morada. Os restos da habitação acabarão por ser escavados pelo arqueólogo francês Jean Perrot em 1954 e ficarão conhecidos sem nenhum glamour como n° 131. A morada 131 é um pouco maior que as outras, talvez 9 metros de largura, permitindo que cinco ou seis pessoas se sentem ou durmam com conforto. Partes do interior são escuras e bolorentas; por toda parte, raios partidos de sol da tarde entram pelo telhado de palha, sustentado por mourões internos mantidos de pé e estabilizados por calços de pedra. Peles forram as paredes de pedra e tapetes de palha cobrem o chão. Logo após a entrada há cinza espalhada onde uma fogueira ardeu na noite anterior para impedir as mordidas dos insetos à solta. Outro fogo agora fulge no centro do piso; um homem agacha-se ao lado e depena uma fieira de perdizes. Corta as aves nas juntas e as põe para assar sobre lajes de pedra quente. Atrás dele, uma terceira fogueira arde, servindo de centro para alguns jovens que consertam arcos e flechas. Usam-se pedras chatas com fundos sulcos paralelos para endireitar finos galhos que serão usados como varas; lascas de pedra afiadas como navalha são pregadas usando-se resina para formar pontas e barbelas. Pilões e almofarizes de pedra, cestas de vime e gamelas de madeira empilham-se junto às paredes em volta. Dos caibros do telhado pende um grupo de instrumentos bastante diferentes de qualquer um que Lubbock tenha visto antes — foices. Os cabos de osso são enfeitados com desenhos geométricos ou foram esculpidos em forma de jovem gazela. As lâminas são feitas de cinco ou seis lascas de sílex, presas firmemente num sulco com resina. Ao balançarem, girarem e pegarem a luz do sol, as lâminas brilham, pois foram polidas pelos muitos milhares de talos de plantas que cortaram. Jean Perrot encontrou os restos dessa cena doméstica quando escavou a morada 131 em Ain Mallaha — buracos e grupos de pedras onde haviam estado os esteios, ossos de aves espalhados em torno de lajes de pedra dentro de uma antiga lareira, núcleos e lascas de sílex, pedras com sulcos, almofarizes de basalto e lâminas de sílex. Muitas das lâminas têm "brilho de foice", indicando que foram usadas para cortar um grande número de talos de plantas, mais provavelmente de trigo e cevada selvagens. Claro que Perrot não encontrou os tapetes de palha, os couros, cestas de vime e gamelas — só podemos supor a presença deles para proporcionar algum conforto, e fazer o melhor uso dos muitos materiais existentes na mata.
A curta distância da morada 131, Lubbock encontra outra, abandonada — o telhado e as paredes há muito desabaram, as fundações de pedra roubadas para uso em outra parte. Na ausência de vivos, essa morada desertada e dilapidada tornou-se um cemitério. As covas são sem marcas, mas contêm corpos ricamente enfeitados. Jean Perrot encontrou onze homens, mulheres e crianças, todos em covas separadas e provavelmente membros de uma mesma família. Quatro deles tinham colares e braceletes gastos feitos de ossos de patas de gazelas e conchas marinhas, notadamente as longas, finas e naturalmente ocas conchas de dentálio, já vistas em Azraq. Uma mulher usara uma elaborada touca na cabeça, feita com camadas sobre camadas dessas conchas. Dentro de poucos anos, a morada 131 também será abandonada e abrigará os mortos de outra família de Ain Mallaha. Doze indivíduos serão enterrados ali, cinco deles enfeitados de forma semelhante. Um dos mortos será uma velha; estará com um filhote de cachorro, enroscado como ferrado no sono. Ela terá a mão sobre o pequeno corpo — como fez durante grande parte da curta vida do animalzinho.7 Há um grande pilão de pedra escavado num pedaço de rocha aflorado perto do centro da aldeia, no qual Lubbock se senta para apreciar a cena. Quando me sento na mesma pedra em 1999, Ain Mallaha acabou de passar por novas escavações de outro arqueólogo francês, François Valia. O lugar estava deserto e silencioso, fora o canto de um pássaro na mata. Mas Lubbock vê transformarem grandes nódulos de basalto em almofarizes e pilões, a superfície de um sendo enfeitada com um complexo desenho geométrico. Ouve o quebrar da pedra, a conversa de vozes e o latido dos cachorros. Observa as pessoas fazendo contas — cortando conchas de dentálio em segmentos e enfiando-os num barbante. A gamela onde pegam as conchas também contém um bivalve das águas do Nilo. Talvez tenha sido trocado de pessoa a pessoa, assentamento a assentamento, até viajar pelo menos 500 quilômetros para o norte; ou talvez fosse a lembrança de uma longa viagem feita por um dos aldeões de Ain Mallaha. Como acontecia em Ohalo e Azraq, as pessoas lascam nódulos de pedra. Em Ain Mallaha faz-se um novo desenho de microlito: finas lâminas retangulares de sílex são cuidadosamente lascadas em meias-luas — ou lunatos, como os arqueólogos as chamam. Algumas são usadas em foices, outras como farpas em flechas. Continua não sendo claro por que
esse desenho de microlito em particular ganhou tal popularidade — na certa apenas porque as pessoas são seguidoras tão compulsivas da moda. Lubbock deixa a aldeia pela mata quando a luz começa a morrer. Diminuem as batidas, perde-se o ritmo, e depois param, como pára a quebra das pedras. As pessoas de Ain Mallaha voltam para suas moradas ou reúnem-se em volta das fogueiras. A conversa em voz baixa transforma-se num canto baixo. Camundongos e ratos saem para alimentar-se de nozes e sementes que caíram no chão; os cachorros, para espantá-los. Com a última luz, Lubbock lê mais um pouco de Tempos préhistóricos. Embora decepcionado por não encontrar nada sobre o oeste da Ásia, dois trechos parecem importantes para Ain Mallaha. Num, o xará vitoriano reuniu minúsculos fiapos de indícios para sugerir que os cachorros foram a primeira espécie domesticada. Mas em outro parece haver errado completamente: o verdadeiro selvagem não é livre nem nobre; é um escravo de suas necessidades, suas paixões; imperfeitamente protegido do clima, sofre de frio à noite e do calor do sol durante o dia; ignorando a agricultura, vivendo da caça, e imprevidente no sucesso, enfrenta sempre a fome, que muitas vezes o leva à pavorosa alternativa de canibalismo ou morte. O John Lubbock moderno desejaria poder mostrar ao xará as sólidas casas, as roupas e os alimentos agora comidos na aldeia — tudo feito pelas pessoas que ignoram inteiramente a agricultura, mas parecem nobres e livres. Cai no sono quando o canto natufiano se funde imperceptivelmente com o das corujas e o arranhar dos besouros. Ain Mallaha foi apenas uma das muitas aldeias natufianas estabelecidas cerca de 12.500 a.C. nas matas das colinas mediterrâneas. Outra ficava 20 quilômetros a sudoeste, na Caverna Hayonim. Ofer Bar-Yosef e seus colegas começaram a escavar essa caverna em 1964, e continuaram durante onze temporadas de trabalho de campo. Dentro da caverna, encontraram-se seis estruturas circulares, cada uma com cerca de 2 metros de diâmetro, algumas com paredes de pedra ainda de pé, de 70 centímetros de altura, e pisos pavimentados. Uma fora usada mais como oficina que moradia, primeiro para uma caieira e depois para trabalho em
osso. Perto da parede da caverna, encontrou-se um depósito de costelas de gado selvagem, algumas parcialmente transformadas em foices. Também se recuperaram contas feitas de ossos de boi e pernas de perdizes — material jamais usado dessa forma pelas pessoas de Ain Mallaha. Por outro lado, os ossos preferidos pela gente de Ain Mallaha para joalheria, de patas de gazela, eram extremamente raros em Hayonim. Essa diferença em adereços sugere que as pessoas natufianas de cada aldeia se preocupavam em afirmar sua própria identidade. O casamento entre pessoas de Ain Mallaha e Hayonim parece ter sido raro, pois as duas populações eram biologicamente distintas. Como evidenciam seus restos mortais, as de Hayonim eram significativamente mais baixas, e uma grande proporção delas tinha "agenese" do terceiro molar — o que significa que esse dente simplesmente jamais surgia — um mal muito incomum em Ain Mallaha. Esse mal hereditário teria estado igualmente presente nas duas aldeias se houvesse casamentos regulares entre suas gentes. Contudo, parece improvável que qualquer das aldeias tivesse habitantes suficientes para serem uma comunidade reprodutiva viável por si mesma. O povo de Hayonim pode ter sido ligado ao de outra aldeia natufiana, conhecida hoje como Kebara. Estas duas aldeias partilham objetos de ossos decorados com desenhos geométricos quase idênticos, e complexos. Cada aldeia tinha seu próprio cemitério, muitas vezes contendo corpos ricamente enfeitados. Alguns dos túmulos mais espetaculares foram encontrados no cemitério de El-Wad, um sítio no monte Carmelo, em Israel. Quase 100 pessoas natufianas achavam-se enterradas ali, principalmente como indivíduos, embora algumas covas contivessem vários corpos. El-Wad foi um dos primeiros sítios natufianos descobertos, escavado por Dorothy Garrod, da Universidade de Cambridge, na década de 1930. Ela foi uma figura notável — a primeira professora naquela universidade e chefe de várias grandes expedições ao Oriente Médio. Descobriu a cultura natufiana quando escavou a Caverna Shukbah, no lado Oeste das colinas da Judéia e passou a acreditar que os povos natufianos eram camponeses — idéia que hoje se sabe ser incorreta. Dentro do cemitério de El-Wad, Dorothy encontrou alguns enfeites particularmente ornando vários dos corpos. Só um homem adulto usava um elaborado adereço de cabeça, um colar e uma faixa ou liga em torno de uma perna, tudo feito de
conchas de dentálio. Continua não sendo claro se tal adereço era usado em vida, como na morte. O mais elaborado adereço enfeitava jovens adultos, homens e mulheres — embora tivesse mais homens que mulheres enterrados. Pode haver denotado identidade social, talvez indicando riqueza e poder. Grande parte dos adereços era feita de conchas de dentálio, que podiam ser recolhidas da costa mediterrânea pelos próprios natufianos. Mas Donald Henry, um arqueólogo da Universidade de Tulsa, EUA, que fez extensos estudos no sul da Jordânia, sugere outra possibilidade. Ele pensa que as conchas podem ter sido adquiridas de caçadores-coletores que viviam na estepe aberta do deserto de Negev de hoje, em troca de cereais, nozes e carne. Para os natufianos, bem pode ter sido o controle desse relacionamento comercial que proporcionou aos indivíduos riqueza e poder — e a chave para a manutenção disso pode ter sido limitar a circulação das conchas dentro da aldeia. A maneira mais eficaz de fazer isso era a retirada regular de grandes quantidades, enterrando-as com os mortos. Essas covas eram como hoje nossos cofres de bancos cheios de ouro, destinados a assegurar que a pequena quantidade que permanece em circulação — de ouro ou contas marinhas — mantenha seu valor, para conferir status ou prestígio aos seus poucos donos. Os primeiros raios de sol que atravessam os folhudos galhos mosqueiam o chão; Lubbock acorda e ouve passos e vozes que se aproximam vindo da mata. Quatro homens e dois meninos retornam a Ain Mallaha após uma excursão de caça de madrugada. Trazem três carcaças de gazelas, já estripadas e parcialmente cortadas, mas deixando uma trilha de sangue entre as árvores. Na aldeia, as carcaças são penduradas dentro de uma morada, longe do sol e das moscas. Quando assadas, a carne será zelosamente dividida entre a família e os amigos. Os caçadores são acolhidos de volta e contam a história da caça — como os homens esperaram emboscados enquanto os meninos perseguiam e espantavam os animais em meio a uma chuva de flechas. Conversa-se sobre as várias pegadas e trilhas de animais que viram, e as mulheres ficam sabendo de plantas comestíveis que pareciam prontas para a coleta. Duas moças pegam um cesto e saem para um campo de cogumelos, esperando alcançá-lo antes dos gamos. Lubbock decide
segui-las. Todas as aldeias natufianas partilhavam a mesma base econômica de Ain Mallaha. Na verdade, todas as aldeias se encontram em cenários muito semelhantes— numa junção de densa mata e estepe florestal, localidades com probabilidade de ter abastecimento de água permanente, adequadas à caça da gazela e oferecendo plantas comestíveis nos dois habitats contrastantes. Ossos de gazela são abundantes nas escavações em sítios natufianos. Também se pegavam outros animais, como o gamo e caça pequena — raposas, lagartos, peixes e pássaros. Os ossos de gazela revelam mais que apenas a dieta natufiana: mostram que as pessoas provavelmente viviam nas aldeias o ano todo. Ficamos sabendo disso pelos dentes das gazelas. Como os dos mamíferos, os delas são em grande parte compostos de cimento que cresce devagar, em discretas camadas, durante toda a vida do animal. Na primavera e no verão, quando o crescimento é restringido, eles são negros. Assim, tirando-se uma fatia de um dente e inspecionando a última camada de cimento depositada, pode-se identificar se o animal foi morto no verão ou inverno. Daniel Lieberman, um arqueozoólogo da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, EUA, usou essa técnica para estudar dentes de gazelas de sítios natufianos em todo o oeste asiático. De todos que examinou, alguns animais teriam sido mortos na primavera/verão, e alguns no outono/inverno; ele tomou isso como significando uma ocupação permanente — ou "sedentarismo", como chamam os arqueólogos. Suas descobertas sobre os dentes de gazelas de sítios mais antigos mostraram que a ocupação ocorria ou durante o verão ou o inverno, refletindo o estilo de vida móvel dos caçadores-coletores. Outras linhas de indícios apóiam a idéia do sedentarismo natufiano — embora alguns arqueólogos tenham a forte crença em que as pessoas do Natufiano Inicial continuaram como caçadores-coletores nômades. Não parece provável que se haja despendido tamanho esforço na construção de casas de pedra se eram para ser usadas apenas algumas semanas ou meses todo ano. Os muitos ossos de ratos, camundongos e pardais no meio do lixo da aldeia também são reveladores; cepas domésticas apareceram pela primeira vez no Natufiano, e podem ter evoluído aproveitando um novo nicho criado por assentamentos humanos permanentes. Isso pode também ter ocorrido com o cachorro. O túmulo de um filhote
em Ain Mallaha é o sinal mais convincente de que lobos selvagens já haviam evoluído para cachorros domesticados na época do Natufiano. Outro túmulo de cachorro está em Hayonim, onde três humanos e um cachorro foram cuidadosamente arrumados juntos numa cova. Esses animais não eram simplesmente lobos domesticados, mas realmente cães domesticados — muito menores que os ancestrais lobos. Todas as espécies animais têm o tamanho reduzido quando surgem as variantes domesticadas, como veremos depois com carneiros, cabras e bois. As primeiras aldeias teriam sido atraentes para os lobos, que vinham catar os permanentes montes de lixo e pegar os camundongos e ratos. Como tais, prestariam um serviço ao povo natufiano, mantendo as pragas sob controle; alguns animais podem ter sido domesticados e usados para a caça ou como companhia para os velhos e doentes. Outros podem ter sido usados como cães de guarda, para avisar sobre estranhos que se aproximavam. Quando isolados das populações selvagens, esses animais domesticados podem ter-se tornado logo geneticamente distintos, à medida que o povo natufiano controlava sua reprodução para assegurar a proliferação mais de algumas características que de outras. A conseqüência foi uma nova espécie que entrava no mundo: o cão domesticado. Nem todos os natufianos viviam em aldeias o ano todo — talvez nenhum o fizesse. Vários assentamentos no lado leste do vale do Jordão, como Tabqa e Beidha, parecem ter sido usados apenas por breves períodos. Não têm nem moradias nem túmulos, e parece mais provável que tenham sido acampamentos temporários de caça, talvez pouco diferentes dos que Lubbock viu em Azraq. As pessoas em Beidha caçavam cabra, íbis e gazela, e tinham conchas de dentálio do mar Vermelho. Continua incerto se passavam parte do ano numa aldeia mesmo, ou viviam um estilo de vida inteiramente transitório como o do muito anterior povo kebarano. Um cachorro decide seguir as duas moças. Passa saltando por Lubbock, muito parecido com um lobo, e logo desaparece no mato baixo. A tentativa de segui-las logo é abandonada por Lubbock, pois as mulheres andam depressa, usando um labirinto de trilhas minúsculas mas bem palmilhadas que serpenteiam entre grupos de carvalhos e amendoeiras e passam por macegas de tremoços e moitas de pilriteiro. O arqueólogo
perde a trilha delas e vê-se em mato mais aberto perto dos pântanos que bordejam o lago da bacia Hula. As trilhas continuam e tratos de plantas cultivadas encontram-se à sombra dos carvalhos. Entre estas, há ervilhas e trigo selvagem com pesadas espigas de grãos curvadas. Lubbock senta-se junto a um desses campos para descansar, ouvindo o cachorro latir ao longe. Os cachorros domesticados, tratados como animais de estimação ou de trabalho, são mais ou menos como crianças. Precisam ser cuidados e podem tornar-se objetos de intensos relacionamentos: são tanto "o melhor amigo do homem" no Natufiano quanto hoje. Essa atitude de cuidado com os animais pode ter estendido para as plantas colhidas pelo povo natufiano. Não devemos pensar neles colhendo grãos de cereais, pegando frutas e nozes em amenos termos econômicos — sem outra preocupação além de maximizar sua produção imediata com o mínimo de esforço. Nenhum grupo de caçadores-coletores registrado pelos antropólogos foi assim, e não há motivo para pensar que o foi na Pré-História. Os boxímanos da África do Sul, os aborígines da Austrália e os índios do Amazonas demonstraram todos um imenso e íntimo conhecimento sobre as plantas à sua volta, mesmo as sem valor econômico. Partes de raízes e grumos de espigas de sementes são muitas vezes deixadas no chão, para assegurar que serão plantas a colher no mesmo lugar no ano seguinte. Usou-se freqüentemente o fogo para queimar velhos troncos e encorajar o nascimento de novos brotos. Christine Hastorf, arqueóloga de Berkeley, Califórnia, acentua a importância de "criar a planta" compreendendo-se os primeiros estágios de sua domesticação. Lembra-nos de que, com muito poucas exceções, as plantas eram colhidas e cultivadas por mulheres que com freqüência tinham as mesmas atitudes e cuidados com elas que com os filhos em casa. As mulheres natufianas podem ter sido como as do povo dos barasana no noroeste da Colômbia, que mantêm "hortas" perto de suas moradas. A maioria das plantas dessas hortas é de espécies selvagens, mas ainda assim são criadas para uso como comida, remédios, anticoncepcionais e drogas. Os barasana freqüentemente trocam mudas com os amigos e parentes, para que cada planta acrescentada à horta venha com uma história que serve para manter laços sociais. Além disso, muitas plantas têm significado simbólico ligado a mitos de origem do povo
barasana. Nas palavras de Christine: "Andar em meio à horta de uma mulher [barasana] é ver seu estilo de vida diário, sua linhagem ancestral e uma história das relações sociais de sua família." Qualquer jardineiro hoje entenderá isso: em meu próprio jardim no subúrbio, por exemplo, minha esposa tem plantas que foram dadas como presentes, plantas que marcam onde nossos bichos de estimação foram enterrados, plantas que arrancamos e levamos conosco de jardim em jardim quando nos mudamos nos últimos 20 anos. Todo ano minha esposa colhe com todo cuidado sementes de cravo-de-defunto para semear no ano seguinte. Muitos anos atrás, a avó dela deu-lhe as sementes de cravode-defunto que ela própria colhera e semeara cada ano durante toda a sua longa vida. Não temos conhecimento do que o povo natufiano pensava das plantas em sua volta. Mas em vista da permanência de seus assentamentos, das muitas bocas precisando ser alimentadas e da abundância de mós, pilões e almofarizes, as plantas selvagens parecem ter sido administradas de uma forma que reconheceríamos como cultivo. Desconfio que os campos de cereais selvagens, os bosques de nogueiras, as moitas de tremoços, ervilha selvagem e lentilha eram tratados como uma horta selvagem, e que eram manipulados e administrados, usados em relação social e infundidos com significados simbólicos, exatamente como as plantas nas hortas dos barasana. Dorothy Garrod pode ter errado ao pensar nos natufianos como camponeses; mas eles foram com a máxima certeza jardineiros um tanto especiais. Nesse aspecto, alguns artefatos de sítios natufianos assumem maior significado, porque podem na verdade descrever as próprias hortas. Em Hayonim, uma laje regular de calcário, de cerca de 10 por 20 centímetros, tinha inscritas linhas que dividiam a superfície em áreas distintas. Ofer Bar-Yosef e Anna Belfer-Cohen, especialistas em arte da Universidade Hebraica em Jerusalém, propõem que esse desenho "pode ser visto como designando algum tipo de territórios ou 'campos' definidos", talvez separados por minúsculas trilhas. Essa laje não é única; outras têm desenhos semelhantes, e embora talvez não sejam mapas espacialmente exatos de campos ou hortas, podem representá-los de algum modo abstrato — exatamente como o mapa do metrô de Londres. John Lubbock passa a manhã lendo Tempos pré-históricos e observando
pássaros no mundo natufiano da bacia do Hula. Depois que o sol subiu e queimou as poucas e ralas nuvens matinais, dois abutres circularam no limpo céu azul; uma revoada de gansos chegou ao lago e depois pássaros canoros pousaram no trigo selvagem para alimentar-se do grão. Exatamente quando Lubbock decide voltar a Ain Mallaha, chega um grupo de mulheres e posta-se bem a seu lado para inspecionar o trigo. Praguejam um pouco, porque o grão amadureceu mais depressa que o esperado e elas sabem que grande parte agora será perdida. Dentro de minutos, as mulheres estão em ação, cortando os talos com as foices de lâmina de sílex que Lubbock vira penduradas dentro da morada 131. Cortam os talos na base, para terem a palha, além do grão; exatamente como temiam, as espigas se despedaçam quando tocadas, espalhando muitas das espiguetas — a semente com o longo talo pegado — no chão. Trabalhando rápido, elas pegam os montes de talos e espigas e amarramnos em feixes. De volta à aldeia, as espigas são malhadas em gamelas para soltar as espiguetas que restam; pedras em brasa são acrescentadas e mexidas em volta. Lubbock depreende que isso torra as espiguetas e as deixa bastante quebradiças. Depois, são despejadas em pilões de madeira e moídas para soltar o grão; despejam-se os pilões em bandejas de casca de árvore, que são agitadas para fazer a separação e tirar a casca. O grão volta aos pilões e é então finamente triturado, tornando-se farinha; após ser misturado com água e transformado em massa, é cozido como panquecas chatas em pedras quentes, não mais que poucas horas depois de estarem crescendo nas hortas selvagens de Ain Mallaha. Sabemos que o povo natufiano cortava cereais com foices. À luz dos cabos decorados dessas ferramentas, essa pode ter sido uma atividade com sentido simbólico, como colher cravos-de-defunto para minha esposa. Cortar com foices teria sido muito mais eficiente que bater o grão em cestos, porque reduziria a quantidade caída sem colher no chão. Outro impacto desse novo método de colheita permaneceu desconhecido para o povo natufiano: o corte com foices estabeleceu as fundações para a transição das formas selvagens para as domesticadas. Lembrem-se de que a principal diferença é a condição quebradiça da espiga — as cepas selvagens se abrem quando maduras, espalhando as sementes no chão, enquanto as domésticas permanecem intactas, "à
espera do comedor". Dentro dos campos de cereais selvagens, teria havido algumas plantas relativamente não-quebradiças — raras mutantes genéticas, estimadas por Gordon Hillman como uma ou duas para cada 24 milhões das quebradiças. Os que batiam os talos e colhiam os grãos em cestos postos embaixo não os teriam colhido dessas mutantes genéticas. Só quando cortadas com foices os grãos dessas teriam sido colhidos junto com os das plantas normais quebradiças. Imaginem uma situação em que um pequeno grupo de natufianos chegava para cortar um campo de cereais selvagens. Se o trigo ou cevada já amadurecera, grande parte dos grãos das plantas quebradiças já se teria espalhado. Mas as raras plantas não-quebradiças ainda estariam intactas. Assim, quando se cortavam os talos, os grãos dessas plantas seriam muito mais abundantes na colheita do que se elas estivessem na mata ou na estepe. Agora imaginem o que teria acontecido se o povo natufiano começasse a semear campos de cereais selvagens espalhando grãos poupados de uma colheita anterior, ou talvez plantando-os em buracos feitos com um pau ou mesmo em terreno arado. Essa semente teria tido uma freqüência relativamente alta das variantes não-quebradiças. Quando o novo campo fosse cortado com foices, as variantes não-quebradiças teriam sido favorecidas mais uma vez e com isso ganho uma presença muito mais alta entre os grãos colhidos. Se se repetisse esse processo muitas vezes, as plantas não-quebradiças passariam aos poucos a predominar. Acabariam por ser o único tipo de planta presente — teria surgido a variante domesticada que "espera pelo colhedor". Mas se abandonada, a cepa domesticada iria aos poucos desaparecendo; incapaz esta de gerar novas mutantes genéticas, as de espigas quebradiças como as plantas selvagens originais seriam as únicas capazes de reproduzir-se e rapidamente passariam a dominar mais uma vez o campo. Gordon Hillman e Stuart Davies, geólogos da Universidade do País de Gales, usaram seu conhecimento de genética de plantas e antigas técnicas de colheita — em grande parte adquirido por experimentação — para avaliar quanto tempo levaria a mudança de cepas selvagens para domésticas. Empregando simulação em computador, mostraram que, em circunstâncias ideais, apenas vinte ciclos de colheita e ressemeadura em novos campos poderiam ter transformado o tipo selvagem e quebradiço de trigo na variante não quebradiça domesticada. Em condições mais
realistas, de 200 a 500 anos é o período de transição mais provável. Os indícios arqueológicos deixam claro que essa transição não se deu durante o natufiano. Há diferenças microscópicas entre a forma do grão de cereais domésticos e variedades selvagens, e embora os grãos de cereais sejam raros no registro arqueológico natufiano, todos os conhecidos são claramente de cereais selvagens. Só dentro de mais outro milênio, pelo menos, encontramos os primeiros grãos domesticados — de assentamentos em Abu Hureyra e Tell Aswad, na Síria, e em Jerico, na Palestina. Assim, o povo natufiano parece ter cortado os campos de cereais selvagens com foices por até 3 mil anos sem o salto evolucionário de plantas quebradiças para não-quebradiças. Parece haver uma explicação muito simples para isso, identificada numa pesquisa notável por Romana Unger-Hamilton na década de 1980 quando trabalhava no Instituto de Arqueologia em Londres. Sob a orientação de Gordon Hillman, ela passou vários meses reproduzindo o estilo natufiano de colher cereais selvagens. Usando foices idênticas feitas com cabos de osso e lâminas de sílex, cortava campos de cereais selvagens nas encostas do monte Carmelo, em torno do mar da Galiléia e no sul da Turquia, numa série de experiências controladas. As lâminas eram então examinadas com microscópio em busca de sinais de "brilho de foice" — a textura, localização e intensidade do brilho variam com os diferentes tipos de cereais e em diferentes estágios de amadurecimento. Romana descobriu que o brilho de foice nas verdadeiras lâminas natufianas era muito semelhante ao das lâminas que ela usava para colher cereais ainda não-maduros. Nesse estado, as plantas quebradiças teriam dado apenas um pouco de seus grãos, de modo que seriam colhidos de variantes não-quebradiças praticamente nas mesmas proporções que as das plantas dentro do campo. Assim, mesmo que o povo natufiano plantasse sementes para gerar novos campos de cereais selvagens, as variantes não-quebradiças seriam incapazes de tornar-se dominantes. Colher as espigas não-maduras era perfeitamente sensato, pois evitava a perda da maior parte dos grãos das plantas quebradiças, que já teriam caído no chão. Outro fator provavelmente impediu o surgimento de cereais domesticados entre os natufianos: seu estilo de vida sedentário, Patrícia Anderson, do Instituto de Pesquisa Jalès em Paris, empreendeu um
programa de pesquisa semelhante ao de Romana Unger-Hamilton e confirmou muitos dos seus resultados. Descobriu que, quando campos selvagens são ceifados com foices, mesmo ainda em estado "verde", o grão que cai no chão é inteiramente suficiente para garantir a safra do ano seguinte. Assim, os natufianos só teriam precisado semear se estivessem iniciando um campo inteiramente novo de cereais — de outro modo, poderiam contar com o "rebrotar" dos campos existentes. Mesmo que os grãos colhidos pelo povo natufiano tivessem uma alta proporção das variantes não-quebradiças, e a menos que se fossem criar novos campos de cereais em novos lugares, essas variantes jamais teriam tido a oportunidade de tornar-se a forma dominante. E como o povo natufiano era sedentário, jamais se criavam campos novos. Os natufianos continuaram como cultivadores de cereais selvagens nas hortas selvagens das matas mediterrâneas. Estes argumentos sobre o povo natufiano, suas hortas selvagens e suas atividades de coleta de plantas têm uma fraqueza óbvia: muito poucos restos botânicos foram recuperados de seus assentamentos. Isso se deve em parte à má preservação, e em parte ao fato de muitas escavações predatarem as modernas técnicas de recuperação. Para encontrar indícios diretos da natureza da coleta de plantas, John Lubbock tem de deixar a mata mediterrânea e a cultura natufiana. Precisa viajar 500 quilômetros até outra aldeia de caçadores-coletores a nordeste, descoberta nas planícies aluviais do Eufrates: o surpreendente sítio de Abu Hureyra.
5 Nas Margens do Eufrates Abu Hureyra e o surgimento do sedentarismo dos caçadores-coletores, 12.300 - 10.800 a.C. O mato e as flores da estepe estão molhados de orvalho quando John Lubbock se aproxima da aldeia de Abu Hureyra. É o amanhecer de um dia de meados do verão em 11.500 a.C. Sua jornada de Ain Mallaha trouxe-o das densas florestas de carvalho das colinas mediterrâneas, por campo aberto e finalmente a estepe desprovida de árvores, até o que é o hoje noroeste da Síria. Passou por várias aldeias próximas de rios e lagos, todas desconhecidas do mundo moderno. Agora pára para contemplar a vista — ao longe há uma planície além da qual uma linha de árvores bordeja um largo rio, o Eufrates. Além disso, apenas um vago horizonte, à luz leitosa do dia nascente. Mais alguns minutos de caminhada fazem-no avistar a aldeia; mas é preciso olhar duas vezes. Ela se funde em seu terraço de calcário, exatamente como Ain Mallaha se fundia com a mata em volta, mais parecendo ter sido gerada pelo sol e moldada pelo vento do que construída por mãos humanas. A cada passo, os baixos e planos telhados cobertos de junco, reunidos à borda da planície aluvial, se tornam um pouco mais nítidos. Mesmo assim, a fronteira entre natureza e cultura permanece profundamente obscura. As pessoas de Abu Hureyra dormem. Cães farejam-se uns aos outros e o chão, alguns coçando-se e outros roendo ossos. Os telhados chegam à altura da cintura, sustentados nas pequenas molduras de madeira de moradas cortadas em pedra mole. Lubbock desce numa delas e encontra um pequeno e estreito quarto circular de pouco mais de três metros de largura. Um homem e uma mulher dormem sobre peles e um colchão de capim seco; uma moça faz o mesmo numa trouxa de peles. O piso está juncado de artefatos e lixo — não pilões e almofarizes como em Ain Mallaha, mas mós planas e côncavas. Artefatos de pedra lascada espalham-se pelo chão, junto com cestos de vime e tigelas de pedra, e até um monte de ossos de animais coberto de moscas. Uma
pequena tigela contém minúsculos microlitos em meia-lua feitos de sílex, muito parecidos com os de Ain Mallaha. Num lado da morada há um monte de entulho — a parede desabou e entrou a terra do lado de fora. Paira no ar um fedor nauseante de carne podre e ar viciado. Grande parte da vida da aldeia se passa além dessas paredes — não encerram casas como pensamos nelas hoje. Nos espaços externos há cozinhas, montes de varas, feixes de junco, folhas de casca de árvore e grupos de mós. Evidentemente, muita gente trabalha junto na preparação das plantas colhidas de hortas selvagens na estepe e na mata pantanosa à beira do rio. Lubbock curva-se e deixa que as multicoloridas cascas, talos, galhos e folhas que cercam as pedras lhe escorram entre os dedos. São detritos, deixados exatamente onde caíram das mós ou desbastados dos feixes de plantas e flores. Perto dali há cestos e tigelas de pedra transbordando de nozes e sementes de variadas formas e cores. Em outra parte da aldeia, ele encontra mais um conjunto de mós; mas estão cercadas por torrões de pedra vermelha e pó, em vez de cascas de sementes e galhos de plantas. As pedras de moer têm manchas vermelhas, da fabricação de pigmento usado para decorar corpos humanos. Ali perto, três gazelas foram estripadas mas ainda não esquartejadas; as carcaças são deixadas penduradas fora do alcance dos cachorros. As pessoas de Abu Hureyra dependem tanto da caça de gazelas quanto da coleta de plantas. Mas esses animais são caçados apenas durante pouco mais de algumas semanas cada verão, quando grandes bandos passam perto da aldeia. Começa a vida diária em Hureyra. As gazelas não aparecem e os caçadores partem para vasculhar o vale do rio em busca de javalis e jumentos selvagens. Poucos animais vivem agora nos arredores da aldeia, por isso eles ficarão decepcionados. As mulheres e as crianças trabalham nas hortas selvagens, capinando, matando insetos e colhendo o que quer que haja amadurecido ao sol. Dentro de poucos dias chegam os bandos, e começa a matança anual de gazelas. Os visitantes são bem-vindos na aldeia. Trazem reluzentes obsidianas negras do sul da Turquia como presentes e recebem em troca conchas de dentário, um dia colhidas nas margens do Mediterrâneo e trazidas por visitantes anteriores a Abu Hureyra. Durante mais de mil anos os caçadores-coletores de Abu Hureyra continuarão a caçar gazelas. Os animais são tão numerosos que sua
matança não tem impacto sobre o tamanho dos rebanhos. As mulheres e crianças continuarão a cuidar das hortas selvagens e a colher uma rica safra. O acúmulo de sujeira, areia, artefatos perdidos e outros detritos dentro das moradas se tornará insuportável ou simplesmente impedirá o acesso. E então as pessoas de Abu Hureyra construirão novas moradas, agora totalmente acima do solo. Mas os tempos difíceis acabarão por chegar. A seca do Jovem Dryas perturbará as gazelas e dizimará a produtividade da estepe. A aldeia será abandonada, e as pessoas voltarão à vida nômade. Retornarão em 9.000 a.C., não como caçadores-coletores, mas agricultores. Construirão casas de adobe e cultivarão trigo e cevada na planície aluvial. Os rebanhos de gazelas terão retomado suas migrações e serão caçadas por mais mil anos, até o povo de Abu Hureyra de repente passar para rebanhos de carneiros e cabras. As casas serão repetidas vezes reconstruídas para que se forme um monturo, ou tell [montes artificiais, formados pelo acúmulo de detritos], de meio quilômetro de largura, 8 metros de profundidade e contendo mais de um milhão de metros cúbicos de depósitos. Os restos das primeiras moradas subterrâneas de Abu Hureyra serão enterrados fundo e perdidos da memória humana. Em 1972, o arqueólogo Andrew Moore escavou parte do tell. Como era uma Operação de resgate antes da construção da barragem, seu trabalho se limitou a duas temporadas. Hoje o tell jaz inundado sob as águas do lago Assad. Na pequena área que pôde escavar, Moore encontrou várias moradas e pontas de lixo dos mais antigos habitantes de Abu Hureyra. Não havia sinal de cemitério ou na verdade de qualquer túmulo. Isso o deixou perplexo. Que tinham eles leito com seus mortos, e teria as mesmas diferenças de riqueza evidentes em Am Mallaha? Apesar disso, naquelas duas temporadas de trabalho adquiriu-se uma abundância de informações sobre a aldeia. Foi uma das primeiras escavações a usar métodos para assegurar a recuperação até do mais minúsculo e frágil resto de planta. Incluíam a "flutuação", em que se fazem flutuar literalmente sementes calcinadas desprendidas do sedimento que as continha, para depois recolhê-las e prepará-las para estudo. Gordon Hillman descobriu que nada menos que 157 espécies diferentes teriam sido levadas para a aldeia, e desconfiou de que pelo menos outras 100 teriam sido colhidas mas não deixaram traços arqueológicos. Pôde determinar pelo menos duas temporadas de coleta: da primavera
ao início do verão, e no outono. Mas ele pensa que as pessoas ficavam em sua aldeia o ano todo; aonde mais teriam ido no inverno, quando as condições na estepe e montanhas em volta seriam sombrias? No alto verão, o recurso mais crucial provavelmente era a água do vale. Permanecendo em Abu Hureyra, elas poderiam desfrutar de plantas comestíveis que atingiam o auge no verão, como os tubérculos de juncos — embora não se encontrassem restos arqueológicos. Peter Rowley-Conwy e Tony Legge, dois dos mais destacados arqueozoólogos do Reino Unido, estudaram a matança anual de gazelas. De duas toneladas de fragmentos de ossos, mostraram que apenas dois adultos, os recém-nascidos e filhotes teriam sido mortos. Isso indicava que o abate ocorrera no início do verão: só nessa época do ano essa gama específica de idades estaria presente. Esse notável trabalho de Moore, Hillman, Rowley-Conwy, Legge e muitos outros arqueólogos mostra que os caçadores-coletores de Abu Hureyra desfrutavam das mais atraentes condições ambientais em muitos milhares de anos, desde muito antes do LGM. Em nenhuma outra época tinham os animais e plantas sido tão abundantes, diversos c previsíveis em disponibilidade — como foram para os habitantes do Natufiano nas matas mediterrâneas. Isso lhes forneceu a oportunidade de abrir mão do estilo móvel de vida que servira à sociedade humana desde seu primeiro surgimento 3,5 milhões de anos atrás na savana africana. Mas por que fazer isso? Por que criar as tensões sociais que surgem inevitavelmente quando temos vizinhos de porta permanentes numa aldeia? Por que expor-nos a detritos e lixo humanos e aos riscos para a saúde que acompanham um estilo de vida mais sedentário? Por que arriscar o esgotamento dos animais e plantas perto de nossa aldeia? Quase podemos ter certeza de que as pessoas não foram obrigadas a adotar esse estilo de vida por superpovoação. Os sítios natufianos não são mais abundantes que os de tempos anteriores; se houve um tempo de pressão populacional, foi em 14.500 a.C. que se deu um impressionante aumento no número de sítios kebaranos e a padronização de formas microlíticas. Não há indício de aumento de população dois milênios depois, quando aparecem as primeiras aldeias natufianas. Além disso, pelos indícios de seus ossos, o povo natufiano gozava de razoável saúde — inteiramente ao contrário de povos obrigados a adotar um estilo de vida
indesejável por escassez de alimentos.'' Anna Belfer-Cohen, da Universidade Hebraica de Jerusalém, estudou os indícios de esqueletos e descobriu poucos sinais de trauma, como fraturas curadas, deficiências nutritivas ou doenças infecciosas. As pessoas sob tensão tendem a criar finas linhas no esmalte dos dentes — chamadas hipoplasias. Indicam períodos de escassez de alimentos, muitas vezes imediatamente após o desmame. As linhas são menos freqüentes nos dentes natufianos que nos dos povos agrícolas. Mas os dos natufianos e os dos primeiros povos agrícolas são muito gastos. Isso confirma a importância das plantas em sua dieta: quando sementes e nozes eram moídos em pilões de pedra, entrava areia na farinha ou massa resultante. E quando a comida era ingerida, essa areia lixava os dentes, muitas vezes deixando-os quase sem esmalte algum. O povo natufiano parece ter sido inteiramente pacífico, além de saudável. Não há sinais de conflito entre grupos, como flechas enterradas em ossos humanos — ao contrário da tradição que Lubbock encontrará em suas viagens européias, australianas e africanas. Os grupos caçadorescoletores natufianos eram bons vizinhos; havia terra abundante, hortas e animais para todos. É possível que os povos natufianos e abu-hureyranos estivessem dispostos a aceitar o lado negativo da vida em aldeia — as tensões sociais, os rejeitos humanos, o esgotamento de recursos — em troca dos benefícios. François Valia, escavador de Ain Mallaha, acredita que as aldeias natufianas simplesmente surgiram das reuniões sazonais do povo kebarano. Ele lembra a obra do antropólogo social Marcel Mauss, que viveu com caçadores-coletores no Ártico na virada do século XIX para XX. Mauss reconheceu que as reuniões periódicas se caracterizavam por intensa vida comunitária, festas e cerimônias religiosas, discussão intelectual e muito sexo. Em comparação, o resto do ano, quando as pessoas viviam em grupos pequenos e distantes, era meio chata. Valia sugere que a agregação de caçadores e coletores móveis antes do natufiano pode ter sido semelhante, e o povo natufiano simplesmente teve a oportunidade de estender esses períodos de agregação até efetivamente continuarem o ano todo. Na verdade, todos os elementos-chave das aldeias natufianas já se achavam presentes em Neve David: moradas de pedra, mós, contas de dentálio, cemitérios humanos e ossos de gazelas. À medida que o clima foi-se tornando mais quente e úmido, e as plantas e
animais mais diversos e abundantes, as pessoas permaneciam mais tempo e voltavam mais cedo aos sítios de agregação de inverno, até algumas permanecerem o ano todo. Os sedentários caçadores-coletores de Ain Mallaha, Abu Hureyra e na verdade de todo o Oeste da Ásia entre 12.500 e 11.000 a.C. gozavam a boa vida. A abundância de indícios arqueológicos e a excelência da pesquisa nos permitem captar na mente algumas vividas imagens dessa vida. Podemos imaginar prontamente as bolotas sendo transportadas em cestos para Ain Mallaha, e depois reduzidas a uma pasta, os caçadores do lugar tendo a primeira visão das gazelas que se aproximam, e os trajes de um morto com um adereço de cabeça de conchas, colar e faixa de dentálio na perna em El-Wad, pronto para o enterro. Mas a imagem a ser lembrada é de algumas famílias desfrutando um dia na estepe florestal — longe dos latidos dos cães, dos fedorentos montes de lixo, dos rabugentos que ficaram para trás na aldeia. Eles não buscam caça nem plantas para colher. É um dia de descanso, e eu os vejo sentados, cercados por miríades de flores estivais. As crianças fazem guirlandas e os jovens amantes esgueiram-se para dentro do mato alto. Alguns conversam, outros dormem. Todos gozam o sol. Têm a barriga cheia e nenhuma preocupação. John Lubbock senta-se com eles, após passar alguns dias trabalhando em Abu Hureyra. Lê seu livro, descobrindo o que o xará sabia sobre a mudança do clima — muito pouco. O John Lubbock vitoriano compreendera que teriam ocorrido imensas variações no clima porque visitara cavernas cheias de ossos de rena no ensolarado sul da França, descobrira carvalhos dentro de pântanos de turfa e vira vales cortados por rios antigos. Mas em 1865 não tinha consciência da complexidade da mudança de clima, pois a idéia de múltiplas glaciações só ganhou favor no início do século XX, e acontecimentos-chave como o Jovem Dryas permaneceram desconhecidos até tempos recentes. Mesmo assim, o moderno John Lubbock se impressionou com o seu xará, sobretudo quando leu que as causas sugeridas de mudanças climáticas incluíam variação na radiação solar, alteração no eixo da Terra e mudanças nas correntes oceânicas — todas as quais foram provadas desde então e permanecem no primeiro plano do estudo científico. Por um momento, John Lubbock esquece seu lugar na história; as
borboletas, as flores, o sol e o vento são inteiramente atemporais. Mas a data é 11.000 a.C., e está para ocorrer uma dramática mudança no clima; as famílias que se sentam despreocupadas na estepe oscilam à beira de uma calamidade ambiental: está para chegar o Jovem Dryas. Por várias gerações desde o LGM, a vida para as pessoas no oeste da Ásia vem-se tornando cada vez melhor. Altos e baixos ocorreram: anos de clima relativamente frio e seco, quando plantas comestíveis e caça foram mais difíceis de encontrar, anos em que foram particularmente abundantes. Mas a tendência foi para um clima mais quente e mais úmido, maior diversidade de plantas, maiores produções de sementes, frutas, nozes e tuberosas, maiores e mais previsíveis rebanhos de animais, e uma vida cultural e intelectual mais rica. Isso culminou na vida de aldeia que Lubbock viu em Ain Mallaha e nas margens do Eufrates. As famílias de Abu Hureyra que desfrutam o sol de verão na estepe eram sem dúvida as afortunadas, e é provável que soubessem disso. Mas não podiam saber muito bem o quanto. Pois dentro de algumas gerações a maré da mudança do clima já virará, e a vida jamais voltou a ser tão boa de novo.
6 Mil Anos de Seca Economia e sociedade durante o Jovem Dryas 10.800 - 9.600 a.C. Mais uma vez, John Lubbock está parado na margem ocidental do lago Hula e olha a aldeia de Ain Mallaha do outro lado. Cinqüenta gerações, 1.500 anos, se passaram desde que ele testemunhou uma vibrante atividade na aldeia em meio aos carvalhos, amendoeiras e pistaches. Os tempos mudaram. As matas são esparsas. As árvores e o mato baixo não têm o exuberante crescimento que parecia embalar as pessoas de Ain Mallaha com a promessa de comida abundante. Dentro da aldeia, telhados e paredes ruíram, e algumas moradas não passam de montes de detritos. Há agora novas construções circulares, mas são coisas pequenas e desconjuntadas. Cinqüenta quilômetros a sudoeste, a aldeia de Hayonim foi inteiramente abandonada. Após 200 anos de ocupação, as pessoas deixaram a caverna para viver no terraço, usando as moradas anteriores para o enterro de seus mortos. Mas mesmo essas novas casas se acham agora desertas. Galhos e mato seco, cobras e lagartos, líquens e musgos são os únicos moradores, quando a natureza começa a retomar sua pedra, acolhendo as paredes de calcário, os pilões de basalto e as lâminas de sílex de volta à terra. O mesmo se dá em Abu Hureyra — as pessoas se foram, as moradas vazias deixadas para desmoronar, artefatos abandonados e esquecidos. A data é 10.800 a.C. A vida sedentária da aldeia existe apenas nas histórias, passadas de geração em geração, de pessoas que vivem em acampamentos transitórios espalhados por todas as matas que resistem e a agora estepe que mais parece deserto. A conquista cultural dos natufianos persiste não mais como um débil eco nos artefatos, trajes e costumes sociais dessas pessoas — pessoas às quais os arqueólogos se referem como natufianos tardios. Muitas delas se reúnem periodicamente em Ain Mallaha, El-Wad ou Hayonim, trazendo os ossos de seus mortos para reenterrá-los junto dos ancestrais, no que se tornaram sítios sagrados, existindo naquele mundo de sombras entre a história e o mito.
O experimento de vida aldeã sedentária durou quase 2 mil anos, mas acabou fracassando, obrigando as pessoas a retornarem a um estilo de vida peripatético mais antigo. Antes de fazê-lo, a cultura natufiana espalhara-se muito além das inatas mediterrâneas que segundo Ofer Bar-Yosef foram sua "terra natal". A assinatura dessa cultura — os microlitos em forma de meia-lua — se espalharam por todo o oeste asiático, com assentamentos dos natufianos tardios aparecendo desde os desertos do sul da península arábica até as margens do Eufrates. A disseminação da cultura natufiana sugere que as aldeias sedentárias foram em parte vítimas de seu próprio sucesso. É provável que seus habitantes tenham aumentado em número sem cessar. Os caçadorescoletores móveis têm uma restrição natural a seus números, pois precisam carregar não apenas suas posses, mas também as crianças, quando se mudam de um sítio para outro. Os partos têm de ser espaçados em intervalos de 3 a 4 anos, uma vez que não é possível carregar mais de uma criança de cada vez. Os moradores natufianos de Ain Mallaha, Hayonim e outras aldeias podiam reproduzir-se mais livremente. Parece provável que a disseminação da cultura natufiana tenha resultado em parte de grupos de pessoas que deixavam suas aldeias para estabelecer novos assentamentos. Pode ter sido esta a única forma de rapazes e moças ambiciosos adquirirem poder para si mesmos. Mas outro motivo de dispersão também se apresenta: não tinha mais comida suficiente para todos. Os natufianos tardios que se dirigiam para o deserto de Negev, para estabelecer aldeias como Rosh Horesha e Rosh Zin, ou as próximas da costa mediterrânea como Nahal Oren, ou assentamentos como Mureybet nas margens do Eufrates, podem ter sido alguns dos migrantes originais. As pessoas da aldeia tinham começado a explorar demasiado os animais e plantas selvagens dos quais dependiam. Os ossos de gazela de seus montes de detritos oferecem uma história reveladora de tentativas de administrar os rebanhos que acabaram por sair pela culatra e levaram à escassez de comida. Carol Cope, da Universidade Hebraica em Jerusalém, fez estudos meticulosos dos ossos de gazela de Hayonim e Ain Mallaha. As gazelas montanhesas caçadas por gente dessas aldeias se comportavam de forma bastante diferente das caçadas em Abu Hureyra. Permaneciam na vizinhança dos assentamentos natufianos o ano todo, jamais formando os enormes rebanhos emboscados perto do Eufrates.
Carol descobriu que as pessoas natufianas preferiam matar os animais machos. Isso era evidente porque os ossos das patas (os astragali) que estudou se dividiam facilmente em dois grupos com base no tamanho, os maiores superando em número os menores em quatro por um. Grandes patas implicam grandes corpos, e para as gazelas, esses corpos seriam machos. Quando o povo kebarano usara a Caverna de Hayonim, 5 mil anos antes de os natufianos se estabelecerem, matava gazelas machos e fêmeas em igual proporção. Ao escolherem de preferência os machos, os natufianos tentavam provavelmente conservar as populações de gazelas. Embora os dois sexos nascessem em igual proporção, só uns poucos machos eram de fato necessários para manter os rebanhos. Carol Cope pensa que o povo natufiano decidiu que os machos eram sacrificáveis, reconhecendo ao mesmo tempo a necessidade de que o maior número possível de fêmeas desse à luz novos machos. Se esse era o objetivo deles, deu horrivelmente errado. Os natufianos cometeram o erro de não apenas caçar os machos, mas de escolher os maiores que encontravam para matar. Assim, as gazelas fêmeas eram deixadas para reproduzir-se com os machos menores — que provavelmente não seriam a sua escolha natural. Como pais pequenos dão origem a filhos pequenos, e os natufianos matavam os filhos maiores, as gazelas foram-se reduzindo em tamanho a cada geração. Daí os ossos encontrados nos montes de detritos da Caverna Hayonim serem de animais muito maiores que os dos montes do terraço — tendo entre os dois 500 anos de diferença. Gazelas menores significavam que havia menos carne para alimentar uma população sempre crescente. Essa escassez era agravada pela exploração exagerada das "hortas selvagens": tinham-se cortado demasiados talos de cereais selvagens e colhido demasiadas bolotas e amêndoas para que ocorresse o reabastecimento natural. A saúde do povo nalufiano começou a ressentir-se disso, sobretudo a das crianças. Isso se evidencia nos dentes. Os dos natufianos enterrados em Hayonim têm uma freqüência muito mais alta de hipoplasias que seus antecessores pré-natufianos. Também lhes restavam menos dentes ao morrer, e os dentes que resistiam tinham cáries — mais dois sinais de má saúde.
A escassez de alimentos pode levar a crescimento físico medíocre — como é evidente entre as vítimas de fome endêmica hoje. Isso pode explicar por que muitos dos natufianos tardios, como os enterrados em Nahal Oren, eram mais baixos que os que viveram primeiro em Ain Mallaha. Assim como no mundo moderno, os homens eram mais afetados que as mulheres, e assim os sexos do natufiano tardio eram mais semelhantes em tamanho físico do que ocorrera antes. Não se pode atribuir apenas as escassezes de alimentos nas aldeias natufianas, levando à emigração e eventual abandono, aos próprios natufianos, que não conseguiram controlar seus números. É provável que os problemas de crescimento populacional hajam sido eclipsados por alguma coisa sobre a qual as pessoas não tinham controle algum: a mudança climática. O Jovem Dryas, mil anos de frio e seca, foi provocado pelo enorme influxo de águas glaciais derretidas no Atlântico Norte, quando as camadas de gelo norte-americano desabaram. O impacto disso nas paisagens do oeste asiático é logo visto nos grãos de pólen do núcleo de Hula. Os sedimentos depositados dentro desse lago após 10.800 a.C. mostram uma impressionante redução na quantidade de pólen de árvores, indicando que grande parte da mata morrera por falta de chuva e de calor. Na verdade, dentro de 500 anos já haviam retornado a condições pouco diferentes das do LGM: um devastador colapso das reservas de alimentos, exatamente quando os níveis de população tinham alcançado um pico recorde. Com o duplo impacto de pressão populacional e deterioração climática, não ficaremos surpresos com o colapso da vida aldeã do Natufiano Inicial. Mas as pessoas não podiam simplesmente voltar ao modo como seus antepassados kebaranos tinham vivido. Não apenas eram seus números populacionais substancialmente maiores, mas o povo do Natufiano Tardio tinha um legado de vida sedentária: nova tecnologia, novas relações sociais, novas atitudes em relação a plantas e animais, novos conceitos sobre terra e moradias, talvez mesmo sobre posse e propriedade. Não tinha retorno dessas idéias, embora as pessoas retornassem ao antigo estilo de vida de acampamentos transitórios e pés cansados. Antes de seguirmos a história dos natufianos tardios do vale do Jordão e
retornarmos à das viagens de Lubbock, temos de fazer uma breve visita mil quilômetros a leste. Isso nos leva além da agora deserta aldeia de Abu Hureyra, além do Eufrates e pelas encostas das montanhas Taurus e Zagros adentro. Ali, em vez de as aldeias serem abandonadas durante o Jovem Dryas, foram criadas pela primeira vez. A região das Zagros tem fronteiras maldefinidas e é topograficamente diversa; inclui a parte superior da planície mesopotâmia, colinas ondulantes, vales profundos, penhascos e picos de montanhas. As mudanças em exposição e altitude criaram impressionantes diferenças na medida de chuva e temperatura, produzindo muitos bolsões localizados de exuberante vegetação mesmo quando as condições gerais eram de seca e frio. Em toda a região, as temperaturas caíram e a chuva diminuiu, abatendo muitas das árvores que se haviam recentemente disseminado a partir da costa mediterrânea. Mas os protegidos vales das terras baixas ofereceram um refúgio para bosques de carvalho, pistacho e tamariz, assim como para animais de caça obrigados a descer das encostas mais altas agora demasiado frias. Os caçadores-coletores tiveram de seguir as plantas e animais e assentar-se entre esses vales em muito mais altas densidades do que quando vagavam pelas colinas. Entre os vales, construíram uma das mais elaboradas arquiteturas já vistas na história do mundo, Hallan Çemi Tepesi, encontrada nas margens de um riozinho nos contrafortes das montanhas Taurus, é a mais intrigante dessas novas aldeias. Em 1991, o sítio arqueológico foi ameaçado pela construção de uma barragem. Uma equipe conjunta de americanos e turcos fez escavações e descobriu vestígios de estruturas com fundações de pedra e paredes de taipa. Exatamente quando foram construídas, ainda não está claro; as poucas datas por radiocarbono abrangem mais de 200 mil anos, mas o principal período de ocupação parece ter sido por volta de 10.000 a.C. As pessoas de Hallan Çemi Tepesi tinham reunido uma ampla variedade de plantas comestíveis, incluindo amêndoas, pistacho, ameixa e legumes. Caçavam cabras selvagens, gamo e javali. Algumas das construções eram moradas domésticas com lareiras, utensílios para moagem e artefatos utilitários. Mas outras tinham estatuetas, vasos de pedra decorados e obsidiana vinda de 100 quilômetros
ao norte. As tarefas domésticas tinham sido excluídas dessas construções, reservadas para atividade social ou ritual. Os vasos de pedra decorados eram feitos de fino calcário; alguns tinham bases chatas, e outros redondas, com lados furados para suspensão sobre uma fogueira. Muitos eram enfeitados com arabescos, ziguezagues e meandros gravados. Alguns tinham imagens de animais — uma fila de três cachorros na superfície de um vaso. Vários almofarizes tinham sido muito polidos; um tinha o cabo esculpido na forma da cabeça estilizada de uma cabra. Encontraram-se muitas contas, em várias formas e tamanhos, e feitas de pedras coloridas. As chamadas estatuetas eram feitas da mesma pedra branca usada para fazer os vasos. Hallan Çemi Tepesi parece demasiado sólida para um acampamento sazonal de caçadores-coletores; investiu-se muita mão-de-obra nas construções, e os vasos de pedra maiores foram evidentemente feitos como mobília. A cultura material altamente desenvolvida e o comércio de obsidiana sugerem uma sociedade tão complexa quanto a que floresceu em Ain Mallaha — e talvez mais imersa num mundo de símbolos e ritual. John Lubbock só descobrirá a conseqüência desses fatos muito mais tarde em suas viagens — quando chegar à Mesopotâmia em 11.000 a.C., após ter viajado por quase todo o mundo. Os arqueólogos ainda se esforçam por entender o novo estilo de vida que o povo do Natufiano Tardio dos vales do Jordão e Eufrates adotou durante o Jovem Dryas. Uma fonte reveladora de indícios é sua prática de sepultamento, e como isso mudou em relação à dos seus ancestrais que moravam em aldeias. Talvez o fato mais impressionante seja que as pessoas não eram mais enterradas usando elaborados adereços de cabeça, colares, braceletes e pingentes feitos de ossos de animais e conchas marinhas. O fato de que um quarto dos natufianos iniciais tinham sido enterrados desse jeito sugere que alguns eram muito mais ricos e poderosos que outros. Riqueza e poder evidentemente dependiam do estilo de vida sedentário da aldeia. Isso proporcionou a uma elite a oportunidade de controlar o comércio que trazia conchas marinhas e outros artigos para as aldeias. O retorno a estilos de vida móveis varreu a sua base de poder e a sociedade tornou-se mais uma vez igualitária, em grande parte como fora no período kebarano. A ausência de conchas marinhas enfeitando os mortos não se
devia ao fato de essas conchas não mais estarem disponíveis — são encontradas em abundância nos assentamentos do Natufiano Tardio. Em vez de serem postas nos mortos, eram simplesmente jogadas fora com o lixo doméstico, junto com contas e pingentes de osso. As conchas tinham perdido o valor porque não havia mais controle de sua distribuição - os caçadores-coletores podiam catar conchas marinhas por si mesmos e negociá-las com quem quisessem. Outro sinal de retorno a uma sociedade mais igualitária foi a mudança do enterro de pessoas predominantemente em grupos — na certa como membros de uma única família ou linhagem — para os enterros individuais. É evidente que o fazer parte de uma mesma família não mais tinha o mesmo significado — as pessoas eram valorizadas com base em seus feitos e personalidades, e não de seus laços familiares. Mas é uma terceira mudança nas práticas de enterro que mais revela sobre a mudança na sociedade durante o Natufiano. Grande proporção de enterros natufianos é uma amontoada coleção de ossos, ou um esqueleto incompleto — freqüentemente sem o crânio. Esses são conhecidos dos arqueólogos como enterros secundários. Mostram que os ritos funerários eram muito mais que o simples fato de pôr o corpo na cova e deixá-lo lá. Em vez disso, tinha pelo menos dois, talvez vários, estágios no ritual de sepultamento — com toda probabilidade culminando quando muitos grupos se reuniam para o passamento final dos mortos. É um dia de outono em 10.000 a.C. A noite desce sobre o lago Hula, aparentemente anunciada por uma revoada de gansos. John Lubbock instala-se perto de sua pequena fogueira, feliz por ver a escuridão baixar e o sono chegar. Mas em , poucos minutos é perturbado por vozes humanas que vêm de um grupo cansado da estrada que passa a caminho de Ain Mallaha. Alguns são velhos e andam com cajados; outros são jovens e carregados pelos cansados pais. Altos latidos vêm da aldeia caindo aos pedaços, respondidos por pouco mais que ganidos dos cachorros que viajam com essas pessoas. Para os cachorros, Ain Mallaha será apenas mais um de muitos assentamentos visitados no correr de um ano. Mas para as pessoas, é um lugar sem igual — é seu lar ancestral e esta é a primeira visita que lhe fazem em muitos anos. Suas viagens os levaram a vários outros dos seus acampamentos
temporários — sítios abandonados quando a caça e as plantas locais ficaram demasiado esgotadas para sustentar a sua presença. Visitaram lugares onde pessoas tinham morrido e sepultadas. Em cada cova os ossos foram exumados e postos em cestos para serem trazidos para Ain Mallaha. De algumas, trouxeram esqueletos quase completos, mantidos inteiros pela pele seca e os tendões; de outros, apenas o crânio. Sempre que descansavam na viagem, os velhos recordavam as visitas que seus pais e avós haviam feito a Ain Mallaha, trazendo os ossos de seus mortos para reenterro. Os jovens ouviam avidamente. Sabiam as histórias de cor: que os ancestrais tinham morado em Ain Mallaha o ano todo; que tinha abundância de comida; que eles enfeitavam os corpos com roupas elaboradas e jóias; que o lobo se tornara cachorro. Lubbock junta-se ao grupo e entra na aldeia de Ain Mallaha, onde se fazem respeitosos e formais cumprimentos com o punhado de gente que vive nas decadentes moradas e guardam o sítio. Os cestos e os poucos pertences que eles trazem são arriados. Acende-se uma fogueira e partilha-se um pouco de comida antes que o sono os reclame a todos. Durante os poucos dias seguintes, chegam mais grupos a Ain Mallaha, cada um trazendo cestos com os ossos dos seus mortos. Quase cem pessoas já se reuniram, prontas para reviver o passado ancestral. Passamse mais dois dias, enquanto se batem as matas em busca de caça e plantas comestíveis para os banquetes. Contam-se histórias, e torna-se a contá-las. Lubbock ajuda na limpeza dos detritos de uma das moradas desabadas: pedras, galhos, madeiras podres e a Terra. Os antigos cemitérios de Ain Mallaha são reabertos. Em meio a hinos e cantorias, retiram-se os corpos dos novos mortos dos cestos e colocam-nos na Terra. Fazendo isso, o passado e o presente juntam-se num só. O ato de reenterro, os dias de festejos que se seguem, a vida comunitária, as histórias contadas e os banquetes recriam para os vivos os dias do passado ancestral. Esquece-se momentaneamente do desafio do presente — a luta pela sobrevivência durante a severidade da seca do Jovem Dryas. As pessoas permanecem em Ain Mallaha o quanto suas reservas de comida permitem — dez dias, talvez duas semanas no máximo. Falam sem parar de onde estiveram, e do que pode guardar o futuro. Trocam presentes: pedras, conchas e, o mais intrigante de tudo, bolsas de couro com grãos de cereais, ervilha e lentilha. Finalmente, os grupos partem para lados diferentes, cada um tendo
ganhado novos membros e perdido outros. Estão todos agradecidos pela volta ao seu estilo de vida transitório nas áridas paisagens das colinas mediterrâneas, no vale do Jordão e além. Afinal, é o único estilo de vida que conheceram, e que adoram. Lubbock passou a adorá-lo também, sobretudo quando na companhia dessas pessoas que têm urna história para contar sobre cada vale e cada colina, cada poço e cada conjunto de árvores. Ele entra num grupo que parte caminhando para o sudeste, dirigindo-se para o vale do Jordão. Mochilas de sementes pendem de suas cinturas e balançam como pêndulos, parecendo conscientes do próprio tempo, sabendo que pouco resta para os que caçam e coletam seu alimento. Não há indício arqueológico evidente de que o povo do Natufiano Tardio levava mochilas de cereais, lentilha e ervilha. Mas se o fazia, e depois espalhava as sementes quando chegava a seus campos outonais e colhia a safra de verão, antes de passar a viver em outra parte, isso explicaria como evoluíram o trigo e a cevada domesticados. O trabalho experimental de Patrícia Anderson mostrou que o replantio de campos existentes — como podem ter feito os natufianos iniciais — teria causado pequena diferença na proporção de variantes nãoquebradiças, devido à quantidade de sementes já existentes no solo. O que era necessário para que ocorresse a domesticação era que novos tratos de cereais, ervilha e lentilha fossem regularmente semeados e colhidos, e isso é provável que muitos latufianos tardios tenham feito. Mas que poderia tê-los levado a fazê-lo? Sabemos que os tempos eram difíceis nas paisagens cada vez mais áridas do Jovem Dryas, mas ainda não está claro o grau de dificuldade. As secas certamente fizeram com que muitos poços e rios desaparecessem por completo, e os lagos maiores diminuíssem de tamanho. As pessoas que viviam no sul, nos hoje desertos de Negev e Sinai, com toda probabilidade foram as mais atingidas. Retornaram a um estilo de vida inteiramente transitório, muito semelhante ao das pessoas kebaranas. A sobrevivência exigiu melhores armas de caça: os animais tornaram-se escassos, e portanto o sucesso se tornou essencial quando era possível um abate. E, assim, vemos a invenção da ponta Harif — uma ponta de flecha de forma rombóide. Mais ao norte, o impacto do Jovem Dryas pode ter sido menos severo.
Mas a sobrevivência ainda exigia mais que apenas um retorno ao estilo de vida móvel do caçador-coletor, sobretudo porque muito mais pessoas precisavam de comida agora do que no período kebarano, antes da experiência do Natufiano Inicial com moradias permanentes. Uma das respostas foi caçar uma gama bem mais ímpia de animais que antes; e daí encontrarmos em assentamentos do Natufiano Tardio os ossos de muitas espécies de caça miúda, além da sempre presente gazela. Outra resposta foi continuar, e talvez expandir, o cultivo de plantas. Os cereais selvagens foram particularmente atingidos pelo Jovem Dryas, devido ao decréscimo na concentração de dióxido de carbono (C02) na atmosfera. Essa diminuição, cuidadosamente documentada em bolhas de ar presas no gelo antártico, inibiu sua fotossíntese e reduziu sua produção. Em conseqüência, quaisquer práticas de cultivo iniciadas durante o Natufiano Inicial — capinai, transplantar, regar, controlar pragas — podem ter-se então tornado essenciais para garantir comida suficiente. E isso pode ter criado as primeiras cepas domesticadas. Parece que foi o que ocorreu em Abu Hureyra pouco antes do seu abandono. Quando Gordon Hillman estudou os grãos de cereais no sítio, descobriu alguns grãos de centeio de plantas que tinham passado pela transição para formas domésticas. Ao serem datadas, mostrou-se que se situavam entre 11.000 e 10.500 a.C. — os mais antigos grãos de cereal de qualquer parte do mundo. Junto com esses grãos, Hillman encontrou sementes dos matos que brotavam tipicamente em solo cultivado. E assim, parece que, à medida que a disponibilidade de plantas selvagens declinava devido à instalação do Jovem Dryas, as pessoas de Abu Hureyra passaram a investir um volume cada vez maior de tempo e trabalho em cuidar do centeio selvagem, e ao fazerem isso transformaram-no sem querer numa safra doméstica. Mas mesmo isso não pôde sustentar a aldeia — foi abandonada, quando as pessoas se viram obrigadas a retornar um estilo de vida móvel, talvez carregando bolsas de grão de cereais. O centeio domesticado de Abu Hureyra voltou ao estado selvagem. Como seu maior interesse no cultivo, os natufianos tardios vagaram das matas esgotadas onde antes seus antepassados tinham prosperado. Foram atraídos para os solos aluviais dos vales, não apenas os do rio Jordão, mas também os encontrados junto a grandes rios da planície mesopotâmia, e na proximidade de lagos e rios por todo o Oriente Próximo. Grandes extensões desses solos ricos e férteis tornaram-se disponíveis quando os
rios e lagos encolheram de tamanho durante o Jovem Dryas. Cereais selvagens, mas cultivados, davam bem nesse solo, sobretudo quando perto de nascentes, poços e regatos que sobreviviam nas condições áridas. Os poucos grãos de centeio de Abu Hureyra são o único indício existente de que tal cultivo no Natufiano Tardio criou um tipo domesticado de cereal — um tipo "que esperava pelo colhedor". É possível que trigo, cevada, legumes e linho fossem igualmente transformados pelas técnicas de plantio e colheita empregadas durante o árido Jovem Dryas. A verdade é que no momento simplesmente não sabemos exatamente quando ou onde apareceram as primeiras cepas domesticadas, ou se elas evoluíram apenas uma para cada espécie, ou independentemente ou em grupos. Um estudo pioneiro em 1997 comparou a genética do trigo selvagem de campos sobreviventes no Crescente Fértil com a de trigo domesticado moderno e afirmou que as colinas do sudeste da Turquia, conhecidas como Karacadag, são o provável local da domesticação — cerca de 200 quilômetros ao norte de Abu Hureyra — embora isso precise de posterior confirmação. Veremos em breve que um notável sítio arqueológico se encontra nas proximidades dessas colinas. Pode ter levado outros mil anos ou mais para que aparecessem o trigo, cevada e legumes domésticos — possivelmente isso só aconteceu quando novas aldeias e mesmo cidades já haviam sido estabelecidas. Mas meu palpite é que em algum ponto do Crescente Fértil, em alguma época durante o Jovem Dryas, um ou mais bandos de caçadores-coletorescultivadores começaram a andar com novos tipos de sementes. Eles podem ter notado que suas safras teriam se tornado muito melhores, mas com certeza não sabiam que aquelas sementes eram dinamite cultural. E o curto pavio delas começou a arder quando o Jovem Dryas chegou ao seu dramático fim. Em 9.600 a.C., as temperaturas subiram 7°C em menos de uma década. Foi uma fenomenal e tumultuada mudança de clima. Há um súbito aumento na quantidade de pólen de árvores nos sedimentos do núcleo de Hula, embora a mata jamais voltasse à densidade e exuberância gozada pelas pessoas do Natufiano Inicial de 12.500 a.C. O impacto sobre as pessoas do Natufiano Tardio foi sentido dentro de uma geração. Localidades que não tinham podido sustentar mais que um acampamento sazonal ofereciam a possibilidade de um lar permanente.
Mais uma vez, abundavam as plantas comestíveis selvagens, seguidas de perto por crescentes populações animais. Regatos e rios corriam com renovado vigor; lagos retomaram os solos que por tanto tempo tinham abandonado. Os cereais selvagens beneficiaram-se do maior CO2 na atmosfera. Os segredos do cultivo, que não tinham proporcionado mais que magros suplementos à dieta de alimentos selvagens durante a seca do Jovem Dryas, agora produziam abundantes quantidades de grão, ervilha, lentilha. Assim surgiu a oportunidade para que se empreendesse de novo o experimento de vida de aldeia do Natufiano Tardio — um experimento talvez lembrado pelas histórias passadas de geração a geração, um estilo de vida quase mítico que podia tornar-se realidade mais uma vez. A oportunidade foi agarrada — e desta vez realmente não tinha retorno. Para os natufianos iniciais, a chave da vida em aldeia fora a gazela, os produtos do carvalho, amêndoa e pistacho, e a riqueza de plantas comestíveis colhidas do mato baixo da mata e da estepe florestal. Quando chegou a salvação do Jovem Dryas em 9.600 a.C., a chave era um ambiente inteiramente diferente: foi nos solos de vales aluviais que a nova fase da história humana começou. Os arqueólogos chamam-na de Neolítico — a Nova Idade da Pedra.
7 A Fundação de Jericó Arquitetura neolítica, enterro e tecnologia do vale do Jordão, 9.600 - 8.500 a.C. John Lubbock está parado na sombra da noite das colinas palestinas, olhando um grupo de pequenas moradas redondas no vale embaixo. Possuem telhados planos de palha e se misturam com abrigos de palha, não diferentes dos que ele viu em Ohalo em 20.000 a.C. Mas as casas agora são completamente novas. Salgueiros, choupos e figueiras cercam a aldeia, evidentemente alimentados por uma nascente local e crescendo exuberantes no novo mundo emente e úmido do Holoceno. Mais adiante, pântanos chegam até a beira do lago Lissan — conhecido hoje como mar Morto. Muitas árvores foram derrubadas para fornecer material de construção e criar pequenos campos para cevada e trigo. Se essas safras são biologicamente domésticas ou selvagens, parece inteiramente sem importância, uma vez que com certeza chegou o novo mundo da agricultura. A data é 9.600 a.C. e John Lubbock olha para Jericó, aldeia que assinala uma virada na história do oeste asiático. Minha primeira visão de Tell es-Sultan, a antiga Jericó, foi igualmente impressionante, mas menos pitoresca. Também eu fiquei parado à sombra das colinas palestinas, cerca de meio quilômetro a oeste do que se tornara um grande monte constituído por vários milênios de construções desmoronadas e detritos humanos, erodidos pelo sol, pelo vento e pela chuva. Muito a leste, faixas de brilhantes amarelos e deslumbrantes brancos do vale do Jordão ainda ardiam ao sol; imediatamente abaixo de mim, os prédios de blocos cinza-opaco da cidade palestina que hoje cerca o antigo sítio. Mas ali, no centro de minha visão, estava Tell es-Sultan, famosa como a "mais antiga cidade do mundo". Parecia uma pedreira antiga, ou mesmo uma zona de bombardeio. Isso, claro, era culpa da minha profissão — os arqueólogos que começaram a cavar o monte em 1867. Poucos anos depois, o Capitão
Charles Warren fora procurar as muralhas derrubadas pelas trombetas de Josué e seus israelitas, acreditando que Tell es-Sultan era a antiga Jericó bíblica. Uma equipe de estudiosos alemães o seguiu entre 1908 e 1911, e depois John Garstang, da Universidade de Liverpool, na década de 1930. Mas foram as grandes escavações de Kathleen Kenyon, entre 1952 e 1958, que revelaram ao mundo a antiga Jericó. Kathleen escreveu que "o oásis está quase como imaginamos o Jardim do Éden”. As verdes árvores e a Terra agrícola arável que cercavam a Jericó para a qual eu olhava espalhavam-se por muitos quilômetros além do belo oásis que Kathleen vira. Irrigação moderna hoje leva água de Ain es-Sultan — a nascente que deu origem à aldeia — a campos distantes no vale. Assim, usei a imaginação para abater aquelas árvores distantes e plantei muito mais palmeiras em torno do monte. Demoli as construções de concreto e blocos pré-moldados e plantei campos de maiz no lugar. Depois armei um conjunto de tendas brancas que Kathleen usara no pé do monte. Uma vez erigidas, eu via um rio de trabalhadores deixando o monte ao fim do dia de trabalho, os arqueólogos e estudantes instalandose para o chá, antes de começar a classificar as descobertas. Esse foi o dia em que eles tiveram a primeira sugestão da mais antiga construção dentro do monturo. A cidade da Era do Bronze e a de prédios retangulares do Neolítico Tardio já eram bem conhecidas. Mas nesse dia, que eu sabia ter sido em algum momento em 1956, "ficou claro", Kathleen escreveria depois, "que estávamos penetrando numa diferente fase abaixo... os pisos eram de terra, não de gesso... as paredes eram curvas e as plantas das casas pareciam ser redondas". Sabemos que grupos de pessoas natufianas acamparam junto à nascente, porque ali se encontraram espalhados seus instrumentos em forma de meia-lua. Com toda probabilidade plantaram cereais, ervilhas, lentilhas, e conseguiram uma magra colheita antes de partirem para viver em outra parte no vale ou nas colinas. Por volta de 9.600 a.C., as secas de verão chegaram ao fim. Novas chuvas alimentaram os rios que se precipitaram pelas colinas palestinas; o Jordão começou a inchar. Grossas camadas de fértil solo foram depositadas em todo o vale do rio por novas enchentes anuais, e aguadas pela nascente que jorrava com recém-descoberto vigor. As safras cultivadas floresceram, muito provavelmente substituindo as plantas
selvagens não cuidadas como principais fornecedoras de alimentos. Os natufianos tardios estenderam a duração de sua estada, até que a história se repetiu e a vida sedentária da aldeia renasceu longe das matas mediterrâneas preferidas pelos natufianos iniciais. E assim foi fundada Jericó, e com ela sua gente se tornou camponesa. As pessoas continuaram a viver em Jericó até hoje. A primeira aldeia foi sepultada sob casas, armazéns e santuários construídos por sucessivas gerações, as que usaram cerâmica, bronze, e depois entraram nos anais da história do Velho Testamento. E assim um gigantesco monturo foi criado pela nascente de Ain es-Sultan, de 250 metros de comprimento e mais de 10 de altura. Consistia de paredes de adobe desmoronadas e camada sobre camada de pisos de casas e lixeiras; mas, além de detritos humanos, o monturo continha os bens perdidos e os túmulos ocultos de 10 mil anos de história humana. Kathleen Kenyon (1906-1978) chegou a Jericó querendo aplicar o que para ela eram técnicas moderníssimas de escavação. Como Dorothy Garrod, que descobrira o natufiano, Kathleen foi uma das grandes arqueólogas britânicas do século XX. As duas venceram no que era em essência um mundo masculino, a primeira estudando em Oxford na década de 1920 e depois dirigindo escavações na Inglaterra e na África. Atuou como diretora do Instituto de Arqueologia do University College, em Londres, durante a guerra, e acabou por tornar-se diretora do St. Hugh's College, em Oxford. Recebeu muitas honrarias, que culminaram com a concessão do título de Dama do Império Britânico em 1973. Seu objetivo em 1952 era explorar mais as fases finais da antiga cidade, aquelas relacionadas com a história bíblica, e descobrir os primeiros restos, que julgava mais importantes e merecedores de "completa exploração". Tinha toda razão. Isso se tornou evidente para o mundo em 1957, quando ela publicou uma história popular de seu trabalho, Digging Up Jericho [Desenterrando Jericó]. Os acadêmicos, porém, tiveram de esperar até o início da década de 1980 para que saíssem os volumes adequadamente enormes descrevendo a arquitetura, a cerâmica e a seqüência-chave de camadas dentro do monte. Infelizmente, Kathleen havia morrido alguns anos antes de sua publicação. John Lubbock está agora dentro da aldeia, ajudando a construir uma casa
de adobe. Há muita obra de construção em andamento, pois os abrigos de sapé são aos poucos substituídos por construções mais perenes. Com as certas chuvas de verão, safras produtivas e abundante caça selvagem dentro do vale, o povo de Jericó não precisa partir. Sempre que eles preferem passar várias semanas ou meses fora, visitando amigos e parentes ou cm longas expedições de caça ou comércio, sabem que voltarão a Jericó. E assim estão dispostos a investir tempo e energia na construção de casas de adobe c abrir campos. Uma vez construídas umas poucas casas, Jericó atraiu novos moradores dispostos a deixar seus grupos de caçadores-coletores e juntar-se ao novo estilo de vida de cultivar safras. Lubbock passou essa manhã cavando barro do fundo do vale e carregando-o num trenó de madeira para a aldeia; ali, o barro é misturado com palha e cortado em tijolos oblongos que são deixados a secar ao sol. Serão unidos com uma argamassa de lama para fazer as paredes das moradas redondas, cada uma com cerca de 5 metros de diâmetro e pisos rebaixados. As paredes superiores serão feitas de varas e galhos, o piso de junco besuntado de barro. Nessa noite, depois de se banhar na fonte, Lubbock anda pela aldeia e conta nada menos que cinqüenta moradas — algumas dispostas em torno de pátios para uso de grandes famílias, outras sós ou em grupos isolados. Há fogueiras dentro e fora, e um denso véu de fumaça paira entre os becos. As pessoas sentam-se em pátios, algumas trançando tapetes e cestos, outras trocando noticias e fazendo planos para o dia seguinte. Em 9.600 a.C., provavelmente quinhentas pessoas moram em Jericó —talvez a primeira vez na história humana em que uma população completamente viável viveu no mesmo lugar ao mesmo tempo Dentro de 500 anos, Jericó já se tornara ainda maior, com mais de setenta mora dias, talvez com uma população de mil habitantes. Uma parte bem maior da mala em redor foi aberta e grandes áreas se achavam em cultivo. Muitas das moradias originais já haviam desabado ou sido deliberadamente derrubadas para construírem-se outras sobre suas ruínas. Mas a diferença mais impressionante em relação à aldeia era que seu lado oeste, de frente para as colinas palestinas, fora fechado por uma enorme muralha de pedra e erguera-se uma grande torre circular do lado de dentro. Kathleen Kenyon descobriu essas construções durante suas escavações
em 1956. Parece improvável que a muralha, de 3,6 metros de altura e 1,8 de largura na base, tenha cercado toda a cidade, pois nenhum vestígio dela se encontrou no lado leste. Dentro desse muro ela descobriu os restos da torre, de 8 metros de altura e 9 de diâmetro na base, com um peso estimado de mil toneladas. Uma escada interna, com 22 degraus de pedra, conduzia ao topo. Tal arquitetura era inteiramente sem precedentes na história humana, e é a mais notável das descobertas de Kathleen — seriam necessários pelo menos 100 homens, trabalhando durante 100 dias, para construir a muralha e a torre. Como ela própria sugeriu, "em concepção e construção, essa torre não faria vergonha diante de um dos mais grandiosos castelos medievais". A muralha e a torre permanecem inteiramente únicos para esse período. Kathleen supôs que foram construídos para defender a cidade de ataque, uma conclusão aparentemente incontestável, em vista das ligações bíblicas de Jericó. Só em 1986 Ofer Bar-Yosef fez algumas perguntas óbvias: quem eram os inimigos de Jericó? Por que a muralha não foi reconstruída depois de ser sepultada por detritos de casas após não mais que 200 anos? Por que não há outros locais fortificados da mesma data no oeste asiático? Bar-Yosef concluiu que as muralhas eram para defesa, mas não contra um exército invasor— o inimigo era a água e a lama das enchentes. Jericó vivia em perpétuo perigo quando a chuva aumentava e o desflorestamento desestabilizava sedimentos nas colinas palestinas, que podiam então ser carregados para a borda da aldeia pelos wadis próximos. Quando o lixo da aldeia sepultou as muralhas, o nível de assentamento já tinha literalmente se elevado pelo acúmulo de casas desmoronadas e lixo humano. Isso afastou as ameaças da água e lama das enchentes. Simplesmente não se precisava mais de uma muralha. Ofer Bar-Yosef descartou a idéia de que a torre se destinava a fortificação. Ficou impressionado com sua ótima conservação, e sugeriu que isso pode ter sido ajudado pela presença de uma plataforma de adobe em cima da construção de pedra. A própria Kathleen encontrou, ligadas ao lado norte da muralha, vestígios de construções que julgou que poderiam ter sido usadas para armazenar grãos. Em vista disso, Bar-Yosef sugeriu que a torre era de propriedade pública ou estava a serviço da comunidade, talvez como um centro de cerimônias anuais. Não parece provável que algum dia se encontre uma resposta definitiva — embora mais escavações
nas vizinhanças da torre certamente ajudassem. O que é claro é que, com a construção da muralha e da torre, as pessoas criavam arquitetura e atividade comunal em escala inteiramente nova. Começara uma nova fase da história humana. Em fins da década de 1950, assentamentos de aldeias semelhantes na Europa — embora muito mais novos em idade —já haviam sido descritos como neolíticos. Na década de 1920, Gordon Childe, o principal arqueólogo do período pré-guerra, cunhara a expressão "Revolução Neolítica" para referir-se ao súbito aparecimento de assentamentos do que, ele acreditava, refletia uma completa mudança de maré no estilo de vida. Isso não apenas envolvia agricultura, mas arquitetura, cerâmica e machados de pedra polida. Childe pensa que isso formava um "pacote neolítico", sempre adquirido como um todo único, indivisível. Kathleen Kenyon descobriu que ele estava errado. Embora as casas, túmulos e estilo de vida deles em geral se encaixassem bem no molde neolítico, os primeiros aldeões em Jericó não dispunham de um dos elementos cruciais do pacote neolítico: a cerâmica. As poucas tigelas, vasos, pratos ou copos que sobreviveram eram feitos de pedra; é provável que muitos mais tenham sido feitos de madeira ou fibras vegetais. E assim Kathleen cunhou um novo termo para a cultura inicial de Jericó: o Neolítico Pré-Cerâmica (PPN na sigla em inglês). Na verdade, designou a primeira aldeia em Jericó como pertencente ao "Neolítico Pré-Cerâmica A" — um período que hoje se sabe não durou mais de mil anos após o início do Holoceno. Aqueles que viveram na aldeia "PPNA" de Jerico, viveram literalmente com os mortos. Kathleen descobriu nada menos que 276 túmulos, embora escavasse apenas 10% do assentamento. Estavam todos associados às construções, de uma forma ou de outra; ficavam embaixo do piso, sob a estrutura das casas, entre paredes e dentro da torre. Continuava a tradiçãochave de enterro do Natufiano Tardio: as pessoas tendiam mais a ser enterradas sós que em grupos; muito poucos artefatos, quando tinha algum, eram enterrados com os mortos. Após os enterros, e muito provavelmente quando toda a carne já se havia decomposto, cavavam-se freqüentemente covas para tirar os crânios, muitos dos quais eram depois reenterrados em outro lugar dentro da aldeia. Uma coleção de cinco crânios de bebês foi colocada dentro de uma
cova abaixo do que Kathleen julgava fosse um altar. Mas a maioria das crianças e bebês, que representavam 40% dos enterros, foi deixada intacta — eram principalmente os crânios dos adultos os removidos para exposição e eventual reenterro. Por que havia tal interesse pelos crânios? Era um interesse que se tornaria muitíssimo elaborado à medida que a aldeia de Jericó se tornava uma cidadezinha, levando à cobertura dos crânios com máscaras de gesso e olhos de conchas de caurim. Kathleen pensou que houvera um culto aos ancestrais e estabeleceu uma comparação com o povo do rio Sepik na Nova Guiné, que em tempos recentes usava os crânios de venerados ancestrais em seus rituais. Mas jamais vamos saber exatamente por que as pessoas de Jericó — e na verdade de todo o oeste asiático e além — exumavam e reenterravam crânios humanos, talvez após um período de exposição. Como acontecia com essas práticas funerárias, os instrumentos usados pelos aldeões de Jericó eram muito semelhantes aos do Natufiano Tardio, embora tenham algumas grandes inovações tecnológicas. A mais impressionante foi o uso de adobe para construção — trabalho de muita mão-de-obra que demonstrava o compromisso com a vida da aldeia. Contudo, muitos dos artefatos de pedra continuaram em grande parte sem mudança. Ainda se faziam microlitos, assim como uma gama de lâminas, raspadores e foices. Machados e enxós de pedra, o que não surpreende, foram encontrados em número muito maior que antes. Eram usados para derrubar a vegetação para os campos. Esse desmatamento pode ter contribuído para a erosão do solo, aumentando a necessidade de uma muralha defensiva. Um artigo, porém, merece especial atenção: um novo tipo de ponta de flecha, conhecida pelos arqueólogos como ponta "elKhiam". Era de forma triangular, com duas ranhuras laterais usadas para prender ao cabo, e batizada com o nome do sítio onde foram descobertos os primeiros espécimes. Assim como os microlitos geométricos e lunares tinham vindo e passado de moda, o mesmo aconteceu com as pontas el-Khiam. Elas atingiram o auge da popularidade por volta de 9.000 a.C, quando aparecem quase simultaneamente em todas as regiões ocidentais e centrais do Crescente Fértil. Como tal, não esta claro onde se originou o novo desenho, ou por que se tornou tão largamente adotado por toda essa vasta região. Muitas têm desenho aerodinâmico, e bem podem ter levado a uma
substancial melhora na eficiência da caça. Mas nova pesquisa, empregando estudo microscópico, mostrou que um grande número dessas pontas foi usado mais como sovelas e puas que como pontas de projéteis, como se supunha tradicionalmente. As gazelas continuaram a ser o alvo principal dos caçadores. Mas com a disseminação da mata, passou-se a ter uma gama maior de animais como presa — daí os ossos de gamos e javalis junto aos das gazelas e íbis dentro dos monturos de Jericó. Raposas e pássaros, sobretudo aves de rapina, também se tornaram predominantes. É improvável que tenham sido caçados como comida: pele de raposa, garras, elegantes penas de asas e caudas podem ter sido artigos cruciais de adorno do corpo. Podem ter feito parte das redes de comércio que se desenvolvia rapidamente no vale do Jordão e além. Pois Jericó não estava sozinha nesse novo mundo neolítico.
8 Pictogramas e Colunas Ideologia, simbolismo e comércio neolíticos, 9.600 - 8.500 a.C. Jericó foi a primeira das aldeias neolíticas do "PPNA" a ser descoberta, e continua sendo a mais famosa. Mas sua posição de destaque há tanto tempo mantida, como constituindo a origem do Neolítico e de um estilo de vida agrícola, foi seriamente contestada nos últimos anos por novas descobertas no vale do Jordão e nos limites norte do Crescente Fértil, que proporcionaram intuições novas e inteiramente surpreendentes da religião neolítica. Na década de 1980, descobriram-se e escavaram-se várias aldeias do PPNA na região da margem Ocidental do vale do Jordão, mais notadamente Netiv Hagdud e Gilgal. Ficavam a não mais de 20 quilômetros de Jericó e eram muito menores em tamanho, facilmente imagináveis como aldeolas nas vizinhanças daquela próspera aldeia. Como esses assentamentos não viraram tells pelo acúmulo e colapso de construções de adobe pré-históricas posteriores, as escavações puderam revelar áreas maiores das mais antigas moradas do Neolítico do que foi possível em Jericó. Essas escavações trouxeram mais clareza e detalhes aos tipos de arquitetura, túmulos e práticas econômicas do que Kathleen Kenyon tinha descoberto. E assim essa região da margem Ocidental, mais que a própria Jericó, ficou caracterizada como a origem e centro do mundo neolítico. Em fins da década de 1990, também se começou a descobrir e escavar sítios neolíticos do PPNA no lado oriental do vale, ao sul do mar Morto, na moderna Jordânia. Eles mostraram que o Neolítico Inicial floresceu numa área mais extensa do que se supunha antes. Zad, atualmente escavada por Phillip Edwards, da Universidade La Trobe, em Melbourne, Austrália, tem uma arquitetura sobretudo impressionante, pois as paredes das construções em forma de ferradura foram construídas com pedra. A não mais de 2 quilômetros de Zad, o sítio de Dhra está em escavação por Bill Finlayson, diretor do Conselho de Pesquisa Britânica no Levante, e
Ian Kuijt, da Universidade Notre-Dame, de Indiana, EUA. Eles descobriram uma construção circular de paredes de barro particularmente impressionante, com colunas internas que podem ter sustentado um piso de macieira. Setenta e cinco quilômetros a sul, fica minha própria escavação em andamento, feita em conjunto com Bill Finlayson no sítio WF16 — o décimo sexto descoberto numa pesquisa de Wadi Faynan, no sul da Jordânia. Quando descobrimos esse sítio em 1996, um importante arqueólogo me sugeriu que pouca coisa relevante seria encontrada, pois o WF se situa muito longe de Jericó. Mas nossas escavações revelaram um dos mais bem preservados poços de pisos e detritos do PPNA, uma mistura de estilos arquitetônicos e uma rica variedade de túmulos, artefatos e objetos de arte: o mais antigo neolítico evidentemente florescera nos limites sul e no lado oriental do vale do Jordão. Todas essas escavações, de Netiv Hagdud ao WF16, confirmaram o caráter da cultura PPNA que Kathleen Kenyon identificou primeiro em Jericó: pequenas moradas circulares, túmulos sob os pisos, rituais associados a crânios, dependência da caça e do cultivo de cereais selvagens ou talvez domesticados junto com uma diversa gama de plantas. Não há dúvida de que Jericó continua sendo o maior assentamento neolítico do PPNA — não se descobriu em outra parte nada comparável à sua torre e muralha. Mas está claro que não mais podemos identificar esse sítio com a origem do próprio neolítico. Isso se tornou mais evidente à luz de escavações nos limites norte do Crescente Fértil. Elas sugerem que o vale do Jordão como um todo pode ter sido inteiramente periférico em relação aos fatos econômicos e sociais que criaram o mundo neolítico. Quinhentos quilômetros ao norte de Jericó, fica o sítio de Mureybet — ou melhor, ficava, porque foi inundado pela criação do lago Assad para a Represa de Tabaka, o mesmo destino que coube a Abu Hureyra. Os dois sítios foram descobertos com menos de 50 quilômetros de distância um do outro em lados opostos do Eufrates. Parece provável que os que abandonaram Abu Hureyra simplesmente cruzaram o rio e iniciaram uma nova aldeia em Mureybet. Esse assentamento ocorreu durante o Natufiano Tardio, e a nova aldeia se desenvolveu e virou um tell como o de Jericó, constituído por casas desmoronadas e detritos humanos de vários milênios de ocupação.
Escavações feitas em 1971 por Jacques Cauvin identificaram níveis do Neolítico Inicial contemporâneos da primeira aldeia em Jericó. Mas a arquitetura de Mureybet fora mais complexa, com moradas interligadas consistindo de vários aposentos. Cauvin as reconstrói como semisubterrâneas, com mourões centrais internos sustentando caibros de madeira, que se irradiavam e repousavam sobre as paredes em volta. As moradias tinham áreas elevadas, provavelmente usadas para dormir, mós instaladas no chão e áreas de armazenamento para grãos. Embora a gama de artefatos de pedra seja semelhante à dos sítios do vale do Jordão, Cauvin descobriu um emprego muito maior de barro cozido do que se descobrira em outros lugares, e do qual fora usada parte para se fazer pequenas tigelas, que não poderiam tecnicamente ser descritas como cerâmica por não terem material de tempera como osso, pedra ou pedra triturada para impedir o barro de rachar-se no forno. Mas as tigelas foram endurecidas no fogo, e esse foi talvez o primeiro passo para a produção de cerâmica no oeste asiático. Também se usara barro para moldar estatuetas femininas, que também eram esculpidas em pedra. Embora fossem de caráter esquemático, com braços diminutos e sem detalhes faciais, eram mais realistas que as formas humanas quase completamente abstratas encontradas em Netiv Hagdud. Com base nessas estatuetas, Cauvin sugeriu que existira um culto da "deusa mãe" não apenas em Mureybet, mas em todo o mundo neolítico. A essa divindade se juntara — segundo Cauvin — uma outra: o touro. Embora não se encontrasse nenhuma estatueta ou desenho de touro em Mureybet, ele escavou crânios e chifres de gado selvagem enterrados sob pisos e dentro de suas paredes. Como todos os restos de plantas e animais do sítio eram de espécies selvagens, Cauvin afirmou que o novo culto do Neolítico a tais divindades precedia e, por algum meio não declarado, provocou o desenvolvimento da agricultura. Poucos arqueólogos hoje endossam a idéia de uma "deusa mãe neolítica", mas a opinião de que a mudança ideológica veio antes da econômica encontrou sustentação em dois outros sítios neolíticos, Jerf el Ahmar e Göbekli Tepe. Jerf el Ahmar fica 120 quilômetros ao norte de Mureybet e é outro sítio hoje embaixo de um lago artificial. Danielle Stordeur, da Universidade de Lyon, França, escavou o sítio entre 1995 e 1999, como uma operação de resgate, imediatamente antes da inundação. Suas primeiras fases são
também contemporâneas da primeira aldeia em Jericó. São visíveis as semelhanças arquitetônicas entre as construções de Jerf el Ahmar e as de Mureybet e do vale do Jordão. Mas, uma vez mais, a arquitetura é notadamente complexa e duas construções são sobretudo impressionantes. Uma localizava-se no centro da aldeia, e parece ter sido usada para armazenagem comunitária de grãos de cereais de safras selvagens, mas cultivadas. Dividia-se em seis pequenos aposentos em torno de uma área central com dois bancos, e estava extraordinariamente bem preservada, as paredes em pé, de mais de 1 metro de altura. Essa construção pode sugerir uma comunidade muitíssimo cooperativa e que partilhava tudo. Por outro lado, pode-se adotar uma visão mais sombria e imaginar que o armazenamento centralizado de grãos permitiu a um indivíduo ou família adquirir poder controlando sua distribuição à comunidade. O uso final desse prédio parece ter sido para um ato ritual: sob os detritos do telhado desabado encontrou-se um esqueleto humano esparramado no chão. Faltava apenas o crânio — o corpo fora decapitado. Que o ritual e a ideologia desempenhavam papéis de destaque na vida dos habitantes de Jerf el Ahmar, é evidente por outra construção. Esta era pequena e redonda, e fora deliberadamente incendiada. Em seu piso, Danielle encontrou quatro grandes crânios de gado selvagem, que tinham sido um dia pendurados das paredes, oferecendo outro indício de que esses animais tinham tido significado religioso. Esse aposento em Jerf el Ahmar lembra outro no assentamento de Hallan Çemi Tepesi, no Jovem Dryas — 300 quilômetros a noroeste, nas montanhas Zagros — onde o crânio de um boi selvagem também fora pendurado na parede. A arquitetura de Jerf el Ahmar é apenas um dos aspectos da importância do sítio. Ele também oferece vários depósitos rituais intrigantes, como crânios humanos colocados num poço de cremação e depois lacrado com uma camada de pilhas. As obras de arte de Jerf el Ahmar também são notáveis, incluindo vasos de pedra com decoração geométrica de intricada escultura e estatuetas de pedra de aves de rapina. Mas talvez a descoberta mais importante tenham sido quatro plaquetas de pedra, cada uma com cerca de 6 centímetros de comprimento e com signos gravados que parecem pictogramas: cobras, aves de rapina, animais quadrúpedes, insetos e símbolos abstratos. Se esses sinais não tivessem sido descobertos no sítio do Neolítico Inicial 6 milênios antes da invenção da escrita, não hesitaríamos em
descrevê-los como um código simbólico — hieróglifos neolíticos. Danielle Stordeur sugeriu que pareciam "evocar algum tipo de registro" e "conter uma mensagem". Exatamente o que era tal mensagem, permanecerá desconhecido até decifrarmos esse código neolítico. Para isso, precisaremos de muito mais exemplos de pictogramas, mas como Jerf el Ahmar se acha agora sob um lago, eles terão de ser descobertos em outra parte. Os exemplos mais próximos dos pictogramas de Jerf el Ahmar que vi estavam gravados em colunas de pedra num sítio 100 quilômetros mais ao norte. Este não corre o risco de ser inundado, pois se acha no cume de uma colina de calcário no sudeste da Turquia. É conhecido hoje como Göbekli Tepe. As escavações desde 1994 deixaram pasmo o mundo arqueológico, e deram mais ânimo aos que desejam pôr Jericó e o vale do Jordão na periferia das origens neolíticas. Göbekli Tepe foi localizado pela primeira vez na década de 1960, quando uma pesquisa naquela região feita pelas Universidades de Istambul e Chicago registrou "um complexo de morrotes de terra vermelha" no cume de uma colina de calcário fora isso estéril. Registraram-se uma densa área de artefatos de sílex e um grande número de lajes de calcário. Supôs-se que estas eram restos de um cemitério, provavelmente de data bizantina, o que combinava com alguns cacos de cerâmica medieval encontrados pela pesquisa. Mas não se fizeram outros comentários sobre a muito alta densidade de artefatos de sílex. Na década de 1960, a idéia de um sítio do Neolítico Inicial empoleirado numa colina era simplesmente inconcebível. O sítio foi ignorado ou esquecido durante 30 anos, até Klaus Schmidt, do Instituto Arqueológico de Istambul, subir a colina em 1994. Ele reconheceu imediatamente os artefatos de sílex como neolíticos e desconfiou de que as lajes de calcário eram restos de arquitetura contemporânea. As escavações continuaram desde então, revelando um sítio neolítico espetacular e verdadeiramente único. Quando Klaus me mostrou a área numa tarde de outubro, ao fim de sua temporada de escavação de 2002, eu me senti completamente esmagado pelo que ele descobrira e a grandeza do cenário. Muito pouco depois de 9.600 a.C., ao mesmo tempo em que se construíam as primeiras moradias circulares de Jericó, as pessoas tinham
ido a Göbekli e talhado enormes Colunas "em forma de T" da pedra calcária. Muitas tinham 8 metros de altura e pesavam 7 toneladas. Estas se erguiam dentro de construções circulares afundadas na colina para criar o que pareciam porões na terra. Colocavam-se duas colunas de pedra no centro de cada construção e até oito outras regularmente espaçadas em torno da sua borda, entre as quais se haviam construído bancos. As faces de muitas colunas haviam sido esculpidas e mostravam animais — cobras, raposas, javalis, gado selvagem, gazelas e cegonhas —junto com sinais enigmáticos como os pictogramas de Jerf el Ahmar. Na face de uma coluna fora esculpido um braço humano, e as próprias colunas pareciam imensos torsos humanos. Quatro construções adjacentes desse tipo tinham sido reveladas quando fiz minha visita, e simplesmente me tiraram o fôlego. Schmidt suspeita que há várias outras ainda profundamente enterradas abaixo da superfície da colina. Quando o sítio foi abandonado, as pessoas do Neolítico Inicial deliberadamente enterraram suas construções e colunas rituais sob várias toneladas de terra. O tempo e trabalho envolvidos em extrair a pedra, esculpir, transportar e erguer tais colunas por pessoas equipadas com não mais que instrumentos de sílex é estonteante. E mesmo as colunas de 7 toneladas não tinham satisfeito inteiramente as necessidades delas. Quando Klaus me mostrou as pedreiras localizadas a 100 metros das construções, apontou uma coluna "em forma de T" inacabada ainda em parte presa à rocha — se retirada, teria tido não menos de 15 metros de comprimento e 50 toneladas de peso. Não surpreendentemente, nossos pés pisavam um denso tapete de lascas de sílex dos instrumentos usados para esculpir a pedra. Estes eram feitos de muitos milhares de nódulos de sílex levado para cima da colina de uma fonte a vários quilômetros de distância. Todo esse trabalho fora feito por pessoas que dependiam inteiramente de caça e plantas selvagens como alimento. Embora as escavações tenham produzido vários restos de ossos de animais e plantas, nem um único destes é de uma espécie domesticada. As pessoas de Göbekli caçavam gazelas, gado selvagem e javalis; sabemos que colhiam amêndoas, pistacho e cereais selvagens, e desconfio que as "hortas selvagens" em torno de Göbekli teriam facilmente produzido pelo menos tantas plantas comestíveis quanto as identificadas em Abu Hureyra, 200 quilômetros ao sul. Mas embora os restos dessas comidas fossem jogadas fora no
monturo, não há vestígios de quaisquer moradias — casas, lareiras ou poços. Schmidt conclui que Göbekli foi um centro ritual, que ele descreve como santuário da montanha, e conseqüentemente único entre todos os sítios neolíticos no oeste asiático. Ele acredita que era um lugar de reunião de muitos grupos diferentes que viviam num raio de 100 quilômetros da colina, ou talvez mais longe ainda. Reuniam-se em Göbekli uma ou duas vezes por ano para fins de natureza inteiramente religiosa. É muito provável que essas reuniões envolvessem pessoas de Jerf el Ahmar. Além das semelhanças na escolha de signos abstratos e a gama de animais desenhados, os dois sítios partilham características arquitetônicas, em especial o uso de construções circulares com bancos. O que, exatamente, significam o animal e as imagens simbólicas, e que tipo de atividades rituais tinham lugar em Göbekli, não é provável que venhamos a descobrir. As imagens podem ter sido totens de clãs ou representações de deuses neolíticos — mas não houve "deusas mães" em Göbekli. Todos os animais são machos, e há uma escultura em calcário, do sítio, de uma figura humana com o pênis ereto. Na verdade, em vez de idéias de fertilidade e reprodução integrais, os temas religiosos que surgem tanto de Jerf el Ahmar e Göbekli são sobre medo ( o perigo do agreste. Ainda assim, a idéia de Cauvin, de que a mudança ideológica precedeu os fatos econômicos que criaram comunidades agrícolas ganhou maior apoio. Infelizmente, ele morreu após uma longa doença em 2001 e jamais chegou a ver as colunas de Göbekli Tepe. Que a ideologia por trás das imagens e colunas pode ter desempenhado um papel na criação da agricultura me ocorreu quando Klaus me apontou umas colinas pequenas não menos de 30 quilômetros do outro lado da planície abaixo de Göbekli. Ele observou casualmente que eram as Karacadag. Em 1997, o trigo selvagem que ainda dava nas Karacadag foi identificado como o mais próximo parente genético conhecido do moderno trigo doméstico. A necessidade de conseguir comida suficiente para os que haviam trabalhado e colhido para as cerimônias em Göbekli — talvez várias centenas pode ter levado ao cultivo intenso de cereais selvagens que criou as primeiras cepas domésticas. Nesse aspecto, a domesticação do trigo pode bem pouco ler tido a ver com pessoas lutando contra as condições severas do Jovem Dryas. Pode ter sido apenas um
produto lateral acidental da ideologia que levou os caçadores-coletores a esculpir e erigir enormes colunas de pedra no topo de uma colina no sul da Turquia. Parado naquele topo de colina numa tarde de outubro de 2002 d.C., senti que realmente fora em Göbekli, e não em Jericó, que a história do mundo virará. Ao ver os trabalhadores curdos que retornavam a suas aldeias e os arqueólogos aos seus acampamentos, imaginei outros fazendo uma partida semelhante — as pessoas neolíticas a deixarem Göbekli depois que acabaram suas cerimônias. Sabendo da farta produção que proporciona o trigo de Göbekli Tepe, algumas podiam ter carregado sacos de grãos para semear em suas próprias hortas selvagens. Ao fazerem isso, estavam espalhando não apenas novas sementes, mas também um novo estilo de vida para as aldeias de caçadores-coletores-cultivadores de Jerf el Ahmar, Mureybet e talvez para a própria Jericó. É provável que a semente de grãos tenha feito parte da rede de comércio neolítica que se estendeu da Turquia aos limites sul do vale do Jordão. Sabemos que tal comércio existiu porque a obsidiana, um vidro vulcânico muito fino, negro e brilhante originado de uma única fonte nas colinas do sul da Turquia, é encontrada em todos os sítios do Neolítico Inicial. Para os que dependiam do relativamente embaciado sílex no vale do Jordão, a obsidiana deve ter sido um material muitíssimo valorizado. Muitos caçadores-coletores modernos, como os aborígines australianos, atribuíram a pedras brilhantes poderes sobrenaturais, e o mesmo certamente deve ter acontecido com a obsidiana no período neolítico; suas finas lascas são de fato transparentes; as grossas podem ser usadas como espelhos; tem o gume mais afiado entre todas as pedras, e pode ser talhada em formas complexas. É verdadeiramente um material mágico. A obisidiana, com a máxima probabilidade, foi comerciada de assentamento em assentamento, junto com uma legião de outros bens hoje invisíveis: peles, penas, grão, carne e nozes. Corno a quantidade de obsidiana encontrada em Jericó era desproporcional ao tamanho da aldeia, esta deve ter sido um centro-chave da rede de comércio. Foi talvez dentro dessa rede de troca que a nova semente de grão se espalhou aos poucos pelo oeste asiático — sementes de grão das plantas que, na expressão de Daniel Zohary, "esperavam pelo colhedor" — e finalmente transformou os cultivadores neolíticos em agricultores completos. Essa transição criou os
mais antigos assentamentos da fase seguinte do Neolítico, a que Kathleen Kenyon chamou de Neolítico Pré-Cerâmica B. Para compreender como esses assentamentos contrastavam de forma impressionante com as primeiras aldeias neolíticas de Jericó e semelhantes, temos de viajar do extremo norte ao extremo sul do Crescente Fértil e visitar meu próprio sítio de escavação em Wadi Faynan. Wadi Faynan é uma paisagem árida mas de beleza espetacular. Chega-se lá passando de carro pelo extremo sul do mar Morto na estrada de Aqaba, e depois seguindo para oeste pela aldeia de Qurayqira — casas de prémoldado amontoadas construídas para os beduínos locais, muitos dos quais preferem permanecer em suas tendas. Depois de Qurayqira acaba a estrada, e seguimos por uma trilha de terra (se encontramos uma) ao longo da base do wadi seco até a borda da íngreme escarpa que sobe para o planalto do Jordão. E melhor chegar à noite, colhendo porcos-espinhos e gerbos na luz dos faróis, debatendo se é a trilha certa ou não, e comemorando a chegada no acampamento da escavação com uma cerveja gelada ao luar. Em Wadi Faynan dormimos sob as estrelas e deixamos para trás as tensões da vida universitária e familiar para reconquistar a emoção infantil da arqueologia — sujar as mãos, desenterrar coisas, revelar o passado. Trabalhando com Bill Finlayson, tento reconstituir o assentamento préhistórico desse wadi desde os tempos mais remotos até as primeiras comunidades agrícolas. Muitos sítios foram descobertos, alguns com artefatos feitos por neandertais e possivelmente até tipos humanos precedentes. Mas o sítio mais importante que descobrimos é a aldeia PPNA do Neolítico Inicial a que demos o nome nada romântico de WF16. Encontramos vestígios dessa aldeia em nossa primeira visita ao wadi, uma época em que apenas dois dos nossos foram lazer um reconhecimento. Após vários dias exaustivos andando no calor implacável, quando nos sentíamos desanimados com a falta de verba, decidi acabar o dia examinando dois pequenos monturos logo acima do leito do wadi. Para minha imensa excitação, o terreno estava juncado de artefatos de pedra: pedaços de sílex lascado e mós. Junto com estes havia vestígios de pequenas construções circulares: círculos de pedra surgindo de debaixo de sedimentos trazidos pela chuva das colinas e penedias em
volta, e que teriam enterrado o que esperava pudesse ser uma aldeia. Vários anos depois, sabemos que WF16 foi de fato um pequeno assentamento do Neolítico Inicial, contemporâneo da primeira fase de Jericó, 250 quilômetros ao sul. Tinha talvez 10 ou 12 moradas circulares, cada uma de apenas 4 metros de diâmetro e erguidas poucos metros separadas entre si, para que se pudesse andar facilmente entre elas. As pessoas de WF16 caçavam cabras selvagens, faziam armadilhas para falcões e desentocavam raposas. Colhiam figos, legumes e cevada selvagem. Alguns de seus mortos tinham sido enterrados dentro das moradas, às vezes individualmente, e deixados intactos, às vezes como montes de ossos. Adquiriam conchas do Mediterrâneo e do mar Vermelho, esculpiam desenhos geométricos nos artefatos de osso e pedra, e faziam contas verdes de minério de cobre dos penhascos em volta. Também se adquiriu obsidiana vinda da Turquia — embora até agora só tenhamos encontrado uma única lasca dessa pedra em meio aos muitos milhares de sílex. Nossas escavações estão longe de se considerarem concluídas. Ainda temos de determinar se as pessoas viviam em WF16, o ano todo ou se era apenas um acampamento sazonal. Não sabemos ainda quantas moradas havia, e se as atuais foram construídas simultaneamente ou uma a uma entre 10.000 e 6.500 a.C. — o período da ocupação. Foram seus habitantes caçadores-coletores, cultivadores de cereais selvagens ou agricultores com safras domesticadas? Minha própria interpretação do sítio muda à luz de novas descobertas em outras partes. Antes pensava que as raposas haviam sido caçadas simplesmente para fornecer peles; mas depois de ver as gravuras nas colunas de Göbekli Tepe, imagino se houve motivos mais ideológicos que utilitários por trás da captura delas. Tenho preocupações semelhantes sobre os muitos ossos que encontramos de aves de rapina — talvez, em vista das esculturas de Jerf el Ahmar, capturados por outros motivos além de apenas para fornecer plumas decorativas. Assim como em Göbekli, a imagística masculina parece importante. Encontramos um falo de pedra esculpida, enquanto alguns dos supostos almofarizes utilitários têm uma aparência tão fálica que sugerem que a moagem de plantas comestíveis foi investida de algum tipo de simbolismo sexual. É 9.000 a.C., e John Lubbock viajou de Jericó para o sul e acha-se no que
se tornará o monturo WF16. Está cercado pela grandeza do wadi, que tem uma cor verde vibrante, em vez dos amarelos e marrons crestados de hoje. Onde vi estéreis desertos, ele vê árvores de carvalho e pistacho; figo, salgueiro e choupo crescem junto a um rio que corre pelo que hoje é um wadi inteiramente seco e sem árvores. Escuta conversa humana, o atrito de pedra contra pedra e o latido de cachorros. O cheiro de junípero recémcortado impregna o ar. Pessoas neolíticas sentam-se diante de suas moradas fazendo e usando os mesmos artefatos que nós encontraremos um dia. Usam colares de contas e penas dos falcões cujos ossos escavaremos. Pontas el-Khiam são fixadas em juncos e puas de arco; pilões e almofarizes estão em ação; paredes são construídas com varas de junípero. Visitantes chegam trazendo obsidiana para trocar por contas de diorito e fardos de pêlo de cabra. Lubbock observa os banquetes que têm lugar quando a caça foi boa e a moagem de minúsculas sementes secas quando foi ruim. Observa o enterro de um velho dentro de uma morada, a cabeça do cadáver posta num travesseiro de pedra. Depois que o piso de terra foi socado até ficar de novo plano, o crânio continua à mostra, possibilitando às pessoas trabalharem e dormirem em volta, confortadas pela continuação dessa presença em suas vidas. Em 8.500 a.C., WF16 torna-se silenciosa e Lubbock vê-se sozinho. Os aldeões neolíticos desapareceram e suas moradas foram abandonadas à natureza e quem quer que possa encontrar e escavar o sítio. Lubbock ouve vozes que sobem do wadi, onde ele serpeia dobrando uma curva e as rochas viram penhascos, e onde hoje se torna conhecido como Wadi Ghuwayr. Lubbock segue a margem do rio, roçando juncos luxuriantes, gansos e patos assustados. Não anda mais de 500 metros na margem do rio de rápida correnteza e encontra pessoas trabalhando. Algumas são de WF16, mas outras vieram de longe, talvez de outra parte no vale do Jordão ou de uma distância muito maior. Juntas constroem não apenas uma nova aldeia, mas também um tipo inteiramente novo de aldeia. Trabalham na encosta acima da margem do rio a 10 ou 20 metros da beira d'água. Constroem casas retangulares; casas com sólidas paredes de pedra e pisos de argamassa. Fizeram-se terraços, e as posições das paredes de casas com 10 metros de comprimento e 5 de largura foram marcadas no chão. Algumas já se acham na metade da construção; as paredes chegam à altura do peito, feitas com seixos alisados pela água. Pedras
pequenas e argamassa são empilhadas entre filas paralelas de seixos para fazer uma sólida parede de 50 centímetros de espessura — coisa muito distante das paredes de pedra seca de WF16. Em algumas casas, puseramse mourões de madeira pouco para dentro das paredes, prontos para sustentar o peso de caibros. Perto do sítio de construção arde uma fogueira para fazer a cal para os pisos de argamassa. Muitas centenas de nódulos de calcário foram colhidas dos limites superiores de Wadi Ghuwayr e são queimadas dentro de um poço. Quando se atinge a temperatura suficientemente alta, as pedras se desintegram em pó de cal. Em outra, parte da cal já está sendo misturada com água e despejada em grossa camada sobre uma base de pedras no chão de uma casa quase pronta. A argamassa aplaina todas as quinas, lendas e um raso poço central que será a lareira. Uma vez seca e dura, será pintada de vermelho e depois polida. Mais argamassa cobrirá as paredes, por dentro e por fora. Estas serão mantidas num branco brilhante, Conheço bem essa aldeia, mas não como um sítio de construção nem como um lugar de viver. Conheço-a como ruínas expostas por escavação. Mohammed Najjar, do Ministério de Antigüidades da Jordânia, e Alan Simmons, da Universidade de Nevada, descobriram e escavaram o sítio. Eles vão a Wadi Ghuwayr todo ano, para ir aos poucos revelando sua arquitetura, notadamente diferente da de WF16 e no entanto construída dentro de uma única geração de seu passamento. Essas aldeias com casas retangulares de dois andares surgiram por todo o Crescente Fértil pouco depois de 9.000 a.C. Com a máxima probabilidade, originaram-se em Jerf el Ahmar e Mureybet, onde se encontraram construções da transição de redondas para retangulares. A nova arquitetura espalhou-se rapidamente; um sinal das transformações sociais e econômicas que ocorreram agora que a nova agricultura com safras domesticadas realmente começou, e os números das populações subiram às alturas. Essas novas construções caracterizam a fase do Neolítico que Kathleen Kenyon designou como Neolítico Pré-Cerâmica B (PPNB na sigla em inglês). É outro mundo neolítico que John Lubbock tem de explorar agora.
9 No Vale dos Corvos Arquitetura, têxteis e domesticação de animais, 8.500 - 7.500 a.C. Deixando os penhascos acima de Wadi Gjuwayr, John Lubbock anda para o sul até a noite começar a cair, num dia de primavera de 8.000 a.C. Isso o leva a uma espetacular paisagem de calcário que corre como uma prateleira abaixo do planalto jordaniano. Depois de cruzar para lá e para cá o oeste asiático do Mediterrâneo ao Eufrates, está familiarizado com as árvores e reconhece com facilidade o carvalho, o pistacho e o espinheiro, embora ainda não tenham atingido o pleno reverdor. Enquanto anda, vê não apenas cabras selvagens sobre os rochedos, mas vislumbra um chacal que inicia seu trabalho noturno e uma lebre que encerra o dia. Reconhece as pegadas de javali e os restos da presa de um leopardo. Com tais animais cm volta, dorme inquieto ao abrigo de um rochedo de calcário, que muda de cor quando o sol se põe em todo o vale do Jordão. No dia seguinte, Lubbock continua a atravessar a mata, equilibrando-se de vez em quando à borda de precipícios rochosos para olhar o futuro deserto de Negev do outro lado de um vasto abismo sem árvores. Após ter viajado cerca de 30 quilômetros desde Wadi Ghuwary, chega à entrada de um vale amplo e aberto, com uma densa cobertura de árvores e definido por altos penhascos de calcário. Vê, muito apropriadamente, dois pássaros negros gritando alto, pois esse é Wadi Gharab — o vale dos corvos. Abriga a primeira cidade que Lubbock tem a oportunidade de visitar; é de fato uma das primeiríssimas cidades do mundo: Beidha. A trilha de cabras transforma-se num caminho bastante utilizado no meio da mata onde muitas árvores foram derrubadas. Isso logo dá lugar a pequenos campos com cerrais que acabam de brotar, ervilhas e pequenos brotos de uma safra desconhecida — linho. E então ele vê, ouve e sente o cheiro de cidade — uma massa de moradas de pedra retangulares, vozes humanas, latidos de cachorros, cabras balindo e fumaça de lenha. Aí não há indefinições entre os domínios da natureza e a cultura humana, como havia em Ain Mallaha e Abu Hureyra. A cidade de Beidha é uma
impressionante afirmação do desligamento humano do mundo natural, epitomizado pelos ângulos agudos e a ordenada disposição das construções, as cabras em seus cercados, a terra capinada para o plantio. A oportunidade de visitar Beidha foi proporcionada pelo terceiro membro de um notável trio de arqueólogas. Já reconhecemos a contribuição de Dorothy Garrod e Kathleen Kenyon. Agora, devemos apreciar o trabalho de Diana Kirkbride. Após estudar egiptologia no University College, em Londres, na década de 1930, e trabalhar em Jericó com Kathleen, ela passou vários meses em 1955 escavando em Petra para o Departamento de Antigüidades da Jordânia. Durante esse tempo, descobriu a cidade neolítica de Beidha. Os espetaculares templos e túmulos de 2 mil anos de Petra não conseguiram conter o interesse de Diana, e nos dias de folga ela saía à procura de "sítios de sílex” próximos. Com a ajuda de guias beduínos, encontrou vários, alguns extremamente antigos. Também descobriu um pequeno tell que se tornou o sítio de Beidha, localizado a cerca de uma hora de caminhada por entre as colinas de calcário ao norte de Petra. Diana começou a escavar ali em 1958, e concluiu a última de suas oito temporadas de campo em 1983, quando já havia descoberto 65 construções. Era, e continua sendo, de longe a mais extensa escavação de um assentamento do Pré Neolítico, oferecendo uma intuição única da disposição de uma das primeiras cidades. O trabalho dela revelou que Beidha cresceu de uma pequena aldeia de moradas circulares interligadas para a cidade de prédios retangulares de dois andares à qual Lubbock agora chegava. Para entrar na cidade, ele atravessa uma baixa muralha que cerca as construções. É uma barreira ao solo arenoso que ameaça cobrir os pátios, agora que foi liberado pela derrubada das árvores. Uma trilha leva Lubbock por entre prédios para um pátio murado de cerca de 8 metros de diâmetro. É o centro da cidade. À frente dele, vêem-se quatro câmaras construídas de pedra com grãos espalhados no chão — os restos de uma colheita; à esquerda/direita, a fachada de um prédio particularmente grande. Ele atravessa sua porta e entra num aposento de um branco reluzente — o piso, paredes e mesmo o teto densamente rebocados. A única cor é uma grossa faixa vermelha em torno da base das paredes. No centro, ergue-se uma coluna de pedra não cortada de 1 metro de altura.
Atrás dela, há uma entrada para um segundo e maior aposento. É igualmente escasso e deslumbrante, com os mesmos reboco branco e faixa vermelha, que também circundam uma lareira no meio do pico e urna bacia de pedra perto da entrada. No canto oposto, um poço revestido de pedra. E é só isso. Nenhum móvel a sugerir uma casa, nem pedra lascada ou fragmentos de ossos a sugerir uma oficina, nem efígies esculpidas a sugerir um lugar de ritual ou culto, e — o mais assustador — nenhuma pessoa visível a trabalhar ou brincar. Embora escavada por Diana, a mais substancial tentativa de interpretar a arquitetura de Beidha foi feita por Brian Byrd, da Universidade da Califórnia. Ele ficou particularmente impressionado com o tamanho do prédio em que Lubbock entrou, avaliando que só o reboco exigiu mais de 2 mil quilos de cal viva e 9 mil quilos de madeira para os fornos. Assim, mesmo que famílias individuais tivessem construído suas casas dentro da cidade, esse prédio exigiu trabalho comunitário, e a questão-chave — não apenas no caso de Beidha, mas de todas as novas cidades com tais prédios — foi se o trabalho foi feito por vontade própria ou sob coerção de chefes das cidades. É de fato difícil imaginar uma comunidade do tamanho de Beidha, talvez de 500 pessoas, existindo sem comando. Talvez esse viesse de anciãos respeitados que desempenhavam papel destacado na tomada de decisões que afetariam a comunidade como um todo. Ou talvez houvesse indivíduos que exerciam o poder pela força. Brian Byrd julgou provável que esse prédio fosse usado para tomar tais decisões, um lugar em que famílias separadas podiam reunir-se. Pareceu importante que no pátio diretamente defronte da sua entrada ficasse a instalação de armazenamento de grãos. O muro circundante fora um acréscimo recente — antes, as pessoas atravessavam livremente o pátio. O novo muro, junto com outros fatos arquitetônicos, era evidentemente usado para controlar os movimentos das pessoas pela cidade e influenciar o que elas podiam ver. Supõe-se que isso fosse uma vantagem dos que tinham autoridade: os depósitos de grãos — e o conhecimento de quantos grãos eles continham — eram fontes de poder para os que controlavam sua distribuição. Deixando o grande prédio, Lubbock anda entre as casas até chegar a outro pátio — menor que o último, não pavimentado e dando acesso a duas casas vizinhas. Cada uma tem de três a quatro degraus para um andar de cima, e um número semelhante para um porão embaixo. Lubbock
escolhe uma casa na qual ouve vozes, sobe a escada e entra num aposento em que oito ou nove pessoas se sentam em tapetes de palha, em torno de uma lareira central. Há adultos e crianças, homens e mulheres; alguns dividem pão e carne, outros inalam fumaça de folhas. Todo o aposento está cheio de fumaça que só lentamente atravessam os juncos que formam o telhado. Os olhos de Lubbock enchem-se de lágrimas. As pessoas espremem-se juntas; parece provável que uma família esteja recebendo outra. Suas roupas impressionam — atestado de outra pequena revolução que ocorreu durante o último milênio, e que passou praticamente despercebida pelos arqueólogos. Todas as pessoas citados anteriormente nessa história usavam roupas feitas de couro ou pele, ou muito ocasionalmente de fibras trançadas. As de Beidha vestem com elegância tecidos feitos de tecelagem; usam a primeira forma de linho, tingido de verde e transformado em túnicas e saias. Não era provável que tais roupas, feitas quando as artes de fiar e tecer se achavam na infância, durassem mesmo umas poucas gerações antes de apodrecerem ou se desfazerem, quanto mais por muitos milênios desde que as pessoas se sentaram comendo em Beidha. Contudo, algumas sobreviveram, não em ruínas de cidades, mas dentro da minúscula caverna de Nahal Hemar, localizada a meio caminho entre Beidha e Jericó, na fronteira norte do deserto de Negev, longe de qualquer assentamento humano. Beduínos saquearam essa caverna na década de 1960, quando buscavam mais uma coleção dos Manuscritos do mar Morto. Em 1983, ela foi redescoberta pelo arqueólogo israelense David Alon, que escavou os depósitos sobreviventes com Ofer Bar-Yosef. Encontraram muitos pedaços de tecido, cordas e cestos. Todos eram contemporâneos das primeiras cidades do oeste asiático. Os tecidos haviam sobrevivido porque os sedimentos eram absolutamente secos — sem umidade, as bactérias destrutivas não puderam concluir seu trabalho. Tinham sido feitos de junco, palha e capim, usando uma variedade de fiação, costura e técnicas manuais de tecelagem. Os cestos tinham sido feitos de cordas de fibras vegetais trançadas, em forma de vaso e tornadas à prova d'água por revestimento de betume de jazidas naturais em torno das margens do mar Morto. As espátulas de osso da caverna era, com a máxima probabilidade, instrumentos para a fabricação de cestos.
Alguns tecidos tinham sido feitos de fio de linho que vinham das fortes fibras dos talos de flax. Eram fiadas e depois combinadas por tricô ou tecelagem manual, usando-se um método conhecido como "junção de trama", que pode ter sido feito sobre uma tábua. Este é o mais simples tipo de tecelagem, e usado até recentemente por sociedades tribais em todo o mundo. Encontraram-se várias lançadeiras de osso que introduziam a trama, ou fio vertical, na urdidura, ou fio vertical. Infelizmente, os fragmentos de tecido de Nahal Hemar são pequenos demais para reconstruir os artigos do vestuário do Neolítico — com uma exceção, um adereço cônico de cabeça. Fez-se uma faixa tecida para pôr em torno da testa, enfeitado com um único diorito; o chapéu então se elevava e formava um cone em forma de diamante, acabando num nó em cima e borlas. Como se trata de uma descoberta única, não temos idéia se se tratava de uma peça do dia-a-dia do povo neolítico ou um artigo de traje cerimonial usado apenas por pessoas especiais em ocasiões especiais. A última hipótese é talvez mais provável, em vista da localização isolada da caverna e dos outros objetos que continha. Como aconteceu com o trigo e a cevada, o linho também brotara como uma espécie selvagem dentro da estepe florestal do oeste asiático, e depois fora cultivado com os cereais e legumes. Fragmentos dele foram encontrados em Jericó, Tell Aswad e Abu Hureyra, mas não foi possível saber se vinham de plantas selvagens ou domesticadas. Meu palpite é que também se plantava linho em Beidha; não se encontrou nenhum, mas a preservação e recuperação de plantas nesse sítio foram particularmente ruins. Embora as roupas e cestos deixados em Nahal Hemar possam ter sido usados em ocasiões cerimoniais, lembram-nos do que deve ter sido um aspecto que impregnava a vida diária durante o Neolítico. O corte de junco e o cultivo de linho. É provável que a fiagem, tecelagem, trançagem, costura e tricotagem das fibras fizessem parte da vida de muitas pessoas. Elas observavam e manuseavam tecidos todo dia, sentindo o grão grosseiro contra a carne. O cheiro de betume, do trabalho com vime e pano de linho estaria sempre presente. E no entanto, praticamente tudo o que os arqueólogos sabem de suas roupas são os poucos fragmentos descobertos na caverna de Nahal Hemar. Lubbock continua dentro da casa em Beidha, examinando cestos
impermeáveis no chão e uma pilha de tricô. Pedras quentes da lareira são de vez em quando jogadas dentro dos cestos, para aquecer o líquido dentro — chá de hortelã. Um denso monte de peles, couros e tecidos no outro lado da sala sugere uma área de dormir. Uma criança jaz sobre elas com uma pele pálida e doentia. Como Lubbock tantas vezes viu em outras partes, a mortalidade infantil em Beidha é alta — uma coisa que Diana Kirkbride descobriu quando desenterrou os muitos esqueletinhos enterrados sob os pisos. Lubbock descobre que o trabalho se faz sobretudo no porão. Este tem um piso de terra e grossas paredes que contêm seis pequenas câmaras, três de cada lado de um curto corredor. Lajes de pedra no chão proporcionam sólidas superfícies de trabalho — algumas cobertas com lascas de pedra, outras com fragmentos de osso e chifre cortados jogados fora. Algumas câmaras foram usadas para triturar pedras em contas, outras para trabalhar couro. As duas câmaras mais próximas da entrada têm grandes mós usadas para fazer farinha de trigo e cevada. Aí, pois, está outra mudança radical, não apenas em relação aos assentamentos natufianos, mas também às primeiras aldeias agrícolas de Jericó e Netiv Hagdud. Muitas atividades foram transferidas para dentro de casa e aposentos dentro de construções individuais agora definiram funções: alguns são dedicados a comer, dormir e receber, outros a atividades artesanais e armazenagem. Parece ter não apenas uma nova ordem na arquitetura e planta da cidade, mas também nas vidas das pessoas. A transição das pequenas moradas circulares típicas de assentamentos do PPNA como Jericó, Netiv Hagdud c WF16 para os prédios relativamente grandes, retangulares e muitas vezes de dois andares de Beidha e outros assentamentos do PPNB documentam uma grande transformação social. Kent Flannery, da Universidade de Michigan, afirmou que isso reflete uma mudança de uma sociedade voltada para o grupo — em que qualquer excedente de alimentos é reunido e disponível para todos — para outro em que as famílias são a unidade social. Em vez de espalharem-se entre várias pequenas cabanas circulares, essas famílias consolidaram sua presença com múltiplos aposentos dentro de uma única moradia. Eram donas e armazenavam um pouco ou talvez todo o excedente de comida que geravam, muitas vezes construindo depósitos especiais como parte de suas casas.
O passeio de Lubbock entre os becos e pátios de Beidha oferece-lhe novas experiências. Nos assentamentos de caçadores-coletores que visitou houve poucas surpresas — ele quase via de um extremo da aldeia ao outro, e todos pareciam conhecer os assuntos de todos os demais. Ali, como em outras cidades neolíticas, dobrar quase qualquer esquina pode levar a uma surpresa — inesperados grupos de pessoas, uma lareira ao ar livre, uma cabra amarrada. As pessoas simplesmente não podem saber o que se passa em outra parte da cidade — mesmo apenas a alguns metros de distância — porque muita coisa se passa por trás de grossas paredes. O número de habitantes se tornou demasiado grande para as pessoas conhecerem os assuntos e parentes umas das outras. Lubbock sente que há uma atmosfera de desconfiança e ansiedade, trazida pelo impacto da vida urbana numa mentalidade que evoluiu para viver em comunidades menores. Junto com os carneiros, as cabras foram os primeiros animais a serem domesticados depois do cachorro, e completaram a passagem da caça e coleta para um estilo de vida agrícola. Exatamente onde, quando e por que ocorreu essa domesticação, ainda é muito debatido pelos arqueólogos. A cabra é muito rara nas coleções de ossos de aldeias do Natufiano e do Neolítico Inicial, dominadas pela gazela — a presa preferida desde o LGM. Assim, a abundância de cabras encontradas em Beidha — 80% de todos os ossos de animais — sugere mais pastoreio que caça. As cabras de Beidha eram também pequenas, comparadas com as cabras selvagens conhecidas. A redução do tamanho do corpo ocorre com todos animais assim que se tornam domesticados — os porcos são menores que os javalis, as vacas que o gado selvagem. Com a máxima probabilidade, isso resulta de pobre alimentação materna e a matança seletiva dos adultos machos pela , carne. Esse padrão de matança é evidente em Beidha, onde a maioria dos ossos vem de animais de cerca de 2 anos de idade, sugerindo que foram mantidos vivos até atingirem todo o seu tamanho, mas mortos antes que comessem demasiada forragem. O fato de que muito poucos dos ossos de Beidha vieram de animais jovens é um sinal seguro de que as cabras não eram mantidas pelo leite; nessa prática, os recém-nascidos são mortos para que o leite possa ser tomado para uso humano. A domesticação cedo de cabras e carneiros não surpreende, pois o
comportamento selvagem deles presta-se de imediato ao controle humano. Os dois animais são muitíssimo territoriais; relutam em desgarrar-se do rebanho e vivem dentro de grupos fortemente hierárquicos. Daí cabras e carneiros se disporem a seguir o animal maior, o que os torna susceptíveis a gravar a idéia de um ser humano como chefe. As construções de pedra proporcionavam substitutos para as cavernas em que as cabras e carneiros selvagens naturalmente se abrigam. Permanece incerto exatamente onde e quando começou o pastoreio. Com base no tamanho e abundância, carneiros e cabras foram domesticados pela primeira vez na parte central (i.e., Síria, sudeste da Turquia) ou oriental (i.e., Iraque, Irã) do Crescente Fértil em 8.000 a.C., ou possivelmente muito antes. Sabemos que os ocupantes de Abu Hureyra à margem do Eufrates pastoreavam carneiros e cabras em 7.500 a.C. Nessa data, construiu-se um novo conjunto de casas de adobe, enterrando a aldeia de caçadores-coletores que Lubbock visitou. O novo povo citadino continuou inicialmente a prática do Natufiano Tardio de matar as gazelas durante a migração anual. Em 7.500 a.C., porém, já haviam passado a matar carneiros e cabras, animais mantidos em rebanhos controlados. Mas devemos buscar mais a leste as mais antigas cabras domesticadas, nas aldeias do Neolítico Inicial hoje encontradas no centro do Irã. Dessas, a aldeia conhecida como Ganj Dareh oferece o indício que mais se impõe. É um pequeno monturo no extremo sul do vale de Kermanshah, com menos de 40 metros de diâmetro e 8 de altura. A maior parte consiste de construções de adobe desmoronadas erguidas primeiro em alguma data entre 10.000 e 8.000 a.C. As pessoas que viviam em Ganj Dareh mataram grande número de cabras, proporcionando uma coleção de quase 5 mil ossos para estudo. Brian Hesse, da Universidade do Alabama, e Meinda Zeder, do Smithsonian Institute, empreenderam esse trabalho, descobrindo um sinal revelador de domesticação na presença de grande número de machos novos abatidos. Os próprios rebanhos ou a simples idéia do pastoreio pode ter corrido para oeste e depois para o sul, como a prática da agricultura arável espalhou-se para o leste. Assim, o pastoreio de cabras teria alcançado o vale do Jordão por volta de 8.000 a.C. Mas também é possível que as cabras tenham sido domesticadas de forma inteiramente independente em outras partes, mesmo nas vizinhanças de Beidha. No momento, os
arqueólogos simplesmente não sabem. Exatamente como se deu e foi posta em prática a idéia do pastoreio de cabra/carneiro, também é questão de debate. Frank Hole, da Universidade de Yale, acha que os caçadores tomaram consciência de uma crescente escassez de animais selvagens e tomaram medidas deliberadas para administrá-los. Isso pode ter envolvido o armazenamento de forragem para o inverno, a construção de cercas para controlar os movimentos do rebanho c o cuidado dos animais órfãos. Muitos caçadores-coletores historicamente documentados, como os aborígines australianos, mantinham animais domesticados como bichos de estimação, e devemos supor que o mesmo se passava com as pessoas do Natufiano e do PPNA. Quando seus descendentes passaram a viver em assentamentos permanentes, é provável que alguns desses bichos de estimação se tenham tornado sexualmente maduros e reproduzido dentro dos limites do assentamento. Esses animais, isolados dos selvagens, teriam fornecido a base para os rebanhos domésticos. A reprodução seletiva desenvolveu intencionalmente determinadas características — temperamento plácido, rápido crescimento, alta produção de leite e lã densa. Presume-se muitas vezes que o cuidado de animais domesticados em grupos de caçadores-coletores era tarefa de mulheres e crianças, portanto devem ter sido estas, e não os caçadores homens, que desempenharam o papel mais crítico na domesticação dos animais. Assim que os carneiros e cabras foram domesticados, dentro de algumas centenas de anos seguiram-se o gado e os porcos. Mas os cavalos e jumentos domesticados só chegaram vários milhares de anos após o florescimento das cidades do Neolítico. Surgiram com a máxima probabilidade como animais de carga para a movimentação de minério e combustível destinado aos centros de fundição, assim que teve início a metalurgia na Idade do Bronze. É hora de Lubbock deixar Beidha. Embora novos prédios ainda estejam sendo construídos, a cidade será abandonada dentro de poucas gerações. Beidha não se situava no mais vantajoso dos locais: os limites sul do vale do Jordão mal recebia chuva suficiente para sustentar a agricultura, e a mais próxima fonte permanente ficava a mais de 5 quilômetros e uma subida de 400 metros de distância. Nessas condições, os solos em Wadi Gharab são simplesmente pobres demais para suportar cultivo intenso e
repetido, e instáveis demais sem as árvores. A cada ano, as cabras são levadas mais longe da aldeia para encontrar forragem, enquanto as safras diminuem e logo entrarão em colapso. E assim, por volta de 7.500 a.C., os últimos habitantes de Beidha partirão, após uma constante hemorragia à medida que a vida se tornou demasiado difícil. Muitas pessoas irão para uma próspera cidade nova 12 quilômetros ao sul, hoje conhecida como Basta. Só foi descoberta pelos arqueólogos em 1986, e desde então tem proporcionado um pouco da mais impressionante arquitetura neolítica, com paredes de pedra de 2 metros de altura, janelas, portas e tudo. Basta cresceu para mais de 12 hectares de extensão, uma das maiores cidades do Neolítico. Deve ter encontrado um nicho particularmente fértil, permitindo ultrapassar de muito Beidha em tamanho. Mas mesmo essa cidade não sobreviveu além de 6.000 a.C. A viagem de Lubbock não é para Basta, mas para o norte — um retorno a Jericó, e depois para a cidade de Ain Ghazal. Sua temporada cm Beidha ofereceu apenas uma visão parcial dos novos habitantes de cidades da era neolítica — uma visão em grande parte centrada em suas vidas domésticas — e portanto ele tem de visitar esses assentamentos para ficar sabendo mais sobre o mundo sagrado delas.
10 A Cidade dos Espectros Ritual, religião e colapso econômico, 7.500 – 6.300 a.C. De Beidha, John Lubbock encaminha-se diretamente para oeste, seguindo um rio em meio a um vale de mata até as baixadas e por fim o rio Jordão. A vegetação é luxuriante, junco e papiro dos dois lados do rio, mas fora isso trata-se de uma paisagem seca e estéril. Além do Jordão, a terra sobe e logo se torna o que é hoje o deserto de Negev. Amanhece. Do outro lado do rio, ergue-se um preguiçoso fiapo de fumaça de uma fogueira. O fogo arde para um grupo de homens de Jericó que se dirige para o sul com cestos de excedente de grãos. Uma dúzia deles carregou o pesado fardo, indo a um encontro com caçadores-coletores que vivem dentro do Negev. O grão será trocado por conchas marinhas e carne de caça selvagem. Os desertos de Negev e Sinai foram colonizados pouco depois do fim do Jovem Dryas. Fizeram-se novos assentamentos no deserto exatamente no mesmo lugar dos do Natufiano Tardio, como Abu Salem no centro do Negev. Os novos ocupantes talvez tenham permanecido no deserto o ano todo, vivendo como caçadores-coletores; ou talvez fossem apenas visitantes de verão, passando os invernos nas cidades neolíticas como Beidha. Em qualquer dos casos, podem ter fornecido carne aos citadinos. À medida que os animais domesticados se tornavam a principal fonte de carne, é provável que a caça selvagem tenha virado uma comida de prestígio para as pessoas dentro das cidades. Os moradores de Beidha e outros assentamentos fizeram uma variedade de flechas e pontas-de-lança, sugerindo que a matança de caça selvagem adquirira então um status especial. Em Ain Ghazal — cidade nos arredores da moderna Amã — estavam presentes os restos de não menos que 45 espécies selvagens, incluindo algumas espécies de gazela, gado selvagem, javali e pequenos carnívoros. Parece provável que uma tal gama podia ser caçada nas
vizinhanças da cidade, e portanto alguns desses ossos podem ter chegado em juntas de carne adquirida de caçadores-coletores do deserto. Conchas do mar Vermelho também chegavam às cidades por algum meio. O interesse em sua aquisição, por troca ou por expedições ao litoral, remonta até o LGM e atingiu antes um pique no Natufiano Inicial. Mas teve uma mudança nos tipos mais desejáveis: o interesse pelas conchas tubulares de dentálio parece ter sido substituído pelo gosto por caurins. Enquanto os mercadores se dirigem para o sul, Lubbock viaja para o norte, para visitar Jericó uma segunda vez. Segue a base das montanhas da Judéia, ao longo da margem ocidental do mar Morto. Wadis, alguns contendo pequenos riachos que logo secarão sob o sol quente, cortam as colinas. Lubbock passa por rebanhos de cabras que são levadas a pastar por meninos, e pequenos grupos que recolhem betume e sal. Chega em 7.000 a.C. O assentamento mudou desde quando ele viu o primeiro trigo sendo semeado: os conjuntos de pequenas moradias circulares foram substituídos por esparramados prédios retangulares em meio não apenas a campos aráveis e rebanhos de cabras, mas a filas e filas de adobe secando ao sol. Jericó passou de uma aldeia de caçadorescoletores-cultivadores a uma cidade de camponeses, artesãos e mercadores. Lubbock atravessa pátios e entre as casas, envolvido pelo clamor da vida neolítica. Muito trabalho se faz ao ar livre — preparação de comida, corte de pedra, fabrico de cestos, tecidos e artigos de couro. Ele se lembra de Beidha; enquanto passeia pela cidade, vê bandos semelhantes de cachorros que revolvem o lixo, e o mesmo fluxo entre o fedor de carne pendurada, a simplicidade da fumaça e a fragrância de ervas fumegantes. Pára para observar uma mulher socando um pilão; o instrumento é tão grande que ela se senta numa ponta e curva repetidas vezes as costas ao estender-se com a mão de pedra até a outra — trabalho de incontáveis futuras gerações. As casas são construídas mais de adobe que de pedra. Têm um só andar e parecem de desenho um tanto mais simples que as de Beidha, não tendo sinal dos prédios com corredores. Lubbock escolhe uma ao acaso. Portas de madeira dão-lhe acesso a três aposentos retangulares sucessivos, cada um com piso de reboco polido e tapetes de palha. Não há ninguém em casa, e pouca coisa à guisa de móveis. Um monte de tapetes e couros
sugere uma área de dormir, cestas e tigelas de pedra parecem ser bens valiosos. No terceiro aposento, vêem-se numa parede três estatuetas de barro, todas femininas e com cerca de 5 centímetros de altura. Uma é particularmente impressionante — veste o que parece uma túnica solta e foi esculpida com os braços cruzados, de modo que cada mão repousa em um seio. Junto a elas, há o que parece uma cabeça humana. Lubbock ergue-a com cuidado — é literalmente uma cabeça humana, ou pelo menos uma caveira cujo rosto foi delicadamente modelado com reboco. Enquanto anda pela cidade, Lubbock encontra mais cabeças rebocadas em outras casas, junto com simples caveiras colocadas em quinas de quartos ou dentro de nichos nas paredes. Após muito procurar, encontra um homem sentado dentro de casa trabalhando num rosto. Está sendo modelado na caveira de seu pai, o homem que construiu a casa em cujas mãos deitaram o piso de argamassa sob o qual agora repousam seus ossos. Depois que o corpo ficou enterrado durante vários anos, a cova foi reaberta, o crânio removido e o piso remendado com nova argamassa. Agora o filho homenageia o pai. O homem que trabalha está de cócoras ao lado de bacias de argamassa branca, tinta vermelha e uma variedade de contas. As cavidades nasais e órbitas oculares já foram tapadas e deixadas a secar; nivelou-se a base do crânio, para que se mantenha em pé sem apoio. Agora aplica-se a camada final de fina argamassa, que logo será pintada de vermelho. Contas de caurim serão inseridas como olhos, e depois se exporá o crânio dentro da casa. Enquanto ele amassa, afila e modela a argamassa, sua esposa colhe lentilhas nos campos, lutando com o peso do bebê amarrado às costas. Um dia esse filho exumará com amor e modelará a cabeça do pai, para assegurar que também ele continue a viver dentro da casa, mesmo depois de ter os ossos enterrados sob o piso. As caveiras rebocadas de Jericó foram talvez a mais impressionante das descobertas de Kathleen Kenyon. Ela encontrou sete dentro de um único poço, junto com vários crânios isolados sob pisos domésticos. A maioria era mais ou menos quadrada, uma vez que rostos inteiros haviam sido moldados sobre crânios sem a mandíbula inferior. Mas um estava completo, e a escultura de argamassa parece um elegante retrato de um reverenciado ancestral. Se os crânios foram expostos, pertenciam aos
"fundadores" da casa e aspiravam a ser retratos, são questões especulativas. Tudo o que sabemos é que em algum momento eles foram enterrados em poços, talvez um ato final de lembrança ou como o último passo para chegar à outra vida. Desde as escavações de Kathleen em Jerico, encontraram-se crânios rebocados em inúmeros sítios neolíticos, fazendo-os cada assentamento de forma sutil-mente diferente mas segundo o mesmo desenho básico. Um diferente tipo de crânio enfeitado foi encontrado em Nahal Hemar — a caverna da qual se recuperaram os fragmentos de tecido. Ali, restos de seis crânios foram encontrados, todos com faixas de betume dispostas num desenho de rede de um lado a outro do crânio, talvez usadas para grudar cabelos, mas sem argamassa nos ossos faciais. Juntava-se a esses crânios na caverna uma série de outros objetos ritualísticos, além das peças de tecido. Entre eles achavam-se os fragmentos de duas máscaras de pedra pintadas com faixas vermelhas e verdes alternadas, e é provável que tenham tido cabelos e barba grudados. Encontraram-se quatro esculturas de rostos humanos, cada um feito de um pedaço de um comprido osso e enfeitado com argamassa, ocre-vermelho e betume para assinalar os olhos, cabelos e barba, aplicados em várias ocasiões, o que sugere que a figura foi intencionalmente "envelhecida". Fragmentos de argamassa foram encontrados em chumaços de capim que, à luz das descobertas que em breve descreverei, é provável que tenham sido figuras de argamassa moldadas. Havia muitas contas dentro da caverna, várias centenas feitas de conchas marinhas do Mediterrâneo e do mar Vermelho, e outras de pedra, argamassa e madeira. David Alon e Ofer Bar-Yosef, os escavadores de Nahal Hemar, esforçaram-se para explicar por que uma coleção tão preciosa de objetos fora colocada dentro de uma minúscula caverna a muitos quilômetros de distância de qualquer assentamento conhecido. A caverna deve ter sido reverenciada por causa de sua localização na fronteira entre dois territórios sociais, e na verdade dois tipos distintos de paisagem — os desertos do Negev e da Judéia — e portanto usada como depósito de objetos ritualísticos. Pouco mais se pode dizer no presente. Tudo o que podemos fazer é visitar a caverna, descrever seus objetos e admitir nossa lamentável ignorância sobre o mundo sagrado do Neolítico. De Jericó, uma viagem de 100 quilômetros para noroeste levaria Lubbock
às colinas de Nazaré e ao centro funerário de Kfar HaHoresh. Este é vigiado por guardas residentes, e é para onde as pequenas cidades e aldeias da região levam seus mortos para enterrá-los — ou, com mais freqüência, reenterrá-los, depois que os ossos foram exumados. Em Kfar HaHoresh ocorre uma legião de práticas rituais: modelagem facial com argamassa, matança e enterro de animais selvagens, colocação de superfícies de argamassa cercadas por baixos muros em que os ossos são às vezes colocados de modo a imitar uma morte recente, e banquete comunal. Na verdade, à medida que Nigel Goring-Morris, da Universidade Hebraica em Jerusalém, continua suas escavações, iniciadas em 1991, vem à luz uma gama sempre maior de práticas exóticas. De Ktar HaHoresh, mais uma caminhada de 30 quilômetros levaria Lubbock à costa mediterrânea abaixo do monte Carmelo. Visto que lhe tomou cerca de 500 anos, ele poderia então visitar a comunidade costeira de Atlit-Yam. Embora seu povo plante cereais, e tenha gado, cabras e porcos, esta era basicamente uma aldeia de pesca. Barcos partiam diariamente para pegar com redes cangulos, que viviam no leito arenoso e rochoso. Mas o mar acabará por trazer a morte da cidade, à medida que os níveis crescentes do mar inundam a costa mediterrânea, deixando AtlitYam inteiramente submersa. O tempo de Lubbock na era neolítica do oeste asiático esgota-se rapidamente. Ele tem portanto de abrir mão de visitas a Kfar HaHoresh e Atlit-Yam, e viajar 50 quilômetros até o lado oriental do vale do Jordão, onde encontrará a maior das cidades neolíticas, a hoje conhecida como Am Ghazal. E assim, durante dois dias, ele atravessa a densa mata do vale, subindo sua íngreme escarpa oriental e entrado em terras de mato baixo pontilhadas de árvores espalhadas. O primeiro sinal de uma cidade estar próxima é quando as trilhas de cabras que ele segue se alargam em estradas bem palmilhadas entre pequenos campos, alguns plantados com lentilhas e ervilhas, outros com trigo e cevada. Mulheres e crianças trabalham, colhendo as lentilhas e partindo aos pares e trios para levar suas pesadas cargas até a cidade. Muitos cestos esperam para ser levados, c assim Lubbock toma um nos ombros e segue uma mulher com seus dois cansados filhos. Acompanhaos no vale hoje conhecido como Wadi Zarqa; há caminhos de pedra para atravessar o rio, onde se amarraram muitas cabras. Uma trilha conduz então diretamente ao coração da cidade.
Enquanto anda, Lubbock nota que todo trato de solo disponível foi plantado. O motivo logo se torna claro — a cidade é três ou talvez quatro vezes maior que Jericó. Os lados do vale de Wadi Zarqa próximos, porém, são inteiramente estéreis — o solo exaurido pelas repetidas safras, e depois levados pelas chuvas do inverno depois que a vegetação restante foi cortada para fornecer lenha. Algumas das encostas foram aterradas para a construção de novas casas, e famílias vivem em tendas e abrigos de taipa temporários. Ain Ghazal "desfruta" de uma explosão populacional, em parte de seus próprios habitantes, em parte do influxo de pessoas cujas próprias aldeias já foram abandonadas devido à erosão e exaustão da terra circundante. A data é 6.500 a.C., e a cidade é um labirinto de construções — algumas novíssimas, algumas em reparos, outras caindo aos pedaços e abandonadas. São construídas de pedra bruta, madeira, juncos, barro e argamassa. As pessoas retornam às suas casas com o cair da noite; algumas se põem a comer, outras se preparam para dormir. Lubbock deixa o cesto diante da casa da mulher a quem seguiu, que agradecerá às crianças por terem-no carregado, para grande surpresa delas. Durante a hora seguinte ele explora a cidade, espiando por janelas e por cima dos ombros de outras pessoas. Muita coisa é igual a Beidha e Jerico, com cabeças rebocadas c pequenas estatuetas de barro exibidas em destaque. Numa das casas, ele vê um excelente modelo de uma raposa — na verdade, modelos de animais parecem particularmente importantes para as pessoas que aí vivem, sobretudo de gado, embora se doméstico ou não permanece incerto. Em outra casa, um grupo senta-se em torno de uma fogueira em chamas, enquanto lâminas de obsidiana, peças de coral e pedras de cores fortes passam de mão em mão. Vêm de um homem de roupas e estilo de cabelo distintos — um mercador que chegou recentemente do norte. Espiando pela porta, Lubbock vê pequenas esferas, discos e pirâmides de barro que são contados e postos em bolsas de couro. Esses artigos são inteira novidade para ele, mas o cansaço vence a curiosidade e ele encontra uma casa abandonada para dormir. Na manhã seguinte, Lubbock acorda e encontra a cidade silenciosa e deserta: não se cozinha nos pátios, mulheres não partem para os campos, homens não erguem madeiras e deitam pisos de argamassa. Enquanto atravessa os becos entre as casas, um baixo murmúrio se transforma num
baixo balbucio de vozes. Ao dobrar uma esquina, encontra uma reunião de várias centenas de pessoas. Meninos sentam-se nos ombros dos pais, as crianças mais velhas subiram em muros e balaustradas de janelas. Todos clamam por uma visão. No momento em que Lubbock chega, as portas de madeira de um prédio se abrem e sai uma procissão. Pairam o silêncio e a quietude. Seis homens vêm à frente, usando máscaras, túnicas e adereços de cabeça muito parecidos aos descobertos em Nahal Hemar. Trazem uma plataforma contendo um grupo de estátuas, feitas de feixes de junco revestidos de argamassa amarrados para formar torsos, braços e pernas. Há talvez doze estátuas de argamassa, algumas de cerca de 1 metro de altura, outras muito menores. Têm corpos achatados, pescoços alongados, grandes caras redondas, olhos arregalados com profundos centros negros. Os narizes são modelados como tocos; os lábios mal existem. A argamassa é branco puro; algumas estátuas estão envoltas em finas peças têxteis. Uma tem os braços cruzados sob os seios, projetando-os para o espectador, ao qual prende com seu olhar acerado. A multidão clama para ver as estátuas, sabendo que será a sua última oportunidade, pois elas serão enterradas. Mas as pessoas também sabem que dentro de alguns anos outro conjunto de estátuas será trazido por essas portas de madeira, e depois outro e mais outro; nova vida sempre seguirá a morte, como as plantas da primavera sempre seguem a colheita. Lubbock junta-se à procissão até uma casa abandonada e espreme-se lá dentro para ver a cerimônia de enterro e ouvir as preces e cantos. Cada estátua é erguida e depois cuidadosamente colocada num poço cavado no piso. Mais preces, e fecha-se o poço. Os "sacerdotes" retornam ao prédio de onde saíram, as portas fecham-se com estrondo. A multidão se dispersa; algumas pessoas parecem em estado de choque, algumas enlutadas, outras confusas. A cidade de Ain Ghazal foi descoberta em fins da década de 1970, quando a construção de uma nova estrada revelou paredes e ossos humanos. As estátuas de argamassa foram encontradas em 1983, durante a terceira temporada de escavação dirigida por Gary Rollefson, então da Universidade de San Diego. Ele e seus colegas também encontraram vários crânios com argamassa, muitos túmulos humanos, indícios de artigos trocados com obsidiana da Turquia e coral do mar Vermelho, junto
com numerosos "sinais" de barro que podiam ser mecanismos de fazer conta, talvez representando a distribuição de campos a determinadas famílias. Também se escavou uma enorme quantidade de ossos de animais, a maioria vinda de cabras que evidentemente eram mantidas em grandes rebanhos. Rollefson pôde documentar a prosperidade e eventual fim dessa cidade agrícola. Assim, mesmo sem as estátuas de argamassa, Ain Ghazal teria fornecido mais intuições sobre a vida econômica, social e religiosa dos primeiros camponeses do Neolítico. Mas são as estátuas que distinguem Ain Ghazal de todas as outras cidades neolíticas. Embora pedaços de argamassa com impressões de juncos fossem encontradas em Nahal Hemar e Jericó, só em Ain Ghazal as encontraram intactas. Dois grupos foram descobertos. O primeiro consistia de doze estátuas e treze bustos, todos colocados no mesmo poço, com as figuras maiores alinhadas num eixo leste-oeste. Dois anos depois, encontrou-se um segundo poço, menor, datando de cerca de 2 mil anos depois na história de Am Ghazal. Suas estátuas eram de desenho muito semelhante, embora um pouco maiores e mais padronizadas. Incluídos nessa segunda cova havia três espetaculares bustos de uma figura de duas cabeças. Denise Schmandt-Besserat, da Universidade do Texas, buscou nas práticas religiosas de civilizações babilônicas muito posteriores pistas para o que as estátuas representavam, acreditando que as origens daquelas crenças babilônicas estão nas primeiras comunidades agrícolas do oeste asiático. Uma das possibilidades é que as estátuas de argamassa fossem representações de fantasmas. As primeiras escritas babilônicas registram que às vezes se baniam fantasmas das casas enterrando-se efígies longe das moradias ocupadas. Denise está segura de que as pessoas de Ain Ghazal teriam temido essas estátuas, e que sua aparência fantasmagórica — grandes olhos fitos, cabeças desproporcionais, e num caso seis dedos nos pés — poderia sugerir espectros. Assim, talvez Ain Ghazal tenha sido uma cidade cheia de fantasmas, que tinham de ser repetidamente banidos das casas e pátios, dos cercados de cabras e dos campos, enterrando-os no chão. Mas Denise está mais convencida de outra possibilidade — a de que essas estátuas representem um panteão, os deuses e deusas do Neolítico. Na literatura babilônica, o grande deus Marduk tem duas cabeças,
muito parecido com algumas das estátuas de argamassa e semelhantes a figuras de duas cabeças na arte das comunidades pré-históricas e históricas posteriores do oeste asiático. A estátua de massa que expõe os seios lembra uma deusa babilônica que adota uma pose semelhante. Assim, surge a possibilidade de que as raízes da religião babilônica estejam na cultura neolítica do vale do Jordão por volta de 6.500 a. C. Mas por que seriam enterradas as estátuas? O fato de que duas covas foram encontradas na minúscula parte escavada da cidade sugere que se fizeram outrora muitas estátuas. Talvez isso se devesse a não outro motivo que uso e desgaste — as figuras de massa logo se rachavam e desfaziam, e assim o enterro era uma maneira de possibilitar a fabricação de novas estátuas. Ou talvez, como em religiões posteriores, os deuses tivessem de "morrer" e depois renascer cada ano, para assegurar uma primavera fértil. As estátuas de massa indicam uma mudança para uma forma mais pública, e talvez centralizada, de atividade religiosa do que a antes presente no Neolítico. Isso também é sugerido pelo aparecimento de construções que com toda probabilidade eram "templos". Esses prédios têm sido associados a Jericó e Beidha, mas os exemplos mais convincentes vêm de Ain Ghazal. Por volta do fim da existência desse assentamento, surgem três novos tipos, diversificando o que fora um notável grau de homogeneidade arquitetônica de moradias retangulares. Gary Rollefson descreve o aparecimento de construções com extremidades apsidais que se espalharam por "bairros" de moradias: também se construíram pequenos prédios circulares. Estes tinham os pisos repetidas vezes refeitos, e por isso ele os interpretou como santuários com várias famílias ou linhagens. Conhecem-se igualmente dois prédios "especiais" das fases finais de Ain Ghazal. O mais impressionante localizava-se no alto de uma encosta em plena vista de todo o assentamento. É único por não ter piso de argamassa e pela natureza de seus móveis e utensílios sobreviventes. Uma lareira quadrada pintada de vermelho, ficava no centro do aposento, cercada por sete lajes planas de calcário; havia vários blocos de pé também de calcário e uma coluna de pedra antropomórfica. Rollefson sugere que o prédio pode ter funcionado como templo para toda a comunidade. A cidade de Ain Ghazal teve notável crescimento, alcançando mais de 12 hectares de extensão, transbordando para o lado leste de Wadi Zarqa e
abrigando duas mil pessoas ou mais. Em 6.300 a.C., porém, já se acha em avançado estado de declínio terminal. Há muitas casas abandonadas e os becos entre elas estão juncados de lixo neolítico. Há pouco mais que um débil eco da outrora ebuliente cidade nas poucas casas habitadas e nos poucos homens e mulheres que ainda trabalham nos pátios. Qualquer casa recentemente construída é pequena e pobre comparada com as da cidade original. O rio dentro de Wadi Zarqa ainda corre, mas os lados do vale estão nus — não apenas em torno da aldeia, mas até onde a vista alcança. A exaustão e erosão do solo devastaram a economia agrícola de Ain Ghazal. Não resta uma única árvore à distância de uma caminhada da cidade. Seu povo leve de viajar cada vez mais longe a cada ano para plantar suas safras e encontrar forragem para suas cabras. A produção decaiu, o combustível tornou-se escasso e o rio poluído com detritos humanos. A mortalidade infantil, sempre alta, atingiu proporções catastróficas, de modo que o nível populacional despencou, agravado pela constante partida de pessoas que voltavam à vida em aldeias espalhadas. Essa é a história de todas as cidades do PPNB do vale do Jordão — completo colapso econômico. Lubbock está agora parado acima do vale de Zarqa, e olha a cena chocante de degradação ambiental causada pela agricultura. Ele e os arqueólogos modernos se perguntam se a agricultura poderia ter sido a única causa; os núcleos de gelo mostram que entre 6.400 e 6.000 a.C. houve um período de temperaturas particularmente baixas e chuvas incertas, se não seca. Mas parece inteiramente impossível desenredar os impactos relativos de agricultura humana e mudança do clima na agora estéril paisagem em torno de Ain Ghazal. Ao longe, um rebanho de cabras é pastoreado para as colinas. Lubbock observa-as buscando caminho entre as rochas e desaparecendo de vista. Esse rebanho retornará a Ain Ghazal, mas não por muitos meses, uma vez que surgiu uma nova economia. A vida na cidade não é mais sustentável no vale do Jordão e foi substituída pelo pastoreio nômade, o estilo de vida que continua até hoje. Dentro de poucos anos, Ain Ghazal não será mais que um lugar de encontro sazonal para pastores de cabras nômades, que erguerão frágeis abrigos nas ruínas da cidade, enquanto seus animais pastam nos cardais que brotaram nas moradias desertas e locais de enterro dos deuses.
11 Céu e Inferno em Çatalhöyük Florescimento do Neolítico na Turquia, 9.000 – 7.000 a.C. John Lubbock aproxima-se do fim de sua jornada pela revolução neolítica no oeste asiático, que transformou os caçadores-coletores de Ohalo nos agricultores, artesãos, mercadores e sacerdotes de Ain Ghazal. Dessa cidade, ele viajou 500 quilômetros para noroeste, em companhia de pastores e mercadores, atravessando o deserto sírio de oásis em oásis. Isso o levou ao Eufrates, onde na confluência com o rio Khabur ele visita a cidade de Bouqras, estabelecida num promontório que dá para a planície aluvial. Em seus prédios, encontra pinturas de parede — imagens de grandes gaivotas, grous ou cegonhas — a primeira visão de uma quantidade sempre crescente de obras de arte que vai encontrar nos estágios finais de sua jornada oeste asiática. Mas Bouqras, como Ain Ghazal, já passou do seu auge; muitas das casas de adobe entraram em decadência. A planície aluvial antes provinha ampla terra para caça, pastagem e civilização. Agora chegaram os tempos difíceis, e a população diminuiu de mil para pouco mais de duas centenas no máximo. Alguns artesãos especializados continuam a trabalhar, produzindo ótimas tigelas de mármore e alabastro. Lubbock parte para nordeste, seguindo o Eufrates pelas montanhas Taurus a leste e entrando nas ondulantes encostas de colinas do planalto Anatólio. Ali, o rio muda de direção, fazendo um arco para oeste por entre colinas estéreis de calcário entremeadas de planícies com florestas. Ali, não mais de 3 quilômetros ao sul do Eufrates, ele encontra a aldeia de Nevali Çori a cavaleiro das margens de um pequeno riacho tributário. Há cerca de 25 prédios abandonados — todos de um só andar, retangulares e construídos de blocos de calcário ligados com argamassa de barro — mas nenhuma pessoa. A aldeia está deserta, só se vêem camundongos e ratos que correm de um lado para outro. Várias casas foram alinhadas num terraço, com estreitas passagens
entre si. Algumas são particularmente grandes, com quase 20 metros de comprimento, e divididas em aposentos vizinhos. A maioria tem piso de argamassa; onde estes decaíram, surgem canais de escoamento de pedra e túmulos. Os pisos estão cobertos de lixo — ossos de animais, pilões quebrados, instrumentos de sílex e cestos desgastados. É evidente que o abandono da aldeia foi uma coisa feita aos poucos, com um lento declínio dos padrões de higiene e ordem. Em meio ao lixo, Lubbock encontra estatuetas de barro e sílex que caíram de prateleiras de madeira. Um rosto humano estilizado parece conhecido; lembra as máscaras usadas pelos "sacerdotes" de Ain Ghazal, que por sua vez eram semelhantes às máscaras de Nahal Hemar. A área diante das casas também é uma bagunça. Vários grandes poços de assar começaram a encher-se de aluvião; outros ainda mostram os revestimentos de pedras. Cercados de animais desabaram, e ainda há grupos de pedras de moer em meio a casas e palha. Quem quer que tenha vivido em Çori evidentemente foi agricultor como o povo de Beidha, Jerico e Ain Ghazal; mas os daqui tinham crenças religiosas bastante diferentes, como Lubbock avalia ao entrar no que os arqueólogos chamam de "prédio de culto". Fica na ponta noroeste do terraço, um prédio quadrado com os fundos na encosta natural. O telhado de junco quase desabou inteiramente, e as paredes desmoronam. Lubbock tem de espremer-se por entre madeiras caídas para descer os poucos degraus até o interior. Ao fazer isso, uma legião de cobras brota de debaixo do lixo no piso. Um banco de pedra corre ao redor das paredes, dividido em partes por 10 colunas de pedra. Há outras colunas parecendo lages no meio do aposento. Estas têm capitéis em forma de T e parecem ombros humanos; quando ele olha de perto, vê um par de braços humanos esculpidos em baixo relevo em cada face. Dos degraus, olha um nicho na parede defronte. Contém uma cabeça humana, sobre a qual repousa uma cobra — cabeça e cobra esculpidas em pedra. As paredes em volta foram outrora densamente rebocadas e cobertas com exóticos murais pintados em vermelho e preto. Mas a maior parte do reboco caiu no chão, deixando as pinturas como as peças de um quebra-cabeça embaralhado. Lubbock encontra outras esculturas, algumas de pé, algumas embutidas
nas paredes e colunas. Há um grande pássaro, talvez abutre ou águia; uma terceira ave de rapina encima uma coluna com duas cabeças femininas esculpidas. E assim prossegue — mais pássaros, rostos que parecem parte animal e parte humano, outra cobra. As escavações cm Necali Çori foram dirigidas por Harald Hauptmann, da Universidade de Heidelberg, entre 1983 e 1991, antes de o sítio ser inundado por um novo lago atrás da Represa de Atatürk. O assentamento foi criado na mesma época das cidades do PPNB do vale do Jordão, entre 8.500 e 8.000 a.C. Seus habitantes foram agricultores com trigo domesticado e rebanhos de carneiros e cabras, embora também se praticasse a caça e a coleta. Quando descobertos, as esculturas e entalhes de Nevali Çori não tinham nenhum precedente no Neolítico, embora tenham nítida origem nos de Göbekli Tepe, o centro de ritual no topo de monte do Neolítico Inicial localizado a não mais de 30 quilômetros de distância. Na verdade, foi só por escavar em Nevali Çori que Klaus Schmidt pôde reconhecer de pronto as lages de calcário naquele lugar como tendo vindo de colunas esculpidas do Neolítico. O desenho do prédio de culto de Nevali Çori, com suas colunas de pé e bancos, tem uma impressionante semelhança com os prédios do PPNA de Göbekli Tepe, com exceção de sua forma mais retangular que circular. Em 8.500 a.C. porém, prédios retangulares eram também só o que se podia ver sobre aquela colina de calcário. As construções circulares, com suas grossas colunas esculpidas, tinham sido deliberadamente enterradas por toneladas de terra, e a área, onde ficavam, demarcada por um muro de pedra. Novos prédios retangulares foram construídos além desse muro, deixando um espaço vazio onde antes ficavam os prédios anteriores agora sepultados. Dentro desses novos prédios, ergueram-se de novo colunas esculpidas com animais selvagens, de forma idêntica aos enterrados sob a terra mas sem seu tamanho monumental. Como Schmidt ainda não encontrou vestígios de atividade doméstica ligadas a esses novos prédios, ele desconfia de que Göbekli continuou como um centro ritual até ser abandonado, provavelmente por volta de 7.500 a.C. O prédio de culto em Nevali Çori, porém, fizera parte de um assentamento dominado por moradias, da mesma forma que se encontraram prédios especiais na aldeia de caçadores-coletores de Hallan
Çemi Tepsi — o assentamento de 10.000 a.C. localizado 200 quilômetros a leste de Nevali Çori. Também se encontraram prédios de culto num assentamento localizado a meio caminho entre as duas, conhecido hoje como Çayönü. Isso oferece mais indícios do florescimento de uma cultura no sudeste da Turquia. Çayönü tem um histórico de escavação muito mais longo que Nevali Çori e Hallan Çemi Tepsi — começou em 1962 e continuou até 1991. O sítio fica na extensão mais ao norte das baixadas mesopotâmicas, localizado na planície de Ergani, que é cortada pelo Eufrates e o Tigre. Fica à sombra das montanhas Taurus, numa paisagem inteiramente árida — embora um rio sazonal ainda corra pelo sítio. Quando ocupado, havia mangues e pântanos próximos, onde os castores e lontras eram capturados. É um sítio impressionante para visitar-se, um lugar de imensa tranqüilidade c com um forte senso de seu passado pré-histórico — um enorme alívio após termos lido de passar pelas várias barreiras militares que bloqueiam hoje as estradas do leste da Turquia. A ocupação começou em Çayönü pelo menos em 9.500 a.C, tornando-a contemporânea das primeiras ocupações de Jericó e da construção do centro ritual de Göbekli Tepe. Seu primeiro povo também construiu moradias circulares, cultivou o trigo e continuou dependendo de animais selvagens, sobretudo porcos, gado e gamo. Em 8.000 a.C., porém, já praticava uma forma inteiramente diferente de arquitetura. Fizeram-se grandes prédios retangulares de pedra, usando uma "planta de grade" como fundação — quer dizer, uma série de baixas paredes paralelas sobre as quais se pusera um piso de madeira e argamassa. Tratava-se provavelmente de proteção contra o chão úmido e as periódicas inundações. Pelo menos 40 desses prédios com "planta de grade" foram construídos, os maiores divididos em múltiplos aposentos e oficinas. Asli Özdogãn, da Universidade de Istambul, escavador mais recente, acredita que pelo menos seis fases arquitetônicas são visíveis nos estilos e formas ligeiramente novos de prédios adotados. A grande expansão da aldeia refletiu a adoção de uma economia agrícola mista plenamente desenvolvida — provavelmente um dos primeiros assentamentos a fazer isso. Construiu-se uma "praça" central, supostamente para reuniões e cerimônias públicas, junto com o prédio de culto onde se faziam enterros coletivos e guardavam-se crânios humanos — nada menos que 70 foram descobertos dentro de um único aposento.
Embora não se encontrassem objetos de arte monumental em Çayônü para comparação com os de Nevali Çori e Göbekli Tepe, mais de 400 estatuetas de barro, sobretudo de seres humanos e animais, foram escavadas do meio do lixo doméstico. Mas apesar desse uso do barro, e de uma ampla gama de atividades artesanais que incluem a feitura de tigelas de pedra, não se encontrou na aldeia nenhum vestígio de vasos de cerâmica. Mesmo assim, o povo de Çayönü certamente forçava as fronteiras da tecnologia — pegavam minério de cobre de jazidas a 20 quilômetros de distância e martelavam-no em contas, ganchos e folhas de metal. Lubbock parte de Nevali Çori para oeste e faz uma longa viagem, cruzando as montanhas Taurus e entrando no planalto da Anatólia central. Passa por várias pequenas aldeias e algumas cidades maiores. Durante parte da jornada, ele viaja com pastores e em outra com pessoas que visitam parentes em aldeias distantes ou se dirigem para as "brilhantes colinas negras". Essas colinas são feitas de obsidiana e encontradas na região que descrevemos hoje como Capadócia. Mesmo em 7.500 a.C. as pessoas já as vinham visitando havia vários anos, para recolher o vidro vulcânico depois comerciado e trocado em todo o oeste asiático. A obsidiana que Lubbock viu em Abu Hureyra, Jericó e Ain Ghazal veio da Capadócia — muito provavelmente depois de passar por muitas mãos e famílias diferentes no caminho. Não surpreende, portanto, que grandes montes de lascas e núcleos jogados fora cerquem muitas das obras em obsidiana, da qual só os melhores pedaços foram retirados. As oficinas, nas quais se podem obter enormes lucros da pedra em troca de contas, peles e minério de cobre, são abundantes. Mas a obsidiana cobre uma área demasiado grande para que se controle todo acesso. E Lubbock passa por muitos pequenos grupos que ou pegam grandes nódulos no chão ou simplesmente quebram grandes lascas de afloramentos da altamente valorizada pedra negra. Seus companheiros se dirigem para a cidade que conhecemos hoje como Asikli Höyük, localizada na parte oeste da Capadócia, um espraiado assentamento de prédios de adobe. Mas Lubbock toma um rumo diferente, e atravessa o planalto anatólio até sua planície mais ao sul, indo para a cidade neolítica de Çatalhöyük.
Durante toda sua viagem desde Nevali Çori, a vegetação mudou constantemente de estepe para mata e de mata para estepe, sensível as muitas variações na topografia e água — vale de encostas a pique, colinas ondulantes e planície chã cortada por muitos rios. Algumas das matas são agora compostas de enormes carvalhos, por entre os quais ele capta passageiros vislumbres de gamo e gado. Enormes aves de rapina parecem circular interminavelmente no céu. É 7.000 a.C., e Çatalhöyük se acha no seu auge. Quando Lubbock se aproxima, entra numa paisagem densamente cultivada. Os sinais de derrubada de árvores são comuns — a mata evidentemente se transforma num precioso recurso, pois os cortes mais novos são das árvores menores. Aparecem pequenos campos, em que mulheres e crianças completam seu dia de trabalho, e meninos conduzem rebanhos de carneiros e cabras de volta à segurança noturna da cidade. Esta agora se torna visível, surgindo como uma sólida massa à meia luz do entardecer. Çatalhöyük é inteiramente diferente de qualquer lugar que Lubbock já viu. Parece ter um muro perimetral contínuo, que não tem entrada nem desejo de receber hóspedes indesejáveis. Olhando mais de perto, Lubbock percebe que não é de modo algum um muro único, mas o resultado de muitas paredes juntas de prédios individuais que se apegam uns aos outros como com medo do que há fora deles. Um rio sujo, coalhado de lixo, estagna-se ao longo de um lado, levando a mangues e pântanos fedorentos atrás da cidade. Do outro lado há uma lagoa lodosa, em torno da qual se instalam as cabras para passar a noite. Lubbock observa os trabalhadores do campo que voltam para casa; eles sobem em escadas de madeira para os telhados, dispersam-se e desaparecem por um labirinto de caminhos ali em cima, degraus e escadas que conduzem de nível em nível e de casa em casa. Entre os caminhos há telhados de barro planos, alguns evidentemente usados como oficinas para fabricação de instrumentos e cestos. Uns poucos desabaram, deixando buracos escancarados que revelam os aposentos embaixo. Às vezes os caminhos beiram pátios inteiramente cercados por paredes de adobe; destes vem o fedor de detrito humano. Cada casa tem um alçapão de entrada no lado sul e pequenas janelas em qualquer parede exposta acima do telhado vizinho. Algumas portas estão
abertas, soltando fumaça e a luz de tremulantes lâmpadas de azeite no ar frio da noite; às vezes um brilho mais ousado, mais forte, emana de uma lareira bem alimentada. Escolhendo uma porta aberta, Lubbock desce por uma escada de madeira para a área de cozinha de um pequeno aposento retangular. Vê à sua frente uma lareira elevada — uma plataforma com um rebordo para evitar algum transbordamento de cinzas. Emite um profundo fulgor e um baixo calor do combustível de estrume animal. Próximo, construiu-se um forno na parede, revelando adobes ordenados, e ao lado uma bilha de barro com um buraco na base, do qual caem lentilhas. Há utensílios espalhados, um cesto com raízes e uma cabra pequena amarrada na parede. Como tal, é uma cena doméstica conhecida, que poderia ser encontrada em Jericó ou Am Ghazal. Mas então Lubbock se volta e vê uma cena monstruosa de touros irrompendo da parede. São três, à altura da cintura — cabeças brancas com raias pretas e vermelhas, das quais brotam enormes chifres pontudos que parecem ameaçar toda a vida humana dentro da casa. Ao lado de Lubbock, uma mulher e um homem sentam-se numa plataforma elevada vizinha aos touros, cabisbaixos, comendo pão em silêncio. Entre eles, uma criança deixou seu pão intocado no prato de madeira. Em volta dos touros as paredes são pintadas com fortes desenhos geométricos — imagens nítidas e opressivas acima de impressões palmares em preto e vermelho semelhantes às pintadas na caverna francesa de Pech Merle no LGM. Mas enquanto aquelas mãos de caçadores-coletores da era do gelo eram acolhedoras, estendidas em saudação aos visitantes dentro da caverna, estas mãos agrícolas de Çatalhöyük parecem mais uma advertência ou um pedido de socorro — seu povo está preso dentro de um bestiário do qual não pode escapar. E assim começa a excursão noturna por Çatalhöyük, uma visão de pesadelo do mundo que a agricultura trouxe a esses membros da humanidade. Primeiro, Lubbock rasteja por uma pequena entrada para escapar do aposento, mas isso não leva a parte alguma, apenas a um depósito onde se empilham cestos e couros. Por isso ele retorna ao telhado e tenta outra casa, e depois outra e mais outra. Em cada uma, encontra a mesma coisa — a lareira, o forno, a bilha de grão, a plataforma, tudo disposto de forma idêntica, em aposentos de tamanho e forma quase idênticos. Muitos aposentos têm estatuetas de barro dentro de pequenos
nichos, ou simplesmente no chão; algumas são evidentemente de mulheres, outras de homens, mas muitas parecem inteiramente sem sexo. A mais espantosa é uma mulher que se senta num trono, ao lado de uma bilha de grão. Tem de cada lado um leopardo; repousa uma mão em cada cabeça, e as caudas dos animais se enroscam em seu corpo. Os touros variam de aposento para aposento, mas são sempre chocantes, sobretudo quando encontrados nos fortes raios de luar que agora entram pelas minúsculas janelas, ou pelas chamas que dão vida às feras. Há cabeças de touros com longos chifres retorcidos, outras com as caras cobertas de desenhos exóticos, e ainda outras empilhadas umas em cima das outras do chão ao teto. Alguns aposentos têm colunas de pedra com chifres, ou longas filas de chifres postas em bancos, desafiando qualquer um a sentar-se ao seu alcance. Juntam-se a desenhos geométricos imagens de grandes abutres negros atacando perversamente pessoas sem cabeça, e cenas de gamos e bois enormes cercados por minúsculas pessoas em frenesi. As pessoas reais dormem em suas plataformas. Jazem em posições contorcidas, às vezes acordando de repente e olhando Lubbock que passa, como se pudessem ver mais um intruso em suas vidas. Lubbock sobe e desce escadas, de aposento em aposento, de horror em horror, até cair exausto e jazer prostrado diante de outra parede esculpida. Põe-se de joelhos de frente para um par de seios femininos que emergem do adobe e reboco. Os dois mamilos estão divididos, e dentro há crânios de abutres, raposas e fuinhas: a própria maternidade violentamente conspurcada. Lubbock não agüenta mais e rasteja pelo chão para a escuridão de breu de um depósito. E ali se esconde, na esperança de que a luz do dia traga libertação desse inferno neolítico. Era um frio dia de novembro de 1.958 quando James Mellaart, bolsista do Instituto Britânico de Arqueologia em Ancara, chegou ao monturo de Çatalhöyük. Ele vinha buscando sítios arqueológicos na planície de Konia, no planalto anatólio, desde 1951, e na verdade vira o monturo de longe em seu segundo ano de trabalho. Quando por fim o examinou, este encontrava-se coberto de mato, a superfície batida pelos ventos sudoeste, que haviam revelado os inequívocos vestígios de paredes de adobe e exposto artefatos como pontas de flecha de obsidiana e fragmentos de
cerâmica. Mellaart soube imediatamente que fizera uma descoberta importante. Ao seu olho treinado, os artefatos eram inequivocamente do Neolítico, um período de assentamento então desconhecido na região. E o monturo era enorme, de 450 metros de comprimento e cobrindo 13 hectares. Mas ele não tinha idéia de como aquilo ia se revelar importante. Çatalhöyük simplesmente mostrou ser o mais notável assentamento neolítico já descoberto — embora esse status deva agora ser dividido com Göbekli Tepe, ou talvez mesmo a ele cedido. Mellaart escavou o assentamento entre 1961 e 1966, revelando não mais que uma minúscula fração da quina sudoeste. Suas descobertas de paredes pintadas, cabeças de touros, túmulos e estatuetas humanos logo se tornaram famosas em todo o mundo. Junto com estes havia uma impressionante série de artefatos, incluindo espelhos feitos de obsidiana e cabos de adaga delicadamente talhados. Mas que descobrira ele, exatamente? Havia uma série de aposentos: os maiores e mais elaborados julgados santuários, os menores, moradias domésticas. E no entanto, apesar das esculturas e pinturas, sinais de artesãos especializados e complexidade arquitetônica, não havia indício de casta sacerdotal, chefes políticos ou prédios públicos. Mellaart entrou no Instituto de Arqueologia de Londres, onde suas aulas na década de 1970 eram fascinantes, sobretudo para um universitário chamado Ian Hodder. Em 1993, Hodder se tornou professor de arqueologia em Cambridge, e era tido por muitos como o mais inventivo arqueólogo de sua geração. Foi pioneiro no estudo do simbolismo préhistórico, e portanto não causou grande surpresa que se sentisse atraído para Çatalhöyük — o desafio último para os que desejavam entrar nos mundos simbólicos de pessoas do passado. Hodder começara a planejar seu trabalho em Çatalhöyük em 1991, desejando não apenas fazer novas escavações, mas assegurar que se conservasse, restaurasse e administrasse adequadamente o sítio como parte da herança da Turquia. O resultado foi um dos maiores projetos arqueológicos do mundo atual, que aplica os últimos avanços na ciência, métodos e teorias arqueológicos. Alguns dos resultados mais informativos vieram de estudos microscópicos de depósitos no piso e reboco de parede, feitos por Wendy Matthews — colega minha na Universidade de Reading. Esses estudos mostraram que algumas paredes tinham até 40 camadas de
pintura e reboco, sugerindo que podem ter sido retocadas todo ano, ou talvez toda vez que se fazia um novo enterro embaixo da parede. Hodder duvida que tenha havido algum prédio público, sacerdotes ou chefes políticos no assentamento. Também questiona a distinção feita por Mellaart entre santuários e casas domésticas — o estudo microscópico de depósitos no piso dos chamados santuários mostrou que ocorriam nesses aposentos atividades de rotina como fabricação de instrumentos, da mesma forma como nos Outros. Hodder acredita que as atividades ritualísticas e domésticas eram tão intimamente interligadas que é improvável que as próprias pessoas fizessem alguma distinção entre as duas. A base econômica de Çatalhöyük também foi posta em questão. Mellaart linha pouca dúvida de que um tal assentamento devia depender de uma economia agrícola eficiente, baseada em cereais e gado. Mas suas provas eram frágeis. Encontraram-se alguns cereais calcinados, mas o equipamento de moagem é raro dentro das casas e pátios, em comparação com a abundância nas aldeias do vale do Jordão. Plantas e animais selvagens, como tuberosas e gamo, podem ter tido muito maior importância do que acreditava Mellaart. Estudos iniciais do material recém-escavado sugerem uma economia não diferente de qualquer outro assentamento de sua era, baseada em carneiros e cabras domésticos, cereais e legumes. O trabalho de Hodder, no entanto, confirmou muitas das opiniões originais de Mellaart. Este acentuara a ordem dentro do assentamento, a maneira como cada aposento seguia os mesmos arranjos espaciais, e a notável uniformidade no desenho de artefato durante toda a história do assentamento. Hodder descobriu mais indícios dessa ordem. Quando as casas precisavam de reconstrução, eram feitas segundo o mesmo desenho e no mesmo lugar, mantendo as mesmas áreas paia cada atividade que se exercia dentro delas. Ele sugere que diferentes tipos de pessoas — velhos e jovens, homens e mulheres, fabricantes especializados de instrumentos e os sem qualificações — eram bastante restringidos quanto a onde podiam sentar-se e trabalhar dentro de cada aposento. A mim, parece-me que cada aspecto de suas vidas se tornara ritualizado, toda independência de pensamento e conduta esmagada por uma opressiva ideologia manifesta em louros, seios, caveiras e abutres.
Isso parece a vida num inferno neolítico, o que é irônico, porque, quando visitei o monturo numa tarde de outono em 2002 d.C., o sítio se assemelhava mais a um paraíso arqueológico. Estava deserto, só havia a presença do guarda, e parecia esplêndido no meio da planície de Konya. As valas recentemente escavadas por Hodder eram protegidas por cobertas e vi o reboco das paredes, lareiras e toda uma gama de traços arquitetônicos maravilhosamente preservados: fendas nas paredes onde houvera escadas, entradas e quartos de depósitos, bilhas de grãos e plataformas abaixo das quais se tinham feito enterros. Igualmente impressionantes eram o laboratório, oficinas e instalações para os arqueólogos in loco, as exposições para os visitantes e a moradia reconstruída para eles verem. Lembrei-me de que lera uma entrevista dada por Ian Hodder em que lhe pediram para descrever o projeto de seus sonhos. Ele respondeu, o que não surpreende, que já o achara e pretendia prosseguir com a escavação de Çatalhöyük por muitos anos. É o amanhecer em Çatalhöyük em 7.000 a.C. Cansado após sua atormentada noite, Lubbock tornou a subir para o telhado e encontrou um ponto privilegiado do outro lado da planície. O sol ainda não nasceu e faz frio. Um pastor de cabras já deixou a cidade em busca de pasto para seu rebanho; uma mulher capina os campos que cercam a cidade. Lubbock volta-se para o leste, em direção a Nevali Çori e Göbekli Tepe, cujas obras de arte pareciam prever Çatalhöyük. Mas também o fizeram, ele pensa, os pássaros pintados de Bouqras, as estatuetas de bois e as figuras de massa de Ain Ghazal. Voltando-se para o sudeste, para as modernas terras de Israel e Jordânia onde começou sua viagem, ele lembra que as aves de rapina haviam sido reverenciadas e as cabeças retiradas de corpos humanos nas primeiras aldeias agrícolas: Jericó, Netiv Hagdud e WF16, E assim as pinturas e esculturas de Çatalhöyük talvez não sejam tão horríveis afinal — simplesmente uma expressão da mitologia que surgiu junto com os campos de trigo quando a agricultura foi inventada e desenvolvida no oeste asiático. Ele então olha mais atrás ainda no tempo, sua chegada a Ohalo antes de seu incêndio, suas viagens pela estepe e deserto, a ceifa de trigo nas hortas selvagens de Ain Mallaha. Que teriam pensado de Çatalhöyük aqueles caçadores-coletores kebaranos e natufianos? O mais provável é que
tivessem ficado confusos e aterrorizados, pois pareciam confiar no mundo natural, na verdade serem eles próprios parte dele. O povo de Çatalhöyük, por outro lado, parecia temer e desprezar o agreste. Com outra volta, Lubbock olha para oeste, para a Europa. Uma jornada por aquele continente será a próxima etapa de suas viagens pela história global. Começará nas profundezas da Era do Gelo, no extremo noroeste, onde as pessoas caçam renas e vestem-se de peles. Mas primeiro ele tem de visitar o que ainda continua sendo uma casa intermediária entre a cultura européia e a oeste asiática — a ilha mediterrânea de Chipre.
12 Três Dias em Chipre Extinções, colonização e estase cultural, 20. 000 – 6.000 a.C. Alan Simmons equilibrava-se precariamente à beira de um penhasco acima de um brilhante mar Mediterrâneo. Eu escutava com atenção a descrição de sua escavação da Caverna de Aetokremnos em Akrotiri — agora pouco mais que uma plataforma no lado do penhasco, depois que o teto desabou muitos milhares de anos atrás. Eu me agachava no seu piso; tinha à minha frente Alan, de costas para o mar, um forte vento assanhando-lhe a massa de sedosos cabelos grisalhos. Muito acima, aves de rapina circulavam nas correntes termais — talvez soubessem que Aetokremnos significa penhasco dos abutres. Alan disse que havia duas camadas principais no chão, a de cima com instrumentos de pedra, um bolo de conchas c ossos de pássaros; a de baixo entupida de ossos de hipopótamos — mas não como os animais da África hoje. Esses eram hipopótamos pigmeus, do tamanho de porcos, e mais de 500 deles foram escavados dos restos da minúscula caverna. Alan explicou que eles haviam sido caçados por volta de 10.000 a.C. pelas primeiras pessoas a chegarem a Chipre; Aetokremnos era o lugar para onde levavam as carcaças, assavam-nas, e depois as esquartejavam para tirar a carne, gordura e ossos. Meu colega estava excitado, agitava os braços, especulando que os animais eram enxotados dos lugares onde comiam e obrigados a pular da beira do penhasco para a morte. Um passo atrás, eu pensava, e ele iria se juntar a eles nos rochedos embaixo, cobertos pelas ondas. Entre 20.000 e 10.000 a.C., não havia habitantes humanos em Chipre. Tampouco havia cabras selvagens, javalis ou gamos. Cercada por mares profundos, Chipre, como outras ilhas mediterrâneas, ficara isolada de outras massas de terra durante milhões de anos, e assim mal tinha alguma fauna. Havia sem dúvida bastante forragem e pastagem, pois a ilha era coberta
por uma mistura de densa mata e estepe, as proporções e composições mudando à medida que o clima passava por seus altos e baixos rumo ao mundo do Holoceno. Em 10.000 a.C., grande parte da ilha foi coberta por florestas de carvalho; pinheiros cresciam nas montanhas, junto a esplêndidos cedros com seus grandes galhos espraiados e forte cheiro. Além de camundongos e seu pequeno e peludo predador noturno, o gineto, os únicos animais que cresciam na ilha eram hipopótamos e elefantes pigmeus. Os primos em tamanho natural deles tinham vivido outrora nos pântanos costeiros do oeste asiático inundados pelo mar em elevação. Numa data muito antiga, elefantes e hipopótamos como os conhecemos hoje nadaram até a costa cipriota. Na ausência de ameaça de um predador, a evolução transformou seus descendentes em anões — os grandes volumes eram desnecessários se a única preocupação era proporcionar alimento e sexo suficientes para assegurar a sobrevivência dos genes. Elefantes e hipopótamos assumiram aos poucos o tamanho de porcos grandes, os últimos muito mais numerosos e com um comportamento parecido ao dos próprios porcos. Eram bons nadadores, mas pareciam mais felizes correndo de um lado para outro pelo mato baixo, comendo folhas e brotos. Os hipopótamos matavam a sede em fontes de água doce no topo dos penhascos. No tempo frio, abrigavam-se nas cavernas costeiras, pois sabiam subir e descer encostas íngremes. As cavernas também podem ter sido usadas para parir, amamentar os filhotes, e como lugar onde morrer assim que se completava a vida do hipopótamo. Em 10.000 a.C., John Lubbock senta-se sem ser visto numa nesga de praia arenosa com outros cinco viajantes — três homens e duas mulheres. Acabaram de puxar sua canoa para a praia abaixo da Caverna de Aetokremnos, aliviados por chegarem à terra seca após uma exaustiva travessia marítima de 60 quilômetros, vindos da costa do oeste asiático. Evidentemente famintos, logo se põem a catar mariscos nas rochas e poças rasas, sabendo exatamente onde procurar. Dois seixos de praia bem mirados derrubam dois patos que ondulavam na água, inteiramente despreocupados com a ameaça representada pelos estranhos recémchegados. Os canoeiros avistaram a caverna quando contornavam a costa sul de Chipre. Agora dentro dela, acham-na acanhada e curvam-se para não
arranhar a cabeça. Usando pedras como picaretas e pás, começam a cavar o solo arenoso para fazer uma fogueira; ao fazerem isso, surgem ossos que são ou jogados fora ou adotados como um instrumento melhor. Lubbock agacha-se atrás, joelhos encolhidos sob o peito, na cabeça um machucado roxo de uma batida no teto da caverna. Dentro do raso poço, os companheiros de Lubbock acendem uma fogueira com madeira recolhida na praia e quebrada de arbustos secos. Enquanto os patos são mais ou menos depenados, os canoeiros dão uma segunda olhada nos ossos desenterrados dentro da gruta. Lubbock observa-os passar um crânio em volta, examinando os dentes e depois ignorando a que animal poderia pertencer. Apesar de caçadores experimentados, jamais viram tais ossos antes. Uns poucos são reunidos, espanados de areia e postos nas chamas na esperança de que ardam, para fazer durar a lenha. Minha chegada a Chipre fora no dia anterior àquele em que Alan me levou à Caverna de Aetokremnos. Tinha apenas três dias para passar na ilha, enquanto participava de uma conferência sobre sua pré-história inicial. Enquanto Alan Simmons conduzia uma excursão ao sítio, outros 20 delegados à conferência se agachavam no penhasco onde ficara outrora a Caverna de Aetokremnos. A caverna era o mais controvertido sítio discutido na conferência em setembro de 2001. Fora objeto de quase contínuo debate desde as escavações de Alan e suas provocativas afirmações de que o grande número de ossos calcinados da caverna ofereciam prova conclusiva de que seus ocupantes haviam matado e comido os hipopótamos. De que outro modo poderiam os restos de tantos hipopótamos pigmeus ter chegado dentro da caverna na metade de uma íngreme escarpa?7 Havia alguns fatos incontestes sobre o sítio: seres humanos tinham feito uma fogueira na caverna por volta de 10.000 a.C., deixando espalhados instrumentos de pedra e contas feitas de conchas marinhas. Ninguém questionava que essas pessoas também tinham sido responsáveis pelos milhares de conchas de mariscos e os ossos de uma variedade de patos e pássaros. Alguns dos ossos de hipopótamo tinham inquestionavelmente sido queimados, mas como tinham originalmente chegado dentro da caverna era motivo de intensa discussão. Os críticos de Alan indicavam a raridade de artefatos de pedra
encontrados com os próprios ossos de hipopótamo, sugerindo que os poucos na camada de baixo podiam ter facilmente escorregado por fendas ou levados por roedores que se entocavam na gruta. Também indicavam a completa ausência de marcas de cortes de instrumentos de pedra em qualquer dos 218 mil ossos de hipopótamos desenterrados. Só marcas de corte podiam oferecer a prova incontestável de que eles tinham sido caçados e esquartejados; sem eles, os ossos podiam simplesmente ser um depósito natural como os encontrados em muitas cavernas em toda a costa cipriota, talvez acumulando muitas dezenas de milhares de anos antes da chegada de gente. Quando preparava seu relatório, Alan convidara Sandi Olsen, do Museu Carnegie de História Natural, em Pittsburgh, EUA — uma especialista em identificar esquartejamento por seres humanos —, para examinar os ossos. Infelizmente para ele, ela também se tornou sua mais severa crítica. Sandi sugeriu que as pessoas na Caverna de Aetokremnos tinham simplesmente escavado seus depósitos para abrir mais espaço para si mesmas; isso desordenou os ossos de hipopótamo, alguns dos quais tinham sido queimados por suas fogueiras e se misturado com os detritos deixados para trás. Os ocupantes podem até mesmo ler tentado usar os ossos como combustível. Sandi julgou provável que os ossos de hipopótamo fossem vários milhares de anos mais velhos que a ocupação humana. Mas explicou que quaisquer datas de radiocarbono para os próprios ossos não eram confiáveis, devido a alterações químicas causadas pelo fogo. Eu pesei os dois lados da discussão. Alan era um defensor convincente da existência de caçadores de hipopótamos, mas sem marcas de corte nem datas de radiocarbono confiáveis não me convencia. As constantes mudanças de clima e ecologia entre 20.000 e 10.000 a.C. teriam perturbado os padrões de reprodução dos hipopótamos pigmeus; a disseminação de mata densa em 12.500 a.C. — o interestadial glacial tardio — pode ter tido um efeito devastador. E assim desconfio de que em 10.000 a.C., depois que as primeiras canoas chegaram à praia de Chipre, não havia hipopótamos e elefantes pigmeus bebendo nas fontes no topo dos penhascos — apenas aves de presa circulando ociosas nas correntes termais. Nessa data os hipopótamos já haviam despencado da borda — não do penhasco, mas da própria existência. Se eram caçadores de hipopótamos ou não, os artefatos de pedra de
Aetokremnos e a datação por radiocarbono de suas fogueiras de aproximadamente 10.000 a.C. proporcionam o mais antigo indício conhecido de presença humana em Chipre. Por que foram eles para a ilha? A data pôs a ocupação dentro do Jovem Dryas que transformara a vida no oeste asiático. Se as pessoas se assentaram em Ain Mallaha ou na Caverna de Hayonim em Israel, ou em Abu Hureyra no Eufrates, retornaram a um estilo de vida transitório quando a produção de suas hortas selvagens entrou em colapso. A chegada delas a Chipre pode ter sido mais uma conseqüência da tensão econômica que enfrentavam. A existência da ilha certamente teria sido conhecida, ou por ser ela própria visível de picos de montanhas ou suspeitada por distantes formações de nuvens, correntes reveladores ou detritos flutuantes trazidos pelas ondas. O que os caçadores encontraram lá deve ter sido uma decepção — não havia caça, e só poucos cereais para colher. Como Aetokremnos é atualmente o único sítio de sua era conhecido na ilha, parece que os primeiros visitantes partiram sem demora. Quase 2 milênios teriam de se passar para que as pessoas voltassem a Chipre; quando o fizeram, foram mais bem preparadas, levando não apenas sementes de grãos nos barcos, mas cabras selvagens e javalis para abastecer a ilha. No segundo dia de minha visita, fiquei olhando o poço do Neolítico com Paul Croft, diplomado por Cambridge e hoje arqueólogo residente em Chipre. Ele descrevia a descoberta e escavação do poço. A menos de 100 metros, turistas bronzeavam-se nas areias de uma baía abrigada e tomavam coquetéis sob as sombrinhas de falsa palha de um bar de praia. Desde 1989, Paul vem trabalhando com uma equipe da Universidade de Edimburgo num "relatório de observação" no balneário em rápido desenvolvimento de Mylouthkia, no sudoeste da ilha. Um "relatório de observação" arqueológico é exatamente isso — observar o que uma pedreira ou obra de construção revela, e poder mandar parar se aparece alguma coisa de importância arqueológica. Já se sabia que Mylouthkia era rica em restos da Idade do Bronze de Chipre, começando por volta de 2.500 a.C. mas a descoberta desses poços antigos foi uma completa surpresa. Os únicos outros exemplos neolíticos fora de Chipre vinham da aldeia submersa de Atlit-Yam, ao largo da costa Israelense, mas essas novas descobertas eram consideravelmente mais antigas. Na verdade, podiam ser os poços mais antigos conhecidos do
mundo. Paul explicou que os poços — tinham seis espalhados em torno e dentro de um novo complexo hoteleiro — tinham sido descobertos como círculos de solo escuro no chão, ou como longas colunas de solo que foram fatiadas ao comprido, quando a pedra em torno foi cortada. A princípio se supôs que eram da Idade do Bronze e não mais que poços rasos. Mas a escavação revelou que desciam pelo menos 10 metros na rocha macia. Os detritos que os haviam enchido continham muitos artefatos reveladores do Neolítico, sendo de particular significação a completa ausência de cerâmica. Datas de radiocarbono confirmaram que eram do Neolítico Inicial, e com isso estenderam a antigüidade da agricultura em Chipre em pelo menos 200 anos. Em vez de serem abandonados quando não mais necessários, ou quando os rios subterrâneos secaram, os poços foram deliberadamente enchidos. Um deles revelou conter um grande número de vasos de pedra fragmentados, juntos com martelos de pedra e lascas de sílex usados na sua manufatura. Estes muito provavelmente vinham de um monte de lixo perto do poço. Outro tinha disposições ritualísticas. Continha 23 carcaças de cabras completas, um crânio humano cuidadosamente posto em posição e uma elegante cabeça de maça feita de pedra cor-de-rosa polida. Paul disse que os poços tinham sido cortados com picaretas de galhada de veado e que apoios para mãos e pés ainda sobreviviam em suas paredes para subir e descer. Mas antes que eu tivesse uma oportunidade de pedir permissão, ele já conduzira os delegados da conferência para longe. Desejava mostrar-nos um recém-descoberto e ainda não escavado poço no quintal de um apartamento do hotel. É 8.000 a.C., e Lubbock espia dentro do mesmo poço. Há uma cerca protetora de vime em torno da abertura que se tem de passar por cima. Perto dali, três ou quatro adultos e alguns adolescentes talham vasos de pedra sob um frágil abrigo. Usam martelos de pedra para quebrar, depois trabalhosamente talham a pedra em modelos brutos, e em seguida os lixam e esculpem em tigelas e pratos. Para fazê-lo, têm de despejar água continuamente sobre as pedras. Lubbock calcula que é por isso que trabalham tão perto do poço. Não há construções em volta do poço, nem uma única cabana, quanto mais uma aldeia neolítica à vista no raquítico matagal que chega até a
margem de uma enseada, a uns 200 metros de distância. Lubbock senta-se na oficina e observa que um dos homens tem uma faca com uma lâmina brilhante enfiada no cinto. Como o homem se concentra muito em seu trabalho, Lubbock se esgueira com cuidado e descobre, como imaginou, que é afiada como uma navalha — exatamente a mesma pedra que ele viu em grande quantidade na Capadócia, quando viajava para Çatalhöyük. Assim, ou esses artesãos cipriotas vieram um dia do sul da Turquia ou foram ligados àquela região pelo comércio. O trabalho deles chega a uma abrupta pausa quando um barco aparece dentro da enseada. É inteiramente diferente da canoa de tronco que chegou a Aetokremnos um milênio e meio atrás; este vaso é construído com tábuas e tem mastro e vela. Em alguns minutos, o barco já ancorou e mais ou menos uma dezena de pessoas vem por dentro d'água ate a praia, saudados pelos artesãos que correm ao seu encontro. Lubbock também vai até o barco e logo está ajudando a descarregar — sacos de trigo e cevada, algumas cabras e um jovem gamo, todos com as pernas firmemente amarradas e com muito má aparência. As pessoas — duas famílias — não parecem muito melhor; as crianças em particular têm o ar de bastante enjoadas. Enquanto os recém-chegados bebem sedentos água do poço, Lubbock reflete sobre a data, 8.000 a.C., e o que deve esperar encontrar em outra parte da ilha. Quando esteve no oeste asiático, nessa data, ele visitava Beidha — uma cidade com prédios retangulares de dois andares, uma casa de assembléia pública, celeiros e pátios. Essas aldeias e pequenas cidades foram descobertas por todo o Crescente Fértil. Lubbock lembrou-se do homem rebocando o crânio do pai em Jerico e que viu o enterro de estátuas em Ain Ghazal. Teria Chipre aldeias ou mesmo cidades neolíticas semelhantes? Como os agricultores da ilha devem ter vindo do oeste asiático, supõe-se que sim. Assim, Lubbock deixa o poço, artesãos e recém-chegados em Mylouthkia e dirige-se para o interior, em busca de vida aldeã. Há pelo menos dois assentamentos na Chipre contemporânea dos poços de Mylouthkia. Um, o sítio de Shillourokambos, é outra descoberta recente. Aprazivelmente situado entre renques de oliveiras, a poucos quilômetros da costa sul da ilha, as escavações estão sendo feitas desde 1992 pelo arqueólogo francês Jean Guilaine. Tínhamos visitado esse sítio antes de
vermos os poços de Mylouthkia. Guilaine, muito francês com suas alpercatas, dar de ombros e charme, ofereceu uma excursão por suas escavações em andamento. Também descobrira poços, junto com os vestígios de um cercado possivelmente usado outrora como curral de animais, talvez de hábitos e formas ainda selvagens. Encontrara em seu sítio ossos de gado — outro animal que deve ter sido trazido em barcos do oeste da Ásia. Shillourokambos teve uma longa história de ocupação, mas a preservação arquitetônica é precária; na verdade, quase inexistente, uma vez que qualquer pedra útil ali há muito foi retirada para construção em outra parte. Pelo que Guilaine detectou de buracos de estaca e poços, suas moradas tinham desenho circular. Como tal, assemelhavam-se aos prédios em Tenta, outro assentamento neolítico de data semelhante. Mas também condiziam com as casas em todos os assentamentos de fins do período neolítico na ilha, até 5.000 a.C. e além. A longa tradição de moradias circulares em Chipre foi reconhecida desde a década de 1930, quando começaram as escavações no mais conhecido sítio neolítico cipriota, Khirokitia. O assentamento cobre toda a encosta de uma colina a alguns quilômetros de Tenta. Era do tamanho das cidadezinhas do Neolítico Pré-Cerâmica B do oeste da Ásia — embora, quando Khirokitia atingiu seu auge, essas cidades já estivessem há muito abandonadas. E no entanto, a construção de Khirokitia partiu de pequenas casas de um só andar e circulares. São as mais comparáveis às das primeiras aldeias do oeste da Ásia, como Netiv Hagdud, no vale do Jordão, e Jerf el Ahmar, no vale do Eufrates, as duas datando de cerca de 9.500 a.C. Tenta foi a mesma coisa, fornecendo indícios de um estilo arquitetônico que evidentemente sobrevivera por muitos milênios em Chipre após ter sido substituído em outras partes. Iann Todd, trabalhando para o Departamento de Antigüidades do Chipre, escavou a aldeia na década de 1970. Revelou um aglomerado de pequenas casas circulares em volta do cume de um morrote, algumas feitas de pedra e outras de adobes. No cume em si, havia uma estrutura circular muito maior, com três paredes concêntricas cercadas por pequenas celas. A estrutura tem tamanho, forma e desenho quase idênticos a uma encontrada mais de 500 quilômetros a leste, e que pode ter sido construída
mil anos antes. Esta foi descoberta no assentamento de Jerf el Ahmar, escavado por Danielle Stordeur na década de 1990 e hoje inundada pelo lago Assad. Com paredes concêntricas e celas radiais, Danielle sugeriu que a estrutura de Jerf el Ahmar poderia ter sido um celeiro central para a aldeia, construído por esforço comunal. A impressionante semelhança entre as estruturas de Tenta e Jerf el Ahmar foi observada por Eddie Peltenburg, arqueólogo da Universidade de Edimburgo que dirige escavações em Chipre e na Síria. Na apresentação de uma conferência, Peltenburg destacou várias outras ligações entre a arquitetura neolítica em Chipre e a das mais antigas aldeias neolíticas no Iraque, Síria e Turquia, que datam do Neolítico PréCerâmica A. As duas, por exemplo, utilizavam pilares grossos no interior das casas; estas tinham sido descobertas em Qermez Dere e Nemrik, no Iraque (como veremos num capítulo posterior), e em Nevali Çori e Göbekli Tepe, na Turquia. Além disso, pelo menos um dos pilares em Tenta fora pintado com uma figura antropomórfica dançando, que lembrava as obras de talha nos dois sítios posteriores. Como as casas em Chipre tinham paredes grossas, Peltenburg descartou a idéia de que os pilares eram necessários como suportes de telhado. Julgou que eram desprovidos de qualquer função utilitária e carregados de sentido simbólico. Com base nessas semelhanças arquitetônicas e as constatadas nos detalhes técnicos de instrumentos de pedra, Peltenburg propôs que os primeiros agricultores em Chipre se tinham originado no oeste da Síria ocidental: não dos próprios assentamentos de Jerf el Ahmar ou Nevali Çori, pois estes ficam muito para o interior, mas de assentamentos contemporâneos perto da costa com as mesmas tradições arquitetônicas e culturais. Não se conhecem hoje assentamentos como esses. Qualquer um que talvez tivesse existido na própria costa encontra-se agora a grande profundidade abaixo do mar. Peltenburg especulou que ainda devem existir outros na atual faixa costeira da Síria, não descobertos apenas porque ninguém se deu ao trabalho de procurá-los. É exatamente o que ele agora pretende fazer. O arqueólogo defendeu a convincente hipótese de que os primeiros agricultores de Chipre embarcaram na costa síria. Enquanto as primeiras chegadas em Chipre foram impulsionadas pela tensão econômica causada pelo Jovem Dryas, os novos desembarques foram motivados pela
oportunidade de colonização oferecida por uma economia agrícola. Trouxeram com eles não apenas sementes de grãos, porcos, gado, carneiros e cabras, mas as tradições arquitetônicas e culturais que também foram encontradas mais a leste em Jerf el Ahmar e Göbekli Tepe. Assim que chegaram a Chipre, logo após 9000 a.C, esses colonizadores mantiveram suas tradições culturais por todo o Neolítico, embora novos estilos arquitetônicos — prédios retangulares de dois andares — se desenvolvessem pelo continente do oeste da Ásia. Em 6.000 a.C., quando casinhas circulares de paredes de barro continuavam sendo construídas em Tenta e Khirokitia, o vale do Eufrates abrigou substanciais cidades; maiores ainda, e com arquitetura mais imponente, que as vistas por Lubbock em Ain Ghazal e Bouqras. No terceiro dia de minha visita a Chipre, fui conhecer Tenta e Khirokitia. As duas eram fascinantes e decepcionantes em igual medida. A arqueologia em si destacava-se. As casas de adobe em Tenta tinham paredes sobreviventes à altura da cintura e aglomeravam-se compactas em volta da estrutura circular feita de pedra no cume da colina. Pareciam as fotografias que vi da estrutura de Jerf el Ahmar. Muitas das moradias conservavam vestígios de grossos pilares quadrados, quase não deixando espaço de vida algum para os ocupantes. Uma passarela de madeira fora construída para que se tivesse uma visão de cima do sítio. Era coberta por uma enorme tenda cônica que tapava o sol, a brisa e a vista. Essas medidas serviam para proteger as frágeis construções dos prédios de barro de Tenta. Por mais excelentes que parecessem as habitações, porém, como não pude caminhar entre as moradias nem entrar nelas, tocar a pedra ou agachar-me ao lado das paredes, achei quase impossível imaginar as pessoas que haviam vivido em seu interior. A arqueologia de Khirokitia pareceu-me mais impressionante e ainda menos evocativa do passado Neolítico. Como sítio do "Patrimônio Mundial", era cuidadosamente administrado com passarelas e quadros de informação, guias e casas reconstituídas. As escavações na década de 1930 e 1970 revelaram um grande aglomerado de casas circulares feitas de pedra, tão apertadas entre si por uma encosta que de certa distância o sítio parecia mais uma ladeira coberta de seixos que as ruínas de uma aldeia pré-histórica. Vistas mais de perto, as paredes de muitas casas
circulares sobreviveram à altura dos joelhos; algumas tinham pilares internos, lareiras e mós. Não me demorei. Percorri apenas a rota demarcada colina acima e abaixo em meio aos barulhos e cheiros do tráfego de imensas rodovias que bramiam perto, depois fui tomar uma cerveja no bar local. Anunciava uma "Salada Neolítica" que acabou sendo igual a qualquer outra na ilha. Parecia que Chipre decidira manter seu passado pré-histórico firmemente no presente: minha visita à Gruta Aetokremnos fora perturbada pelo estrondo de aeronaves militares da base aérea de Akrotiri, próxima dali, e os poços neolíticos de Mylouthkia eram cercados por empreendimentos turísticos. Eu devia estar com Lubbock no passado, na encosta da colina de Khirokitia em 6.000 a.C. A aldeia estava apinhada de pessoas que tinham de apertar-se ao passarem umas pelas outras para chegar às suas casas ou visitar-se umas às outras após todo um dia de trabalho nos campos. Aglomerados de casas de telhado reto distribuíam-se em volta de pequenos pátios, atravancados com os detritos da vida doméstica: bacias de pedra, esmeris, foices com lâmina de sílex. Os conjuntos, que abrigavam uma família numerosa, eram tão próximos uns dos outros que as pessoas se irritavam com os que tentavam passar por ali ou tinham jogado seu lixo perto demais. Felizmente, Lubbock conseguiu sentar-se inteiramente invisível num canto, dividindo-o com duas cabras que soltavam peidos. Cães latindo e crianças chorando dominavam a cacofonia de barulho neolítico. Toda a aldeia fedia a fezes humanas e animais; cobria-a uma espessa mortalha de fumaça acre, pois cada pátio tinha sua própria fogueira e cozinhava sua própria comida. A vida em Khirokitia pareceu profundamente desagradável a Lubbock — não de uma forma ameaçadora, mas bagunçada, claustrolóbica. Os tipos de casas e pátios que empregavam tinham sido originalmente construídos para comunidades de no máximo 50 pessoas. Pelos cálculos de Lubbock, um número 10 vezes maior de pessoas acocorava-se em torno de suas fogueiras na colina. Enquanto as que viviam no oeste da Ásia tinham adotado novos tipos de arquitetura com o crescimento de suas populações, a gente de Khirokitia simplesmente continuara a acrescentar o mesmo tipo, resultando naquele assentamento espraiado, disfuncional. A nova arquitetura no oeste da Ásia fora acompanhada das novas normas e regulamentos para a vida em conjunto. Estes eram impostos
pelos sacerdotes, como vira Lubbock em Ain Ghazal, ou acertadas em casas de assembléias públicas como a de Beidha. Mas nada desse tipo de autoridade nem de tomada de decisão para o bem comum surgira em Khirokitia. Cada família numerosa cuidava de lato apenas de si mesma — produzindo e estocando sua própria comida, enterrando seus mortos, chegando até a ter suas crenças religiosas pessoais. Lubbock procurara em vão prédios públicos onde talvez tivessem ocorrido planejamento, culto ou ritual religioso coletivos. Tampouco conseguiu encontrar qualquer sinal de figuras de autoridade que pudessem ter estabelecido regras e resolvido disputas. Embora esses grupos familiares independentes fossem viáveis onde existia bom suprimento de água doce, terra e lenha, estas achavam-se agora seriamente esgotadas. O resultado era tensão e conflito incessantes na cidade superpovoada. Meu avião ia partir do aeroporto de Larnaka na manhã seguinte. Tinha uma última oportunidade de envolver-me com o passado cipriota. E assim, saí apressado do bar de Khirokitia e fui de carro até as montanhas Troodos, onde se permitira mais uma vez que vicejasse a antiga floresta de pinheiros e carvalhos que outrora cobrira a ilha. Cheguei ao anoitecer. Meu destino era o vale do Cedro no centro da floresta, o último habitat natural dos cedros nativos que outrora deviam florescer por toda a ilha. As estradas macadamizadas tinham-se tornado desde, tempos atrás pistas florestais acidentadas, que repelidas vezes roçavam meu impróprio carro alugado. A luz ia-se extinguindo, à medida que o sol mergulhava abaixo das encostas cobertas de árvores. Eu já pensava em desistir, quando, ao contornar uma das infindáveis curvas fechadas, surgiu uma cabra selvagem na pista e se encaminhou sem pressa para as árvores. Parei e nos entreolhamos por um instante; com seus grandes chifres curvos, vigorosos quartos dianteiros e pêlo marromescuro, era o mais próximo possível de uma cabra neolítica que se podia encontrar. De repente, virou-se e fugiu, deixando-me apenas com o barulho de pedras a rolar pelo declive rochoso quando desapareceu. Sentindo-me estimulado, passei por um guarda-florestal e perguntei o caminho para o vale do Cedro. — Mais uns 20 quilômetros — respondeu ele; no mínimo, uma hora de carro na pista cada vez mais deteriorada. — Volte amanhã — continuou o
homem — vai estar escuro como o breu quando chegar lá. Não era uma opção. Mas ele tinha razão, pois quando acabei descendo do carro e desliguei as luzes, nada mais restava a ser visto. Encaminhei-me hesitante para as árvores, os grossos troncos surgindo um por um à medida que meus olhos se ajustavam. Ergui-os, na esperança de ver os galhos horizontais como um guarda-chuva de cedro; mas não se via contorno nem forma alguma, todos os galhos dos pinheiros, plátanos, cedros e carvalhos uniam-se numa única silhueta escura vazada aqui e ali pelo céu enluarado. Tateei de tronco em tronco, sentindo sua casca e tentando lembrar se a do cedro era áspera ou lisa. Sem os olhos, meus ouvidos assumiram o controle: as cigarras reverberavam, minúsculas gotas d'água respingavam ruidosas, tumultos no mato rasteiro — besouros ou camundongos — soavam como carneiro selvagem, gamo ou até javali. De repente, sentiame mais perto do mundo pré-histórico do que ocorrera em Aetokremnos ou Mylouthkia, em Tenta ou Khirokitia. Eu fora totalmente envolto numa surpreendente fragrância de cedro e pinho, de folhas e cascas de árvore em decomposição, teias de aranha e riachos florestais. Talvez fosse a única sensação que poderia partilhar com os que teriam primeiro chegado para explorar e viver na ilha.
Europa
13 Pioneiros nas Terras do Norte A recolonização do noroeste da Europa, 20.000 – 12.700 a.C. A chacina de corpos humanos. Uma lâmina de sílex corta fatias da carne e tendões, primeiro removendo o maxilar inferior e depois a língua de um rapaz. Outro foi escalpelado. Um terceiro corpo jaz nu, de bruços, numa poça de sangue, as costas abertas ao meio e rasgadas por instrumentos de pedra. O luar brilha na caverna, iluminando os caçadores vestidos de peles e manchados de sangue que brandem os instrumentos. Acocorado dentro de um escuro recesso, John Lubbock tem tanto medo de estar ali quanto de sair. É a Caverna Gough, no sul da Inglaterra, numa noite de outono em 12.700 a.C. Do lado de fora, os penhascos de calcário do futuro Desfiladeiro de Cheddar, e além, uma paisagem varrida pelo vento, com bétulas cintilando no gelado ar da noite. Os homens são caçadores da era glacial — pioneiros nas terras do norte da Europa, depois que o grande congelamento da era do gelo chegou ao fim. Lubbock rasteja despercebido pelos caçadores, cujos rostos curtidos pelo tempo se escondem atrás de cabelos compridos e barbas emaranhadas. Ao avançar pelo desfiladeiro, ele arrepia-se no enregelante ar noturno; o mato range, surge uma nuvem a cada respiração. O silêncio é profundo, o ar perfumado de pinho. Agora ele precisa retomar suas viagens, pois mais uma fatia da história o aguarda, um período de importante mudança, quando a Europa se transforma num continente de florestas e agricultores. Após minha última visita à Caverna Gough, na primavera de 2.000 a.C., tomei uma trilha de concreto sob quentes lâmpadas elétricas até uma loja de suvenires que vendia mamutes e dinossauros de plástico. Do lado de fora, outros visitantes pagavam e entravam na caverna, passando por uma catraca. Estavam ávidos por ver estalactites e rios subterrâneos; alguns esperavam ver os morcegos residentes. Poucos sabiam da carnificina
humana que um dia ocorrera dentro da caverna. Para mim, a Caverna Gough fora um lugar de interesse ao mesmo tempo histórico e arqueológico — uma das primeiras localidades onde arqueólogos do século XIX encontraram traços de um passado da era glacial. Pelos padrões de hoje, as primeiras escavações foram inteiramente estarrecedoras, e na certa destruíram mais provas do que recuperaram. Não deixaram mais que pequenas migalhas de sedimentos para os arqueólogos atuais, que hoje complementam suas pás e enxadas com uma bateria de técnicas científicas. Em 1986, Roger Jacobi, especialista em ocupação da era glacial na Grã-Bretanha, escavou uma dessas migalhas. Num pequeno depósito perto da entrada da caverna, encontrou instrumentos, restos de animais esquartejados e 120 pedaços de ossos humanos. Jill Cook, do Museu Britânico, examinou os ossos e descobriu que tinham fortes incisões. Sob um microscópio de alta potência, constatou que esses sulcos continham reveladores arranhões paralelos — prova conclusiva de que tinham sido feitos por instrumentos de pedra. A posição e sentido de cada corte indicavam quais músculos tinham sido cortados e exatamente como os corpos de quatro adultos e um adolescente separados. Canibalismo parece a explicação mais provável. Alguns dos ossos com marcas de cortes estavam queimados, sugerindo que a carne humana fora assada e comida. Tinham sido jogados fora nos entulhos da ocupação, entre ossos de animais e instrumentos quebrados. Podemos apenas especular se as vítimas foram deliberadamente mortas ou morreram de causas naturais. Os ossos de animais da Caverna Gough nos dizem que também ocorreu outra atividade: a remoção de tendões dos ossos de cavalos, provavelmente para serem usados como cordas e fios na costura de sapatos e roupas. E assim encontramos um quadro de domesticidade mundana lado a lado com carnificina humana. A Caverna Gough é apenas um dos vários sítios arqueológicos na Europa que oferecem provas da recolonização de paisagens do norte ao chegar ao fim a era glacial. Essas paisagens tornaram-se desertos polares quando a era glacial atingiu o auge no LGM, abandonadas não apenas por pessoas, mas pelos mais resistentes animais e plantas. É com a recolonização dessas terras que a história da Europa deve começar, uma história de 15 mil anos, que dura até a chegada de uma segunda leva de migrantes — os
primeiros agricultores. Mas esses agricultores continuam muito distantes no tempo, pois começamos no LGM, quando a agricultura continuava quase desconhecida em todo o mundo e o norte da Europa era uma terra de geleiras, deserto polar e tundra. A história de como isso foi devolvido ao domínio da experiência humana começa no sul, onde os povos sobreviveram aos extremos da era glacial. Eles tinham-se assentado nos vales do sul da França e da Espanha, vivendo da caça de rena, cavalo e bisão. Seus invernos eram rigorosos, com temperaturas caindo a menos de 20ºC. Embora se tivesse criado uma arte admirável, como as pinturas no interior de Pech Merle, as pessoas ficavam muitas vezes desesperadas por comida e tinham de quebrar até os mínimos ossos da rena para retirar as migalhas internas de tutano. O John Lubbock vitoriano visitara várias cavernas no sul da França e escrevera sobre elas em Tempos pré-históricos. Viajara com seus dois amigos e colegas, o grande arqueólogo francês Edouard Lartet e o banqueiro inglês Henry Christy, que financiou o trabalho de Lartet. Em 1865, muitos ainda questionavam a antigüidade humana e recusavam-se a acreditar que os europeus tinham vivido como "selvagens". O Lubbock vitoriano reconheceu que os ossos de rena encontrados por Lartet forneciam provas cruciais. Não apenas se misturavam com alguns artefatos, mas muitos ainda conservavam marcas de corte de facas de sílex. O Lubbock vitoriano entusiasmou-se com a beleza da paisagem francesa, em especial o vale Vézère, onde se descobriram várias cavernas. Os habitantes da tundra da era glacial também deviam encontrar generosa compensação para as adversidades hibernais na beleza de seu mundo, com os rebanhos de bisão, cavalo e gamo, o errante mamute e o rinoceronte peludo, com vislumbres de ursos e leões, revoadas de gansos e cisnes. François Bordes, outra figura fundamental na arqueologia francesa, que nas décadas de 1950 e 1960 retomou a obra pioneira de Lartet, descreveu com muito acerto a tundra como uma Serengeti da era glacial. Após as demandas do inverno, vinha o espetáculo anual da primavera. Os primeiros sinais do degelo anual teriam sido observados com entusiasmo por eles e comemorados em sua arte. Num dia, por volta de 15.000 a.C., um anônimo gravou inúmeras imagens na superfície de um osso — um salmão desovando, duas focas, enguias despertando da hibernação, botões de flores: uma invocação da primavera, depois perdida
ou jogada fora no sítio de Montgaudier, na França. Embora nenhuma das pinturas da era glacial tivesse sido descoberta em 1865, o John Lubbock vitoriano conseguiu descrever algumas gravações rupestres nas páginas de Tempos pré-históricos. A arte do período glacial representou um desafio para os que acreditavam que os homens préhistóricos eram selvagens com mentes infantis. O Lubbock vitoriano foi mais generoso que a maioria; escreveu que é "natural sentir uma certa surpresa ao descobrir essas obras de artes", e afirma em seguida, com relutância, que "devemos dar-lhes crédito total por seu amor pela arte, a que tinha". Mas logo se seguiam declarações de que os homens das cavernas eram apesar disso muito ignorantes de agricultura, animais domésticos e metalurgia. O paradoxo com o qual ele lutava, o selvagem de refinado talento artístico, atingiria um ponto de ruptura em poucos anos: em 1879, uma menina correu gritando ao pai sobre touros — era a descoberta de pinturas na Gruta de Altamira. O mundo de artistas da era glacial passou a mudar logo depois de 18.000 a.C. As temperaturas globais começaram a subir e as camadas de gelo do norte a derreter. Em 14.000 a.C., as geleiras tinham desaparecido do norte da Alemanha e retiravam-se na Escandinávia e Grã-Bretanha. Os artistas e caçadores no sul sentiram e viram em primeira mão os efeitos do aquecimento global, sem saber que as mudanças por eles observadas — luxuriante brotar da mata, tempos prematuros de nidificação dos pássaros, nevadas reduzidas — eram os arautos de uma nova era na história climática e, na verdade, humana. Revemos no passado esses povos da era glacial com o conhecimento do que guardava seu futuro — 10 mil anos de drástica mudança climática. Embora a tendência fosse de condições mais quentes, foi um passeio de montanha-russa, com imensos altos e baixos na temperatura. Mas claro que esses excessivos vaivéns, picos e quedas de temperatura que vemos registrados nos núcleos glaciais extraídos da Groenlândia e Antártida pouco nos dizem de como as paisagens evoluíram, e menos ainda da natureza da experiência humana. Para isso, precisamos recorrer a testemunhos da própria Europa, sobretudo dos sedimentos recolhidos dentro de suas cavernas e depositados em seus antigos lagos. Vimos o valor dos grãos de pólen quando acompanhamos a história da mudança de paisagens no oeste da Ásia, registrada por indícios no núcleo da bacia do Hula. Na Europa, os minúsculos grãos de pólen registram a
migração vegetal e o surgimento de florestas ao longo do que fora outrora a árida tundra próxima das próprias geleiras. É uma história criada pelas sementes e esporos de plantas transportados para o norte no vento, em penas e pêlos, patas e fezes de aves e animais. Algumas dessas plantas — as mais tolerantes a condições que continuaram frias e secas — descobriram que podiam sobreviver, e até prosperar, onde não muito tempo antes jazeriam congeladas e inúteis no solo. À medida que essas pioneiras vegetais foram-se estabelecendo, encorajaram outros pássaros e animais a aventurar-se ao norte. Também ajudaram a desenvolver novo solo, que foi avidamente usado por um novo grupo de plantas, capaz de colonizar devido ao aumento de calor e chuva. Esses recém-chegados competiam ferozmente pela luz do sol e nutrientes, empurrando aos poucos os colonos originais para o norte, para outras terras recém-libertadas do jugo da glaciação da era do gelo. Por volta de 15.000 a.C., matos e arbustos tinham-se apoderado das colinas ondulantes do centro da Europa, com destaque para as espécies do gênero artemísia (arbusto espinhoso à altura dos joelhos). Uma aceleração em sua disseminação assinala o início da primeira fase quente importante na história do aquecimento global, o Bolling. É o drástico pico visto no registro do núcleo glacial em 12.500 a.C., e assinala a data na qual os coletores-caçadores do Natufiano Inicial no mundo mais quente e exuberante do oeste da Ásia se assentaram num estilo de vida sedentário. Na Europa, o Bolling resultou na dispersão de bétulas pelo norte da tundra e no desenvolvimento de bosques de pinheiros e bétulas mais ao sul e nos vales abrigados. Os grãos de pólen mostram que se seguiu um hiato, e em algumas áreas o contrário, na disseminação de florestas. Em 11.500 a.C., porém, completas florestas de bétula, choupo e pinheiro tinham penetrado no norte da Alemanha, Grã-Bretanha e sul da Escandinávia. Em algumas regiões, isso é identificado com uma segunda fase particularmente quente chamada Allerod, o pico final de mudança climática antes do começo do Jovem Dryas em 10.800 a.C. Os grãos de pólen registram um arrefecimento de mil anos nas condições árticas por uma nova predominância de gramíneas, arbustos e apenas as árvores mais resistentes — as paisagens do norte mais uma vez se tinham tornado tundra descampada, com bosques de bétula e pinheiro lutando pela sobrevivência contra todas as probabilidades. Os pastos
teriam sido pontilhados com delicadas florzinhas brancas, ninfas do bosque, avenas das montanhas, conhecidas pelos botânicos como Dryas octopetala — de onde vem o nome Jovem Dryas. E então, muito de repente em 9.600 a.C., o pólen de árvore ressurge mais uma vez; logo se torna abundante, ao mesmo tempo que o norte da Europa é coberto por densa terra florestal, quando o drástico aquecimento global encerra a era de gelo. * Os grãos de pólen muito nos podem dizer: como as paisagens mudaram, quais plantas, árvores as pessoas viam c queimavam em suas fogueiras enquanto se aventuravam ao norte. Mas para uma verdadeira apreciação de como talvez fossem esses caçadores e coletores da era glacial, os arqueólogos precisam voltar-se para outro tipo de pioneiro: os besouros. A maioria dos besouros parou de evoluir há mais de um milhão de anos. Em conseqüência, podemos ter certeza de que as espécies identificadas segundo as particularidades das patas, asas e antenas em depósitos antigos são exatamente as mesmas que vivem hoje. Isto é importante, porque muitas espécies são bastante sensíveis à temperatura do ar e vivem em tipos de clima muito específicos. Vejam, por exemplo, o besouro conhecido como Boreaphilus henningianus. Hoje estão limitados ao norte da Noruega e Finlândia, pois sobrevivem apenas no extremo frio. Mas encontram-se seus restos em depósitos por toda a Grã-Bretanha, indicando temperaturas tão frias quanto as do Ártico atual. Os restos de besouro da Grã-Bretanha são os mais bem estudados de qualquer lugar no mundo. Conhecem-se mais de 350 espécies, das quais foram recolhidas precisas estimativas de temperaturas passadas. Os besouros nos dizem, por exemplo, que as temperaturas de inverno do LGM no sul da Grã-Bretanha atingiam rotineiramente menos 16ºC e subiam até 10°C no verão. Quando a fase quente do Bolling chegou a 12.500 a.C., os besouros na Grã-Bretanha eram muito semelhantes ao que são hoje, indicando que as temperaturas de inverno e verão também eram muito semelhantes, 0-1ºC e 17°C respectivamente. Mas depois as espécies do frio passaram a predominar, indicando uma substancial queda de temperaturas invernais para menos 0-5°C em 12.000 a.C. e menos 17°C em 10.500 a.C., a última correspondendo nitidamente ao período do Jovem Dryas, como se vê nos núcleos glaciais da Antártida e
Groenlândia. Os besouros podem ser muito preciosos, mas dificilmente nos permitem visualizar as paisagens pré-históricas da Europa da era glacial. Para isto, os ossos de animais são muito mais úteis — pois, assim que se recorre aos mamutes, renas e javalis, essas paisagens tornam-se vivas. Os ossos de animais são encontrados sobretudo em depósitos de cavernas, como os de hipopótamos da Gruta Aetokremnos, em Chipre. Alguns são de animais que viveram e morreram dentro das cavernas, como hienas e ursos. Outros são presa de carnívoros — comida levada para alimentar os filhotes ou ser ingerida em segurança — enquanto os ossos de pequenos mamíferos chegaram via fezes em ninhos de corujas, Assim que os seres humanos apareceram, usaram as cavernas para abrigo e jogaram fora dentro delas os ossos de animais que matavam ou dos quais haviam comido a carniça nas carcaças. Os ossos de animais — qualquer que seja sua origem — revelam-nos muito sobre a mudança nos ambientes da Europa. Como acontece com os besouros, os mamíferos são conhecidos por preferirem diferentes tipos de habitats — a rena gosta de tundra fria, o veado-vermelho prefere florestas mais temperadas. E assim, distribuindo as coleções de ossos numa seqüência ordenada através do tempo, podemos reconstituir as comunidades animais em mutação, e portanto os meios ambientes, da Europa. Muito poucas cavernas, porém, têm longas seqüências de depósitos. Por isso, precisamos reunir coleções de ossos de diferentes cavernas se quisermos reconstituir vários milhares de anos de mudança climática. Jean-Marie Cordy, da Universidade de Liège, realizou um estudo desses. Examinou os ossos de animais recuperados durante mais de 100 anos de escavação em grutas na região calcária da bacia do Meuse, na Bélgica. Cordy construiu uma seqüência vaivém de depósitos de 15.000 a 9.000 a.C., Constatando que nos datados de antes de 14.500 a.C. os ossos de rena e boi almiscarado eram dominantes — animais da tundra. De 14.500 a.C. em diante, juntaram-se a eles os restos de espécies de florestas e pastos, como cavalo, veado-vermelho e javali. Estes passaram a dominar as coleções de ossos a partir de 12.500 a.C., o que coincide com a fase Bolling — época em que a rena foi obrigada a viajar para o norte, a fim de encontrar seus apreciados líquen e tundra coberta de musgo.
No conjunto seguinte de coleções de ossos das cavernas belgas, a rena mais uma vez torna-se abundante, refletindo uma queda de temperatura e o ressurgimento da tundra. Esse vaivém entre animais amantes do calor e do frio continuou enquanto o clima global ia mudando no Allerod, Jovem Dryas, e por fim no aquecimento global, que acabou com a era glacial há 9.600 anos. Usar os ossos de grandes mamíferos para mapear a mudança de ambientes da Europa é às vezes problemático. Encontrados muitas vezes em pequenos números, algumas espécies, como o veado-vermelho, são muito adaptáveis — sentem-se à vontade tanto em pastagens abertas quanto em matas densas. Além disso, alguns desses ossos talvez tenham percorrido consideráveis distâncias antes de tornarem-se detritos dentro de uma caverna: animais carnívoros e seres humanos podem ter grandes territórios de caça e levar para casa animais muito diferentes dos da vizinhança imediata de seu covil ou lugar de acampamento. Em conseqüência, os ossos dos pequenos mamíferos encontrados dentro de sedimentos de caverna oferecem um índice melhor de mudança climática — pois são em geral mais numerosos, as espécies mais sensíveis às condições ambientais, e poucos percorrem grandes distâncias em suas curtas vidas. Um dos mais úteis é o lêmingue-do-ártico — os picos e quedas na quantidade de seus ossos são quase tão bons quanto a própria medição da temperatura. Vejam por exemplo a gruta de Chaleux, no vale do Meuse, na Bélgica. Antes de 13.000 a.C., quase todos os ossos de pequenos mamíferos nos depósitos são de lêmingues-do-ártico, o que significa uma paisagem de tundra muito fria. Eles são substituídos por outras espécies roedoras — preá do norte, arganaz e até o hamster — que exigem condições muito mais quentes e úmidas, e em geral habitam florestas. Sua abundância nos sedimentos de Chaleux assinala o início do Bolling. Durante os mil anos seguintes, os lêmingues e os roedores amantes do calor ficam mudando de lugares como a maioria das espécies abundantes — um reflexo direto das flutuações climáticas pouco antes do desastre ambiental do Jovem Dryas, assinalado pelo desaparecimento de todos os roedores florestais. Grãos de pólen, patas de besouro, ossos de animais — é a partir do seu
estudo que se reconstituem os ambientes das terras do norte. Cientistas que trabalham em laboratórios estéreis, redigindo relatórios técnicos sobre aspectos específicos do passado, fazem esse trabalho. O desafio que enfrentamos ao escrever história, porém, não é apenas combinar essas fontes de indícios para podermos imaginar comunidades de plantas, animais e insetos concretos, mas também obter uma compreensão da experiência daqueles que primeiro entraram e depois se tornaram parte dessas comunidades. As relações de plantas e animais são um pobre substituto para o cheiro de agulhas de pinheiro e o gosto de carne de gamo assada sob as estrelas; um relatório sobre restos de insetos não pode evocar o zumbido e a picada de uma mutuca; estimativas de temperaturas invernais não transmitem a dor entorpecente de pés congelados cobertos de pele animal que caminharam pela neve e atravessaram rios gelados. Felizmente essas sensações estão ao nosso alcance: para ser um bom préhistoriador, é necessário não apenas ler os relatórios técnicos que emanam da ciência arqueológica, mas seguir caminhando c imergir no mundo natural, avançando aos poucos para mais perto da experiência do caçadorcoletor. É exatamente isso que John Lubbock vem fazendo desde que saiu da Caverna Gough. Rumou para o norte, percorrendo 150 quilômetros de colinas ondulantes e planícies; as árvores foram tornando-se esparsas e o vento persistente quando se aproximou da grande camada de gelo. Viu poucas pessoas enquanto atravessava a tundra — um grupo de caçadores de rena ao longe, desaparecendo na neblina, algumas famílias que se dirigiam para o sul, talvez para a própria caverna Gough. Quando descansa, ou é obrigado a abrigar-se, Lubbock lê Tempos préhistóricos, para descobrir o que seu xará de 1865 sabia sobre o uso de ossos de animais e plantas para reconstituir ambientes passados. É evidente que o vitoriano Lubbock sabia que alguns animais forneciam clara indicação de clima frio, c chegou até a apontar o lêmingue como uma espécie particularmente reveladora, quando o encontrou em depósitos de cavernas ou fluviais. Não fez menção alguma a grãos de pólen, mas disse que os pântanos de turfa na Dinamarca muitas vezes têm camadas de pinheiro perto da base, seguidas por carvalho e salgueiro — árvores que julgou terem crescido em volta da margem e tombado, "Para uma espécie de árvore assim deslocar outra", escreveu, "e por sua vez ser
suplantada por uma terceira, seria necessário um grande período de tempo, mas, por enquanto, não temos meios de calcular." Em outras partes, o vitoriano John Lubbock fora igualmente cauteloso em relação a estimativas de temperaturas passadas. Ao comentar a proposta de um certo Sr. Prestwich, de que as temperaturas haviam outrora chegado a mais de 29ºC abaixo de zero, escreveu: "Dificilmente estamos em condições de avaliar com qualquer grau de probabilidade a verdadeira extensão da mudança ocorrida." Como a datação por radiocarbono, tão útil para estabelecer o lapso de tempo entre um e outro tipo de vegetação, a paleontomologia — estudo de besouros e outros insetos de depósitos antigos — ainda não fora criada. Quando não lê, o moderno John Lubbock fica alerta às pessoas, e por sua vez é vigiado por animais na tundra. Ao atravessar o terreno congelado, vê uma coruja branca real empoleirada numa moita virar a cabeça para fixá-lo em seu olhar. Uma lebre-do-ártico ergue-se então e faz o mesmo. Mais um momento, e a tensão se quebra — a coruja silenciosamente deixa seu poleiro e mergulha baixo sobre o mato, a lebre afunda de novo e some de vista. Lubbock segue andando. A não mais que um dia de caminhada das geleiras, chega a outro desfiladeiro calcário, hoje conhecido como Creswell Crags. É o amanhecer de um dia de Inverno em 12.700 a.C., e ele está de pé na borda do penhasco sul, olhando embaixo os pinheiros e salgueiros que encontraram abrigo na garganta. Os lados são salpicados de fissuras e cavernas. Fiapos de fumaça serpeiam por entre as árvores; remontando à sua origem, Lubbock localiza uma fogueira que fumega na boca de uma caverna. Um grito atrai seu olhar para um homem e um garoto que entram na garganta. Vestidos de peles, cada um traz duas lebres brancas como a neve jogadas nos ombros; o vigor nos passos sugere que estão satisfeitos com a caçada. Lubbock os vê subir a encosta coberta de seixos em direção à caverna e jogar suas presas perto da fogueira. Mulheres e crianças surgem excitadas de dentro da caverna; admiram as lebres, acariciando o pêlo e beliscando as coxas dos animaizinhos para sentir a carne. Depois que desceu o penhasco pouco profundo, Lubbock transpôs o desfiladeiro e juntou-se a eles perto da fogueira, uma lâmina de pedra já removera as patas frontais e fendera a barriga da lebre maior. As patas frontais são removidas e a pele é arrancada para trás, para ser retirada pela
cabeça do animal. Alguns minutos depois, a carcaça está num espeto sobre o fogo, a pele pendurada com as outras lebres dentro da caverna. Uma vez assada, a lebre é cortada em postas que serão divididas entre todos os presentes — exceto, claro, John Lubbock. Contudo, ele consegue comer uns restinhos, que proporcionam um desjejum profundamente satisfatório. Depois que todos os ossos foram mastigados e estão bem limpos, são reunidos e enterrados num poço raso na entrada da caverna; se deixados expostos, iriam atrair hienas e raposas que se alimentam de carniça e restos de animais. Lubbock permanece com essas pessoas durante os dias seguintes, na expectativa de uma oportunidade de caça graúda — uma das renas, cavalos e até mamutes que ele viu enquanto viajava para o norte. Mas não ocorrem essas caças, pois as lebres são a única presa que os homens trazem. E assim, em vez de aprender como matar feras poderosas, Lubbock adquire algumas práticas de sobrevivência menos másculas, porém muito mais importantes: como extrair músculos de uma lebre para usá-los como fio de costura, transformar os ossos das patas em sovelas e agulhas, fazer meias, luvas, regalos e revestimento de casaco com a pele. Uma noite ele segue um homem e um jovem até um denso bosque de salgueiros enfezados onde se sabe que as lebres se alimentam. O homem inspeciona as folhas mastigadas e os talos de mato quebrados pelas lebres deitadas. Parte um galho, desfolha-o e enterra-o no chão. Amarra então nele um laço que é posto no lugar exato onde desconfia que vai ocorrer o próximo período de alimentação. Ao amanhecer, a dupla retorna e encontra uma lustrosa lebre branca capturada no laço corrediço, estendida exausta de sua luta, mas ainda viva. O homem suspende-a delicadamente, acaricia seu pêlo e sussurra-lhe palavras amáveis no ouvido. Depois quebra-lhe o pescoço. Lubbock deixa o que virá a ser conhecido como a Caverna de Robin Hood em Creswell Crags. Ruma para leste; aguarda-o uma jornada por baixadas cobertas de tundra, que o levará pelas colinas suavemente onduladas e os vales de uma terra que não mais existe — Doggerland, hoje submersa pelas águas do mar do Norte. Além dela, chegará no norte da Alemanha, e ali se realizará seu desejo de ver em ação caçadores da era do gelo com caças maiores. Creswell Crags encontra-se hoje no meio de uma decadente conurbação
industrial, paisagem que não podia deixar de ser mais diferente da beleza da tundra glacial. A garganta não tem mais de 100 metros de comprimento e 20 de largura; suas cavernas ostentam nomes maravilhosos: Caverna de Robin Hood, Salão de Mãe Grundy, Caverna do Buraco de Alfinete. Outrora eram cheias de sedimentos contendo os restos de animais que viveram e morreram na tundra. Lobos, hienas, raposas e ursos usavam-nas como covis, arrastando para casa os restos de suas presas: rena, cavalo, veado-vermelho, lêmingues e uma ampla série de pássaros. Mamíferos menores, morcegos e corujas também tinham vivido e morrido dentro dessas fragas, tornando-as um precioso tesouro para os que desejam reconstituir comunidades animais do mundo antigo. Na Caverna Gough, as primeiras escavações em Creswell ocorreram em fins do século XIX, sob o comando do Reverendo J. Magens Mello, e depois continuaram periodicamente até hoje. Em 1977, John Campbell sintetizou todas as datas que se tinham acumulado e atribuiu a presença de ossos de animais a atividades humanas, sobretudo das pessoas que chegaram aos rochedos nos últimos anos da era glacial. Segundo ele, esses pioneiros do norte não apenas caçavam rena e cavalo, mas também matavam mamute e rinoceronte. Estudos recentes e meticulosos, porém, identificaram quais ossos trazem as marcas de corte reveladoras de instrumentos de pedra e quais de roedura de dentes carnívoros. Esse trabalho reduziu a atividade humana à tarefa mais modesta de pegar lebres-do-ártico com armadilhas. Todos os ossos com marca de cortes foram datados de um estreito período de tempo em torno de 12.700 a.C. — com datas de radiocarbono tão semelhantes às da Caverna de Gough que podemos estar tratando com o mesmo período. Todos os ossos com marcas de corte podem nos dizer mais que apenas o que outrora comiam as pessoas e quais animais viviam antes na Europa da era do gelo: podem nos dizer ainda exatamente quando as pessoas começaram a espalhar-se pelo norte, vindas de seus refúgios no sul. Os instrumentos em si são pouco úteis — feitos de pedra, falta-lhes o essencial carbono a partir do qual se obterá uma data exata. Em conseqüência, os arqueólogos dependem do estabelecimento da idade dos ossos de animais encontrados juntos com os artefatos, e depois supor que cada um seja contemporâneo do outro. Lamentavelmente, muitas vezes
não é o que ocorre. Como aconteceu em Creswell Crags, às vezes os ossos animais são engastados nos sedimentos de cavernas provenientes de várias fontes e depois misturados ainda mais. Os instrumentos de pedra podem ficar embaralhados com esses ossos. Portanto, quando se obtém uma data de radiocarbono, digamos, do osso da pata de uma rena encontrado junto a uma ponta-de-lança, essa data não necessariamente nos diz quando se perdeu ou jogou fora a ponta-de-lança na caverna. Poderia nos dizer apenas que uma hiena usou a caverna como seu covil vários séculos ou até milênios antes ou após a presença humana. O vitoriano John Lubbock, escrevendo na década de 1860, estava bem a par desse problema. Na verdade, em Tempos pré-históricos, usou marcas de corte para contestar afirmações de um certo Monsieur Desnoyers, de que os ossos de animais extintos tinham jazido em cavernas por milhares de anos antes do surgimento do homem, os restos sendo simplesmente misturados. A associação entre artefatos de pedra e ossos de mamute, urso e rinoceronte peludo das cavernas foi crucial para os que defendiam uma idade da antigüidade humana maior que os poucos mil anos abarcados pela Bíblia. O vitoriano John Lubbock fez exatamente o que faria qualquer arqueólogo moderno: procurou marcas de corte nos ossos e forneceu exemplos de leão, rinocerontes peludos e renas das cavernas. Na verdade, antecipou-se a quase todas as técnicas empregadas pelos arqueólogos atuais. Discutiu o impacto da roedura e do consumo de carniça e restos por cachorros nas coleções de ossos que os arqueólogos tem de estudar, utilizou diferentes graus de fragmentação de esqueleto para avaliar as datas de enterro, e avaliou as estações nas quais a caça ocorrera pelos animais presentes e o conhecimento do comportamento de suas modernas contrapartes. Hoje, quando não se questiona mais a idade da antigüidade humana, os ossos marcados de cortes continuam sendo igualmente essenciais para o estudo arqueológico. Proporcionam espécimes ideais para a datação por radiocarbono, pois os ossos com marcas de cortes são, por definição, contemporâneos da presença humana. A possibilidade de datar o que são muitas vezes fragmentos só surgiu com o advento de uma nova técnica de datação por radiocarbono, chamada "acelerador de espectrometria de massa", ou EMA na sigla inglesa. Pode datar amostras de não mais que
1/1000mo do tamanho requerido pela técnica mais antiga "convencional", como hoje a descrevem. Em 1997, Rupert Housley e seus colegas publicaram, os resultados de mais de uma centena de novas datas de radiocarbono EMA, obtidas de 45 sítios distribuídos ao longo do norte da Europa, desde o leste da Alemanha às Ilhas Britânicas. Housley é um dos principais especialistas em datação por radiocarbono e selecionou minuciosamente espécimes que forneceram provas inequívocas da presença humana. Pela primeira vez, os arqueólogos tiveram a oportunidade de formar uma compreensão exata de quando e como os povos se expandiram de seu refúgio na era glacial no sudoeste europeu para o norte. Os limites norte daquele refúgio eram os vales que atuam como tributários do Loire. Só depois de 15.000 a.C. o povoamento avançou mais para o norte, a princípio para o Alto Reno, e depois, por volta de 14.500 a.C., para o Médio Reno, a Bélgica e o sul da Alemanha. Isso ocorreu após a migração de matos e arbustos para o norte, seguidos de perto por rebanhos de rena e cavalos ávidos por expandirem seu raio. Sabemos que os pioneiros da era do gelo se deslocaram à velocidade média de 1 quilômetro por ano, e em mais 400 anos já haviam criado assentamentos no norte da França, norte da Alemanha e Dinamarca. Cerca de 12.700 a.C., os primeiros povos retornaram à Grã-Bretanha após uma ausência de quase 10 mil anos. Não surpreende que esse grande movimento final para o norte coincida com o período quente do Bolling. Nessa época, a Grã-Bretanha era simplesmente o canto mais noroeste da Europa — mais vários milhares de anos teriam de passar-se para que se tornasse uma ilha. A recolonização de qualquer região específica foi um processo em dois estágios, Primeiro chegaram os pioneiros. Nesta fase, os sítios arqueológicos são pequenos, em geral não mais que um pequeno conjunto de artefatos de pedra. Esses sítios eram muito provavelmente acampamentos de pernoite de grupos de caça que exploravam terras desprovidas de qualquer assentamento humano durante o período de glaciação. É possível que os pioneiros tenham viajado para o norte no verão, retornando aos acampamentos-base no sul para contar o que tinham visto. O conhecimento da topografia, a distribuição de animais e plantas e as fontes de matérias-primas tiveram de ser adquiridas aos poucos por esses pioneiros, para poderem criar mapas mentais do novo território. Este
deve ter sido o desafio. Como o tempo e o clima continuavam muito variáveis, corpos de conhecimento estabelecidos numa geração de exploradores talvez tivessem sido de pouco valor para a seguinte. A fase de pioneirismo durou cerca de 500 anos, ou vinte gerações. Só após a realização disso, ocorreu de fato uma mudança no assentamento humano — inaugurando o que Housley e seus colegas chamam de a fase residencial. Nesse estágio, famílias e outros grupos mudaram-se de seus acampamentos-base para morar permanentemente no norte, explorando os rebanhos de rena e cavalos que se tinham tornado estáveis nas tundras. Por que essas pessoas foram explorar as terras do norte e depois instalaram residência lá? Os esporos e sementes de plantas foram transportados pelo vento; os Insetos e animais que seguiram em sua esteira não tiveram condições de resistir ao imperativo ecológico de reproduzir-se e explorar novos nichos assim que tais oportunidades se apresentaram. Seriam os caçadores da era do gelo tão indefesamente impelidos quanto os besouros, roedores e gamos? Quando chegou o degelo, teriam as populações humanas simplesmente inchado como os rios até serem obrigadas a encontrar novas fontes de comida? Não há a menor dúvida de que as populações humanas de fato se expandiram. O brilhantismo das pinturas das cavernas da era glacial esconde a amarga verdade de que a vida no LGM fora assustadoramente difícil. O inverno teria sido fatal para muitos dos bebês, crianças e enfermos, pois o terreno congelado e as tempestades de neve destruíam o suprimento de comida e a saúde humana. Exatamente o que acontecia aos corpos, não sabemos, pois não havia cemitérios, e os túmulos individuais são poucos e muito distantes entre si. Mesmo com um ligeiro aumento das temperaturas médias, as populações teriam crescido, talvez rápido: bebês sobrevivendo até a infância em vez de morrer de frio e fome; mulheres dando à luz um terceiro e quarto filhos; os idosos sobrevivendo ao inverno e contando histórias à nova geração de caçadores da era do gelo. Mas outros fatores além do aumento em número talvez tenham impelido as pessoas para as terras do norte. É possível que ambiciosos rapazes e moças partissem em busca de novos recursos, aqueles que proporcionavam prestígio e artigos de troca, além de comida e bebida. Daí em diante, com a retirada das camadas de gelo, aventureiros talvez os
tivessem seguido, em busca do marfim dos mamutes, peles luxuosas, conchas e pedras exóticas. Tensões sociais podem ter sido o incentivo a que outros rumassem para o norte. Quando novas terras se tornaram acessíveis, surgiu a oportunidade de rapazes e moças estabelecerem comunidades só deles, em vez de continuar sob a autoridade dos mais velhos e de tradições que não mais lhes agradavam. Duvido que qualquer uma ou todas essas explicações sejam razoavelmente suficientes para explicar a grande jornada para o norte após o desaparecimento do gelo. Precisa-se invocar outra força motivadora, uma força que vamos encontrar por trás da disseminação humana em todo o mundo quando as viagens de Lubbock o levam a atravessar as Américas, Austrália, Ásia e África. É a curiosidade do espírito humano: o instinto de explorar novas terras simplesmente pela própria exploração.
14 Com Caçadores de Renas Economia, tecnologia e sociedade, 12.700 – 9.600 a.C. Silêncio — a não ser pela ritmada e profunda respiração de caçadores ansiosos e as retumbantes batidas de seus corações cheios de adrenalina. Alguns deles acocoram-se atrás de pedras; outros escondem-se entre moitas de ramas com a aproximação da manada. John Lubbock deita-se colado no chão, disposto a observar a matança anual de renas no vale Ahrensburg, de Schleswig-Holstein. Por entre os talos das plantas, vê uma trilha serpeando no meio de dois laguinhos no fundo do vale. As renas usam essa rota todo outono, ao fazerem sua migração anual em busca de novo pasto no norte. Um vento gelado leva o cheiro dos caçadores, quando a terra se põe a vibrar sob o tropel de uma multidão de cascos. A emboscada está montada. O grupo da frente das renas passa pelas pedras e afunila-se ao longo da estreita trilha. O sinal é dado e as lanças atiradas, atingindo os animais por trás. Outras lanças chegam do outro lado do vale — as condutoras são encurraladas. Aterrorizadas, fogem para o lago e nadam pela vida. Após poucos segundos, oito ou nove animais jazem no chão; alguns estremecem antes do golpe final na cabeça. Umas poucas carcaças flutuam no lago; são deixadas para afundar, pois as da terra fornecerão mais que suficiente comida, couro e chifres. As lanças são cuidadosamente recolhidas — não tanto pelas pontas quanto pelos cabos de madeira, preciosos na paisagem quase sem árvores do norte da Europa. Alfred Rust escavou o sítio Meiendorf, no vale Ahrensburg, na década de 1930. Nos lamacentos sedimentos do fundo do vale, encontrou milhares de ossos de rena e um grande número de pontas de pedra outrora presas nas lanças. Tinham sido letais armas de caça, mais provavelmente impelidas com a ajuda de um atlatl — vara que formava um gancho em volta da ponta da lança — para imprimir força extra. Essas armas datam de 12.600 a.C., correspondendo quase ao fim do
período que Edouard Lartet batizou como "Lâge du renne". O arqueólogo francês Lartet, tão admirado pelo vitoriano John Lubbock, ficara impressionado com as enormes quantidades de ossos de renas nas grutas do sul da França. Sabemos hoje que esses ossos vinham sendo acumulados pelo menos desde 30.000 a.C. Mas o arqueólogo não tinha qualquer idéia da idade disso e concebeu "Lâge du renne" como a idade seguinte a "Lâge du grand ours des cavernes" (urso das cavernas) e "L'âge de l’éléphant et du rhinocéros", mas anterior a "L’âge de l’aurochs" (gado selvagem). Dividir o que o vitoriano John Lubbock chamou de Paleolítico em quatro fases desse tipo era uma idéia inovadora em 1865, mas sujeita a algumas críticas em Tempos pré-históricos, devido a sobreposições das espécies denominadas. Das quatro fases, L’âge du renne persistiu no pensamento arqueológico por muito mais tempo que as outras, porque muitas comunidades da era do gelo dependiam de fato da rena para seu modo de vida. Depois que o gelo se dissolveu, a rena logo passou a usar o vale Ahrensburg como uma importante rota de travessia em suas migrações anuais da tundra desarborizada para os pastos invernais no sul da Suécia. A paisagem da tundra era muito mais amena que a que hoje conhecemos: as temperaturas de verão alcançavam 13°C e caíam a apenas menos 5°C no inverno. Quando os pioneiros chegaram pela primeira vez à região, devem ter visto com assombro os rebanhos de renas passarem pelo estreito vale — era uma oportunidade de caça de primeira. Alguns dos sítios que Rust encontrou, como Meindorf, datavam do Bolling, e outros eram 2 mil anos mais novos, encaixando-se no período do Jovem Dryas. A essa altura, as temperaturas subárticas haviam retornado ao norte da Alemanha, embora a tundra agora sustentasse bosques dispersos de pinheiro e bétula. O mais famoso sítio do Jovem Dryas descoberto por Rust é o Stellmoor, localizado na borda leste do vale. Ali se recuperaram mais de 18 mil ossos e chifres de rena, junto com um grande número de instrumentos de sílex e mais de uma centena de hastes de flecha de pinheiro, preservadas nos sedimentos inundados. Fora, evidentemente, um sítio de matança em massa, com grande probabilidade de tornar o lago vermelho de sangue. O arqueólogo alemão Bodil Bratlund reconstituiu a cena com um meticuloso estudo dos ossos de rena das coleções de Rust, concentrando-se naqueles em que pontas de
flecha de sílex continuavam encravadas. Identificou quais partes do corpo tinham sido atingidas e a direção de onde tinham vindo as flechas. Os caçadores atiraram as primeiras flechas horizontalmente nas condutoras dos rebanhos, mirando o coração para matar logo. As condutoras fugiam para o lago, aterrorizadas e nadando para salvar a vida — assim como suas ancestrais haviam feito quando os homens armados de lança de Meiendorf atacavam. Outras flechas se seguiam, pelas costas e por cima — encontraram-se pontas de flecha de sílex enterradas em omoplatas e na nuca — mas muitas erravam visivelmente o alvo e afundavam na lama. Depois de as carcaças serem arrastadas para a margem e esquartejadas, é provável que tivesse banquete entre os grupos que se tinham reunido para a matança anual. Os caçadores de Stellmoor mataram gamos em escala muito maior que os de Meiendorf. Sua tecnologia era mais eficaz: as lanças haviam sido substituídas por arcos e flechas com as típicas pontas triangulares de encaixe. Na verdade, os arqueólogos hoje as chamam de pontas "ahrensburgianas", e as encontram em todo o norte da Europa durante o Jovem Dryas. Com toda probabilidade, foram uma resposta criativa à severidade do clima e constituíram um salto à frente em tecnologia. Até agora não se encontraram os sítios de acampamento onde os caçadores de Meiendorf e Stellmoor faziam seus atatls, flechas de pinheiro e planejavam as emboscadas. Cerca de mil quilômetros ao sul, porém, na bacia de Paris — a área cercada pelas montanhas das Ardenas no noroeste e as Vosges no leste, o Morvan no sudoeste e o Maciço Central no sul — dá-se o contrário. Mais de cinqüenta sítios foram encontrados, a maioria consistindo apenas de fragmentos de artefatos de sílex — tendo-se quaisquer materiais como ossos animais e hastes de flechas de madeira decomposto há muito tempo. Três se acham particularmente preservados, Pincevent, Verberie e Etiolles, cada um ocupado durante o Bolling e seu imediato depois. Foram localizados tão perto de rios, tributários do Sena, que ficavam cobertos de aluvião toda vez que tinha uma enchente — na certa toda primavera. Em conseqüência, os artefatos de pedra, ossos de animais e lareiras foram lacrados e assim preservados exatamente como tinham sido abandonados. Após meticulosa escavação e rigorosos estudos, realizados sobretudo pelas arqueólogas francesas Françoise Audouze e Nicole Pigeot, oferecem vívidos instantâneos da vida dos pioneiros e
colonizadores no noroeste da Europa. John Lubbock avança por um desses instantâneos, após sair de Meiendorf e chegar ao que se tornará o sítio de Verberie, no vale do Oise, na bacia de Paris. Hoje esse sítio se localiza em meio a uma luxuriante paisagem agrícola, mas a visita de Lubbock exigiu uma viagem pela tundra e por entre pinheiros e bétulas em fundos de vale, árvores que ofereciam bemvindo alívio do vento cortante. É uma tarde de outono e a luz já começa a desfazer-se. Ele pára na borda do sítio de acampamento e vê pessoas amontoadas em volta de uma fogueira. Elas não moram em Verberie; usam o sítio apenas por um ou dois dias para esquartejar renas emboscadas e mortas quando tentam transpor a vau do rio próximo. As carcaças já haviam sido trazidas e largadas ali no chão, separadas alguns metros umas das outras. Os caçadores juntaram-se aos amigos em volta da fogueira — um breve descanso antes de começar o trabalho. Lubbock também se senta, ocupando uma boa posição panorâmica, para não perder essa vital e nova lição da vida na era do gelo: como transformar carcaças em postas de rena. Três ou quatro das pessoas — homens e mulheres — começam a cortar rápida e habilmente com seus instrumentos de pedra, interrompendo-se muitas vezes para pegar uma faca de pedra melhor ou um novo cutelo numa pilha de lascas de sílex preparadas quando a caça se achava em andamento. Lubbock concentra-se no grupo mais próximo, ávido por aprender o ofício de caçador. Primeiro retira-se a cabeça do animal e depois todo o corpo é esfolado. Fazem-se cortes em volta de cada casco e ao longo de cada perna. O couro é então quase descolado — embora com muitos puxões e corte de tendões — e estendido com a superfície externa para baixo. A barriga é aberta com uma incisão que vai do esterno até as virilhas; uma massa de vísceras derrama-se pelo chão e é empurrada para um lado. A carcaça é dividida: pernas, pélvis e fatias grossas de costela, junto com o fígado e os rins, são retirados e empilhados sobre o couro. Arrancam-se o coração, pulmões e válvulas bronquiais como uma unidade individual e depois separam-nos — o coração acrescentado à pilha de carne, o resto posto com as tripas. Como penúltimo ato, a face da cabeça decepada é talhada e aberta para expor a base da língua. Corta-se então esta, arrancada depois com um puxão forte. Por fim, retiram-se os chifres,
que logo encimam a pilha de carne e órgãos. Cada grupo trabalha em volta de sua carcaça, virando-a para fazer o corte através do couro ou separar um membro. Duas juntas maiores são transportadas a uns 100 metros de distância e entregues a duas mulheres que tiram fatias de carne. Enquanto trabalham, os açougueiros de vez em quando atiram para trás os ossos com pouca carne ou tutano, juncando o chão com curtos pedaços de vértebras, ossos das pernas e palas inferiores, fragmentos da caixa torácica. Findo o trabalho, faz-se outro intervalo, durante o qual as fatias, junto com rins e fígados, são assadas na fogueira e comidas. Trenós são então carregados com a carne de rena restante, chuta-se terra sobre as cinzas, e os caçadores partem, levando cordas de couro torcido ao cair da tarde. Lubbock continua sentado. Após alguns minutos, chegam lobos para alimentar-se da carniça. Têm um banquete, roendo ossos, lambendo o sangue e devorando avidamente as tripas. Também eles seguem em frente e deixam o sítio de esquartejamento de forma muito semelhante à que os arqueólogos vão encontrar um dia. Vêse uma área de cinzas onde antes ardera a fogueira; um punhado de lascas de sílex e nódulos quebrados onde se prepararam os instrumentos; um conjunto superficial de fragmentos de ossos roídos e instrumentos abandonados. Três áreas circulares vazias demarcam o lugar onde as carcaças foram jogadas e em volta das quais trabalharam os ágeis açougueiros. As migalhas restantes de carne, couro, tendões e tutano nos ossos descartados logo desaparecem, consumidos por pássaros, besouros e larvas. Na primavera, o rio vai transbordar suas margens e depositar finos sedimentos no sítio, deixando imperturbadas apenas as mais minúsculas lascas de sílex e fragmentos de ossos. Lubbock visita outro assentamento, que se tornará Pincevent. Fica exatamente 125 quilômetros ao sul, mas ele toma um caminho sinuoso ao longo dos vales do Oise e do Sena até a sua confluência com o Yonne. Na chegada, vê um grupo de tendas, feitas de armações de macieira cobertas com couro de rena, em volta das quais pessoas cuidam de fogueiras e limpam peles. Estas são bem esticadas e raspadas para retirar gordura e tendões. Erguendo uma aba, ele olha dentro de uma tenda: uma pequena fogueira arde perto de um bebê deitado num berço em forma de canoa, feito de couros de animais. Outra criança, um menino de uns 4 ou 5 anos,
brinca no chão, vestido apenas com um par de perneiras. Do lado de fora, vários dos homens e mulheres mais velhos sentam-se num pequeno grupo, discutindo se já é hora de deixarem Pincevent e voltarem para seus acampamentos de inverno no sul. O outono chega ao fim e quase todas as renas já se foram — restam apenas umas desgarradas dos imensos rebanhos que há muito passaram em sua jornada para o norte. Cinco famílias, cada uma com sua própria lareira construída numa cavidade no terreno, usam o sítio em Pincevent. Chegam alguns homens puxando um trenó cheio de postas de carne de rena e pilhas de chifres — muito parecidos com os que Lubbock vira partir de Verberie. Todos se reúnem em círculo; as postas são divididas e a carne partilhada. Realizase um banquete noturno — o último antes de o acampamento ser abandonado por mais um ano. Quando o grande arqueólogo francês André Leroi-Gourhan escavou Pincevent na década de 1960, encontraram-se muitos ossos fragmentados de rena amontoados em volta das lareiras rebaixadas, onde a carne era assada e comida. Duas décadas depois, o arqueólogo americano James Enloe descobriu que dois fragmentos de diferentes lareiras se encaixavam, mostrando que uma única posta fora dividida. Carcaças inteiras haviam sido divididas dessa maneira — a perna dianteira esquerda de um animal foi encontrada ao lado de uma fogueira, a direita em outra. A partilha de comida ocupava o centro da vida social para os que acampavam em Pincevent — como na verdade ocorreu com todos os caçadores-coletores por toda a história humana. Voltando 40 quilômetros rumo ao norte, ao longo do vale do Sena, Lubbock chega a um assentamento que se tornará conhecido como Etiolles. Ali, tinha lugar uma atividade muito diferente: a manufatura de artefatos. As previsíveis migrações dos rebanhos de rena eram apenas uma das atrações dos vales do norte da França para os caçadores da era glacial. Outra era a existência dos nódulos enormes e de excelente qualidade de sílex, expostos nos afloramentos de greda e calcário das encostas do vale. O sílex era a mais valiosa matéria-prima em toda a Idade da Pedra, porque podia ser trabalhados e transformados em lascas e lâminas alongadas e afiadas como as de barbear, a golpes de martelos de pedra. Das lâminas podia-se fazer uma grande variedade de ferramentas
com delicados desbastes: pontas-de-lanças, raspadeiras para limpar peles, cinzéis ("buris") para gravuras em osso e marfim, sovelas para furar couros. Os pioneiros que se disseminaram pelas terras do norte teriam ficado atentos a fontes de sílex — a Loja de ferragens da era glacial. É provável que as descobertas nos vales do norte da França fossem as melhores que encontraram. Lubbock vê grandes nódulos de sílex chegarem ao sítio em sacos de couro de gamo, após terem sido escavados de sedimentos calcários apenas a 100 metros dali. Alguns são realmente grandes, de 50 quilos e mais de 80 centímetros de comprimento, fazendo parecer de tamanho bastante diminuto os que ele vira trabalhados em Azraq, no Oeste da Ásia. Muitos desses enormes nódulos também são imaculados por dentro, não contendo nada dos fósseis e cristais ocultos, nem fissuras internas causadas pela geada, que corrompe pedras de qualidade inferior. O trabalho parece descontraído, misturado a conversa e comida, mas é extremamente sério: cada golpe é planejado com todo cuidado. Esses excelentes nódulos proporcionam a artesãos experientes uma oportunidade para exibir seus talentos, e a abundância de sílex permite aos novatos trabalharem com pedra nova em vez das descartadas pelos especialistas. Os nódulos — ou núcleos, como os chamam os arqueólogos — são presos entre os joelhos e golpeados com martelos feitos de pedra e chifre. Separam-se finas lascas sistematicamente; a maioria é deixada no chão onde cai, mas algumas são selecionadas e postas de lado. Vão ser transformadas em instrumentos por delicado desbaste da borda, para criar uma forma ou ângulo específicos, ou mais provavelmente usadas como estão — nada pode ser mais afiado. Após pegar ele próprio um nódulo e um martelo de pedra, machucar o polegar e não conseguir separar uma única lasca, Lubbock aprecia mais uma vez o conhecimento e habilidade, exibidos sem esforço. Pelo menos evita ter um dedo sangrando, e portanto algum progresso parece ter sido feito desde seus dias em Azraq. A forma e o tamanho de cada lasca separada dependem exatamente do tipo de martelo usado, de onde o nódulo é golpeado, da rapidez e do ângulo do golpe. Lascas minúsculas são muitas vezes retiradas cinzelando-se ou esmerilhando-se a ponta, antes de o nódulo ser martelado para que a força do golpe não seja desviado. Os quebradores visam a produzir longas e finas "lâminas" de sílex. A produção de lâminas talvez pareça um exercício um tanto leve,
mecânico — e na verdade é assim que os arqueólogos muitas vezes descrevem o trabalho. Mas pela observação da ação em si, a impressão de Lubbock é bem diferente. Os núcleos são apalpados por dedos que apreciam a textura da pedra; o estalo de cada golpe e o tinido das lascas sobre lascas a cair no chão são ouvidos com atenção; o núcleo é o tempo todo virado, inspecionado e examinado, como se fosse uma nova paisagem de caça. Chamar esse trabalho de "quebrar lascas" ou "produção de instrumentos" parece escárnio. Claro que a quebra nem sempre sai como planejada. Alguns nódulos que parecem perfeitos vistos de fora têm falhas internas e são descartados assim que golpeados — produzem um baque surdo em vez do sonoro "tinido" que sai da pedra perfeita. Mais problemáticos são os golpes errados e as decisões enganadas sobre quais lascas retirar a fim de modelar o núcleo. Vendo os quebradores em ação, Lubbock ouve uma ou outra praga quando um núcleo se parte em dois, ou quando uma lasca é só parcialmente separada, deixando um "degrau" no nódulo. Às vezes o núcleo é jogado fora, simplesmente largado na pilha de lascas que se acumularam no chão. Vinte e cinco pilhas desse refugo são escavadas em Etiolles, Do mesmo modo que James Enloe reuniu ossos de animais quebrados em Pincevent, a arqueóloga francesa Nicole Pigeot reagrupou as lascas e nódulos de cada pilha. Reconstituiu as decisões e ações, segundo após segundo, dos quebradores de lascas da era do gelo que trabalharam em Etiolle cerca de 12.500 a.C. Nicole descobriu que os quebradores que se sentavam junto à fogueira eram os mais habilidosos, pois seus nódulos reconstituídos mostravam menos erros. Progressivamente, os menos habilidosos iam trabalhando a distâncias cada vez maiores da lareira, com os mais distantes fazendo tentativas experimentais e canhestras de retirar as lâminas. Em outras partes da Europa — como nos vales dos rios Meuse e Lesse, do sul da Bélgica — o sílex era um bem muito mais precioso e não podia ser desperdiçado pelos mais inexperientes. Esses vales foram provavelmente visitados primeiro pelos caçadores da bacia de Paris, fazendo viagens exploratórias pela Ardenas, por volta de 16.000 a.C. Eles encontraram numerosas cavernas que eram usadas como locais de acampamento; suas fogueiras queimaram a madeira de bosquetes cerrados de amieiros,
aveleiras e nogueiras. Assim como na França e na Alemanha, as renas eram às vezes mortas por emboscadas em "armadilhas" naturais — quando transpunham rios ou atravessavam uma garganta estreita. Outras vezes, os caçadores eram mais oportunistas, espreitando e matando uma ampla variedade de animais, como cavalos selvagens, cabritos monteses, camurças c veados-vermelhos. Os vales dos Meuse e Lesse devem ter sido paisagens produtivas, pois logo após 13.000 a.C. os caçadores-coletores começaram a permanecer ali o ano inteiro. Sabemos disso pelo exame microscópico de linhas de crescimento sazonais nos dentes dos animais que eles matavam. Como fizera Lieberman ao estudar a gazela do sítio Natufiano Inicial em Hayonim, os arqueólogos identificaram se o último período de crescimento dentário das renas mortas na Bélgica da era glacial ocorria no verão ou inverno. Como as proporções eram iguais, tornou-se evidente que os caçadores no sul da Bélgica matavam animais durante o ano todo. Moviam-se entre os vales e talvez também tinham caçado nos platôs intermediários cobertos de tundra. Mas não tinham sílex nas proximidades imediatas; era preciso retirá-lo de fontes 35 quilômetros ao norte ou 65 quilômetros a oeste — uma caminhada de no mínimo alguns dias. Um dos locais de acampamento da era do gelo chama-se hoje Bois Laiterie. É uma pequena caverna situada acima de uma íngreme garganta, e segundo todos os relatos ventosa, fria e escura. Foi usada como acampamento de verão pelos caçadores da época glacial, na certa ocupada por não mais de alguns dias enquanto eles caçavam e pescavam salmão e lúcio nas vizinhanças. Carcaças parcialmente esquartejadas tinham sido levadas para lá; tocara-se uma flauta de osso de pássaro depois perdida ou jogada fora; agulhas de osso indicam que se costuraram roupas. Raposas tomaram-na como residência quando os caçadores partiram, talvez atraídas a princípio pelos detritos deixados para trás. Outros sítios de cavernas, como Chaleux, localizado perto da confluência dos Meuse e Lesse, são muito maiores, voltados para o sul e contendo substanciais lareiras revestidas com lajes de pedra. Parecem ter sido os principais acampamentos base dos quais pequenos grupos tinham partido em diferentes ocupações — caçar, coletar sílex, juntar lenha e pescar. Embora nenhum sítio fosse ocupado o ano todo, os vales dos Meuse e
Lesse ofereciam um território anual para grupos de caçadores-coletores que não mais viajavam de volta para as terras natais de gerações passadas no sul. Exatamente quantas pessoas viveram nesses vales, é quase impossível dizer, mas se toma em geral um total de 500 pessoas como sendo o mínimo para garantir que uma população permaneça viável. Esse número, extraído de modelos matemáticos de grupos dispersos de caçadores-coletores que periodicamente se encontravam para trocar membros, corresponde a caçadores-coletores historicamente documentados da América do Norte e Canadá. Essas reuniões talvez se realizassem apenas uma ou duas vezes por ano; durante quase todo o tempo restante, é provável que os caçadores-coletores dos vales dos Meuse e Lesse vivessem em grupos de entre vinte e cinco e cinqüenta indivíduos, divididos em quatro ou cinco famílias. Embora toda a Europa além do extremo norte fosse habitável em 12.500 a.C., há possibilidade de grande parte dela ter permanecido inteiramente vazia de pessoas. As condições da era do gelo ainda teriam inibido a taxa de crescimento populacional e causado sérias dificuldades durante as estações invernais. Além disso, a dependência das pessoas da rena para comer talvez também tivesse criado problemas, pois pelo que sabemos dos tempos modernos, as populações de rena podem atravessar períodos de aumento e diminuição de crescimento. Isso teria deixado muitos caçadores da era do gelo desesperados por comida e anulado qualquer crescimento populacional alcançado. Nessas condições, era essencial que grupos de pessoas permanecessem em contato uns com os outros — não apenas os da mesma região, mas os que talvez vivessem a centenas, até milhares, de quilômetros de distância. A chave para a sobrevivência era a informação — informação sobre reservas de alimentos, condições ambientais, possíveis parceiros matrimoniais e novas invenções, como os arcos e flechas usados em Stellmoor. Podemos imaginar que as pessoas deviam viajar muitas milhas para visitar amigos e parentes, levando notícias e mexericos, discutindo seus planos futuros, quais animais e plantas tinham visto, quando as aves migratórias tinham alçado vôo e o que fora informado por outros grupos. Os arqueólogos encontraram traços dessas jornadas na esteira de artigos que eram levados e às vezes perdidos ao longo de grandes extensões da Europa. Um primeiro exemplo disso são as conchas fossilizadas levadas para as cavernas, e posteriormente nelas encontradas, do Sul da Bélgica —
objetos sem qualquer valor utilitário, mas que poderiam ter sido utilizados para enfeitar roupas ou usados como adornos. A origem dessas conchas foi reconstituída de dois estratos geológicos, um perto de Paris e o outro no vale do Loire, distâncias de 150 e 350 quilômetros. Viagens semelhantes vinham sendo feitas pelos caçadores-coletores no centro-oeste europeu entre o Elba e o Reno no norte, e os Alpes e o Danúbio no sul. Sílex, quartzo, âmbar e azeviche, além de conchas fossilizadas, foram descobertos em sítios a mais de 100 quilômetros de suas fontes. Essa região da Alemanha da época moderna proporciona uma das melhores percepções sobre as comunidades que tomaram residência permanente em terras que tinham sido deserto polar durante o máximo glacial. A maioria dos Sítios da era do gelo encontrados nas colinas ondulantes e vales fluviais data mais uma vez do período Bolling, época em que suas paisagens continuavam inteiramente descampadas e nas quais cavalos e renas eram a presa existente. Na área do Médio Reno, vários grupos de caçadores parecem ter combinado seus esforços todo outono e inverno para caçar os grandes números de cavalos que se amontoavam nos vales; durante o verão, dispersavam-se para caçar renas nas regiões montanhosas vizinhas. O mais impressionante indício de caçadas comunitárias durante o outono e o inverno são os sítios de Gönnersdorf e Andernach, descobertos diretamente em lados opostos do Médio Reno, datando os dois de entre de 13.000 e 11.000 a.C. É ao primeiro que chega agora Lubbock — após aprimorar suas aptidões em caça e esquartejamento de rena e quebra de sílex, enquanto atravessava a Europa vindo de Etiolles. Ele encontra o povoamento localizado num terraço acima do fundo do vale. Instalou-se o inverno; o céu está escuro e a neve cobre o chão. Aí, Lubbock não encontra uma caverna soturna e úmida como Bois Laiterie, nem um sítio de grutas frágeis como em Pincevent. Em vez disso, há várias habitações circulares de considerável tamanho, de 6 a 8 metros de diâmetro, construídas com sólidas toras de madeira e cobertas com torrões de turla e grossos couros de animais. Um vento gelado sopra pela tundra e a fumaça sobe de cada telhado. De uma casa distante, ouve-se o fraco som de uma música; de uma próxima, conversa humana. Lubbock abaixa-se, afasta os couros pendurados sobre a porta e entra.
Dez ou doze pessoas sentam-se em densas peles estendidas num piso de ardósia. Está quente lá dentro, e os ocupantes, homens e mulheres, têm o peito nu; o ar cheio de fumaça é inebriante, pois ervas aromáticas ardem no fogo. As pessoas circundam uma lareira central, sobre a qual se assam nacos de carne de cavalo, sobre uma grelha de ossos de mamute. Um punhado de conchas passa de mão em mão em volta do círculo. São pequenas conchas tubulares, ocas, branco-creme, de poucos centímetros de comprimento. Algumas têm a superfície lisa, e as outras profundas estrias. Os aldeões não as viram antes; trata-se de dentálios, originários do litoral mediterrâneo e trazidos ao assentamento por um visitante de inverno. Lubbock, claro, viu essas conchas nos pescoços de pessoas em Ain Mallaha — aldeia que prospera nas florestas de carvalho do Crescente Fértil nesse mesmo momento. A noite cai, a carne é comida e velas são acesas. Um dos homens parece mais velho que os demais e usa no pescoço um colar de dentes de raposa perfurados. A noite toda estivera baixando a cabeça perto das ervas fumegantes e inalando profundamente. Agora pega uma pequena placa de ardósia lisa e desenha na superfície, cortando-a com uma ponta de sílex. Enquanto faz isso, as outras pessoas cantam baixinho. Minutos depois, o velho acabou, e a ardósia gravada passa em volta do círculo. Ele desenhou um cavalo; representado-o cuidadosamente e com proporções muito corretas. A ardósia é posta de lado. O velho — um xamã — recomeça: uma profunda inalada da fumaça embriagante, alguns minutos de intensa concentração em meio a mais cantoria, outra placa de ardósia para passar em volta do círculo. Também esta tem a figura de um cavalo. E assim continua por várias horas — o velho acaba desabando no chão. Desde 1954, as escavações realizadas por Gerhard Bosinski em Gönnersdorf têm produzido a maior e mais perfeita coleção de objetos de arte da Europa Central. Encontraram-se mais de 150 placas com gravuras de animais e mulheres. Os cavalos são os representados com mais freqüência, muitas vezes com um naturalismo muito semelhante ao encontrado nas pinturas rupestres nas cavernas de Dordogne. O interesse pelo cavalo talvez não surpreenda, pois era o suprimento alimentar-chave dos habitantes; mas tais argumentos econômicos não explicam por que o mamute também era tão freqüentemente representado com igual nível de naturalismo. Os desenhos demonstram considerável conhecimento
anatômico na detalhada descrição dos olhos, troncos e caudas, embora os mamutes fossem raros ou até totalmente ausentes do Médio Reno nessa época. Retratavam-se ainda pássaros, focas, rinocerontes peludos e leões. Lubbock fica alguns dias em Gönnersdorf. Em cada um deles, grupos de caça masculinos saem em busca de cavalos pelo vale. Enquanto o fazem, ele passa a apreciar outro fator-chave da sociedade da era do gelo, um dos que foram lamentavelmente negligenciados pelos arqueólogos durante todo o último século. Trata-se do fundamental papel das mulheres. Com tão grande ênfase na caça e matança— tarefas cujo empreendimento se supõe seja dos homens, e que criam a maioria dos restos arqueológicos — ignorou-se o trabalho essencial delas. Em Gönnersdorf, Lubbock vê como elas juntam lenha, constroem e mantêm as casas, cuidam das lareiras, preparam as roupas, fazem instrumentos de pedra, madeira e chifre, cozinham a comida e tomam conta das crianças, velhos e enfermos, À noite, são as mulheres que cantam e dançam em volta das fogueiras comunais. São elas que criam e amamentam os recém nascidos. E também vão à caça. Uma noite, Lubbock folheia as páginas de Tempos pré-históricos para descobrir o que seu xará vitoriano escreveu sobre o papel das mulheres na "sociedade selvagem", Muito pouco; elas mal chegam a ser mencionadas. Numa página, ele observa que "a castidade das mulheres não é, como regra geral, muito valorizada entre os selvagens", embora continue afirmando que "não devemos condená-los com excessiva severidade por isso"; em outras partes, comenta em termos casuais que os canibais preferem a carne de mulheres à de homens, e que se prefere como comida as mulheres aos cachorros em tempos de escassez. Portanto, o único papel apreciado pelo vitoriano Lubbock era o de satisfazer a fome, gastronômica e de outro tipo, de seus homens. O John Lubbock moderno constatara ser isso um grande engano; o papel-chave delas em todos os aspectos da sociedade da era glacial talvez fosse o motivo de as mulheres serem os principais temas descritos pelos artistas de Gönnersdorf. Embora jamais exibindo o naturalismo dos animais, essas imagens valiam de representações quase completas, em que se desenham cabeças, corpos, braços e seios, a uma virtual abstração em que uma única linha traça a das costas e das nádegas. Às vezes mostramse mulheres individuais, outras em grupos de três ou quatro, e em alguns casos em filas de dez ou mais, com os corpos parecendo balançar de uma
forma que sugere dança. Numa imagem, uma série de mulheres que parecem caminhar juntas; uma carrega um bebê nas costas, os seios visivelmente túmidos de leite. A mesma forma feminina estilizada é bastante encontrada em sítios por todo o centro-oeste da Europa, às vezes gravada em ardósias e às vezes talhadas em galhadas, mas nunca em tanta profusão quanto em Gönnersdorf. Os arqueólogos — tipicamente homens — têm interpretado por tradição qualquer imagem feminina da era do gelo como um símbolo de fertilidade, descrevendo várias como "estatuetas de Vênus". Mas não há nada manifestamente sexual nas imagens de Gönnersdorf; na verdade, parecem com maior probabilidade celebrar o papel das mulheres mais como mães, zeladoras, provedoras e trabalhadoras na sociedade da era glacial que apenas geradoras de filhos, e muito menos como objetos de desejo sexual. Durante todo o inverno, as pessoas permanecem em Gönnersdorf; novas chegadas aumentam seu número para mais de uma centena. Passam muito tempo contando histórias e discutindo planos para a primavera — onde cada grupo irá para caçar, quais — se algum — ficarão na aldeia. O mesmo ocorre em sítios de acampamento de inverno por todo o centro e o norte da Europa. Mas Isso não durará. Lubbock senta-se no aconchego de uma casa, como antes fizera na estepe perto de Abu Hureyra. Assim como naquela ocasião, seus companheiros não têm o menor conhecimento de que o Jovem Dryas vai chegar daí a pouco. Isso baixará a cortina sobre todo canto e dança no vale do Reno por no mínimo um milênio. Por volta de 10.800 a.C., o clima da Europa deu de fato um brusco mergulho de volta às mais rigorosas condições da era do gelo. Isso dizimou as manadas de cavalo que hibernavam nos vales do centro da Europa e sustentavam grandes grupos de caçadores-coletores. Em vez de ser apenas temporariamente desertada na estação do verão, Gönnersdorf foi abandonada para sempre. Por toda a Europa, a vegetação e as comunidades animais transformaram-se: áreas florestais voltaram a ser tundra estéril. Assim como o povo do Natufiano Inicial no oeste da Ásia, os caçadores da era glacial do norte da Europa tiveram de adaptar-se às novas condições e suas populações foram levadas à beira da extinção. Não tinham quaisquer cereais para cultivar, mas exploravam a continuação das migrações anuais
de rena em todo o vale de Ahrensbur — agora usando arcos e flechas. Com a privilegiada visão em retrospecto da história, sabemos que tempos melhores iriam mais uma vez chegar. Em 9.600 a.C., o drástico aquecimento global eliminou os invernos frios de rachar c proporcionou o mais denso revestimento de florestas que a Europa conheceu por mais de 100 mil anos. E é para essas terras que agora precisamos viajar, saltando o Jovem Dryas. Vamos deixar Lubbock fazer uma jornada para o sul da Europa e retornar ao que hoje são as ilhas Britânicas no noroeste.
15 Em Star Carr Adaptações às primeiras florestas do Holoceno no norte da Europa 9.600 – 8.500 a.C. Visitar Star Carr, em Yorkshire, é visitar um dos sítios arqueológicoschave na Europa. Foi comparado com precisão em importância à caverna pintada de Lascaux e ao túmulo de Tutancâmon. Mas quando chegamos, não há ônibus de turistas poluindo o ar nem guias ávidos por dinheiro. E tampouco centros de patrimônio, lojas de suvenires, postes de sinalização, monumentos ou placas; apenas um quase perfeito recanto do campo inglês. Minha última visita foi numa tranqüila tarde de verão em 1998. Eu encontrara o caminho ao percorrer uma senda não sinalizada e um terreno de fazenda, parando para ver as acrobacias de andorinhas e martinspescadores. Um atalho levou-me por campos com vacas a pastar o mato não ceifado, e ao longo de uma fileira de sebes onde minhas únicas companhias eram borboletas e pintassilgos a esvoaçar entre os cardos roxos. Quando esse atalho se encontrou com o Hertford, um riacho de suave corrente, com cisnes e filhotes a nadar, percebi pelas palavras trocadas com o camponês que havia chegado. O sítio ficava à esquerda, mas não se via qualquer arqueologia, nem muros tombados ou calombos cobertos de mato a indicar uma era passada. Diante de mim abria-se um campo de pasto como qualquer outro; atrás, uma margem de rio onde abelhas trabalhavam em amoras, botões-de-ouro e rosas-de-cão. Olhando-se para leste e oeste, o pasto plano do Vale Pickering estendia-se até onde a vista alcançava, interrompido apenas por ocasionais fossos e pequenas plantações. Ao norte, a terra começava a subir em direção aos pântanos de Yorkshire, e ao sul para as ondulantes colinas descampadas. O ar desprendia um perfume de ulmária; senti-me primeiro tentado a nadar e depois tirar uma soneca. Como podia aquele não assinalado canto de Yorkshire ser sensatamente comparado a Lascaux e Tutancâmon? Sem a menor dúvida, era uma comparação absurda. Mas foi feita por ninguém menos que o falecido Sir
Grahame Clark, Professor da cadeira Disney de Arqueologia da Universidade de Cambridge, Mestre de Peterhouse, Membro da Academia Britânica. Certamente não era um homem precipitado; mas tampouco modesto; e Star Carr era sua preciosa escavação. Assim como o túmulo de Tutancâmon e as pinturas de Lascaux são simbólicos de mundos antigos e desaparecidos, também o é o sítio de Star Carr — o mundo perdido dos caçadores-coletores habitantes de florestas da Europa que viveram no período que os arqueólogos chamam Mesolítico. Esse foi o novo mundo da cultura européia. Um mundo criado pelos descendentes dos caçadores de rena de Stellmoor e das dançarinas de Gönnersdorf, depois que o Jovem Dryas terminou tão de repente quanto começara e as camadas de gelo da Europa acabaram afinal de derreter-se. Há muitas centenas, provavelmente milhares, de sítios mesolíticos na Europa — um registro arqueológico inteiramente diferente daqueles efêmeros traços de povos da era do gelo que tinham chegado antes. Alguns têm túmulos exóticos; outros, impressionantes. Mas Star Carr não tem nenhuma das duas coisas. Então por que é um sítio tão especial? A resposta é simples, Star Carr fica onde o Mesolítico de fato começou. Começou ali, no sentido literal — é um dos mais antigos assentamentos mesolíticos conhecidos em toda a Europa. Começou ali para mim pessoalmente — Star Carr foi o primeiro sítio mesolítico de que tomei conhecimento, e revelou-se fundamental para a minha decisão de tornarme arqueólogo. E começou ali num sentido histórico: antes de Grahame Clark fazer suas escavações de 1941-1951, o período Mesolítico era quase ignorado em comparação com o Paleolítico, que veio antes, e o Neolítico, que a ele se seguiu. Foi o primeiro sítio na Europa, de qualquer período, a ser datado por radiocarbono. Em 1865, o John Lubbock vitoriano não tinha a mínima idéia dessa crucial fase da Pré-História. Escreveu em Tempos pré-históricos: "A partir do cuidadoso estudo dos vestígios que chegaram até nós, parece que a Arqueologia pré-histórica pode ser dividida em quatro grandes épocas." Descrevia em seguida o período Paleolítico — "quando o homem partilhava a posse da Europa com o mamute, o urso das cavernas, o rinoceronte peludo e outros animais extintos"; o período Neolítico — "caracterizado por belas armas e instrumentos feitos de sílex e outros tipos de pedra"; a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Nenhuma menção ao
Mesolítico; simplesmente não existia em 1865. Mais adiante no livro, o vitoriano Lubbock diz que o arqueólogo dinamarquês professor Worsaae queria dividir a idade paleolítica em duas fases. A primeira envolvia implementos de pedra associados a animais extintos, e a segunda referia-se a descobertas feitas no litoral dinamarquês, sobretudo grandes montes de conchas que também continham espinhas de peixe, ossos e artefatos de animais, chamados Kjökkenmöddings (monturos de cozinha, ou depósitos de lixo). Outro arqueólogo dinamarquês, professor Steenstrup, acreditava que os monturos faziam parte da Nova Idade da Pedra, do Neolítico de Lubbock. Após pesar os escassos vestígios dos dois lados, o John Lubbock vitoriano tomou o partido de Steenstrup: embora achasse que os Kjökkenmöddings representavam um período definido da história dinamarquesa, na certa ficava dentro do próprio Neolíüco. Sabemos hoje que Worsaae estava certo e Steenstrup inteiramente errado; o Mesolítico é muito distinto dos períodos Paleolítico e o Neolítico da pré-história européia. Trata-se dos caçadores-coletores do período holocênico na Europa, os que viviam em densas florestas antes da chegada dos primeiros agricultores. Grahame Clark foi pioneiro em estudos mesolíticos na Grã-Bretanha na década de 1930, compilando um catálogo e classificação dos artefatos de pedra do período. Mas só com a escavação de Star Carr seus interesses se voltaram para o estilo de vida e meio ambiente do Mesolítico. Ao fazer isso, apenas alcançava a arqueologia dinamarquesa, que já vinha atacando esses problemas desde que os Kjökkenmöddings foram escavados pela primeira vez na década de 1850 — embora Worsaae e Steenstrup discordassem sobre a idade deles. Naquela pacífica tarde de verão, imaginei a atividade do jovem professor de Cambridge e sua equipe chegando a Star Carr, montando acampamento e começando o trabalho de escavação. Clark escolhera Star Carr depois que se descobriram artefatos de pedra num fosso de drenagem. Acabou sendo uma escolha perspicaz, Na turfa saturada de água daquele campo em Yorkshire, ele encontrou os restos de um acampamento de caçadorescoletores com um grau de preservação sem precedente, não apenas de ossos de animais, mas de instrumentos de chifre e madeira. Nem de perto algum sítio mesolítico da Grã-Bretanha, encontrado antes ou desde então, se aproximou de seu nível de preservação.
Os habitantes do Mesolítico se teriam sentado exatamente onde eu me sentei naquela deliciosa tarde. Mas nas colinas ao norte e ao sul de então faltavam os muros e as casas de fazenda construídas com pedras do campo de Yorkshire; eles viam nesse lado encostas cobertas de floresta de bétula e um espesso matagal de fetos. E à sua frente estendia-se não um pasto, mas um enorme lago, a margem demarcada hoje pelo declive pouco fundo no qual eu cochilara. O lugar de acampamento deles foi uma base de caça nas florestas de bétula e ao longo da beira do lago. O veado-vermelho era sua presa preferida, mas também caçavam javali, cabrito montes, alce e auroque. Coletavam plantas, capturavam patos e mergulhões, e com toda probabilidade pescavam em canoas. Chegavam a Star Carr todo verão, e uma de suas tarefas essenciais era queimar as densas fileiras de juncos que margeavam o lago. No acampamento, conjuntos de instrumentos eram feitos e consertados — novas pontas e farpas encaixadas nas flechas, peles de animais limpas e depois costuradas para roupas, e arpões de Calhadas manufaturados. As galhadas teriam sido reunidas no outono e inverno, escondidas no sítio pronto para essa visita. Talhar os arpões era um ofício ao mesmo tempo de habilidade e laborioso. A galhada era trabalhada com instrumentos de pedra em forma de cinzéis. Cortavam-se sulcos paralelos ao longo da peça, e depois soltava se um segmento plano; este era cortado, modelado e alisado. Alguns preferiam fazer pontas de galhada com várias farpas finas, outros talhavam apenas umas poucas, de forma grosseira; talvez fossem desenhos para capturar diferentes tipos de caça ou apenas experiências, pois ninguém sabia qual desenho era o mais eficaz para caçar. Assim, sentado naquele campo de Yorkshire, tive de imaginar a cena mesolítica: as chamas crepitando pelos juncos secos, olhos marejados pela fumaça, crianças excitadas correndo atrás de aves selvagens, lebres e camundongos. Os juncos que tinham queimado bem, as chamas alcançando os galhos pendentes para que os amentilhos florescessem em vivido laranja, eram levados na brisa e por um momento flutuavam no lago, antes de afundar. Os juncos eram queimados para proporcionar uma vista do outro lado do lago e melhorar o acesso às canoas. A prática também estimulava o crescimento de novos brotos, que permitiriam contar com gamos pastando quando as pessoas retornassem mais uma vez para
caçar nas margens. Em diferentes partes do mundo pré-histórico, nessa data de 9.000 a.C., outros também fomentavam novos brotos — de trigo e cevada, nos campos de Jericó. Naquela noite, as pessoas talvez tivessem dançado c cantado, cheias de carne de gamo e embriagadas com drogas herbais. Eu imaginava algumas vestidas com couros e máscaras de galhada, movendo o corpo sensualmente, como corças, à música de cantos, tambores e flautas de junco. Os dançarinos de repente paravam, farejavam o ar e corriam em pânico; iam ser mortos pelas flechas dos caçadores, que lhes agradeciam e celebravam por renunciar às suas vidas. Imaginei as pessoas partindo no dia seguinte, após dormirem sob as estrelas — algumas encaminhando-se para as colinas, outras viajando de canoa rumo à costa leste. As máscaras de corça foram jogadas fora com os ossos dos animais, o lixo da feitura dos arpões c artefatos de pedra. E ali iam permanecer, logo esquecidas — enterradas sob os juncos mortos que se transformariam em turfa, até sua descoberta mudar nossa compreensão do passado. As escavações de Clark produziram grande parte dos indícios sobre os quais trabalhara minha imaginação. Ele encontrou máscaras de gamo — mas elas também podem ter sido usadas como disfarce de caça em vez de fantasias de dança. Encontrou igualmente várias formas e tamanhos diferentes de pontas de galhada farpadas e restos de plantas comestíveis, embora nenhuma que se soubesse ter propriedades embriagantes. Havia um remo de madeira, mas sem canoa alguma. Clark concluiu as escavações em 1951. Isso, porém, era apenas o início de uma constante reanálise e reavaliação dos indícios de Star Carr que continuam até hoje. Clark julgou que o assentamento fosse um acampamento-base de inverno, devido à grande quantidade de galhadas — coisa presente apenas em animais caçados durante a última parte do ano. Mas quando, em 1985, os arqueozoólogos Peter Rowley-Conwy e Tony Legge reanalisaram os ossos de animais, não encontraram nada que sugerisse ocupação de inverno. Em contraste, havia mais indicações de início do verão, dos quais os dentes de gamo eram os mais reveladores. Examinando que dentes se tinham deteriorado e comparando-os com padrões conhecidos de desenvolvimento dental em gamo moderno, Legge e Rowley-Conwy tiveram certeza de que a maioria dos animais fora morta
entre maio e junho. A queimada de juncos só foi identificada em meados da década de 1990. Obra de Petra Dark, arqueóloga especializada em reconstituição ambiental que é minha colega na Universidade de Reading. Ela tomou novas amostras da turfa da margem e do centro do antigo lago e fez um estudo microscópico admiravelmente detalhado dos grãos de pólen, partículas de carvão e fragmentos vegetais numa sucessão de fatias da espessura de uma lâmina. A primeira destas vinha de uma época anterior àquela em que as pessoas tinham chegado ao Vale Pickering c mostrava que a vegetação fora muito característica das paisagens da era do gelo ervas, capins, salgueiros-do-rio, pinheiro e bétula. Após 9.600 a.C., os grãos de pólen já haviam mudado e incluíam os de alamos e zimbros, e depois seriam dominados pela bétula. Logo após 9.600 a.C., surgiram partículas de carvão na turfa, espalhadas das primeiras fogueiras de acampamento feitas próximo ao lago. Um repentino aumento na quantidade de carvão, junto com fragmentos de junco e amentilhos queimados, indica o início de intensa atividade; uma clareira anual por queimada na vegetação ao lado do lago continuou durante 80 anos. As pessoas então ignoraram o lago por uma ou duas gerações, para retornarem cerca de 8.750 a.C. e continuarem as mesmas atividades de antes durante pelo menos mais outro século. A essa altura, o salgueiro e o choupo invadiam o lago, transformando grande parte dele em "carr" — densas fileiras de árvore em poças d'água. Em 8.500 a.C., a aveleira se apoderara da paisagem, e após um episódio de queimada, as pessoas abandonaram Star Carr e foram caçar e coletar em outro lugar. O lago praticamente desaparecera. Árvores como aveleira, bétula, pinheiro e choupo ressurgiram de seus esconderijos da era do gelo logo após o fim do Jovem Dryas, expandindose rapidamente em extensas áreas florestais e retomando sua marcha para o norte. Uma vez estabelecidas, as novas matas tiveram pouca paz. Pois logo atrás das espécies pioneiras e resistentes vinham as árvores que preferiam condições mais quentes e úmidas, cujas necessidades eram satisfeitas pelo avanço do aquecimento global. Entre elas o carvalho, o olmo, o limoeiro e o amieiro, que sobreviveram nos vales do sul da Europa e cuja disseminação para o norte fora interrompida pelo Jovem Dryas.
À medida que essas espécies viajavam de seus abrigos da era glacial, deixavam atrás uma esteira de grãos de pólen como um registro da viagem. Carvalhos, por exemplo, já eram encontrados por todo Portugal, Espanha, Itália e Grécia quando o Jovem Dryas chegou ao seu repentino fim. Em 8.000 a.C., tinham bordejado a costa oeste da França e alcançado o extremo sudoeste da Grã-Bretanha; cm 6.000 a.C., percorriam todo o continente europeu e as partes mais ao sul da Escandinávia. Em 4.000 a.C., tinham chegado à ponta norte da Escócia e à costa oeste da Noruega. Por essa época, porém, os carvalhos mais ao sul vinham sendo derrubados por camponeses que abriam clareiras para o cultivo de lavouras. O limão fez uma viagem diferente, começando no sudeste, após sobreviver ao grande congelamento no norte da Itália e nos Bálcãs. Foi margeando seu caminho para o leste e centro da Europa, e só chegou ao sudeste da Inglaterra por volta de 6.000 a.C. A aveleira, o olmo e o zimbro fizeram trilhas semelhantes pelo continente. A floresta resultante foi uma rica mistura de espécies, não apenas de árvores, mas de uma variada gama de arbustos e plantas de subsolo, fungos, musgos e liquens. Engoliu toda a Europa. Também os animais tiveram de adaptar-se ou migrar para sobreviver. Alguns não conseguiram. Os mamutes, rinocerontes peludos e gamos gigantes se extinguiram, talvez tocados para o abismo por lanças de ponta de pedra. Outros, como as renas e os alces, sobreviveram mudando-se para o extremo norte ou para as altas montanhas, onde as densas florestas não tinham condições de predominar. Os grandes beneficiários do aquecimento global foram o veado-vermelho e o javali, que logo se tornaram a presa preferida dos caçadores mesolíticos. Enquanto os veadosvermelhos viviam em grandes rebanhos nas tundras e em terras de vegetação sobretudo rasteira do sul da Europa, o cabrito montes e o javali tinham sobrevivido ao LGM e ao Jovem Dryas nos vales abrigados, em meio a mirrados carvalhos e olmos. À medida que iam evoluindo a paisagem e as comunidades animais, também o faziam as vidas das pessoas. Para os caçadores, as mudanças no comportamento animal eram tão importantes quanto as das próprias espécies. Os que tinham acampado em Etiolles e caçado em Meiendorf dependiam dos rebanhos migratórios de renas. Tinham esperado e espreitado o percurso dos animais por trilhas bem batidas, e depois chacinado grandes números em emboscadas, nos vales estreitos ou
confluências de rios. Mas nas novas florestas, o gamo vivia em rebanhos pequenos e dispersos, em grupos familiares e às vezes apenas aos dois ou três. Portanto, a sangrenta matança pela força bruta teve de ser substituída pela astúcia — emboscar animais solitários, atirar flechas através de densa vegetação rasteira, seguir por mais tempo a trilha quando a presa fugia deixando um rastro de sangue. Não surpreende que essas mudanças no ambiente e nas práticas de caça viessem acompanhadas do desenvolvimento de nova tecnologia. As pontas-de-lança e de flechas parrudas foram substituídas por microlitos: pequenas lâminas lascadas de pedra, em geral sílex, que logo se tornaram o mais importante elemento da tecnologia de instrumentos de pedra em toda a Europa. Nesse sentido, o povo europeu chegou à mesma decisão tomada pelo povo kebarano do oeste da Ásia no mínimo 10 mil anos antes — de que fazer pequenas lâminas e lascá-las numa série de formas distintas era o uso mais eficaz de seus recursos de pedra. O que as armas resultantes perdiam em termos de força bruta e capacidade de penetração era muitíssimo compensado por sua diversidade e flexibilidade. Os microlitos eram empregados não apenas como pontas e farpas de flechas, mais também como pontas de brocas e sovelas utilizadas na perfuração de couro, casca de árvore e madeira. Além de dar eficazes lâminas de faca, podiam ser usadas em arpões de três ou mais dentes para fisgar peixe, e introduzidas em placas de madeira para raspar legumes. Proporcionavam uma tecnologia de encaixe e desencaixe — o equivalente da Idade da Pedra ao mais moderno processador de alimentos hoje, com suas peças e empregos aparentemente infindáveis. Nada podia estar mais de acordo com as necessidades do povo mesolítico: assim, surgiram várias oportunidades diferentes para seu uso em qualquer estação, dia ou mesmo viagem de caça — localizações de presa inesperada, encontros casuais de nozes amadurecidas antes do tempo, abrigo para um acampamento de pernoite, uma oportunidade de pesca. Encontram-se em geral os microlitos espalhados no lixo doméstico dos assentamentos. Muito ocasionalmente têm sido achados ainda fixados num cabo de flecha, presos com resina de pinheiro. E mais raro ainda, enterrados nos animais que mataram. Nos carrs dinamarqueses de Vig e Prejlerup, os dois mais ou menos contemporâneos de Star Carr,
escavaram-se esqueletos de auroque quase completos. Haviam sido atacados mas fugido da captura. O espécime de Vig tinha duas pontas de flecha enterradas nas costelas e duas outras lesões nos ossos. Uma delas sarara — o osso começara a crescer em volta do ferimento, mostrando que não era a primeira vez que o bisão-europeu fora atingido e conseguira escapar. A segunda, que não sarara, fora, claro, um dos disparos fatais que inalaram o animal. O bisão de Prejlerup era idêntico; embora se tivessem encontrado pontas de flecha em seu traseiro, é necessário supor que também fora atingido em tecido mole e sangrado até a morte. As duas descobertas criam imagens de caçadores rastejando pelo mato baixo, atacando os machos e depois perseguindo os animais feridos — nos dois casos sem sucesso. Os microlitos talvez tenham sido envolvidos em algumas ações notáveis, mas em si mesmos são dos menos impressionantes e complexos instrumentos pré-históricos, Para encontrar a última palavra em tecnologia do período Mesolítico, precisamos nos voltar não para a pedra, mas para os instrumentos feitos de madeira e fibras vegetais. Pela primeira vez na história européia, elas são razoavelmente abundantes no registro arqueológico; parecem testemunhar uma revolução tecnológica. A presença desses novos artefatos talvez reflita apenas as oportunidades mais amplas à disposição de artesãos e mulheres na exuberante floresta do Mesolítico, ou talvez se deva ao lato de essas pessoas muitas vezes acamparem junto a lagos, deixando seu lixo nas superfícies rasas lamacentas. À medida que a vegetação invasora transformava esses lagos em pântanos de turfa, o lixo ali permanecia, inteiramente saturado de água e portanto resistente à decomposição. Mas embora oportunidade e preservação sejam sem dúvida importantes, desconfio que há outro fator crucial: uma nova canalização de energias criativas para as artes de desbastar, atar, torcer, esculpir e dar nós, do mesmo modo como foram outrora canalizadas para a pintura e escultura. A delícia desses artefatos é que parecem vazar da própria natureza; falam de uma intimidade com o mundo natural hoje perdida, e são o trabalho manual de gente que amava seu ofício. Os arqueólogos encontraram, por exemplo, restos de gaiolas de vime utilizadas para capturar enguias. Algumas eram feitas de galhos de cerejeira e amieiro, entrelaçados com raízes de pinheiro — uma obra de arte, ciência natural e
necessidade prática torcidas e trançadas numa coisa só. Cascas de salgueiro eram trançadas e atadas para fazer redes de pesca, usadas com flutuadores de casca de pinheiro e pesos de pedra. Essas redes eram lançadas de canoas escavadas de troncos de limoeiro e movidas com remos em forma de coração talhados em freixo. Utilizavam-se varas de aveleira para fazer cercasse desviar peixes para armadilhas, e cascas de bétula eram dobradas e costuradas, formando sacolas para carregar lâminas de sílex. Nem toda a manufatura de instrumentos era bem-sucedida. Muitos excelentes artesãos em todo o período Mesolítico sabiam fazer arcos, mas essa arte teve de ser aprendida. Num dos casos, abateu-se um olmo e transformou-se o tronco mais ou menos num arco. Deixou-se a madeira secar e depois completou-se a forma. Mas talvez por inexperiência, ou nós na madeira, o arco se partiu durante o uso e foi quebrado ao meio, na certa partido sobre um joelho por frustração. Receio que a impressão até agora talvez seja de que a dieta do Mesolítico era toda de carne de boi e veado, enguias e peixe grelhado. Não é verdade. Lembrem-se de que estamos lidando com pessoas que vivem em matas vibrantes, cercadas de árvores e plantas próprias não apenas para se esconder ao emboscar a presa, ou cortar, esculpir, torcer e dar nós ao fazer instrumentos. As florestas do Mesolítico proporcionavam um banquete à coleta: nozes, sementes, frutas, folhas, tubérculos, brotos. E eles certamente coletavam, às vezes em enormes quantidades — como se evidencia da Caverna Franchthi, um sítio tão distante de Star Carr quanto permite a Europa. Enquanto gamos eram tocaiados e juncos ardiam no extremo noroeste, os povos mesolíticos a 4 mil quilômetros de distância, no sul da Grécia, coletavam lentilhas, aveia e cevada selvagens; peras, pistachos, amêndoas e nozes. Escavada entre 1967 e 1979 por Thomas W. Jacobsen, da Universidade da Indiana, descobriu-se que a Caverna Franchthi continha um imenso número de sementes nos níveis correspondentes aos povos mesolíticos, sobretudo os que viveram entre 9.500 e 9.000 a.C. Na verdade, ele encontrou mais de vinte e oito mil sementes de vinte e sete diferentes espécies de plantas. Os povos mesolíticos em Franchthi coletaram uma gama de plantas comestíveis semelhante à dos que tinham vivido alguns milhares de anos antes em Ain Mallaha e Hayonim, no
Oeste da Ásia. Talvez as terras costeiras gregas também sustentassem hortas selvagens mantidas com cuidado por caçadores-coletores. De volta ao norte da Europa, as plantas comestíveis essenciais eram avelãs e castanhas-d'água, muitas vezes coletadas em grandes quantidades. Em 1994, eu mesmo encontrei uma das maiores concentrações de lixo jogado fora num monturo mesolítico na colônia Staosnaig, na minúscula ilha de Colonsay, 40 quilômetros ao largo da Escócia — os restos de mais de 100 mil avelãs coletadas e torradas na ilha. Ao partir de Star Carr, pensei mais uma vez em Grahame Clark cavando suas ralas, em Peter Rowley-Conwy e Tony Legge medindo dentes em seu laboratório, e nas infindáveis horas que Petra Dark passara curvada sobre seu microscópio. Um maçarico guinchava enquanto eu percorria o pasto, exatamente como linha guinchado no Mesolítico. Quando me aproximei da fazenda, vi salgueiro, amentilho e bétula crescendo em barrancos úmidos, entremeados de juncos. Parei entre eles por um momento e agachei-me. Um rico aroma de turfa envolveu-me, água que vazava da terra; toquei os juncos e aqueles caçadores mascarados de gamo tornaram a passar dançando e cantando por minha imaginação.
16 Os Últimos dos Pintores das Cavernas Mudança econômica, social e cultural no sul da Europa, 9.600 – 8.500 a.C. A data é 9.500 a.C. Em algum lugar no sul da Europa, o último dos artistas das cavernas da era do gelo está em ação. Ele ou ela mistura pigmentos e pinta numa parede, talvez um cavalo ou um bisão, talvez uma linha pontilhada, ou apenas retoca uma pintura feita muito tempo antes. E assim será: mais de 20 mil anos de pintura rupestre — talvez a mais esplêndida tradição artística que a humanidade já conheceu — terão chegado ao fim. John Lubbock partiu de Gönnersdorf em 11.000 a.C. e viajou para o sul ao longo do Reno, e depois pelas colinas do leste da França, até os vales de calcário de Dordogne. Durante mil anos, viu as paisagens congelarem-se quando chegou o Jovem Dryas — o recuo da floresta e o retorno das renas aos vales do sul e centro da Europa. Mas essas condições não iriam durar: quando Lubbock transpôs o maciço Central, o aquecimento global voltou com a força toda. E assim, em vez de juntar-se aos caçadores vestidos de pele à espreita em tocaia, Lubbock agora caminhava tranqüilamente com os que emboscavam javalis, ajudava a juntar cestos de bolotas e bagas, postava-se em cima de rochas e lanceava salmões a nadar rio acima para a desova. Pech Merle — a caverna onde se pintaram cavalos malhados no LGM — não mais era usada para arte, na verdade nem sequer era mais usada. Sentado próximo à entrada, Lubbock via algumas crianças abrirem caminho arranhando-se por entre sarças, espremerem-se entre pedregulhos e caírem no chão, os joelhos enlameados sangrando. Tinham vindo preparadas com uma tocha de palha. Bateram pedras de sílex, os gravetos chamejaram, e por alguns instantes as paredes da caverna ganharam vida com bisões, cavalos e mamutes. As crianças saíram a correr de terror, deixando a tocha extinguir-se no chão — 10 mil anos teriam de passar até
que os cavalos malhados de Pech Merle voltassem a ser iluminados. Lubbock continuou viajando para o sul e entrou nos sopés dos Pirineus. Ali visitou o que fora um dos grandes locais de encontro da era do gelo: um vasto túnel que varava um penhasco de calcário hoje chamado Mas d'Azil. Um rio fluía ao lado do túnel e pessoas acampavam na margem esquerda. Na direita, viam-se entradas para as cavernas, cujas paredes eram decoradas com pinturas e gravuras. Quando a era glacial estava no auge, as pessoas em geral tinham acampado na margem direita, onde perderam ou abandonaram algumas das mais excelentes gravuras da era do gelo já feitas: imagens de um cavalo relinchando, lépidos cabritos monteses e aves aquáticas com seus pintainhos. Grupos tinham se reunido em Mas d'Azil durante os meses de inverno, muitas vezes vindos de longe e trazendo conchas do mar, peixes marinhos e belas pedras como presentes e artigos de troca. Enfeitavam o corpo com pintura, pingentes e colares; talvez até se tatuassem. Era em Mas d'Azil que realizavam as cerimônias de iniciação, casamentos e rituais. Os arqueólogos descrevemna como um "super-sítio" da era do gelo. Mas quando Lubbock chegou, em 9.000 a.C., o apogeu de Mas d'Azil já passara. Alguns grupos familiares sentavam-se à beira do rio, perto da enorme entrada do túnel a montante, inteiramente desinteressados das paredes pintadas próximas. Lubbock espiou por cima dos ombros deles, à espera de ver belas gravuras de animal em criação; mas eles apenas estripavam peixes fisgados com pequenos arpões de galhada simples e chatos. Todos, exceto um homem, que na Verdade fazia uma certa arte. Mas isso não envolvia mais que toscas pinceladas em seixos. Alguns recebiam só uma gota de tinta, outros duas ou três, de vez em quando alguns mais. Algumas gotas eram vermelhas, outras pretas, algumas redondas e outras listradas. O rio Arize continua correndo ao lado do túnel em Mas d'Azil, agora junto à D119, que vai de Pamiers a Saint-Girons, tendo a construção da estrada desunido parte da arqueologia na margem direita. Como Star Carr, Mas d'Azil é um sítio ao qual todo aquele com pretensões a arqueólogo precisa ir como peregrino, devido não só a suas notáveis obras de arte da era do gelo, mas também ao seu papel crucial na história da arqueologia. Minha própria visita foi mais de duas décadas antes, quando eu apenas começava meus estudos universitários, e lenho lembranças muito mais fortes de mim
mesmo deitado à gloriosa luz do sol fora do túnel, com uma garrafa de vinho e minha namorada, do que de tudo o que vira dentro da gruta. Além disso, na época eu não sabia da importância histórica de Mas d'Azil: foi ali que, em 1887, o grande arqueólogo francês Edouard Plette encontrou material ligando as Antiga e Nova Idades da Pedra — o Paleolítico e o Neolítico. Ele e suas últimas escavações revelaram uma admirável gama de objetos de arte e detritos paleolíticos: artefatos de pedra, arpões, ossos de rena, bisão e veado-vemelho. A maioria datava dos poucos milênios da era do gelo. Mas em cima desse material tinha camadas contendo seixos pintados, pequenos arpões ( halos e novos tipos de instrumentos de pedra que Piette designou como "cultura aziliana", o que é agora reconhecido como o Mesolítico em grande parte de todo o sul da Europa. Em 1887, a autenticidade dos seixos pintados foi questionada pelo establishment acadêmico. Naquela época, os únicos exemplos conhecidos da arte do início pré-histórico eram as pinturas na Caverna de Altamira, descobertas em 1879. A maioria dos arqueólogos franceses ainda era virulentamente contrária à idéia de que aquelas pinturas pudessem ter sido feitas por caçadores-coletores — selvagens — da era glacial. Piette, porém, jamais tivera dúvida alguma. Por volta de fins do século, viu-se justificado: outras descobertas tornaram inevitável a aceitação das pinturas de Altamira e dos seixos de Mas d'Azil. Nas escavações de Piette e outras posteriores de Mas d'Azil, encontraram-se mais de 1.500 pedras pintadas, e pelo menos outras quinhentas são conhecidas de outros sítios na França, Espanha e Itália. Embora talvez falte a estas a beleza da arte da era do gelo, são em tudo igualmente misteriosas, ou até mais. Como toda a arte do Mesolítico, a de Mas d’Azil é sutil e complexa, e conservou seus segredos bem guardados. Um estudo do arqueólogo francês Claude Couraud mostrou que, em vez de aleatoriamente aplicadas, as gotas de tinta com toda probabilidade constituíam um código simbólico: formas e tamanhos específicos haviam sido escolhidos; determinadas combinações e números de diferentes motivos preferidos. Couraud identificou 16 símbolos diferentes, mas das possíveis 246 combinações binárias, apenas 41 eram sempre usadas. Números de pontos entre 1 e 4 correspondiam a 85% das pedras, e dois pontos a 44%. Nos números mais altos, parece ter tido uma preferência pelos entre 21 e 29. Ele sugere que esses números talvez se referissem a
fases lunares, mas nem Couraud nem qualquer outro arqueólogo conseguiu ler as mensagens nas pedrinhas pintadas de Mas d’Azil. De Mas d'Azil, Lubbock rumou a oeste, pelas paisagens florestais ondulantes que margeavam os Pirineus, percorreu rios a escachoar águas derretidas das geleiras nas montanhas que não mais seguravam seu gelo. No norte da Espanha, visitou pessoas acampadas ao longo de extensos estuários que dividiam a planície costeira. Como em outros lugares da Europa do Mesolítico, e na verdade do mundo, esses caçadores-coletores tinham sido atraídos para os estuários pela abundância e diversidade de comidas selvagens que ali se encontravam. Sua fonte última está nos detritos — matéria orgânica decomposta que chega nos rios de água doce por um lado, e do mar pelo outro. Isso fornece comida para uma legião de pequenas criaturas como camarões e caramujos, que por sua vez fornecem rica escolha para caranguejos, peixes maiores e pássaros, junto com mamíferos como lontras e focas. As aves migratórias preferem os estuários, e sua chegada sempre coincide com a prosperidade alimentar da estação de desova. Portanto, não surpreende que os caçadores-coletores fossem atraídos para os estuários — para caçar e pescar, catar mariscos e camarões, pegar pássaros e seus ovos. Apesar dessa prosperidade, as pessoas do norte da Espanha em 9.000 a.C. saíam regularmente para caçar veado-vermelho e javali nos sopés das montanhas a alguns quilômetros do litoral. Às vezes, continuavam pelos penhascos, rochedos e picos adentro, à procura de cabritos monteses. Lubbock também fez uma incursão ao interior, não para caçar, mas visitar a grande caverna pintada de Altamira. Após avançar a todo custo por entre os galhos emaranhados que tapavam sua entrada, transpôs enormes teias de aranha para chegar à câmara dos bisões pintados por artistas da era glacial, em 15.000 a.C. Embora muito escuro do lado de dentro, Lubbock agora vê o grande panorama de bisões — a Capela Sistina da pré-história, como seria mais tarde descrita. Mas seu apogeu já passara; agora só morcegos e corujas iam e vinham, e a própria caverna não abrigava mais que aranhas, besouros e camundongos. Lubbock perguntava-se se os que viviam nas matas em volta ao menos sabiam que a caverna estava ali. Com esse pensamento, continuou sua jornada para oeste por mais 25 quilômetros,
até chegar a outra caverna, muito menor mas evidentemente ainda em uso: ali, detritos espalhavam-se por todo o piso e um fedorento monte de conchas de molusco. Acomodou-se nas sombras, esperando a volta dos ocupantes. Essa caverna é hoje conhecida como La Riera, e embora desprovida de obras de artes espetaculares, sua escavação nos proporcionou a maior visão de como os estilos de vida humana no sul da Europa mudaram quando a era glacial chegou ao fim. Talvez mais que qualquer outro sítio individual, La Riera ajuda-nos a entender por que a tradição de cavernas pintadas e animais esculpidos em marfim e osso tiveram um fim súbito. La Riera foi descoberta em 1916 d.C. por Ricardo Duque de Estrada y Martínez de Morentin, Conde de La Vega del Stella. Já estabelecido como um pioneiro da arqueologia espanhola, ele trabalhava com base num palpite — que em algum lugar, numa floresta fechada entre as cidades de Santander e Oviedo, ia descobrir a entrada de uma caverna. Descobriu-se uma fenda que se tornou uma passagem quase vertical e estreita. Ele passou espremendo-se e entrou pelos fundos de uma pequena câmara escura, vendo-se bem atrás de um imenso monte de conchas de lapa e litorina que bloqueavam a entrada da própria caverna — um monte de detritos do Mesolítico. Em seguida a essa descoberta, o conde escavou La Riera e descobriu que o monte de conchas tapava várias camadas de ocupação que remontavam às profundezas da era glacial e além. Quando terminou, a caverna sofreu o destino de tantos sítios arqueológicos — saqueada por caçadores de tesouro e cavada por camponeses que queriam o rico sedimento de conchas para fertilizar sua terra. La Riera chegou a tornar-se um esconderijo de soldados durante a Guerra Civil Espanhola. O interesse arqueológico voltou em 1968, quando um grupo de pinturas foi encontrado numa parede, e em 1969, quando Geoffrey Clark, da Universidade do Arizona, cavou uma pequena vala para examinar o que restara. Apesar da história do sítio, ele descobriu que ainda havia depósitos intatos dentro da caverna. Entre 1976 e 1982, Clark juntou-se a Lawrence Straus, da Universidade do Novo México, e os dois realizaram uma escavação excelente e muito importante. Encontraram nada menos que trinta camadas de detritos humanos, uma em cima da outra, cobrindo um período de mais de 20 mil
anos. Em sua base, tinha os artefatos de pedra e ossos de animais jogados fora por alguns dos primeiros seres humanos modernos a viver na Espanha 30 mil anos antes. A camada superior dos detritos era a de caçadores-coletores do LGM, que por sua vez fora enterrada pelo lixo dos que viveram durante o aquecimento global até, em 5.500 a.C., a entrada da caverna fica inteiramente bloqueada pela quantidade de detritos humanos. La Riera sempre fora apenas um local de acampamento temporário, usado para visitas curtas, variando de poucos dias a poucas semanas. Em alguns anos, fora usado na primavera, e em outros no verão, outono ou inverno. O meticuloso trabalho de Straus e Clark, junto com o de um exército de especialistas que estudaram suas descobertas, recriou a vida humana adaptada à drástica mudança ambiental, e revelou outro incentivo para um novo modo de vida: uma população em constante crescimento. Em 20.000 a.C., as pessoas que usaram La Riera habitavam uma paisagem em sua maior parte desarborizada. Caçavam íbis e veadovermelho com lanças de ponta de pedra e massacravam rebanhos após encurralá-los na neve espessa ou atrás de cercas de moita cerrada, colocadas em posição para bloquear a passagem nos vales estreitos. Por volta de 15.000 a.C., os ocupantes de La Riera já tinham começado a visitar o litoral, onde catavam lapas, litorinas e ouriços-do-mar, e lanceavam lapas em promontórios rochosos. Em seu retorno a La Riera, teriam percorrido matas de pinheiro e bétulas, visitado bosques cerrados de aveleiras para coletar avelãs e talvez vislumbrar novos ocupantes da floresta como o javali. Ao longo dos 7 mil anos seguintes, o nível do mar em ascensão foi aproximando cada vez mais o litoral da Caverna La Riera — hoje a não mais de 2 quilômetros de distância. Os ocupantes faziam crescente uso de seus produtos e um grande monte de conchas de lapa começou a acumular-se dentro da caverna. A medida que o monte crescia, as próprias lapas iam-se tornando menores, pois a intensidade da coleta ultrapassava sua taxa de crescimento. Os que usavam La Riera continuavam caçando veado-vermelho, mas agora os tocaiavam isolados e usando flechas com ponta de microlitos, em vez das grandes pontas de pedra. Também se caçavam javali e cabrito montes, aves selvagens e outros pássaros. Embora restos de plantas sejam escassos dentro da caverna, a aparência das picaretas de pedra rombudas sugere que se escavavam raízes, enquanto pedras furadas indicam que se
quebravam muitas nozes. Depois que se formou dentro da caverna o último monturo de conchas, espinhas de peixe e ossos de animais, La Riera foi abandonada. Sua entrada ficou oculta por árvores e espinheiros, perdida para a memória humana. Sob o monturo de conchas, uma camada após outra de lixo humano esperavam ser escavadas, Geoff Clark e Lawrence Straus descartam a idéia de que as mudanças alimentares reveladas por esse lixo possam ser inteiramente explicadas pelo nível do mar ascendente e a disseminação da floresta. O aumento gradual na diversidade de material comestível, a intensidade com que se caçavam animais e se coletavam alimentos vegetais e mariscos sugerem a existência de um número cada vez maior de bocas para alimentar. Os ossos de animais escavados de La Riera, e na verdade em sítios por todo o sul da Europa, indicam uma evolução gradual, e não uma revolução, na vida das pessoas que habitaram essa região. O veado-vermelho sempre fora o primeiro alvo dos caçadores, quer os animais vivessem em grandes rebanhos na tundra do LGM ou em grupos dispersos na floresta do Holoceno. A tundra do sul da Europa jamais fora tão desarborizada e varrida pelo vento quanto a do norte; quando as temperaturas subiram e aumentou a precipitação pluvial, a mata simplesmente se alastrou do abrigo dos vales, onde as árvores haviam sobrevivido até ao mais rigoroso dos invernos da era glacial. Javalis e cabritos monteses chegaram com elas, oferecendo competição aos veados-vermelhos e novas oportunidades para os caçadores-coletores agora habitantes das florestas. Embora os que usavam La Riera após 10.000 a.C. seguissem a antiga tradição milenar de caça aos gamos, suas vidas sociais e religiosas tinham mudado além de todo reconhecimento. As pessoas que usaram La Riera no LGM e 15.000 a.C. também tinham viajado até as grandes cavernas pintadas, para cantar, dançar e cultuar suas divindades da era do gelo. Mas as que caçavam javalis e encheram a caverna com um monte de conchas não tinham essas obrigações a cumprir. A tradição de pintar e esculpir animais, sobretudo cavalo e bisão, juntos com símbolos abstratos e figuras humanas, durara mais de 20 mil anos. Estendera-se dos Urais até o sul da Espanha, e produzira inúmeras obras de arte: os bisões pintados de Altamira, os leões de Chauvet, os cavalos de Lascaux, as cabras selvagens de Mas d'Azil. Durante mais de oitocentas
gerações, artistas tinham herdado as mesmas preocupações e as mesmas técnicas. Foi de longe a tradição artística de maior duração de vida conhecida da humanidade, e no entanto quase desapareceu da noite para o dia com o aquecimento global. Teriam as matas fechadas obstruído também a mente das pessoas para a expressão artística? Teria sido o Mesolítico uma época em que o conhecimento antigo caiu no esquecimento — a "Idade Média" da Idade da Pedra? Bem, não, de jeito nenhum. A tradição da pintura rupestre terminou simplesmente porque não tinha mais necessidade de fazer essa arte. As pinturas e gravuras jamais tinham sido simples decoração; nem a inevitável expressão de um inerente impulso criativo humano. Tinham sido muito mais que isso — uma ferramenta para a sobrevivência, tão essencial quanto os instrumentos de pedra, roupas de pele e as fogueiras que crepitavam nas cavernas. A era de gelo fora uma época de transformação — as pinturas e gravuras, o equivalente de nossos CD ROM’s de hoje. Emboscada e matança sangrenta tinham sido fáceis: desde que as pessoas certas estivessem no lugar certo na hora certa, podiam-se adquirir amplos suprimentos de comida. Fizeram-se então necessárias regras para assegurar a distribuição sem conflito. Abundância de comida numa região significava escassez em outra — grupos tinham de estar dispostos a reunir-se e depois separar-se; para isso, precisavam saber que grupo estava onde, e ter amigos e parentes com os quais pudessem contar em tempos de necessidade. Como os rebanhos de animais tendem a extinções imprevisíveis, os caçadores precisavam de planos de caça alternativos, sempre prontos para ser postos em prática. Para resolver esses problemas, a informação era crucial — o conhecimento sobre a localização e os movimentos de animais, sobre quem habitava e caçava onde, sobre planos futuros, sobre o que fazer em tempos de crise. A arte, a mitologia e o ritual religioso serviam para manter a constante aquisição e fluxo de informação. Quando se reuniam uma ou duas vezes por ano para cerimônias, pinturas e rituais, como em Pech Merle, Mas d'Azil e Altamira, os grupos também trocavam informação vital sobre movimentos de animais. Também teriam passado o ano anterior vivendo separados, alguns nos planaltos, outros nas planícies costeiras; alguns tinham feito longas caminhadas para visitar parentes distantes, outros esperado a chegada de
aves migratórias. Muito se tinha para contar e ainda mais para descobrir. As crenças religiosas dos caçadores-coletores ofereciam conjuntos de regras para a divisão da comida quando necessário. As pinturas rupestres não apenas representavam as trilhas de animais, mas mostravam-nos no ato de defecar, e com as galhadas e partes gordas exageradas. Essas pinturas eram o estímulo para as histórias do que se vira, para ensinar às crianças; continham os sinais do que um caçador deve buscar ao sair atrás de uma presa e selecionar uma vítima nos meses futuros. As histórias mitológicas incluíam estratégias de sobrevivência para os anos inevitáveis mas imprevisíveis de dificuldades. Assim, durante o tempo em que se realizavam as cerimônias e rituais anuais, e as pessoas tinham oportunidades de mexericar, trocar idéias e observações, contar histórias das façanhas dos caçadores, reafirmar laços sociais, aprender ainda mais sobre os animais à sua volta, a informação circular e a sociedade florescer — o máximo que podia sob as limitações de um clima da era do gelo. A vida na floresta densa após 9.600 a.C. não fazia as mesmas demandas. Os animais agora eram caçados muito na base de um a um; sem matanças em massa não tinha excedentes para administrar. As travessias de vales estreitos e rios não mais tinham a mesma importância; deixara de existir a necessidade de as pessoas estarem no lugar precisamente certo no momento certo. E também a necessidade de saber o que acontecia a quilômetros de distância, no mundo natural ou social. A caça podia de fato ocorrer em qualquer lugar, em qualquer hora, por qualquer um. E se não se conseguisse encontrar animais, tinha inúmeros alimentos vegetais para coletar e lapas para catar. Como aconteceu com o veado-vermelho, as pessoas passaram a viver em grupos menores, mais dispersos, tornando-se cada vez mais auto-suficientes. Reuniões periódicas continuavam ocorrendo, embora fossem para resolver problemas e manter laços sociais, possibilitar o casamento de pessoas, trocar matérias-primas e comida, aprender e ensinar novas técnicas de cestaria e tecelagem. Não havia mais necessidade de se fazerem essas atividades sob o olhar de animais selvagens pintados. O fim da tradição da arte rupestre não deve ser atribuído à desintegração social, colapso social nem à chegada de uma era de trevas em que as mentes se fecharam para as artes. O término da pintura das cavernas é um admirável testemunho da capacidade das pessoas de
reescreverem as regras de sua sociedade quando surge a necessidade. Uma capacidade que precisamos lembrar hoje, quando o aquecimento global ameaça nosso planeta.
17 Catástrofe Litorânea Mudança do nível do mar e suas conseqüências, 10.500 – 6.400 a.C. Quarenta milímetros. Talvez 33, ou mesmo não mais que 23 milímetros. Da espessura de um pequeno seixo na praia ou da profundidade de uma rasa poça de rocha. Tivessem as pessoas do Mesolítico sabido que esses eram os melhores palpites para a média de elevação anual no nível do mar durante o século seguinte a 7.500 a.C., duvido que tivessem demonstrado muita preocupação. Afinal, tais estatísticas são quase idênticas à estimada ascensão em nosso nível do mar durante as próximas centenas de anos, e nenhum de nossos governos parece demasiado incomodado. Esses números são estimativas feitas nos últimos anos por cientistas que lutam com a imprecisão das datas de radiocarbono e a pura e simples complexidade da mudança no nível do mar no norte da Europa. Embora pareçam pequenos, as implicações desses números para os tempos mesolíticos foram extraordinárias: catástrofe litorânea. A causa definitiva foi o derretimento final das grandes camadas de gelo, sobretudo as da América do Norte. Milhões e milhões de litros d'água correram para o mar e afetaram a vida de vários milhares de pessoas — às vezes muito literalmente. Em 7.500 a.C., a costa do norte da Europa estendia-se diretamente do leste da Inglaterra até a Dinamarca. Era profundamente cortada por estuários que levavam aos estreitos vales, que por sua vez serpeavam entre colinas de suaves elevações. A Doggerland — região hoje submersa abaixo do Mar do Norte — tinha um litoral de lagoas, pântanos, lamaçais e praias. Eram na certa os mais ricos terrenos de caça, aves selvagens e pesca de toda a Europa. Grahame Clark, escavador de Star Carr, acreditava que a Doggerland fora a região central da cultura mesolítica. O primeiro conhecimento desse mundo mesolítico desaparecido veio em 1931. A traineira Colinda pescava à noite, a cerca de 25 milhas da costa de Norfolk, perto da margem do Ower. Seu capitão, Pilgrim E.
Lockwood, arrastou um torrão de turfa e quebrou-o com uma pá. Bateu numa coisa dura — não um pedaço de metal enferrujado, mas uma elegante ponta de chifre farpada. No mesmo ano, o Dr. Harry Godwin, botânico da Universidade de Cambridge e colega de Clark, ia começar a aplicar a nova ciência da análise de pólen em depósitos de turfa na Grã-Bretanha. Godwin colheu outras amostras de turfa do Mar do Norte perto de onde a Colinda mergulhara suas redes. Descobriu que outrora tivera florestas ali, de um tipo quase idêntico ao do leste de Yorkshire, da Dinamarca e dos Estados Bálticos, imediatamente após o fim da era do gelo. Na verdade, estabeleceu que essas regiões faziam parte de uma massa de terra contínua, na qual pessoas haviam caçado gamo e colhido plantas comestíveis em florestas de carvalho mistas; e onde de vez em quando perdiam suas pontas de chifre farpadas. Durante quase sessenta anos, o arpão encontrado pela Colinda permaneceu como um símbolo de um mundo mesolítico submerso pelo nível do mar em ascensão. Mas os arqueólogos levaram um choque em 1989, quando uma minúscula amostra de chifre foi removida para datação por radiocarbono. Para sua surpresa, verificou-se que não era contemporânea de arpões quase idênticos de Star Carr, porém 2 mil anos mais antiga. Caçadores de rena tinham perdido o arpão quando a Doggerland era tundra ártica — a tundra que o próprio Lubbock percorrera ao viajar de Creswell Crags até o vale de Ahrensburg. Os habitantes litorâneos da Doggerland mesolítica começaram a ver sua paisagem mudar — às vezes num único dia, outras no espaço de uma vida, ainda outras apenas quando pais e avós lhes falavam de lagoas e pântanos agora permanentemente inundados pelo mar. Um primeiro sinal de mudança foi quando o solo se tornou lamacento, quando poças d'água e depois lagos surgiram em depressões, à medida que o espelho d'água se elevava. Árvores começavam a afogar-se quando o mar continuava muito distante. Os carvalhos e limoeiros eram muitas vezes os primeiros a ir-se, os mais velhos em geral os últimos, sobrevivendo até a água do mar passar a bater em suas raízes e borrifar suas folhas.7 As marés altas tornaram-se mais altas e depois recusaram-se a retirarse. Praias arenosas foram levadas pelas águas. As matas e florestas litorâneas transformaram-se em pântano salgado — a terra lavada
diariamente pelo mar que saturava o solo com sal. Só plantas especializadas puderam sobreviver, como o funcho marítimo comestível e o esparto, que ofereciam espaço para uma variedade de moscas, percevejos e mosquitos. Garças, avocetas e colhereiros logo chegaram para alimentar-se onde, não muito antes, aves florestais tinham prosperado. O Mar do Norte invadiu a Doggerland. Águas marítimas penetraram nos vales e em volta das colinas; surgiram novas penínsulas, tornaram-se ilhas ao largo e depois desapareceram para sempre. Assim, o mesmo também ocorreu onde o mar avançava no Mediterrâneo, aproximando-se cada vez mais da Caverna Franchthi, em que tantos alimentos vegetais tinham sido coletados por caçadores-coletores na Grécia. Em 7.500 a.C., o litoral ficava a pouco mais de um passeio à tarde para os ocupantes de Franchthi; seus antepassados tinham levado uma caminhada de um dia inteiro para chegar à costa. Camadas de dejetos de comida enterrados na caverna mostram que as pessoas de Franchthi primeiro começaram a acumular lapas e litorinas, e depois se tornaram pescadores náuticos. Passaram a visitar ilhas, como a Meios, a 120 quilômetros de distância, onde encontravam obsidiana e traziam-na para a caverna. Esse novo estilo de vida favoreceu a exploração e a colonização: Córsega, Sardenha e as ilhas Baleares foram assentadas pela primeira vez. A experiência daqueles que habitaram as costas da Europa variou com o tempo e o lugar. Para alguns, as mudanças ambientais foram muito graduais e passaram desapercebidas: minúsculas alterações ano a ano na dieta, tecnologia e conhecimento — uma sutil e inconsciente formação de estilo de vida. Outros viam estupefatos a corrida do mar terra adentro, após um montículo de pedras ou dunas se desfazerem. Ainda outros — como os habitantes do que iria um dia tornar-se a cidade de Inverness, no leste da Escócia — enfrentaram a catástrofe. Na década de 1980, o arqueólogo escocês Jonathan Wordsworth escavou parte da cidade medieval após a demolição das casas modernas nos nos. 1324 da Rua Castle. Embaixo estavam as fundações de prédios e anexos medievais do século XIII, que haviam sido construídos dando para o estuário do rio Ness. Sob uma camada de areia marinha branca pedregosa, ensanduichados entre as trabalhadas pelos pedreiros medievais, ele encontrou um conjunto de quase 5 mil artefatos de silício, fragmentos de
ossos e vestígios de uma lareira — restos de uma caçada mesolítica. Em algum dia próximo a 7.000 a.C., um pequeno grupo de pessoas do Mesolítico se instalou numa concavidade natural dentro das dunas de frente para o estuário, e muito provavelmente com vista para o mar. Talvez esperassem o crepúsculo para partirem à caça de focas; talvez houvessem passado o dia catando ovos de andorinhas-do-mar e funchos marítimos e fossem dormir, com exceção de um ou dois que quebravam seixos da praia, reabastecendo o estoque de microlitos e lascas que levavam em seus sacos de pele de lontra. Uma cena na certa repetida milhares de vezes em todas as costas do norte da Europa — mais um dia mesolítico normal na vida normal de um caçador-coletor do Mesolítico. Não ia durar. Algumas horas antes, um enorme deslizamento de terra submarina ocorrera quase mil quilômetros ao norte, no meio do oceano Ártico, entre a costa da Noruega e da Islândia. Era o maremoto Storrega, e provocou um tsunami, uma gigantesca onda de leste para oeste. Os que se achavam perto dos nos. 13-24 da Rua Castle, em Inverness, na certa devem ter-se assustado com o repentino guincho das gaivotas; ouviram um murmúrio distante, que se transformou em bramido. Supõe-se que eles primeiro viram incrédulos, e depois em pânico, quando ondas de oito metros de altura se aproximaram da foz do estuário. Imagino que correram para salvar suas vidas. Se conseguiram alcançar a segurança, não temos como saber. Se o fizeram, e depois voltaram quando o mar se abrandou, teriam constatado que uma imensa extensão de areia branca, pedregosa, enterrara não apenas seu local de piquenique, mas tudo até onde a vista alcançava no norte e no sul. Mais de 17 mil quilômetros cúbicos de sedimentos foram despejados na costa da Escócia e permanecem enterrados embaixo de campos, dunas e casas como um registro de uma catástrofe mesolítica, O impacto desse tsunami em toda a baixa costa da Doggerland deve ter sido devastador. É provável que muitos quilômetros de litoral tenham sido destruídos em algumas horas, talvez minutos, e muitas vidas perdidas: os que puxavam redes em canoas, catavam algas marinhas e lapas, as crianças que brincavam na praia, os bebês que dormiam em berços de casca de madeira. Comunidades de caranguejos, peixes, aves e mamíferos foram varridas; assentamentos costeiros obliterados — as cabanas, canoas, armadilhas de enguia, cestos de nozes e suportes para secagem de peixes, tudo esmagado e extinto.
Outra catástrofe acontecia no outro lado da Europa, a 3.500 quilômetros de distância. As vítimas foram as pessoas que viviam nas baixadas em volta do lago de água doce que era o mar Negro. Essas baixadas ofereciam solos planos e lei leis, cobertos de bosques de carvalho onde pessoas tinham caçado e coletado por vários milhares de anos. Na data desse acontecimento, porém, uma nova gente chegara: camponeses do Neolítico. Haviam partido de comunidades na Turquia, instalando-se em ricos solos aluviais; derrubaram árvores a fim de abrir espaço para campos de trigo e cevada, ter madeiras com as quais construir suas casas, cercas e currais, e para o gado bovino e caprino. A história de sua viagem e recepção pelo povo do Mesolítico fica para o capítulo seguinte. Aqui nosso interesse é pelo seu trágico fim. O mar Negro tornara-se um lago de água doce durante a era glacial. O nível do Mediterrâneo caíra abaixo da base do canal do Bósforo, a comunicação com o mar Negro pela qual antes corria a água do mar. O canal foi bloqueado pelo aluvião. Então, quando o aquecimento global começou a derreter o gelo, o mar Mediterrâneo voltou mais uma vez a subir. À medida que fazia isso, o nível do mar Negro fazia exatamente o oposto — baixava, devido a evaporação e vazões reduzidas de rios. Quando o nível do mar se elevou acima da base do canal, o tampão de aluvião agüentou firme. Agüentou, e agüentou, como uma gigantesca muralha de água marítima acumulada na face oeste. Depois começou a vazar. E rompeu-se. Assim, num fatídico dia por volta de 6.400 a.C., uma cachoeira de água salgada precipitou-se com a força de 200 cataratas do Niágara nas plácidas águas do lago — e continuou a fazê-lo por vários meses. O estrondo teria sido ouvido a 100 quilômetros — ecoando nos ouvidos daqueles que caçavam nas colinas da Turquia e dos que pescavam nas praias do Mediterrâneo. Cinqüenta quilômetros de água cúbica desabavam trovejando no lago todo dia, até o mar Negro e o Mediterrâneo serem mais uma vez uma coisa só. Em questão de meses, uma estonteante extensão de 100 mil quilômetros quadrados de florestas, pântanos e campos aráveis à beira do lago fora submersa — uma área equivalente a toda a Áustria. O John Lubbock vitoriano não tivera muito conhecimento da história da mudança do nível do mar. Tempos pré-históricos não continha mais que alguns comentários sobre como, na costa dinamarquesa, há "bom motivo para supor que a terra passou os limites do mar", enquanto em outra parte
a ausência dos Kokkenmoddinger (montes de concha) "foi sem a menor dúvida causada pelas ondas que em certa medida devoraram a praia". Para sua compreensão geral da mudança do nível do mar, o John Lubbock vitoriano dependera das opiniões de Sir Charles Lyell, geólogo cujos seminais Principles of Geology [Princípios de Geologia] fora publicado entre 1830 e 1833 e Geological Evidences of the Antiquity of Man [Indícios geológicos da antigüidade do homem] em 1863. Ele citou extensamente o último livro sobre um período em que se acreditava que a terra estivesse no mínimo 500 metros acima de seu nível atual então, seguido por outro de submersão com "apenas os topos das montanhas restando acima da água", e depois por outro período de terra elevada, quando o leito do mar glacial, "com sua conchas marinhas e blocos erráticos, ficou seco". Lyell sugerira que o mais provável era que a "grande oscilação" de submersão e ressurgimento houvesse levado 224 mil anos. O próprio John Lubbock vitoriano não acrescentou muita coisa — Tempos pré-históricos chegou simplesmente cedo demais para uma opinião mais informada. Houvesse ele escrito em fins do século XIX, talvez citasse Joseph Prestwieh, cujas estimativas de temperaturas passadas já comentara. Em 1893, Prestwich publicou indícios de uma importante ocorrência de inundação em toda a Europa no final da era glacial e antecedendo imediatamente o Neolítico. Eduard Suess, professor de geologia da Universidade de Viena, também poderia ler sido citado, pois em 1885 introduzira a idéia de uma elevação uniforme e em âmbito mundial do nível do mar. Só na década de 1930, porém, as mudanças no nível do mar no final da era glacial começaram a ser bem documentadas. Hoje sabe-se que foram de extraordinária complexidade em algumas partes do mundo, ocorrendo com muito maior rapidez que o cálculo máximo de quase dois metros por século que Charles Lyell estava disposto a considerar. O John Lubbock vitoriano se teria, desconfio, espantado se soubesse da seqüência da mudança do nível do mar no extremo norte da Europa entre 10.500 e 8.000 a.C. Os povos que viveram no norte da Doggerland, naquelas regiões que hoje chamamos Escócia, Noruega e Suécia, também perderam o litoral que seus pais, avós e gerações anteriores tanto haviam aproveitado. Mas em
vez de tornar-se o fundo do mar, suas terras costeiras passaram a ser permanentemente secas; muito literalmente, haviam subido no mundo. As geleiras tinham pesado muito sobre a terra, empurrando-a para baixo — e fazendo com que a do sul imediato inchasse para cima, como a ponta desocupada de um sofá. E em conseqüência, quando o gelo se levantou e foi embora, a terra nivelou-se; o inchaço baixou e a depressão se ergueu. Grande parte da Doggeland ficara no inchaço, daí o impacto do aumento do nível do mar ter-se exacerbado: enquanto a elevação se desfazia, milhões de litros de água derretida entravam nos oceanos. Mais ao norte, onde ficavam as geleiras com todo peso antes, deu-se início a uma disputa. Qual dos dois ia erguer-se mais rápido, o mar ou a terra? Se o primeiro, as pessoas viram seus litorais inundados; se a última, as praias foram elevadas — e "praias elevadas" é exatamente o termo usado para explicar vastidões de areia e seixos encontradas nas costas do norte da Europa, hoje, em níveis jamais alcançados pelo mar. No extremo norte, a terra foi vencedora fácil. No antigo centro das camadas de gelo, em algum ponto ao norte de Estocolmo, na costa oriental da Suécia, a terra subira mais de 800 metros desde a era glacial — e ainda não parará de subir, todo ano acrescentavam-se mais alguns milímetros — embora isso possa logo mudar com o novo aquecimento global e a elevação do nível do mar durante o século à frente. Mais ao sul, ao longo das costas do sul da Suécia, dos Estados Bálticos, Polônia e Alemanha, o mar e a terra competiram com um pescoço de diferença, revezando-se periodicamente no primeiro lugar. Isso causou estragos em todas as Comunidades — vegetal, animal e humana, terra e água — que conseguiram estabelecer-se pouco antes de trocado mais uma vez o primeiro lugar. Sabemos parte dessa história pela obra de Svante Björck, do Instituto de Geologia da Dinamarca, que estudou as conchas achadas enterradas no fundo do mar Báltico, junto com os sedimentos, praias elevadas e florestas afundadas do litoral daquela região. O que revelaram é uma história admirável de drástica mudança geográfica, da qual apenas os destaques mais simples podem ser contados hoje. No auge do Jovem Dryas, 10.500 a.C., o mar Báltico não era de modo algum um mar, mas um lago, o lago glacial Báltico. Suas águas beiravam o congelamento; as praias eram rocha nua ou tundra ártica. Se alguém as tivesse visitado, encontraria renas e lêmingues, mas não é provável que permanecesse por muito tempo. Uma geleira no norte e terra sólida no sul
bloqueavam quaisquer caminhos de saída potenciais. A geleira formou uma represa nas terras baixas do centro da atual Suécia, enquanto a rota hoje tomada pelas águas intercambiáveis dos mares do Norte e Báltico, através da "Storebaelt" — paisagem marítima pontilhada de ilhas entre a Suécia e a Dinamarca — era alta e seca, uma massa de terra contínua. Esses países não passavam da extremidade leste da Doggerland. Em 9.600 a.C., o lago glacial Báltico era contido por uma muralha degelo de 25 metros de profundidade. O oposto exato do que aconteceu no mar Negro 3 mil anos depois, quando as águas forçaram a entrada, em vez da saída, de um lago represado. Mas ali, como lá, a represa rompeu-se, neste caso quando o aquecimento global derreteu o gelo e enfraqueceu a muralha. O lago glacial Báltico escoou pelo centro da Suécia, desaguando no Mar do Norte e deixando pedras, saibros, areia e aluvião pelo caminho. Em poucos anos no máximo, talvez não mais que meses, a queda de 25 metros no nível da água originou uma vasta e nova extensão de litoral nas atuais costas do norte da Alemanha, Polônia e Estados Bálticos. Era um litoral composto do barro lodoso e aluviões que tão recentemente tinham formado o fundo do lago. Quando as águas começaram a correr para o leste, o lago tornou-se um mar interior. Foi batizado com o nome de um molusco marinho, Yoldia, cujas conchas se encontram profundamente enterradas em seus sedimentos, indicando que águas salgadas agora lambiam as praias dos futuros Estados Bálticos. É provável que as pessoas fossem viver nas praias do mar de Yoldia assim que seu solo se estabilizou com as raízes de bétula e pinheiro. Surgiram ricas lagoas e pântanos em torno das fozes dos novos estuários fluviais. O povo do Mesolítico foi-se aos poucos deslocando para lá e sentindo-se em casa. Contudo, nem bem tinham estabelecido suas comunidades, o mundo começou a mudar mais uma vez. Os que viviam nas praias do sul foram inundados pelas águas do mar em ascensão; os das praias do norte viram o mar retroceder quando a terra voltava a subir. Recuou cerca de 10 metros a cada século — uma taxa inteiramente visível no tempo de uma vida humana. Em algum ponto entre os que foram inundados no sul e os elevados no norte, deve ter havido uma área de estabilidade, o fulcro dessa gangorra entre terra e mar. Isso continuou durante 25 gerações, cada uma das quais fez sutis alterações em seu estilo de vida, para adaptar-se ao mundo sempre em
mutação. E então, cerca de 9.300 a.C., a inundação no sul tornou-se mais severa. Assentamentos foram inundados antes que as pessoas pudessem mudar-se, e temos de imaginá-las vadeando para resgatar posses valiosas. A essa altura, a água se deslocava terra adentro a uma velocidade média de 3 metros em cada geração — uma taxa que envolvia catástrofe periódica na vida das pessoas. No norte, onde ao longo das décadas elas tinham visto o mar retroceder, este agora começava a invadir a terra. Também essas pessoas tiveram de aprender a enfrentar alagamentos e inundação. A causa do novo influxo de águas foi a nova elevação da terra; a do meio da Suécia agora se elevara tanto que bloqueara o fluxo entre os mares de Yoldia e do Norte. Mais uma vez, o Báltico tinha um lago, água sem caminho algum para escapar. Como seu volume aumentou com o influxo dos vários rios afluentes, o sal se diluiu e logo a água se tornou doce. Outro molusco, Ancylus fluviatli, foi honrado dando-se seu nome a esse lago — o lago Ancylus — as conchas encontradas nos sedimentos do Báltico acima do nível do Yoldia. Mais uma vez, todas as coisas vivas tiveram de adaptar-se, migrar ou morrer — incluindo comunidades humanas, que agora passavam a caçar aves selvagens entre os juncos, em vez de pescar bacalhau em caiaques. Tiveram cerca de trezentos anos — talvez dez gerações — para fazer a mudança, antes que houvesse outra virada. A partir de 9.000 a.C., começaram a ver os alagados e as lagoas secarem, as margens retrocederem das plataformas de pesca à beira do lago. Novas extensões de aluvião e areia foram expostas, e surgiram novas oportunidades para plantas e insetos pioneiros. O lago Ancylus encontrara uma vazão para o Mar do Norte. Certamente precisava de uma, pois seu nível tornara-se 10 metros mais alto que o do mar. Esse deságüe não foi tanto encontrado quanto forçado, na forma do rio Dana, que cortava seu caminho pela baixada da Storebaelt, criando em alguns lugares um verdadeiro desfiladeiro através de sedimentos macios de mais de 70 metros de profundidade. Terras cultiváveis às margens de rios, turfas e assentamentos humanos foram levados pelas águas ou enterrados por areia e saibro transportados por uma torrente d'água. Durante duzentos anos, o escoamento continuou a passo acelerado, até o lago Ancylus nivelar-se com o mar. E então começaram os meandros, à medida que riachos e rios atravessavam as matas e contornavam
promontórios da Storebaelt. A ocorrência final nessa admirável história foi a inundação da Storebaelt. Esta começou em 7.200 a.C. e foi causada pelos estágios finais do aumento do nível do mar que o levaram ao seu nível atual, criando a conhecida geografia da Escandinávia e do Báltico. O mar interior criado nessa época recebeu o nome do molusco litorina (Littorina), cujas conchas são encontradas não apenas em sedimentos acima das do Ancylus fluviatli, mas também continuam a enfeitar hoje as costas do mar Báltico. Seguiuse outro ciclo de readaptação, com a volta de alagamentos e inundações — mas as novas enchentes foram de natureza tão gradual que raras vezes se percebeu. Os estilos de vida humana foram aos poucos remodelados mais uma vez para os que moravam próximos ao mar.
18 Duas Aldeias no Sudeste da Europa Caçadores-coletores sedentários e agricultores imigrantes, 6.500 – 6.200 a.C. Viagens de pesca, churrascos e florestas de pinheiro após a chuva — lembranças misturadas trazidas pelo persistente cheiro de fumaça de lenha. John Lubbock acorda num duro piso de reboco na estreita extremidade de uma habitação em forma de tenda. Ao sentar-se e olhar para fora, vê um rio largo com íngremes encostas arborizadas abaixo de penhascos de calcário. O sol acabou de levantar-se. Ele ouve passos e vozes. As paredes de palha da moradia erguem-se até um comprido pau de cumeeira do qual pendem cestos de vime e arpões de osso. Blocos de calcário cercam um fosso no chão contendo as cinzas ainda quentes de lenha de pinheiro, onde embrulhos de peixe foram assados na noite anterior. Há gamelas com água e ervas em cima das lajes do piso perto da entrada. Lubbock vira-se e encontra o silencioso olhar de uma rocha arredondada do rio, esculpida com olhos esbugalhados, lábios inchados e um corpo coberto de escamas. É do dono da casa. Saindo, ele constata que a sua é apenas uma das vinte e poucas choupanas dispostas num terraço acima do rio. Uma aldeia de caçadorescoletores — a primeira de suas viagens européias. A princípio, o faz lembrar-se de Ain Mallaha e Abu Hureyra, no oeste da Ásia, em 12.500 a.C. Mas um segundo olhar mostra-a muito diferente — canoas atracadas e redes penduradas para secar. É uma florescente aldeia de pescadores, enquanto a cidade de Ain Ghazal sofre colapso econômico. Algumas pessoas trabalham e outras se acham ociosamente em pé ou sentadas em pequenos grupos, aproveitando os primeiros raios de sol da manhã. Conversam sobre o tempo, planos de pesca e os filhos. Atrás da aldeia, pequenas trilhas sobem íngremes por entre aveleiras baixas até uma floresta de carvalhos, olmos e limoeiros, conduzindo aos pinheiros e altos penhascos. Uma águia paira acima no céu azul-claro, e cormorões
sobrevoam a água. É o amanhecer em Lepenski Vir, 6.400 a.C. Sentado junto ao rio, Lubbock lembra a viagem desde La Riera, no norte da Espanha — uma importante caminhada pelo sul da Europa. Vários dos locais de acampamento que partilhou com os ocupantes mesolíticos passaram a ser conhecidos como sítios arqueológicos. Muitos outros jamais serão encontrados — talvez destruídos por assentamentos posteriores ou enterrados no fundo aluvial do delta do Ródano e na bacia do Pó. Ainda outros esperam ser descobertos. Lubbock escalara os Pireneus e encontrara os cumes redondos cobertos de capim cedendo lugar a pedras lascadas, o horizonte tornando-se cada vez mais alto e fraturado com o avanço diário para leste. Nos Pireneus centrais, acampara com caçadores de cabras selvagens a mil metros, na base de um grande anfiteatro natural conhecido hoje como Balma Margineda. Após capturar cabras selvagens com os homens, Lubbock juntou-se às mulheres na pesca de trutas e coleta de amoras pretas. Mais 200 quilômetros de caminhada levaram-no a Roc del Migdia, uma caverna na base de um penhasco dentro de uma densa floresta de carvalho, no que é hoje a Catalunha. Após ajudar a encher os cestos de seus ocupantes com bolotas, avelãs e abrunhos, sentou-se com eles para olhar os abutres sobrevoando em círculos preguiçosos nas correntes termais. A jornada de Lubbock pelo sul da França envolveu caminhadas ao longo de praias arenosas, caronas em canoas pelos pântanos do delta do Ródano, desvios para o interior quando o mar inundava a base de penhascos de calcário branco-creme ou pórfiro de intenso vermelhoescuro. Embora houvesse uma imensa variedade de árvores e plantas, nenhuma delas impressionou então o visitante - limoeiros, laranjeiras, oliveiras, palmeiras e mimosas. Essas árvores eram todas recém-chegadas à Riviera. Lubbock alegrou-se com sua ausência quando cederam o espaço a canteiros de lilases silvestres e madressilvas que despontavam nos barrancos de calcário, onde ele ouvia torrentes estrondosas e nascentes explodindo do chão. Após percorrer as baixadas pantanosas do norte da Itália, lugares preferidos de pessoas que montam armadilhas para peixes e captura de aves selvagens, Lubbock mais uma vez subiu as montanhas, os picos cobertos de pinheiros, dos Dolomitas italianos. Fez isso seguindo as trilhas de caçadores, que por sua vez seguiam o veado-vermelho rumo aos pastos de verão. A 2 mil metros, chegou ao acampamento deles, abaixo da
saliência de uma enorme rocha — ali deixada ao acaso por uma geleira há muito desaparecida. Este sítio é hoje conhecido como Mondeval de Sora. Quando escavado em 1986, encontrou-se o túmulo de um homem — um caçador posto na cova com uma série de artefatos de pedra e bijuterias esculpidas em presas de javali e dentes de gamo. Dos Dolomitas, Lubbock seguiu para o sul pela colinas ondulantes e vales profundos da Croácia. Ali dividiu pequenas cavernas com grupos de caça que vigiavam os fundos do vale à procura de presas e lascavam novas pontas de pedra para suas armas de caça. Ao sair das montanhas e colinas, Lubbock viajou para as margens do sul da planície húngara e ali aliviou as pernas cansadas adotando novo meio de transporte: uma canoa feita de um tronco escavado. Encontrou uma à deriva; na certa soltara-se da amarração rio acima. Por 800 quilômetros viajou ao longo dos rios do sudeste da Europa, passando breves temporadas nas florestas em volta, com caçadores no encalço de javalis e ajudando pescadores de passagem a puxar suas redes. Em algum ponto dessa viagem aquática, a canoa de Lubbock entrou no Danúbio. O rio corria preguiçosamente entre colinas cobertas de árvores, às vezes dando uma volta por um ou dois quilômetros e depois serpeando de volta entre salgueiros e álamos. Acabou passando entre penhascos íngremes e Lubbock entrou na primeira das grandes gargantas tipo desfiladeiro hoje chamadas Portas de Ferro. Foi então que surgiram grupos de moradias, espraiados ao longo dos terraços acima do rio. Pareciam muito diferentes das choupanas de palha cerrada que ele vira em outros lugares da Europa do Mesolítico, e assim, tarde numa noite, atracou e subiu a margem. Era uma noite sem lua, nublada, e as moradias surgiram como sombras curiosas, artificiais em sua geometria de criação humana. Ao encontrar fogueiras ainda quentes com cinzas, ratos e camundongos, ele percebeu que toda a aldeia dormia. Os ocupantes adormecidos de Lepenski Vir são caçadores-coletores que se "assentaram" num estilo de vida sedentário. A mata sobreviveu no vale do Danúbio durante todo o LGM, sobretudo zimbros e salgueiros, mas também pequenos renques de carvalho, olmo e limeira, que ajudariam a semear o resto da Europa. Caçadores da era glacial faziam visitas periódicas ao vale para tocaiar cabras selvagens e pescar salmão, mas nunca permaneciam por muito tempo. Quando o clima se tornou mais
quente e as chuvas mais freqüentes, brotaram as grandes folhas. As árvores escalaram as encostas das montanhas e geraram densa floresta, com grande abundância de caça e plantas comestíveis. Veados-vermelhos e javalis, lontras e castores, patos e gansos tornaram-se acréscimos na alimentação da era glacial. E assim as pessoas passaram a chegar com maior freqüência às Portas de Ferro e a ter menos vontade de deixá-las. Chegavam a seus supostos acampamentos no início do outono e ficavam até o final da primavera. Esses assentamentos começaram a fundir-se com o que tinham sido antes acampamentos de pesca de curta temporada. Em 6.500 a.C., as pessoas não viram mais necessidade de até mesmo deixar o rio; o que tinham sido acampamentos temporários passou a ser as primeiras aldeias permanentes nas margens do Danúbio. John Lubbock vagueia por Lepenski Vir, entrando e saindo das moradas. Embora variem de tamanho, partilham o mesmo formato e mobiliário. Pedras talhadas com faces que parecem parte peixe e parte humana acham-se instaladas um tanto melancolicamente dentro de cada choupana. Muitas vezes estão ao lado de estruturas de pedra que parecem altares, suportadas por seixos com incisões de desenhos geométricos. Na cabana maior, localizada no centro da aldeia, alguns amuletos de osso e uma flauta repousam sobre uma laje. Esta cabana fica junto a um espaço aberto, onde o chão parece batido por pés dançantes. Embora ritual, religião e apresentações sejam sempre parte integrante da vida dos caçadorescoletores, têm aqui uma presença mais penetrante que em qualquer outro assentamento visitado por Lubbock. Para onde ele olha, há pilhas de flechas com pontas de pedia, arpões de galhada, flutuadores e pesos de rede, cestos de vime, pilões e almofarizes de pedra. Essa variedade de equipamentos testemunha as diversas e abundantes comidas existentes para os habitantes de Lepenski Vir — não apenas carne e peixe, mas nozes, fungos, bagas e sementes. Apesar da diversidade gastronômica, porém, várias crianças que brincam nas partes rasas do rio parecem subnutridas. O raquitismo predomina na aldeia e alguns dos pequenos exibem estrias horizontais nos dentes — linhas onde o esmalte não se desenvolveu devido à saúde debilitada. A realidade é que a criatividade arquitetônica e artística em Lepenski Vir caminha junto com períodos de escassez de comida. Três mulheres estão no meio da construção de uma casa. Fizeram uma
plataforma em forma de trapézio com uma mistura de calcário triturado cozido, areia e saibro, em volta de blocos de pedra dispostos para formar a lareira central, Diante de Lubbock, elas param para desenrolar uma trouxa de couro, revelando o corpo decomposto de um bebê. Os ossos pendem uns dos outros, frouxamente unidos por ligamentos e fragmentos de pele amarela seca. O corpo é enterrado e vedado no chão. O maxilar de um adulto é retirado de outro embrulho e posto entre duas pedras da lareira. Após não mais que uma pequena pausa, recomeça a atividade prática da obra de construção: estacas são lixadas em buracos para sustentar a cumeeira que logo será erguida e posta no lugar. Para Lubbock, as mulheres parecem ter passado do secular ao religioso e refeito o caminho inverso; mas para elas, essas divisões não têm significado algum. Seguem simplesmente com a vida, uma vida em que todo ato, todo artefato e todo aspecto do mundo natural são tão sagrados quanto profanos. A vida em Lepenski Vir revolvia em torno do rio. Este fornecia comida, era a rodovia do Mesolítico, seu fluxo simbolizava a passagem do nascimento à morte. Pelo menos, é essa a crença de Ivana Radovanoviae, arqueóloga de Belgrado que empreendeu a tarefa de tentar ler o código simbólico tão entremeado na vida cotidiana quanto os enterros cerimoniais e as comemorações sazonais de Lepenski Vir. Ivana era aluna de Dragoslav Srejovic, arqueólogo iugoslavo que descobriu e depois escavou Lepenski Vir entre 1966 e 1971. Ele descobriu o sítio quando fazia o levantamento das margens do Danúbio, antes da construção de uma represa em 1970 — obra que ia submergir as margens e tudo nelas oculto. Esse é apenas um dos vários sítios nas duas margens do rio que partilham arte e arquitetura semelhantes — outros incluem Hajducka, Vodenica, Padina e Vlasac. Alguns foram acampamentos sazonais, e não aldeias permanentes; Lepenski Vir talvez tenha sido até um centro cerimonial. Srejovic escavou muitos túmulos em Lepenski Vir. Os de crianças eram em geral feitos dentro das moradas, enterrados embaixo do chão ou em lareiras e construções de pedra que Srejovic julgou serem altares. Os adultos, em geral homens, eram enterrados entre as casas. Crânios e maxilares de boi selvagem, gamo ou outros seres humanos eram às vezes colocados com os mortos, junto com artefatos e colares feitos de contas de
caracóis. A maioria dos túmulos adultos tinha a cabeça apontada rio abaixo, para que o rio levasse seu espírito — ou assim acredita Ivana. Ela acha que o rio também simbolizava o renascimento, pois toda primavera as belugas — gigantescos esturjões brancos ainda reverenciados hoje como produtores do melhor caviar — subiam o rio para a desova. Sua chegada devia ser impressionante, uma procissão de monstros fluviais que alcançam até 9 metros de comprimento: espíritos dos mortos renascidos, segundo Ivana, tornados reais pelas esculturas que misturavam peixe e ser humano num único ser. Lubbock sai de Lepenski Vir numa tarde de verão, sob o barulho de redes içadas da água, estacas marteladas no chão e vozes humanas conversando. Dirige-se para o sul pela exuberante floresta das colinas balcânicas, caminhando sobre um tapete de folhas, pinhas, bolotas, nozes-de-galha, frutos da faia e cascas de castanhas quebradas. Encontra gamos pastando em ensolaradas sendas na floresta; farejando o cheiro dele, eles se lançam numa lufada de ancas brancas no meio do mato baixo. Um gamo de galhada igual a um candelabro lança um olhar severo, antes de acompanhá-las num trote majestoso de seus cascos hábeis e reluzentes. Lubbock é agora um exímio leitor dos sinais de caça, ao contrário de quando iniciou suas viagens européias atravessando a tundra rumo a Creswell Crags, analfabeto na linguagem de pegadas e montes de cocô. Testa-se seguindo os rastros de gamos e calculando onde os javalis irão alimentar-se. Sabe onde encontrar ninhos para pegar ovos, quais fungos coletar e quais deixar. Na verdade, sente-se muito confiante em poder viver da caça e coleta nessas matas e pergunta-se porque ninguém mais optou por fazê-lo: é total a ausência de pessoas e sinais de sua presença. Em momento algum de suas viagens européias lembra-se de ter seguido durante tanto tempo sem encontrar um único acampamento ou caverna ocupada. Essa escassez de sítios mesolíticos no sudeste da Europa, desde o Danúbio até o mar Mediterrâneo, tem sido uma considerável preocupação para os arqueólogos. Houve ali uma verdadeira ausência de assentamentos? Foram os sítios do Mesolítico destruídos, ou alguns ainda precisam ser descobertos? Na Grécia, por exemplo, mal chegam a 12 os sítios do Mesolítico, embora haja centenas do Neolítico, milhares de
períodos posteriores e muitos mais de períodos anteriores da evolução humana. Catherine Perlès, a principal estudiosa da Grécia do início da pré-história, recentemente avaliou todas as razões possíveis para a raridade de sítios mesolíticos e concluiu que isso deve na verdade refletir uma população muito pequena, que se baseava quase inteiramente na costa. Após uma caminhada de cerca de 400 quilômetros desde Lepenski Vir, Lubbock chega à planície da Macedônia no norte da Grécia. Chega no ano de 6.300 a.C. e senta-se no galho de um robusto carvalho para ver as idas e vindas de um tipo de aldeia bastante diferente. Um aglomerado de casas estende-se numa clareira no topo de um pequeno outeiro; o terreno de um lado é pantanoso, do outro dividido por caminhos entrecruzados e cercas que definem pequenas hortas, cujas plantas acabaram de brotar. As casas, 10 ou 12 ao todo, são retangulares, com telhados de olmo e beirais projetados para fora. Uma está sendo construída: feixes de juncos amarrados entre estacas cortadas de árvores novas. Embora essas casas sejam muito maiores e mais consistentes que as de Lepenski Vir, são os simples cercados de madeira anexos às paredes externas que despertam o interesse de Lubbock — ou, melhor, o que eles contêm. Saltando da árvore, ele se aproxima da aldeia por um atalho que sai da mata para uma abertura num baixo muro de barro que o circunda. Curva-se para examinar as plantas que brotam nas hortas. Algumas — trigo ou cevada — têm folhas que mal começam a abrir-se em volta do caule; outras — ervilhas ou lentilhas — finos talos com folhas claras redondas. Mulheres e crianças também se curvam, arrancando as ervas daninhas em volta dos brotos. Lubbock puxa uns punhados de capim — não como um gesto de ajuda, mas para alimentar os carneiros, que mais parecem cabras, parados dentro dos cercados de madeira. Lubbock está para entrar num das primeiras aldeias agrícolas da Europa, aquela que os arqueólogos chamarão Nea Nikomedeia. Várias gerações de camponeses já viveram e morreram nessa aldeia. Seus fundadores talvez tenham vindo de outros assentamentos agrícolas da Grécia; ou da Turquia ou Chipre — talvez direto do próprio oeste da Ásia. Foi do oeste da Ásia que desembarcaram outrora os primeiros agricultores a chegar à Europa, após carregarem seus barcos, com
sementes de milho e carneiros e cabras devidamente amarrados. Alguns tinham cruzado o Egeu até as baixadas da Grécia; outros foram para Creta e a Itália. Derrubaram florestas, puseram seus carneiros e cabras para pastar, construíram suas casas e deram início a um novo capítulo na préhistória européia. Os primeiros camponeses chegaram à Grécia por volta de 7.500 a.C. e encontraram uma paisagem em grande parte desabitada. Só na vizinhança da Caverna Franchthi, no sul de Argolid, houve uma substancial presença mesolítica. É a caverna onde Thomas Jacobsen encontrou vestígios de uma rica dieta vegetal e de comidas litorâneas, sobretudo depois que a beira-mar quase chegara à entrada da caverna. Nas camadas superiores da Caverna Franchthi, contemporâneas dos primeiros assentamentos agrícolas, Jacobsen encontrou algumas sementes de trigo, cevada e lentilhas domesticadas, mas estas eram muito ultrapassadas em número pelos restos de plantas selvagens. Ossos de carneiro, cabra e porco tinham-se, porém, tornado predominantes, indicando que o povo do Mesolítico começara roubando os assentamentos agrícolas para criar rebanhos e manadas próprios. Mas isso causou pouco impacto em seu modo devida: instrumentos de pedra, práticas de enterro, atividades de caça e coleta continuaram na Caverna Franchthi sem quase mudança alguma. Os camponeses e caçadores-coletores viveram lado a lado durante pelo menos todo um milênio. Tinham pouco a ver uns com os outros; as planícies aluviais, que proporcionavam solos férteis para os camponeses, eram de pouco interesse para os caçadores-coletores que dependiam das florestas e do litoral. Mas essa coabitação no sul da Grécia não poderia sobreviver. Por volta de 7.000 a.C., surgiram vários novos assentamentos — um dos quais Nea Nikomedeia. Se foram construídos por uma germinante população local ou por uma nova onda de imigrantes, ainda não se sabe ao certo. A última possibilidade talvez seja a mais provável, pois surge uma excelente cerâmica — coisa não encontrada na Grécia antes dessa data. Os depósitos finais na Caverna Franchthi contêm cerâmica e artefatos de pedra mais semelhantes aos encontrados nos assentamentos agrícolas que os situados nos níveis inferiores da caverna. As casas foram construídas diante da entrada e tratos criados para plantar colheitas. A cultura agrícola finalmente esmagara os caçadores-coletores da Franchthi
mesolítica. Eles podem ter abandonado a caverna aos novos agricultores, reduzindo-se aos poucos em número e extinguindo-se. Talvez tenham eles próprios decidido tornar-se agricultores. Ou as duas populações se ligaram tão estreitamente por casamento e reprodução interna que nem sequer sabiam mais qual era qual. Nessa confusão do que aconteceu ao povo do Mesolítico da Caverna Franchthi, encontramos a futura história do continente europeu como um todo. O interior da casa em que Lubbock entrou em Nea Nikomedeia é escuro e silencioso, o ar rançoso e enfumaçado — bem diferente da morada clara e fresca de Lepenski Vir. Caminhando pela aldeia, ele fizera uma pausa para ajudar os membros de uma família a cobrir de barro os feixes de junco e troncos recém-cortados que formavam as paredes de sua nova casa. Agora descobre como são eficazes essas paredes, criando um espaço isolado do mundo externo. Vasos de cerâmica e cestos de vime estão empilhados junto às paredes, tapetes de junco e couros espalham-se pelo chão. Uma plataforma de reboco, cerca de 10 ou 20 centímetros acima do chão, tem uma bacia rasa com um fogo ardendo. A fumaça infiltra-se no telhado de colmo, matando insetos e impermeabilizando os juncos. Uma mulher senta-se junto ao fogo, torcendo fibras para fazer um bolo de cordão. Pára para empurrar as cinzas e depois atiçá-las. A fivela de osso que prende seu cinto parece conhecida — Lubbock lembra-se de que viu uma de desenho semelhante em Çatalhöyük. Encontrar cerâmica é mais uma inédita "primeira vez" nessa viagem européia — todos os vasos anteriores eram feitos de trabalho em madeira, pedra ou vime. Os vasos que ele vê em Nea Nikomedeia são de várias formas e tamanhos, variando de alguidares abertos a grandes vasos de estocagem com bocas estreitas. Alguns são simples; outros pintados com desenhos geométricos em vermelho. Uns poucos têm marcas de dedos ou até rostos humanos no barro: os narizes são modelados com beliscões e os olhos pequenos ovais. Vários são grandes e trabalhados; Lubbock imagina que sejam usados para diversão. Um prédio maior, mais de 10 metros quadrados, localiza-se numa posição central. É escuro dentro, sem qualquer indício de vida doméstica e presença humana, Há estatuetas de barro sobre mesas de madeira. A
maioria é de mulheres - moldadas para terem cabeças cilíndricas, narizes pontudos e olhos rasgados. Com os braços cruzados, cada mão agarra um seio, feito de uma pequena protuberância de barro. O tamanho diminuto dos seios é compensado por coxas enormes, quase esféricas. Ao lado dessas figuras, vêem-se alguns modelos toscos de carneiros e cabras, e, em contraste, três imagens polidas de rãs, belamente esculpidas em serpentina verde e azul. Lubbock deixa a aldeia e retorna ao seu assento elevado na floresta, preferindo ver a aldeia de certa distância. Poucos dias depois, começa a entender como a vida funciona ali. Cada família é auto-suficiente; cuida de sua própria horta, trata de seu próprio gado e faz suas próprias cerâmica e instrumentos. Ao mesmo tempo, essa independência familiar é equilibrada por uma cultura de hospitalidade, usando-se as lareiras do lado de fora para refeições comunais. O tempo começa a passar mais depressa: os carvalhos atingem pleno florescimento quando as colheitas amadurecem; as folhas tornam-se marrom e caem quando vem a colheita. Durante o inverno, Lubbock atravessa toda a chuva, quando o pântano se transforma num lago e depois verte suas águas nas hortas, depositando uma camada de excelente aluvião para fertilizar as lavouras do ano seguinte. Quando surgem os brotos de carvalho, as pessoas de Nea Nikomedeia voltam a suas hortas com pás e enxadas, revolvendo o solo antes de replantá-las. Lubbock vê quando chegam visitantes trazendo pedras, conchas e trabalhadas cerâmicas para trocar. Vê os mortos da aldeia sendo enterrados em sepulturas não demarcadas ou nos escombros de casas abandonadas. Parece uma atividade pragmática — livrar-se de um corpo com a mais limitada cerimônia possível, sem ritual junto à sepultura nem as oferendas enterradas com os mortos. Mas as pessoas entram e saem regularmente do prédio central que abriga as estatuetas e parece ser um santuário. Às vezes chegam várias juntas, e Lubbock ouve cânticos e músicas lá dentro. Ele desconfia de que novas estatuetas são introduzidas, e outras retiradas e quebradas — mas de longe não obtém muita compreensão da vida religiosa de Nea Nikomedeia. Bolotas caem, plantas brotadas de sementes germinam e têm sua vida desdenhada pelas mordidas dos dentes dos gamos; quaisquer rebentos sobreviventes são logo cortados e levados para a aldeia. Com o passar do tempo, Lubbock vê toda uma colheita ser abortada devido a um inverno
seco com geadas tardias, e as pessoas matam relutantes carneiros e cabras para sobreviver. As amizades entre as famílias, mantidas pela constante hospitalidade, ajudam em tempo de necessidade: quando há escassez de comida numa família, esta sempre pode contar com a oferta de uma outra. A impressão dominante de seu posto na floresta é de que a vida em Nea Nikomedeia é dura: cultivar campos, capinar, aguar, moer sementes, cavar barro, abrir clareira no mato. O trabalho parece ter falta de braços mesmo quando se pressionam as crianças a capinar e espalhar estrume. Lubbock lembra-se dos caçadores-coletores de Lepenski Vir, La Riera, Gönnersdorf e Creswell Crags, nenhum dos quais parecia trabalhar mais que algumas horas por dia. Para eles, a chave da barriga cheia era conhecimento, não mão-de-obra: onde estava a caça, onde amadureciam os frutos, como caçar javali e pescar cardumes. Com o passar dos anos ali, Lubbock vê a construção de novas casas e crescer o número de hortas. O tamanho das aldeias em toda a planície macedônia cresce de modo semelhante e logo chega aos limites de população. Os solos existentes em volta de Nea Nikomedeia não podem mais sustentar as pessoas, e por isso um grupo de família parte em busca de nova terra. Com um rebanho de cabras e alguns bacorinhos desgarrados, rumam para o norte, visando a criar um novo povoamento na primeira planície aluvial que avistarem. Os camponeses foram "saltando" de uma planície fértil para outra, percorrendo todos os Bálcãs e chegando à planície húngara, onde se desenvolviam novas culturas agrícolas. Assentamentos agrícolas haviamse estabelecido a não mais de 50 quilômetros de Lepenski Vir, sua presença levando a um florescimento inicial e depois ao colapso de sua cultura mesolítica. Algumas das pessoas de Lepenski Vir, mais provavelmente os velhos, aprimoravam as tradições artísticas como um meio de resistir aos novos camponeses e seu modo de vida. Fizeram-se novas esculturas de pedra, cada vez maiores e mais impressionantes entre as que Lubbock já vira. Eram colocadas mais próximas das entradas das casas, em vez de escondidas dentro. Mas para outras, mais provavelmente os jovens, os assentamentos agrícolas proporcionaram novas idéias e oportunidades de comércio. O destino de Lepenski Vir era inevitável: surgia um número cada vez maior de vasos de cerâmica em meio a armas de caça e redes de pesca; suas
pessoas foram seduzidas pelo modo de vida agrícola. Alguns bons motivos explicam isso: carneiros, gado e trigo podiam preencher as lacunas alimentares criadas pelos períodos de escassez de comidas selvagens, que tinham deixado as crianças subnutridas. Mas muito em breve as mesas de cozinha já tinham virado — os alimentos selvagens passaram a ser suplementos de uma dieta de cereais e ervilhas. Lubbock também deixa Nea Nikomedeia. Viaja para as praias do mar Negro, recentemente inundado após o rompimento do Bósforo. Há imensas áreas de florestas submersas, faixas de aluvião, campos de grandes pedras e troncos arrancados. Lubbock continua pelo noite até os vales do Dniester e Dnieper, ainda intocados pelo novo modo de vida agrícola. Ali encontra aldeias de caçadores-coletores em meio a densa floresta, e os primeiros cemitérios de sua jornada européia — um sinal do que está por vir. Enterrados sob os sedimentos fluviais desses vales, encontram-se os vestígios de casas de ossos de mamute que foram ocupadas no LGM, quando a paisagem era tundra árida. À medida que Lubbock avança mais para o norte, a paisagem começa a mudar. As matas de folhas largas com luxuriante vegetação baixa de arbustos dão lugar a sombrias florestas de coníferas inteiramente estéreis sob as árvores. Alces substituem veados-vermelhos e ursos os javalis. Aldeias permanentes de caçadores-coletores dão lugar aos mais conhecidos sítios de acampamento transitórios de pessoas cujo senso de lugar é uma floresta integral, uma cadeia de montanhas, uma série de lagos ou mesmo todas as três coisas misturadas, em vez de uma faixa de terreno culturalmente demarcada. Lubbock continua a percorrer a pé e de barco infindáveis baixadas pantanosas, enquanto as estações giram e tornam a girar, até, exatamente 2 mil quilômetros ao norte de Lepenski Vir, ele chegar a uma praia lacustre da qual canoas partem para uma ilhota. Pega uma carona. Nea Nikomedeia foi inteiramente abandonada por volta de 5.000 a.C. — talvez devido ao esgotamento do solo em volta ou doença endêmica causada por quantidades esmagadoras de dejetos humanos. Uma vez deserta, os prédios finais desabaram; as madeiras decompuseram-se, o reboco de barro foi levado pelas águas ou se desfez aos ventos; ou simplesmente compactaram-se no terreno. Os fossos foram entulhados pelo aluvião; areia transportada pelo vento enterrou lareiras, buracos de
estacas e montes de lixo. Quando a natureza reclamou o que era seu, Nea Nikomedeia tornou-se um pequeno tell; uma vez coberta pelo matagal e areada pelo sol, o vento e a chuva, passou a parecer pouco diferente dos vários monturos naturais na planície macedônia. Próximo ao século XX, o monturo de Nea Nikomedeia foi cercado por pomares e campos de cultivo de algodão e beterraba. Em 1953, quando uma máquina de terraplenagem começou a aplainar a terra para a construção de uma estrada, cacos de cerâmica desceram rolando de um corte no monturo, fazendo o Serviço Arqueológico da Grécia interromper a obra. Em 1961, os gregos iniciaram uma escavação conjunta com a Universidade de Cambridge, chefiada por Robert Rodden. Ele foi ajudado por Grahame Clark, cujo coração, desconfia-se, jamais deixara os caçadores mesolíticos de Star Carr enquanto ele escavava no calor do sol do Mediterrâneo.
19 As Ilhas dos Mortos Enterro e sociedade mesolíticos no norte da Europa, 6.200 – 5.000 a.C. A canoa desliza pelas águas paradas, imagens refletidas de espruces, lariços e do céu azul-aço. A água esparrinhada pelos remos é gélida; o sol está no zênite. As florestas são deixadas para trás à medida que a canoa se aproxima da ilha. Ali será enterrado o corpo que a canoa leva, e atrás do qual se espreme Lubbock. É de um homem, vestido, como enquanto vivia, de peles, um colar de dentes de alce, um pingente de presa de urso, uma faca de sílex presa ao cinto. Esta é a última de suas várias viagens nas vias navegáveis e matas do norte da Europa. Ele agora precisa juntar-se aos seus ancestrais, que habitam a ilha dos mortos. Lubbock dirige-se para Oleneostrovski Mogilnik — o cemitério da Ilha do Gamo — no meio do que é hoje o lago Onega, no noroeste da Rússia. A data é 6.200 a.C. A canoa, remada pelos filhos do morto, é uma das várias que se aproximam da ilha. O enterro oferece um pretexto para as pessoas se reunirem após um rigoroso inverno no norte da floresta, e elas vêm de todos os lados. Precisam pôr-se a par dos mexericos, trocar sílex, peles, histórias e discutir planos futuros: quem vai a que lugar para o verão, por quanto tempo e com quem. Também precisam assegurar que os mortos passem em segurança para o mundo dos espíritos e ancestrais. Em 1939, Vladislav Iosifovich Ravdonikas, diretor do Instituto Estadual de História e Cultura Material da Rússia stalinista, recebeu os resultados das escavações empreendidas em Oleneostrovski Mogilnik das mãos de sua assistente e protegida, I.I. Gurina. Ela começara a trabalhar em 1° de junho de 1936, encontrando a ilha coberta de espruces e lariços. Entre as árvores havia grandes covas onde os locais tinham recentemente escavado areia e saibro, outrora depositados pelas grandes geleiras do norte. Chamavam-na "a ilha dos mortos" devido aos ossos humanos que sua
escavação revelara. Muitas sepulturas tinham sido escavadas por curiosidade e em busca de tesouros. Mas as esperanças de encontrar ouro e prata logo foram desfeitas. Gurina encontrou tesouros arqueológicos de um tipo muito diferente. Associados aos túmulos humanos havia jóias feitas de dentes e ossos de animais, estatuetas esculpidas de alces e cobras, facas de sílex, pontas de osso e artefatos de sílex. Durante três temporadas de trabalho de campo, ela escavou 170 túmulos. Alguns continham esqueletos bem preservados; outros apenas fragmentos de osso humano. Alguns tinham grandes quantidades de enfeites c ferramentas, e outros poucos ou nenhum. Homens, mulheres e crianças tinham sido enterrados na ilha. Dezoito covas continham dois indivíduos, e algumas três. Gurina calculou que o cemitério tinha 500 túmulos ao todo. Teria escavado mais, se seu campo de trabalho não tivesse sido terminado por segurança de estado em 1938, quando se finalizavam os planos para a invasão soviética da Finlândia — o lago Onega ficava en route. Os resultados do trabalho de Gurina causaram um dilema para Ravdonikas. As dimensões e a riqueza do cemitério de Oleneostrovski Mogilnik indicavam que seus habitantes tinham sido camponeses — pelo menos assim era se se seguisse a teoria marxista de evolução social e cultura material. Como trabalhava na Rússia de Stálin e faziam-se observações para confirmar o padrão de evolução social estabelecido por Frederick Engels, Ravdonikas tinha simplesmente de segui-la. O comunismo primitivo passara supostamente por dois estágios: a fase do Clã Inicial, de caçadores-coletores completamente nômades, e a fase do Clã Tardio, de agricultores sedentários e criadores de animais, quando as pessoas viveram pela primeira vez em comunidades e adquiriram bens materiais. Onde se encaixa Oleneostrovski Mogilnik nisso? Na complexidade social sugerida pela fase do Clã Tardio, que Ravdonikas datou de 2.000 a.C. Mas onde, pois, ficavam a cerâmica obrigatória e os animais domésticos? A solução dele — e a ainda preferida por muitos arqueológicos hoje quando perdidos em busca de uma explicação — foi o "ritual." As pessoas de Oleneostrovski Mogilnik deviam ter proibições rituais referentes à colocação de cerâmica e os ossos de animais domésticos nas sepulturas de seus mortos. Então o problema fora resolvido, e a visão Engels permanecia intata.
Ravdonikas estava inteiramente errado. As pessoas na canoa de Lubbock jamais tinham ouvido falar de cerâmica nem tido a menor idéia de um animal doméstico. Viveram no mínimo 4 mil anos antes do que propusera Ravdonikas, usando a ilha como cemitério entre 6.700 e 6.000 a.C. As canoas chegam e são puxadas para a praia. A ilha é muito pequena, apenas 2,5 quilômetros de comprimento por menos de um de largura, e coberta de espruces e lariços. O corpo é posto numa maca, e sem uma palavra as pessoas avançam ao longo de um caminho entre as árvores. Lubbock segue-as, chegando a uma clareira onde cerca de cinqüenta pessoas já se acham reunidas. É o cemitério. Baixos montes de solo arenoso indicam enterros anteriores; alguns parecem recém-cavados, e outros são invadidos por rebentos e mudas. Uma nova cova foi cavada; como as outras, é muito rasa e no sentido leste-oeste. Começam os ritos do enterro e Lubbock fica com o grupo dos espectadores, vendo o xamã em ação. O corpo é posto na sepultura, a cabeça na ponta leste e os bens do morto colocados a seu lado: uma faca de sílex, pontas de osso, artefatos de sílex. As pessoas agora se dispersam para as fogueiras nas bordas do cemitério, para trocar idéias. Lubbock fica perto da sepultura, imaginando a vida do morto. Em apenas pouco mais de 8 mil anos, muito depois de as roupas e da carne terem-se desfeito em nada, Gurina escavou seu corpo. Retirou com todo cuidado cada osso e artefato; também imaginou que homem fora aquele. Quase cinqüenta anos depois de Ravdonikas interpretar os resultados de Gurina, fez-se uma segunda tentativa. Desta vez foi feita por dois arqueólogos não dominados pelos cânones da teoria marxista: John O'Shea, da Universidade de Michigan, especialista em análise de cemitérios, e Marek Zvelebil, da Universidade de Sheffield, principal expert em caçadores-coletores do norte da Europa mesolítica. Eles tomaram a informação de Gurina e empregaram sofisticados métodos estatísticos para classificar os túmulos numa série de grupos sobrepostos. Afirmaram que esses grupos refletiam distinções sociais na antiga sociedade das pessoas de Oleneostrovski Mogilnik. Explicaram que a sociedade fora dividida em duas linhagens, uma assinalada pelo uso de efígies de alces e a outra de cobras. Essas efígies só foram encontradas em algumas sepulturas, possivelmente daqueles que eram os líderes
hereditários da linhagem. Como alguns instrumentos eram enterrados exclusivamente com os homens — pontas de osso, arpões, facas e adagas de sílex — O'Shea e Zvelebil propuseram que existira uma forte divisão sexual de mão-deobra. As mulheres não tinham instrumentos especiais para si mesmas e eram com maior freqüência enterradas com contas feitas de dentes de castor. Os arqueólogos concluíram que os pingentes de alce e castor eram indicadores de riqueza, pois quando abundavam numa sepultura, o mesmo ocorria com artefatos como facas e pontas. Os enterrados com presas de urso eram os mais ricos — predominantemente jovens adultos. Isso sugeria que a aquisição de riqueza dependia de saúde física e, com maior probabilidade, proezas de caça — a perda de vigor com a idade significava perda de prestígio e poder. Para as mulheres, o caminho para a riqueza parecia ser pelo casamento ou por laços sangüíneos com homens. Quatro túmulos eram muito diferentes dos outros. Muitos bens tumulares tinham sido colocados nas sepulturas, e os corpos enterrados em posição quase vertical, para que os mortos parecessem ainda em pé no chão. O'Shea e Zvelebil julgaram que eram os xamãs, como propusera a própria Gurina. Por fim, 11 túmulos de velhos continham apenas pontas de osso — possivelmente um grupo especial de caçadores que eram proibidos de acumular seus próprios bens e riqueza. O'Shea e Zvelebil concluíram que aqueles que enterraram seus mortos em Oleneostrovski Mogilnik tinham vidas sociais mais complexas que a grande maioria de caçadores-coletores do passado e do presente. Como tal, haviam provavelmente vivido o ano inteiro em aldeias ainda não descobertas, afastadas da ilha dos mortos, que parece ter sido procedência apenas dos ancestrais. O'Shea e Zvelebil sugeriram que as pessoas de Oleneostrovski Mogilnik adquiriram sua riqueza atuando como "intermediários" nas redes comerciais de sílex e ardósia que cobriam a Rússia e o leste da Finlândia. Enquanto fora necessário quase meio século para que a interpretação de Oleneostrovski Mogilnik fosse substancialmente contestada, a de O'Shea e Zvelebil teve menos de uma década de graça. Em 1995, suas conclusões foram questionadas por Ken Jacobs, da Universidade de Montreal, e mais uma vez se interpretou o cemitério de Oleneostrovski Mogilnik. Jacobs considerou mais importantes as semelhanças que as diferenças entre as sepulturas. Propôs que a ilha servira como "centro ritual" para
muitos pequenos grupos de caçadores-coletores que viviam largamente dispersos ao longo das costas e florestas vizinhas do lago Onega. Concluiu que se tratava de uma sociedade de iguais, atribuindo as diferenças entre as sepulturas em números de contas, pingentes e artefatos mais à preservação variável que a riqueza e status. Para Jacobs, Oleneostrovski Mogilnik parecia-se com os lugares sagrados do povo Saami que viveu na região até o século XIX. Também eles haviam enterrado seus mortos em ilhas no interior de lagos. Faziam isso para impedir que os espíritos retornassem aos assentamentos, na crença em que tentariam levar parentes e bens materiais para o outro mundo. Ficando confinados numa ilha, os espíritos também deixavam imperturbados os terrenos de caça e pesca preferidos. É possível que os que enterraram seus mortos no Oleneostrovski Mogilnik pensassem do mesmo modo — talvez fossem os ancestrais diretos dos Saami. Quando cai a escuridão, Lubbock vê sombras dançando ao luar; escuta o canto, mas não consegue entender as palavras. E assim se solidariza com os arqueólogos de hoje, com Vladislav Iosifovich Ravdonikas, John O'Shea, Marek Zvelebil e Ken Jacobs. Também estes caçam as sombras de vidas passadas e não têm tradutores para a linguagem que tentam ler — das presas de urso, dentes de alce e pontas de osso. À medida que a lua sobe e chegam estrelas cadentes, Lubbock pega emprestado uma canoa e rema noite adentro. Da margem oeste do lago Onega, ele viaja para a costa báltica. Às vezes a canoa precisa ser arrastada de um rio para outro; há muitas enchentes florestais a serem transpostas, todas criadas por represas de castores — animais que parecem muito mais decididos a redesenhar a natureza que qualquer ser humano no norte da floresta. Lubbock capta vislumbres de alces, vive de peixes e bagas, e dorme sob as estrelas — quando não é acordado por pios de corujas e uivos de lobos. Não fosse pelos pés permanentemente ensopados, o corpo dolorido e incessantes ataques de insetos, seu estilo de vida nômade seria idílico. Após remar pelo vasto lago Ladoga, ele entra no golfo da Finlândia pelo estuário do rio Neva, chegando aonde um dia florescerá São Petersburgo. Lubbock começa uma viagem para o sul. Transpõe grandes embocaduras fluviais, serpeando entre uma multidão de ilhotas, e às vezes avança para mar aberto. Toninhas muitas vezes seguem atrás e de
vez em quando vão na frente indicando o caminho; as focas estão sempre vigilantes, e gaivotas passam em vôos rasantes acima do estranho canoeiro em seu meio. Lubbock passa por muitos acampamentos costeiros, alguns com tendas parecidas com as dos índios norteamericanos, outros com cabanas de madeira. Pessoas sentam-se ao lado de suas canoas e fogueiras fumegantes; consertam redes de pesca e arpões, preparam comidas, contam histórias umas para as outras. Lubbock viaja por mais de 1.500 quilômetros para o sul no mar Báltico. A data torna-se 5.000 a.C. e se aproxima o inverno. No litoral, surgiram grandes bandos de estorninho, as folhas se recolheram e as noites tornam-se mais longas. E por isso um assentamento espalhado em volta da foz de uma lagoa na ponta do sul da Suécia parece muito convidativo, espirais de fumaça sugerindo uma quente fogueira e carne assada. Esse assentamento hoje se chama Skatehohn, um dos maiores sítios do Mesolítico em todo o norte da Europa. A tranqüila paisagem camponesa da atual Skateholm não oferece qualquer sugestão de seu vivido passado pré-histórico. O nível do mar baixou alguns metros desde aquela época, deixando o que outrora eram ilhotas na lagoa como outeiros baixos em campos fora isso planos. Se o solo for roçado ou soprado, surge areia da praia pré-histórica. Os arados trazem à superfície os detritos da vida do Mesolítico Na verdade, foi durante uma roçada em fins da década de 1970 que se descobriram os primeiros vestígios da Skateholm Mesolítica, em forma de instrumentos de pedra. Lars Larsson, professor de Arqueologia da Universidade de Lund, investigou. Suas valas experimentais de 1980 recuperaram não apenas abundantes artefatos, mas vários ossos de animais, incluindo de peixes minúsculos, que indicavam excelente preservação. E mais. No lugar onde esses detritos do Mesolítico se tornaram escassos, sugerindo o limite da área viva, uma vala de ensaio revelou uma faixa escura de praia embaixo. Quando se rasparam os poucos centímetros da superfície, surgiu uma caveira humana; era um túmulo, o primeiro dos 64 que Lars Larsson escavaria em Skateholm. Poucos anos depois, ele expusera mais de 3 mil metros quadrados desse assentamento pré-histórico, descobrira não um, mas três cemitérios, e recuperara uma admirável coleção de artefatos e ossos de animais. Em 5.000 a.C., a entrada da lagoa tem meio quilômetro de largura e é
interrompida por duas ilhotas, uma das quais mal obstrui a água. Esta foi o cemitério antes de ser inundada; agora a maior foi adotada e será o terreno de enterros que Larsson escavou toda: 53 túmulos. Atrás da lagoa, densos juncos bordejam as margens pardas e açoitadas pelo tempo de inverno, entremeadas por rios sinuosos. Além, há densa floresta, não de pinheiros como no norte, mas de árvores transitórias — Lubbock está de volta ao mundo de carvalhos, olmos, limeiras, amieiros e salgueiros. Do seu ponto de vista, ondulando no mar um quilômetro ao largo, ele vê pessoas reunidas em volta de fogueiras e pequenas cabanas de palha cerrada. Há canoas atracadas no meio de juncos e redes penduradas para secar. As pessoas de Skateholm foram atraídas para a lagoa por sua imensa diversidade de plantas e animais. Durante os meses de inverno, tocaiam javalis e veados na floresta vizinha, montam armadilhas de peixes para lúcios e percas e arrastam na rede grandes cardumes de gastrópodes que vicejam nos rios, e que elas esmagam para fazer óleo. Também se empregam as redes para pegar aves aquáticas ao longo dos promontórios rochosos: cefos, martim-pescadores e êideres. Quando o mar está calmo, saem a pescar arenques ou arpoar golfinhos e toninhas. Passam algumas noites tocaiando focas que se reúnem nas margens. Todas essas atividades se evidenciam na coleção de ossos de animais que Lars Larsson recuperou: ossos de 87 espécies diferentes. Com tão imensa variedade, ele deduziu que as pessoas tinham vivido em Skateholm o ano inteiro. Mas depois Peter Rowley-Conwy pegou os ossos e analisou-os com seu íntimo conhecimento de anatomia, reprodução e comportamento animais.13 Rowley-Conwy constatou que os ossos de javali contavam uma história sobre a vida em Skateholm diferente da concebida por Lars Larsson — ou melhor, os bacorinhos é que contavam. O javali é um animal ideal para o arqueozoólogo pela rapidez de seu crescimento, de minúsculos bacorinhos recém-nascidos a um adulto grande desenvolvido. Em conseqüência, o tamanho do animal é um indicador preciso de sua idade, não em anos, mas em meses desde o nascimento. Os bacorinhos do Mesolítico nasciam mais provavelmente na primavera, como os de hoje. Calculando sua idade quando mortos, pode-se estabelecer em que mês ocorreu a caça. Claro, não se pode medir o verdadeiro filhote, pois só sobrevivem ossos individuais; mas alguns desses — como as falanges ou ossos dos pés —
dão uma estimativa muito precisa do bacorinho completo. Assim, Rowley-Conwy calculou os ossos em Skateholm e constatou que todos os javalis haviam sido mortos durante os meses de inverno. A mesma estação foi sugerida pelo estudo de mandíbulas de gamos e ossos de focas. Dos pássaros, quase todos eram visitantes de inverno; havia apenas dois ossos de possíveis migrantes de verão no litoral sueco: o pelicano dálmata e a marreca. Igualmente reveladora foi a ausência de espécies que teriam sido capturadas se as pessoas houvessem estado em Skateholm nos meses de verão. Bacalhau, cavala e peixe-agulha, por exemplo, teriam com certeza sido apanhados em grandes quantidades quando se aproximavam da costa para alimentar-se; mas se achavam representados apenas por 15 das 2.425 espinhas de peixes identificados. Isso sugere que as pessoas só pescavam no inverno, época em que esses peixes estavam bem distantes no mar Báltico. De sua canoa, Lubbock vê vários aglomerados de canoas ao longo das margens de Skateholm; algumas com tendas tipo pele-vermelha cobertas de couro, outras são choupanas de galhos em forma de domo, ou com estruturas de madeira meio precárias. Olhando mais de perto, ele vê que as pessoas em cada aglomerado também se vestem de forma muito diferente — algumas com longos xales, outras com peles. Têm rostos pintados ou lavados, pescoços e cinturas rodeados de contas ou quase nus. Parece haver pouco contato entre cada aglomerado, apenas um reconhecimento de má vontade de que também têm direito de acampar junto à lagoa. Assim que Lubbock ergue o remo para se aproximar da praia, um cão ladra. Um segundo o acompanha, junto com uma matilha no promontório oeste da lagoa. Cães grandes, meio parecidos com os pastores alemães de hoje. Cães ferozes. Lubbock decide permanecer vendo de longe. Os cemitérios de Skateholm escavados por Larsson sugerem famílias que mantinham frouxos laços entre si numa única comunidade, devido à imensa variedade de práticas funerárias. Contrastam muitíssimo com a uniformidade encontrada em Oleneostrovski Mogilnik. Depois de concluir suas escavações, Larsson constatou que os túmulos humanos tinham sido feitos aleatoriamente em seus cemitérios, sem nenhum padrão coerente. As pessoas eram enterradas deitadas de costas, de bruços, agachadas, sentadas, semi-reclinadas, com alguns membros dobrados e outros estendidos.
A maioria dos túmulos era de indivíduos sozinhos, cerca de igual número de mulheres e homens, embora se encontrassem alguns túmulos múltiplos. Algumas pessoas tinham sido cremadas, e outras tinham estruturas de madeira queimadas sobre suas sepulturas, como parte do rito de enterro. Algumas tinham os ossos rearrumados ou parcialmente retirados numa data posterior. A variedade de artefatos e ossos de animais encontrados nos túmulos combinava com a diversidade de práticas funerárias — quase toda combinação imaginável de instrumentos, pingentes e chifres. Os ossos, dentes, presas e galhadas de caça graúda terrestre — de veado-vermelho, cabrito montês e javali — eram os artigos de enterro preferidos. Mas um corpo de mulher tinha um recipiente de peixes depositado junto à perna inferior; outra, a caveira de uma lontra. A impressão é de famílias separadas escolhendo como enterrar seus mortos, apenas frouxamente limitadas pela convenção da comunidade e a prática ritual em geral. Havia poucos padrões claros entre o tipo de enterro e o tipo de pessoa, em termos de idade e sexo. Como em Oleneostrovski Mogilnik, os indivíduos mais ricos pareciam ser os na flor da vida. Portanto, poder e prestígio eram mais uma vez uma questão de realização pessoal, e não de herança. Havia limitadas diferenças entre homens e mulheres, os primeiros mais freqüentemente enterrados com as lâminas e machados de sílex, enquanto pingentes de dentes de auroque (bisão-europeu) parecem ter sido mais só para mulheres. Não há exemplos de indivíduos com desordenadas quantidades de riqueza nem que possam ter sido xamãs ou chefes. A presença de cães domesticados em Skateholm foi uma das mais importantes descobertas de Lars Larsson. Alguns ossos achavam-se espalhados nos dejetos domésticos, mas os indícios de domesticação vieram quando se encontraram túmulos de cães. No cemitério mais antigo, cachorros tinham sido sacrificados quando seus donos tinham morrido, juntando-se a eles na sepultura e no outro mundo. Mas no segundo cemitério — o em uso durante a visita de Lubbock — os cães tinham seus próprios túmulos e recebiam o mesmo tratamento fúnebre que os seres humanos. Um tinha uma galhada nas costas, três lâminas de sílex junto à coxa e um martelo de chifre enfeitado, e estava coberto de ocre vermelho.
Jogam-se pedras, os cachorros ganem e desaparecem. Mais uma vez, Lubbock ergue o remo e agora se aproxima um pouco mais da margem. Mas ao ter uma visão mais clara dos sentados e em pé perto das fogueiras, pára de novo a canoa. Um dos homens manca apoiado numa bengala; dois outros têm rostos com acentuadas cicatrizes; um bem pode ser cego. Lubbock decide abandonar uma visita a esse assentamento, um lugar de evidente tensão e violência sociais. Vira a canoa e ruma para a costa dinamarquesa a leste. Lars Larsson encontrou perturbadores indícios de que as pessoas de Skateholm tinham lutado agressivamente entre si mesmas ou com outras. Na verdade, o acúmulo de indícios a partir de cemitérios e túmulos isolados mostrou que a violência era endêmica nas comunidades do Mesolítico em todo o norte da Europa. Em Skateholm, constatou-se que quatro indivíduos tinham fraturas de afundamento de crânio — tinham sido atingidas em algum momento na cabeça com um instrumento contundente que deixara uma mossa permanente. Esses golpes talvez tenham simplesmente deixado as vítimas inconscientes, mas bem poderiam haver sido fatais. Pontas de flecha de sílex tinham atingido duas outras de Skateholm e continuavam no meio de seus ossos quando escavados por Larsson: uma fora atingida no estômago, a outra no peito. Podem ter sido inocentes acidentes de caça — mas isso dificilmente explicaria os crânios faturados. Parte da violência talvez tenha sido de natureza ritualística. Em Skateholm, uma jovem adulta fora morta por um golpe na têmpora e depois estendida junto a um homem mais velho numa única sepultura — talvez um sacrifício para juntar-se a seu parceiro, talvez a punição final por algum crime desconhecido. Mas a explicação mais provável para a violência é que essas comunidades mesolíticas lutavam para defender sua terra. Skateholm devia ser muito desejável para os caçadores-coletores, com abundantes provisões de comida na floresta, pântanos, rios, lagoa e mar. Quando as pessoas se dispersavam no verão, não deviam desejar abandonar a lagoa a estranhos indesejáveis, ou aos que viviam em regiões vizinhas mas menos produtivas. A maioria dos ferimentos na cabeça viera de golpes frontais ou laterais à esquerda — desfecho de um combate face a face com um adversário
destro. Os homens se metiam mais em lutas que as mulheres, tendo três vezes mais ferimentos na cabeça e quatro vezes mais de flechas. Pode-se facilmente imaginar grupos que retornavam à lagoa no fim do verão encontrando visitantes não convidados já presentes e lutando pela terra. Quando se tenta explicar a violência em Skateholm e outros lugares na Europa do Mesolítico, é útil pensar no povo indígena ianomâmi que vive na floresta amazônica. Morando em aldeias e dependendo substancialmente de alimentos selvagens, eles foram estudados em detalhe pelo antropólogo Napoleon Chagnon. Como a do Mesolítico, a violência é endêmica na sociedade deles, dentro e entre as aldeias. Varia de duelos ritualísticos envolvendo disputas de batidas no peito, lutas com porrete, ataques entre as aldeias e guerra total. Os homens são responsáveis pela maior parte da violência, e grande parte dela é por mulheres e sexo. Os duelos muitas vezes começam quando um homem pega outro em flagrante com sua mulher. Segundo Chagnon, "o marido enfurecido desafia o adversário a bater-lhe na cabeça com um porrete. Segura o seu na vertical, apóia-se nele e expõe a cabeça para o outro bater. Após suportar um golpe na cabeça, pode desferir outro no crânio do culpado. Mas assim que o sangue começa a jorrar, quase todos tiram um pau da construção da casa e entram na briga, apoiando um ou outro dos combatentes". O topo da cabeça da maioria é coberto de cicatrizes profundas, horríveis, das quais eles sentem imenso orgulho. Na verdade, alguns homens exibem as cicatrizes raspando os cabelos e passando pigmentos vermelhos, para assegurar que fiquem claramente definidas. Muitos ataques entre aldeias destinavam-se apenas a raptar mulheres, embora se afirmasse que seu propósito era acabar com a feitiçaria dos membros de uma aldeia contra a outra. Chagnon descreve conflitos extremamente violentos, sobretudo os que envolvem nomohori — traição — nos quais as pessoas visitam outra aldeia com falsos pretextos, matam com brutalidade os anfitriões e fogem com suas mulheres. Uma mulher capturada é tipicamente estuprada por todos os membros do grupo atacante e depois por qualquer outro homem na aldeia que decida fazê-lo. Um dos homens então a toma como esposa. A guerra ianomâmi proporciona uma atraente analogia para o que poderia ter ocorrido no Mesolítico do norte da Europa. E sempre perigoso em arqueologia, porém, pegar descrições de pessoas vivas e impô-las ao
passado, sobretudo quando as duas sociedades vieram de ambientes tão diferentes — os trópicos da América do Sul e as terras litorâneas da Escandinávia mesolítica não poderiam ser mais diferentes. E não há a menor dúvida de que os ianomâmis viviam em comunidades muito maiores e em assentamentos mais permanentes que os do Mesolítico. No entanto, as lutas de porrete ritualísticas e os grupos de ataque são atraentes explicações para os crânios fraturados e corpos perfurados nos cemitérios do Mesolítico. E homens brigando por mulheres sem a menor dúvida é uma das características mais antigas e generalizadas da sociedade humana. Um grupo de ataque poderia explicar o mais dramático sinal de violência da Europa mesolítica: os "ninhos" de crânios da caverna Ofnet na Alemanha. Encontraram-se duas covas rasas contendo crânios humanos cuidadosamente dispostos, todos com a aparência de cortados de corpos recém-mortos em alguma data por volta de 6.400 a.C. Um poço tinha 27, o outro seis, e a maioria vinha de mulheres e crianças. Vários exibiam feridas na cabeça, sobretudo os dos homens, um dos quais fora atacado com seis ou sete pesados golpes de machado. Quase todos tinham sido elaboradamente enfeitados com conchas de molusco ornamentais, dentes perfurados de veado-vermelho e ocre avermelhado. As conchas de molusco são notáveis por incluírem espécies de muito longe — o centro oriental da Europa, a alva Suábia e até o Mediterrâneo. Esses "ninhos" de crânios sugerem um ataque a um assentamento do Mesolítico semelhante aos feitos pelos ianomâmis. Se as cabeças foram cortadas de corpos já mortos ou os "prisioneiros" foram executados, continua sendo um ponto de macabra especulação, sobretudo em vista do envolvimento de tantas mulheres e crianças. Do mesmo modo, pode-se especular se o cuidadoso enterro foi realizado pelos sobreviventes, como um ato de luto e lembrança, ou pelos vitoriosos, para acalmar os espíritos das vítimas. Qualquer que seja o caso, é claro que a Europa mesolítica teve seus momentos de brutal violência e sangrenta matança. A explicação comum entre os arqueólogos para o aumento da violência nas sociedades mesolíticas do norte da Europa após 5.500 a.C. relaciona-se à pressão populacional sobre os decrescentes recursos. Desde 9.600 a.C., as florestas, lagoas, rios, estuários e litorais do norte da Europa tinham fornecido abundantes recursos selvagens. As populações dos primeiros colonos após a era glacial e as do Holoceno Inicial se tinham expandido
rapidamente — eles se achavam num Paraíso Mesolítico. Mas em 7.000 a.C., os que viviam nas terras da Suécia e Dinamarca modernas perdiam substanciais áreas para o mar em ascensão. As pessoas foram ficando cada vez mais apertadas em territórios cada vez menores, levando a intensa competição pelos melhores locais de caça, coleta de plantas e — sobretudo — pesca. Os problemas econômicos e sociais causados pela mudança ambiental foram exacerbados, porém, por uma nova força que entrara na vida dessas pessoas. Era a que já oprimira os ocupantes da Caverna Franchthi e Lepenski Vir e que se originara a grande distância no oeste da Ásia. Em 5.500 a.C., os camponeses haviam chegado ao centro da Europa e feito contato com o povo nativo, ou em pessoa ou por troca de bens. O desejo de terra, mulheres, peles e caça selvagem dos camponeses ajustava-se habilmente a necessidade dos povos do Mesolítico de novos artigos de prestígio como machados polidos, a fim de dedicar-se à sua própria competição social interna. Eles começaram a comerciar do outro lado de uma fronteira — camponeses ao sul do que hoje é a Polônia e a Alemanha, caçadores-coletores ao norte na Dinamarca e Suécia. Mas enquanto fazia prosperar os assentamentos agrícolas, esse contato causava ruptura social e tensão econômica para o povo do Mesolítico. E acabaria levando ao completo colapso cultural.
20 Na Fronteira A disseminação da agricultura na Europa Central e seu impacto na sociedade mesolítica, 6.000 – 4.400 a.C. Por volta de 6.000 a.C., os povos mesolíticos do norte da Europa ouviam relatos à beira da fogueira de visitantes sobre um novo povo no leste, pessoas que viviam em grandes casas de madeira e controlavam a caça. Em breve, encontraram os próprios vizinhos mesolíticos usando machados de pedra polida, modelando vasos de cozinha de barro e arrebanhando gado para si mesmos. Quando as aldeias agrícolas chegaram às suas terras de caça, olhos mesolíticos espiaram por trás de árvores as longas casas de ripas de madeira, o gado preso com cordas c as colheitas brotando, e sentiram emoções confusas — medo, reverência, desânimo, repugnância. A geração mais velha deve ter-se esforçado para entender o que via. Embora eles mesmos tivessem derrubado árvores e construído moradas, as novas fazendas estavam muito além da sua compreensão. Os agricultores pareciam decididos a controlar, dominar e transformar a natureza. A cultura mesolítica não fora mais que uma extensão do mundo natural. Seus machados de pedra lascada eram apenas uma elaboração da obra da natureza, o uso por ela de rios e geadas para fragmentar nódulos de pedra e fazer pontas afiadas. Cestos de palha e tapetes tecidos não passavam de formas extravagantes de teias de aranha e ninhos de pássaros feitos por mãos humanas. A cerâmica dos agricultores — produto de barro e areia misturadas, cozido, decorado e pintado — não tinha precedentes no mundo natural. Quando amolavam e poliam seus machados, alisando-os, os agricultores pareciam decididos a negar a angulosidade natural da pedra. Construir uma casa mesolítica exigia não mais que promover e combinar a existente flexibilidade da aveleira, o encordoamento do salgueiro e as folhas de casca da bétula que já vinham prontas para o uso; as longas casas de ripas de madeira, por outro lado, exigiam que se rasgasse a natureza e
construísse o mundo de outra forma. É possível que os homens e mulheres mais velhos se tivessem retirado das florestas do centro da Europa, abandonado seus terrenos de caça e insistido em que se passasse mais tempo celebrando o mundo natural. Mas cantavam e dançavam contra a maré da história: a geração mais moça tinha idéias muito diferentes. Vários já haviam nascido num mundo em que agricultores, cerâmica, gado e trigo eram tão naturais quanto o javali e as coletas anuais de nozes e bagas. E assim fizeram contato com os recémchegados. Trabalharam para os agricultores como mão-de-obra, rastreadores e caçadores. Dedicaram-se ao comércio, aprenderam a fazer cerâmica e a arar a terra. Suas filhas casavam-se com os agricultores e logo seus filhos se tornavam eles próprios agricultores. Os que continuaram com sua cultura mesolítica nas florestas do norte tiveram de ajustar seus padrões de caça e coleta tradicionais. Tinha-se de obter peles, caça, mel e outros produtos florestais para o comércio; os recursos naturais eram atacados e ficavam mais esgotados. E à medida que um número cada vez maior de mulheres se juntava aos camponeses, vendo a agricultura como uma garantia de muito maior segurança para si mesmas e seus filhos, passava a ter menos delas para manter as populações mesolíticas. Terra e mulheres tornaram-se fontes de tensão que muitas vezes transbordavam na violência tão brilhantemente documentada nos túmulos mesolíticos. Em 5.500 a.C., um novo tipo de cultura agrícola surgira das margens da planície húngara: a Linearbandkeramik, que os arqueólogos felizmente abreviaram para LBK. Propagou-se com espantosa rapidez para leste e oeste, para a Ucrânia e o centro da Europa. Enquanto Lubbock remava a canoa para Skateholm, os agricultores da LBK transpunham e abriam clareiras nas florestas transitórias da Polônia, Alemanha, Países Baixos e leste da França. Era um tipo de Neolítico muito diferente do que surgira na Grécia e se espalhara para o norte pelos Bálcãs até chegar à planície húngara. Como indica seu nome, LBK, esses agricultores decoravam sua cerâmica com faixas de linhas finas; construíam longas casas de madeira e dependiam do gado bovino, em vez de carneiros e cabras. No entanto, os arqueólogos tradicionalmente julgavam que os agricultores da LBK eram descendentes diretos dos imigrantes originais do oeste da Ásia e representavam uma
nova fase de sua migração pela Europa. A identidade deles agora foi contestada. Marek Zvelebil afirma que os povos do Mesolítico que viviam nas periferias da planície húngara adotaram práticas agrícolas por si mesmos — observando e aprendendo com os novos imigrantes, trocando estoques e grão domésticos. É provável que tenha havido alguma mistura das populações, talvez pelo casamento, talvez pelo roubo de mulheres ao estilo ianomâmi. Mas as pessoas do Mesolítico fizeram muito mais que apenas copiar os imigrantes. Adaptaram o estilo de vida agrícola para ajustar-se aos solos, climas e florestas do centro da Europa — criaram elas próprias a LBK. E quando suas novas populações agrícolas começaram a expandir-se, elas se espalharam ao mesmo tempo para leste e oeste, mantendo uma admirável consistência em todos os aspectos de sua nova cultura — a arquitetura das casas, a disposição das aldeias, a organização social e economia. E assim, segundo Zvelebil, os camponeses neolíticos LBK da Europa eram descendentes diretos dos caçadores-coletores mesolíticos nativos, e não dos imigrantes que haviam chegado originalmente à Grécia. Qualquer que tenha sido sua ancestralidade, os novos agricultores viajaram para oeste a notável velocidade, cobrindo 25 quilômetros por geração. Assim como os agricultores imigrantes originais do sudoeste da Europa, encheram cada nova região de solos férteis com fazendas e aldeias e depois saltaram solos menos favoráveis, estabelecendo uma nova fronteira. Essa rapidez reflete mais que o sucesso de seu estilo de vida — indica uma ideologia de colonização, uma atração pela "vida de fronteira", semelhante, alguns sugeriram, à dos bôeres da África do Sul e os pioneiros do oeste americano. A mentalidade "de fronteira" talvez possa explicar também a uniformidade cultural dos agricultores LBK. Uma casa da aldeia de Cuiryles-Chaudardes, na bacia de Paris, vai parecer quase idêntica a uma de Miskovice, na República Tcheca, construída a quase mil quilômetros de distância e vários anos antes. Os da fronteira aderiram a um assentamento "ideal", que lembravam de sua terra natal, embora essa "terra natal" tivesse começado a mudar — como tinham feito os colonos agrícolas em Chipre, perseverando em suas pequenas habitações circulares quando a arquitetura retangular se tornava ubíqua no oeste da Ásia. Os novos agricultores do centro da Europa roçavam pequenas faixas de
florestas e construíam longas casas, em geral de 12 metros de comprimento, às vezes três ou quatro vezes maiores. Trigo e cevada eram cultivados em pequenos tratos, às vezes com ervilhas e lentilhas. Seu gado pastava nas exuberantes matas e os porcos chafurdavam no lixo de folhas embaixo das árvores. Como ocorrera em Nea Nikomedeia, a família era a unidade social essencial; tomava suas próprias decisões e tentava manter sua independência, mas no fim continuando a depender das outras em tempos de necessidade. As longas casas eram sólidas, construídas com três colunas de madeira internas, ladeadas por fileiras de estacas que suportavam as paredes de taipa. O barro do reboco era muitas vezes retirado da parte externa imediata das próprias paredes, criando convenientes fossos para jogar fora o lixo doméstico. Dentro, as longas casas eram em geral divididas em três partes, possivelmente usadas para armazenagem, cozinha e refeição, e para dormir. Tem de ser "possivelmente", porque todas as gerações de agricultores posteriores, incluindo os dos tempos modernos, foram atraídos exatamente para os mesmos solos férteis preferidos pela LBK. Os pisos das longas casas foram destruídos por arados modernos, deixando os arqueólogos apenas com os círculos de terra escurecida que marcam onde as estacas de madeira sustentaram um dia telhados e paredes. Algumas das longas casas ficavam sozinhas dentro das matas; em outros lugares, 20 ou 30 alinhavam-se cm ordem, cada uma com as portas dos fundos dando para o leste. Nessas aldeias, as casas achavam-se em vários estágios de conservação. Quando o último membro de uma casa morria, a morada era abandonada, mesmo tendo a estrutura perfeita. Era simplesmente deixada para desabar na aldeia, e terminava como um longo monte baixo de detritos — uma casa "morta" para combinar com a família "morta". As próprias pessoas eram enterradas em cemitérios contíguos à sua aldeia. A preservação de ossos é em geral tão má que raras vezes sobrevive alguma coisa mais que débeis traços de esmalte de dente durável em cada cova. Quando se encontram ossos, eles sugerem que todos os membros da comunidade foram enterrados juntos — homens e mulheres, velhos e crianças. Machados, enxós, pontas de flecha e ornamentos de concha são muitas vezes colocados com os homens, esmeris e sovelas com as mulheres. Não há vestígios de indivíduos muito
ricos ou poderosos, e só poucos indícios de crença religiosa e práticas rituais. John Lubbock ainda não encontrou nenhum desses agricultores quando explora o mundo da Dinamarca mesolítica a desintegrar-se lentamente. Mas sua jornada logo o colocará frente a frente com os recém-chegados. Da baía de Skateholm, ele transpôs a costa dinamarquesa e depois viajou para o norte, e agora chega a uma estreita enseada que acabará por tornar-se uma terra pantanosa atrás da cidade de Vedbaek, uns 20 quilômetros ao norte de Copenhague. Em 4.800 a.C., a enseada é muito parecida com a lagoa de Skateholm — um valorizado local de caça, pesca e aves selvagens, pela qual as pessoas se dispõem a lutar e morrer, e onde vão morar até muito depois da morte. Vários pequenos assentamentos se espalham em volta de suas margens; Lubbock opta por visitar um e constata que foi abandonado recentemente — as fogueiras ainda fumegam e um cachorro preso a uma corda acabou de ser alimentado. Os habitantes estão reunidos no cemitério, num outeiro baixo atrás da aglomeração de suas cabanas de mato cerrado. Espremendo-se entre eles, Lubbock vê um recém-nascido sendo baixado numa cova perto da jovem mãe. Ela não parece ter mais de 18 anos; na certa esse foi o primeiro e último filho que teve. Deitada de costas, parece resplandecente — o vestido tem argolinhas de contas de concha de lesma e uma legião de belos pingentes. Um manto com decoração semelhante foi dobrado para fazer um travesseiro no qual se espalhou seu cabelo louro. As faces ardem em intenso fulgor, empoadas com ocre vermelho — talvez um lembrete do sangue que correu. O corpinho arroxeado é estendido ao lado dela, não na terra, mas envolto no último abraço macio de uma asa de cisne. Põem uma grande lâmina de sílex sobre o minúsculo corpo, como se teria feito se o bebê tivesse crescido e morrido como adulto. Lubbock vê o pigmento vermelho em pó ser soprado de uma cumbuca de madeira e cair flutuando sobre o cadáver do bebê. Quando escavado em 1975, esse túmulo foi simplesmente designado como "Cova 8" do cemitério de Bogebakken, localizado durante a construção de um estacionamento de carro. Escavaram-se mais 16 outras sepulturas; quase todos os corpos tinham sido identicamente arrumados — de costas, os pés juntos e as mãos aos lados. As sepulturas eram em
bem cuidadas fileiras paralelas, muito diferentes da arrumação aleatória dos corpos em posições variadas em Skateholm. A asa de cisne na Cova 8 talvez tenha sido muito mais que um confortável lugar de descanso para o quase filho. Entre o povo Saami do norte da Europa do século XIX, cisnes e aves selvagens eram os mensageiros de Deus. Esses pássaros, afinal, podiam andar na terra, nadar na água e voar no ar — capazes de mover-se entre diferentes mundos. Talvez as pessoas do Mesolítico tivessem igualmente reverenciado seus cisnes e deixado que um fizesse aquela criança voar para seu outro mundo, onde poderia ter a vida que lhe fora negada na terra. De Vedbaek, Lubbock dirige-se para o sul, mantendo-se perto da margem e passando por densos leitos de junco sob os amieiros que bordejam a frondosa floresta estival. Um profundo aroma musgoso de detritos decompostos flutua dos rasos, mas em toda a volta sente-se a vibrante azáfama de vida — peixes e sapos saltando, libélulas, patos e uma trilha aparentemente contínua de aldeias e campos de pesca ao longo da margem. Embora as pessoas que Lubbock encontra reverenciem os veadosvermelhos e os javalis das florestas, esses animais não são caçados com freqüência e pouco contribuem para a dieta, quando comparados com o constante suprimento de comidas do mar e de água doce: peixes, crustáceos, pássaros, enguias, camarões e uma ou outra foca ou toninha. Felizmente para os arqueólogos, essa dieta do Mesolítico deixará um traço químico em seus ossos. Não fosse por isso, e as técnicas científicas para analisar a química de ossos, os arqueólogos poderiam facilmente ter julgado que o povo mesolítico dependia mais da caça que da pesca, em vista de sua preferência por ornamentos leitos de dentes de gamo e presa de javali. A pesada dieta marinha talvez explique por que as pessoas que Lubbock encontra parecem indispostas: barrigas dilatadas, rostos pálidos, diarréia e náusea. Copiosas quantidades de peixe podem levar a uma infestação de parasitas, que por sua vez prejudica o funcionamento dos rins e intestinos. Só resta um traço arqueológico disso quando a infestação se torna grave — os ossos do crânio às vezes engrossam, como se constatou em alguns espécimes do Mesolítico na Dinamarca. No assentamento de Tybrind Vig, na costa oeste da Zelândia, Lubbock
aperta-se na parte de trás de uma canoa que parte para a pesca noturna nas águas superficiais de uma baía de fundo lodoso. Quando cai a escuridão, acende-se uma fogueira num leito de areia na própria canoa e logo um emaranhado de enguias pulula em torno do barco, atraído pela luz. Os pescadores põem-se em posição vertical para fisgá-las com arpões de três dentes. Lubbock permanece sentado, vendo as mariposas em volta das chamas e admirando a excelente canoa feita de um único toro de limoeiro — e mais particularmente os remos em forma de coração. Cada um foi esculpido de freixo e depois decorado com um intrincado desenho geométrico, talhado na superfície e preenchido com pigmento marromescuro. Lubbock vira remos semelhantes em uso quando andara pela margem; seus companheiros do Mesolítico sabiam imediatamente, pelo desenho, de onde viera a canoa e para onde era possível que fosse. Lubbock logo percebeu que as pessoas do Mesolítico estavam tão atentas no controle do paradeiro umas das outras quanto no dos cardumes e animais. Das ilhas, Lubbock atravessou para a Jutlândia e a mata aberta de seus solos arenosos no outro lado. O extremo norte da Jutlândia é profundamente endentado com fiordes, e ele encontra pessoas criando enormes montes de conchas de molusco, espinhas de peixe e outros dejetos domésticos. Já lera sobre esses sítios em Tempos pré-históricos. Na década de 1860, seu xará vitoriano fez duas visitas aos monturos de conchas, ou Kokkenmoddinger, como os chamavam os arqueólogos do século XIX. Durante uma visita, o John Lubbock vitoriano escavou sua parte num monturo e recolheu instrumentos de sílex. O Lubbock moderno chegou ao que hoje chamamos de monturo Ertebolle: uma contínua massa de conchas de cerca de 20 metros de largura, vários de espessura e estendendo-se por mais de 100 pela margem. Uma extremidade é pantanosa e junto à fonte que primeiro atraiu as pessoas ao lugar. Os vastos bancos de ostras, mexilhões, berbigões e litorinas encontrados logo ao largo também eram atraentes — produto de água salgada rica em nutrientes e abrigada. Ele senta-se numa pilha de conchas e ossos jogados fora junto ao lugar onde grupos de pessoas se acham em ação. O cheiro do monturo de lixo é quase esmagador, mas só Lubbock parece notar. Algumas pessoas trabalham em pedras; outras se agrupam em volta de fogueiras ou estripam peixes. A atenção de Lubbock é atraída, porém, para uma atividade que jamais vira um caçador-coletor
realizar: uma mulher transforma um punhado de barro num vaso de cerâmica. Todos os que trabalharam no monturo em 4.400 a.C. deixaram vestígios para Soren Andersen, da Universidade de Aarhus, encontrar quando escavou Ertebolle em 1983: conjuntos de lascas de sílex, ossos de animais amontoados em volta de poços cheios de carvão, densas pilhas de espinhas de peixe. Andersen não foi o primeiro a escavar o sítio. Quase cem anos antes, o Museu Nacional investigara o grande monte de concha e usara seu nome para o último dos povos do Mesolítico na Dinamarca: a cultura Ertebolle. O John Lubbock moderno lera sobre o trabalho do Museu em Tempos pré-históricos. Formara-se um comitê composto de um biólogo (Professor Steenstrup), um geólogo (Professor Forchhammer) e um arqueólogo (Professor Worsaae) para examinar o Kokkenmoddinger — a pesquisa interdisciplinar sempre foi reconhecida como necessária para investigar o passado. Como escrevera o John Lubbock vitoriano: "Muito, claro, se esperava desse triunvirato, e as esperanças mais entusiásticas foram realizadas." Soren Andersen, trabalhando com sua própria equipe interdisciplinar, escavou dentro e em volta do monturo, à procura de casas e túmulos. O John Lubbock vitoriano supusera que as conchas se acumulavam em volta de "tendas e cabanas", os montes sendo "sítios de antigas aldeias". Mas Andersen não encontrou casa alguma; o John Lubbock moderno poderia ter-lhe dito por quê. Apenas abrigos frágeis eram erguidos em volta do monturo e, quando se expandiam, os escassos traços de sua presença — buracos de estacas de sustentação — eram enterrados por novas camadas de conchas. Mas o John Lubbock moderno não viu sinais de um cemitério e continuou tão ignorante quanto Soren Andersen em relação ao que acontecia com os mortos. Como todos os caçadores-coletores, as pessoas de Ertebolle sabiam exatamente onde, quando e como explorar diferentes animais e plantas à medida que mudavam as estações. No inverno, iam para o extremo norte da Jutlândia pegar os ruidosos cisnes europeus que chegavam como migrantes à costa dinamarquesa — deixando um conjunto de ossos de cisne esquartejados e artefatos hoje conhecidos como sítio de Aggersund. Alguns iam para Vanego So, uma ilhota na costa leste e perto da margem de uma baía rasa. Era perfeita para baleias desgarradas. Durante os meses
de outono, visitavam regularmente a ilhota de Dyrholm. Ali pegavam enguias que abundavam nos baixios e esfolavam-nas com facas de lâmina de pedra. Esses movimentos sazonais ao longo da costa foram identificados por uma detalhada análise de ossos de animais feita por Peter Rowley-Conwy na década de 1980, usando as últimas técnicas de "arqueozoologia", e indicaram a probabilidade de que algumas pessoas tenham vivido permanentemente no monturo de Ertebolle. Ele apenas desenvolvia, porém, as intuições do John Lubbock vitoriano, que já concluíra "ser altamente provável que os ‘construtores de montes' habitassem a costa dinamarquesa o ano inteiro", baseado nos vestígios de ossos de cisne, chifres e os ossos de mamíferos jovens descobertos nos monturos. Os primeiros indicavam ocupação de inverno, pois os cisnes eram migrantes da estação fria; os segundos sugeriam outono, quando brotavam as galhadas dos gamos; e os terceiros, primavera, quando nascem os filhotes. O John Lubbock vitoriano era arqueozoólogo antes de se conhecer o termo. Também era atento aos vestígios botânicos, observando que a ausência de grãos sugeria que faltava "aos homens dos Kokkenmoddinger" qualquer conhecimento de agricultura. Nem as conchas escaparam de sua mente investigativa; o John Lubbock vitoriano notou que as dos monturos eram muito maiores que as que se encontram hoje na costa dinamarquesa, e que as ostras haviam desaparecido completamente. Chegou a essa conclusão pelas concentrações modificadas de sal na água — antecipando em um século a afirmação de Peter Rowley-Conwy de que a menor salinidade provocara o abandono dos montes de concha e a mudança para uma economia agrícola. A cerâmica mesolítica feita em Ertebolle era muito diferente da que Lubbock vira em Nea Nikomedeia; simples, de contornos densos e desiguais, e moldadas por mãos inexperientes. Essa cerâmica não era inesperada, pois em Tempos pré-históricos o John Lubbock vitoriano diz ter encontrado "pequenos pedaços de uma cerâmica muito tosca" durante sua visita de 1863. O John Lubbock moderno viu os vasos completos: potes com fundos em ponta e travessas rasas. Eram usados sobretudo para cozinhar, uma grande vantagem sobre os feitos de madeira e palha.
A visão de caçadores-coletores fazendo cerâmica é apenas um dos vários sinais de mudança que Lubbock encontra ao prosseguir em sua viagem pela Dinamarca do Mesolítico. Outro são jovens com machados de pedra polida ostensivamente enfiados nos cintos — figuras bonitas, altas, muito diferentes da "raça de homens pequenos, com testas projetadas para fora", que o John Lubbock vitoriano imaginara vivendo na Dinamarca do Mesolítico. A origem desses machados começa a tornar-se evidente no último dos assentamentos que Lubbock visita na Dinamarca do Mesolítico: Ringkloster. Surpreendentemente, esse fica no interior, localizado atrás da borda de um lago no noroeste da Jutlândia — o John Lubbock vitoriano achara "evidente que uma nação que sobrevivia sobretudo de moluscos marinhos jamais iria formar quaisquer grandes assentamentos no interior", Nisto se enganou. Mas apenas por pouco, pois após 150 anos de pesquisa, Ringkloster continua sendo o único assentamento no interior da Dinamarca do Mesolítico conhecido atualmente. O John Lubbock moderno encontra o assentamento no meio de uma paisagem de estonteante beleza, com encostas florestais íngremes, extensos vales, pântanos e lagos. Muitas das árvores da mata — carvalho, olmo, limeira e aveleira — acham-se cobertas de espessa hera, e densos amieiros vicejam à beira do lago. Lubbock chega a Ringkloster ao cair da tarde, no meio do inverno, encontrando um aglomerado de cabanas de galhada cobertas de neve. A floresta foi aberta pela derrubada de limeiras e olmos — a madeira preferida para canoas e remos. As pessoas se ocupam em volta das cabanas, todas muito bem vestidas e enfeitadas com contas. Homens e mulheres trançam os cabelos e pintam os rostos. Nas cabanas, Lubbock vê os agora conhecidos artefatos da vida mesolítica: arcos e flechas, machados de pedra e cestos de vime. Numa, porém, percebe uma coisa nova: fardos de peles grossas, atadas com guita e prontas para ser transportadas. Lubbock vê cestos de lixo levados e jogados no lago, e os cachorros estão amarrados a estacas. No centro do assentamento, um imenso javali é assado no espeto; a terra em volta foi desobstruída da neve e torrada com tapetes de cascas de árvores. É claro que esperam visitantes. Lubbock trepa numa árvore para observar de certa distância. Uma hora depois, Ringkloster é cenário de um grande banquete; os visitantes chegaram da costa e trouxeram muitos artigos para trocar —
cestas de ostras, filés de golfinho salgados, contas feitas de âmbar dourado, são trocados pelas luxuosas peles de inverno por cujo fornecimento Ringkloster é famosa. Durante dois meses, sua gente andou capturando com armadilhas martas, gatos selvagens, texugos e lontras. Acumulou unia grande quantidade de peles, aprontando-se para a chegada dos negociantes que virão durante todo o inverno e até bem avançada a primavera. O javali assado é comido e refrescos servidos em vasos de cerâmica de impressionante decoração — um contraste com a cerâmica do Mesolítico simples e sem graça que Lubbock viu em outros lugares. Alguns têm um padrão de tabuleiro de xadrez, outros linhas sinuosas pontilhadas, feitas com ponta de faca sobre o barro úmido. Alguns vasos têm linhas paralelas e parecem de excelente qualidade — lisos e uniformes, mesmo nas superfícies, com paredes finas e forma elegante. O banquete continua pela noite adentro e é seguido por relatos de histórias, canto e dança. Na manhã seguinte, os visitantes partem carregados de peles e com Lubbock a reboque. Os que ficam em Ringkloster continuam a captura com armadilhas e a caça, e o farão até muito depois da presença dos primeiros agricultores na própria Dinamarca. Soren Andersen escavou o assentamento na década de 1970; Peter Rowley-Conwy analisou os ossos de animais e encontrou vestígios de caça de javali e intensa captura de animais peludos em armadilhas, Descreveu certa vez Ringkloster "como o mais excelente de todos os sítios". Lubbock continua com as peles de marta enquanto são trocadas de grupo em grupo pela costa leste da Jutlândia, Zelândia, Aero, e por fim no norte da Alemanha. Ao viajarem para o sul, as pessoas do Mesolítico parecem cada vez mais preocupadas com a identidade e limites territoriais: cada grupo pode ser identificado pelas roupas e estilos de penteado, e pela maneira como fazem seus instrumentos. Algumas têm os arpões retos e outros curvos; uns fizeram seus machados de pedra com lados paralelos e outros com uma cortante lâmina evasê. Lubbock lembra a época em que começou o Mesolítico, a época de Star Carr — quando uma virtual identidade existia na cultura humana em todo o norte da Europa. A antiga ordem mesolítica fragmentou-se e logo desapareceu. Os fardos de peles vão aos poucos reduzindo-se em número e aumentando em valor. Por fim, não resta mais que um pequeno cesto de
peles de marta. Lubbock observa quando estas são levadas para a clareira de uma floresta no norte da Alemanha em 4.400 a.C. Um caçador, acompanhado pelos dois filhos e a filha pequena, estende-a no chão. Um homem avança das árvores do outro lado e põe um machado de pedra polida junto às peles. Sem poder comunicar-se com palavras, os dois — um do Mesolítico e o outro do Neolítico LBK — usam sutis movimentos da cabeça, estreitam olhos e erguem sobrancelhas para assegurar que suas opiniões sejam entendidas. Assim que a troca é feita, cada um recua, antes de erguer uma das mãos em despedida. Quando o caçador-coletor parte com a filha e os filhos, ouve o chamado do agricultor. Ao voltar-se, o agricultor aponta a menina. O caçador-coletor pára e depois concorda — na próxima vez que se encontrarem, ela será sua esposa. O caçador-coletor a conduz pela pequena mão para a trilha que leva ao terreno de sua casa e imagina os machados e grãos de cereal que trará a união. Lubbock está na fronteira — entre os agricultores LBK e os caçadorescoletores nativos das florestas. A clareira é um conhecido lugar de encontro, mas ainda nada demarcada por construções humanas. Poucas gerações depois, os agricultores vão construir casas e cercá-las com um fosso. Os arqueólogos acabarão conhecendo seu povoamento como Esbeck. Alguns afirmarão que o fosso foi feito para defesa contra os caçadores-coletores remanescentes, que se tornaram hostis depois que sua cultura mesolítica desapareceu quase por completo.
21 Um Legado Mesolítico O Neolítico no sul da Europa, 6.000 - 4000 a.C; Debates de lingüística e genética históricas A viagem de canoa final das excursões européias de Lubbock leva-o além das ilhas que se erguem como gigantescas rochas entre os Países Baixos e o sul da Inglaterra. Estas, e uma ilha maior ao largo de Yorkshire, são todas remanescentes da Doggerland — as terras baixas pelas quais Lubbock seguiu a pé após deixar Creswell Crags em 12.700 a.C. A GrãBretanha é de novo uma ilha — pela primeira vez em 100 mil anos. Lubbock não tem tempo para retornar à Caverna Gough, percorrer a floresta de carvalhos que agora se expande onde ele pegou com armadilha lebres árticas na tundra e viu corujas da neve. Sua jornada européia está quase no fim. Numa escura noite no ano de 4.500 a.C., ele se aproxima de um assentamento hoje chamado pelos arqueólogos de Téviec e localizada na costa do norte da França. Seu destino é assinalado por luz de fogueira e música. Um banquete e um enterro em andamento, com talvez uma centena de pessoas atentamente concentradas em silhuetas que oscilam perto das chamas. A dança e o canto param de repente, e os elementos são absorvidos: o crepitar das chamas, o distante quebrar dos vagalhões do Atlântico e o vento uivante. Lubbock olha o cadáver junto ao fogo: um homem com uma basta barba e espessos cabelos pretos, o corpo vestido, decorado com contas e salpicado de ocre vermelho. Um vulto fantasiado — semi-humano, semiveado chifrudo — salta sobre as chamas batendo um tambor. Dirige-se ao morto e ordena que sejam levantadas lajes de pedra da terra. Duas mulheres avançam e erguem-nas, expondo outro corpo numa sepultura ladeada por pedras. Lubbock curva-se para a frente e vê os ossos claramente definidos entre a pele amarela esticada. O xamã ajoelha-se junto à sepultura e afasta para o
lado o corpo desidratado — que se desintegra, os ossos misturando-se com outros ainda mais velhos já empilhados dentro. O novo corpo é posto na cova. Um por um dos pertences do falecido é arrumado ao seu lado e um conjunto de lâminas de sílex sobre seu peito. Após mais um borrifo de ocre vermelho, as lajes são recolocadas no lugar. Acende-se então uma fogueira na sepultura, na qual se põem solenemente as mandíbulas de um veado-vermelho e um javali. Quando as chamas se extinguem, reiniciamse o canto, a dança e o banquete. John Lubbock participa — da última dança de suas viagens européias. O assentamento-cemitério mesolítico de Téviec foi descoberto e escavado pelos arqueólogos franceses M. e S. J. Péquart em fins da década de 1920 e na de 1930, junto com um cemitério vizinho conhecido como Hoëdic. Esses sítios haviam sido localizados muito antes em baixos outeiros numa extensa planície litorânea, mas o mar em elevação deixara-os em ilhotas ao largo da Grã-Bretanha. O estudo dos túmulos, esqueletos e detritos domésticos mostrou que os habitantes mesolíticos da fronteira marítima do Atlântico partilhavam muitas características com os das terras escandinavas. Tinham uma alimentação diversa — grandes mamíferos, aves aquáticas, crustáceos, frutos e nozes — e lutavam para proteger seu território e suas mulheres. Também usavam a roupa para anunciar sua identidade: os alfinetes dos mantos usados pelos enterrados em Téviec eram feitos dos ossos de javali, e os das pessoas de Hoëdic, de ossos de veado. Poucos de nós hoje saberíamos diferenciar esses prendedores de manto, mas as diferenças teriam sido gritantes aos olhos mesolíticos. Os artigos valorizados pelas pessoas de Téviec e colocados em seus túmulos eram muito parecidos com os que Lubbock vira em outras partes: lâminas de sílex, dentes de gamo, presas de javali c adagas de osso. Os mais ricos encontravam-se de novo com os adultos mais jovens, que conquistavam sua riqueza pela força física e agilidade mental, e depois a perdiam quando a velhice lhes reduzia a rapidez. Como em Oleneostrovski Mogilnik, os homens eram enterrados com artigos mais utilitários que as mulheres, e os sexos tinham suas próprias jóias distintas: caurins para os homens e contas de litorina para as mulheres. Os túmulos múltiplos são uma das mais impressionantes características dos cemitérios de Téviec e Hoëdic. Precisamos imaginar — assim como
imaginaram os Péquarts e arqueólogos posteriores — que os enterrados em túmulo revestido de pedras eram membros de uma única família; os laços sangüíneos parecem ter sido de particular importância para essa gente. Mas nem todos os túmulos eram desse tipo. Muitos eram de indivíduos solitários, e alguns cobertos por estruturas em forma de tenda feitas de galhadas. Não nos devemos surpreender com a abundante indicação de ritual e banquete em Téviec e Hoëdic: seus habitantes deviam sentir-se inseguros e precisavam apaziguar os deuses. Não apenas enfrentavam o impacto dos agricultores da cultura LBK, que viviam não mais de 50 quilômetros a leste, mas também perturbação idêntica vinda do sul. Enquanto a LBK se espalhava pela Europa central, os sítios do Neolítico surgiam em volta da costa mediterrânea. Alguns arqueólogos acreditam que estes se originaram com a chegada de imigrantes, descendentes diretos de agricultores no oeste da Ásia cujos recentes ancestrais haviam criado assentamentos na Grécia e no sul da Itália, como Nea Nikomedeia. Outros arqueólogos rejeitam essa idéia; acreditam que o próprio povo nativo do Mesolítico do centro e oeste do Mediterrâneo adotou a cultura neolítica, após fazer contato com agricultores tio leste. O ponto de concordância é que o Neolítico mediterrâneo entre 6.000 e 4.500 a.C. parece muito diferente do da Europa central. Naquela região, há uma clara separação entre sítios que têm o "pacote" Neolítico completo, por um lado — os da LBK com casas revestidas de madeira, gado, carneiro, colheitas, cerâmica e machados de pedra — e do outro sítios do Mesolítico, com microlitos, ossos de gamo e javali. No Mediterrâneo, porém, os elementos mesolíticos e neolíticos misturam-se em sítios individuais, parecendo ter sido usados pelas mesmas pessoas ao mesmo tempo. São predominantemente sítios de caverna e, para arqueólogos como James Lewthwaite, da Universidade de Bradford, e Peter Rowley-Conwy, esses sítios sugerem que os caçadores-coletores nativos escolheram seletivamente do pacote neolítico, sem desejar tornarse eles próprios agricultores completos. Lewthwaite afirmou que os habitantes mesolíticos da Córsega e Sardenha adotaram carneiros e cabras para compensar a falta de caça — os veados-vermelhos jamais colonizaram aquelas ilhas. Após fazer isso, evitaram os cereais e as casas de madeira para continuar com seu
tradicional estilo de vida de caça e coleta, que agora se tornava mais seguro com os pequenos rebanhos dos quais cuidavam. Outros caçadores-coletores optaram pela cerâmica do pacote neolítico como uma coisa útil na cozinha e eficaz para exposição social. Calcavam conchas no barro mole para fazer vasos de desenho, muito diferente de quaisquer outros leitos na Europa. Alguns preferiram adotar o cultivo de cereais para compensar lacunas sazonais na disponibilidade de alimentos selvagens: semeavam-se grãos, trigo ou cevada exatamente como se fossem mais uma planta selvagem. Em conseqüência dessa adoção parcial e desordenada do pacote neolítico, pessoas que não eram nem estritos caçadores-coletores do Mesolítico nem agricultores do Neolítico ocuparam o Mediterrâneo. Os que usaram a caverna Arene Candide, na paisagem de rochedos escarpados e vales estreitos do noroeste da Itália, caracterizaram o tipo híbrido dos estilos de vida que surgira. Escavações na década seguinte a 1946 revelaram uma longa seqüência de camadas de ocupação, começando com os detritos de caçadores-coletores e terminando com agricultores completos. Entre os dois extremos, estavam os detritos de pessoas que viveram da caça de javali no estilo mesolítico e criação de ovelhas no estilo neolítico. Esta foi a conclusão de Peter Rowley-Conwy, após estudar os ossos de animais. Ele constatou que os porcos tinham sido selvagens e caçados pelo grande tamanho dos ossos. Do mesmo modo, viu que os carneiros eram mantidos para dar leite, porque demasiados filhotes tinham sido mortos. Por esse método, o leite de fêmeas adultas ficava disponível para uso humano. Assim como as que habitavam a Córsega, as pessoas de Arene Candide no Mesolítico haviam fundido elementos da cultura neolítica com seu tradicional estilo de vida mesolítico. Na década de 1980, a maioria das pessoas acreditava que esse tipo de adoção desordenada da cultura neolítica fora em grande parte responsável pela gradual disseminação da cultura agrícola por todo o centro e oeste do Mediterrâneo, depois ao longo da fachada atlântica de Portugal e França e pelos principais vales do Ródano e Garonne. Mas João Zilhão, da Universidade de Lisboa, já desde então contestava essa crença. Ele acha que devemos voltar às idéias popularizadas por Gordon Childe na década de 1930 sobre agricultores imigrantes que trouxeram o pacote neolítico completo às praias mediterrâneas.
Segundo Zilhão, os dados dos sítios das cavernas, que supostamente mostram cerâmica e carneiro lado a lado com animais caçados e artefatos mesolíticos, foram mal-interpretados. Essas associações, afirma, são causadas por animais furões, responsáveis por uma confusão total de qualquer estratigrafia que possa ter sobrevivido. Ele sugere que os ossos de cabras selvagens foram às vezes confundidos com carneiros domesticados, e as datas de radiocarbono são ou um erro crasso, por terem sido contaminadas, ou mal-interpretadas; e também que foram usadas para datar fragmentos de cerâmica com as quais não tinham a menor associação. Zilhão enfatiza que a ascensão final do mar inundou a costa onde se tinham estabelecido as primeiras fazendas de colonizadores do Neolítico. Os sítios das cavernas sobreviventes na certa não passavam de acampamentos ocasionais usados pelos agricultores em excursões de caça, ou quando levavam os rebanhos aos pastos. Para apoiar sua afirmação, Zilhão cita provas da Gruta do Caldeirão. Os achados dessa caverna portuguesa sugerem que um ou mais barcos carregados de colonizadores chegaram cerca de 5.700 a.C. e estabeleceram um assentamento agrícola, enquanto os povos indígenas do Mesolítico continuaram caçando e coletando inteiramente imperturbados. Em 6.200 a.C., grandes comunidades prósperas de caçadores-coletores tinham surgido nos estuários dos rios Tejo e Sado da região central de Portugal. Elas criaram monturos de conchas de tamanhos equivalentes aos de Ertebolle na Dinamarca. Pesquisas em outras partes em Portugal não encontraram quaisquer outros traços de presença mesolítica após 6.200 a.C. — parece que toda a população fora viver nesses estuários. Os monturos portugueses eram usados como terrenos de cemitério, além de despejos de lixo — de forma muito semelhante aos da GrãBretanha. Os túmulos encontram-se predominantemente abaixo das camadas dos montes e parecem ter sido dispostos em discretos grupos, talvez de família. Alguns eram ladeados com grandes lajes de pedra, lembrando os túmulos de Téviec e Hoëdic. Essas semelhanças não devem surpreender. Embora nos falte qualquer comprovação direta do litoral do Atlântico, suas comunidades mesolíticas sem dúvida deviam ter grandes canoas, e usavam-na para percorrer longas distâncias na costa, estabelecendo contatos do sul de Portugal ao norte da França. Entre 1979 e 1988, Zilhão escavou a Gruta do Caldeirão, localizada
numa região ao norte dos monturos de conchas, e sem quaisquer sítios do Mesolítico. Os detritos neolíticos, entre eles cerâmica e instrumentos de pedra, foram encontrados diretamente acima dos de caçadores da era glacial, junto com vários ossos de carneiros domesticados e javali. Pastores que gostavam de dedicar-se à caça de vez em quando tinham evidentemente usado a caverna. A Gruta do Caldeirão também era usada como necrotério. Cerca de 5.200 a.C., os corpos de três homens, uma mulher e uma criança foram estendidos no piso da caverna, as cabeças encostadas na parede, para os animais carniceiros e os elementos decompô-los, espalhá-los e enterrá-los. Duzentos ou 300 anos depois, no mínimo mais 14 indivíduos foram deixados na caverna. Segundo Zilhão, esses cadáveres eram de agricultores cujos antepassados tinham chegado de barco à costa portuguesa. Ele especula que o assentamento agrícola deles ficava no vale, seus vestígios arqueológicos hoje enterrados no fundo, abaixo dos sedimentos fluviais. Durante várias centenas de anos, eles continuaram cultivando, enquanto os povos do Mesolítico continuaram caçando e coletando nos estuários dos rios mais ao sul, exatamente como faziam mais ao norte na Espanha. Zilhão indica que comunidades semelhantes de agricultores imigrantes, formando encraves inteiramente separados dos nativos povos do Mesolítico, espalharam-se por todas as regiões litorâneas do sul da Europa. Enquanto os que usavam a Gruta do Caldeirão floresciam, por volta de 5.000 a.C., os monturos dos estuários dos rios Tejo e Sado tinham sido abandonados. Não se sabe o que aconteceu com seus antigos habitantes; podem ter morrido ou simplesmente abandonado o estilo de vida de caça e coleta para tornarem-se eles próprios agricultores. A disputa entre os que preferem a colonização por agricultores imigrantes, como Zilhão, e os como Lewthwaite e Rowley-Conwy, que acreditam que os povos do Mesolítico adotaram a cultura do Neolítico, poderia ser resolvida por um tipo de indício inteiramente novo que se tornou disponível recentemente para estudar o passado: a genética dos vivos hoje. Esse novo campo de estudo é conhecido como genética histórica e sua influência em nosso estudo do passado deve tornar-se cada vez mais disseminada e profunda. Como também vamos recorrer à genética histórica quando analisarmos o povoamento das Américas, será útil uma
breve introdução a esse campo, antes de considerarmos seu impacto na questão européia. A possibilidade de reconstituir a história da população através de genes humanos surge do fato de que, embora sejamos todos membros de uma única espécie, Homo sapiens, e termos um alto grau de semelhança genética, variamos em detalhes específicos. A semelhança está presente porque todas as pessoas no mundo hoje se originaram da mesma pequena população que viveu na África há mais de 130 mil anos. As rigorosas condições do penúltimo máximo glacial provocaram a redução da população a não mais de 10 mil indivíduos. Isso reduziu o total de variação genética atual, e é conhecido como um gargalo populacional. Quando ocorreu o aquecimento global há 125 mil anos, essa população se expandiu. As pessoas dispersaram-se da África e o primeiro Homo sapiens entrou na Europa, Ásia, e acabaram por chegar às Américas. Quaisquer populações existentes, como as do H. neanderthalensis na Europa, foram inteiramente substituídas sem dar contribuição alguma ao fundo de genes modernos. Em conseqüência dessa história evolucionária, as pessoas hoje encontradas em extremos opostos da Terra são muito semelhantes em sua constituição genética. Mas não idênticas. Mutações aleatórias ocorrem constantemente, a maioria das quais sem efeitos positivos nem negativos em nosso comportamento e fisiologia. A probabilidade de exatamente a mesma mutação ocorrer de forma independente em duas pessoas diferentes c extremamente remota. Portanto, se duas pessoas têm a mesma mutação, é provável que tenham partilhado um ancestral recente no qual ocorreu essa mutação. E, claro, se essas duas pessoas vivem agora em diferentes partes do mundo, isso permite aos especialistas em genética reconstituir o padrão da dispersão humana. E mais. Pode-se considerar constante a taxa de mutação genética — embora se é isto na verdade que ocorre ainda não foi estabelecido. Medindo-se a extensão da variabilidade genética entre duas populações humanas, e tendo-se uma estimativa para a taxa na qual ocorrem as mutações, pode-se calcular a quantidade de tempo transcorrido desde que as duas populações ficaram isoladas uma da outra. Esses fatos brutos proporcionaram a base para um método completamente novo de estudar o passado humano — e que dispensa manuais de história e até mesmo escavações arqueológicas. E necessário
apenas documentar e depois interpretar a variabilidade genética encontrada cm seres vivos de todo o mundo, e então se podem estabelecer os padrões e datas de dispersões, migrações e colonizações passadas. Mas, em todas as áreas da ciência, pôr a teoria em prática é muitas vezes mais difícil que o previsto. Luca Cavalli-Sforza foi o paladino da genética histórica. Seu livro de 1994, História e Geografia dos Genes Humanos, co-escrito com dois colaboradores, é um dos pontos de referência acadêmica na criação de nossas visões da história humana. Nesse livro, Cavalli-Sforza afirmou que o mapa genético do tempo moderno da Europa mostra um gradiente de freqüências de gene do sudeste ao noroeste. Isso só poderia ser, alegou, um legado dos imigrantes neolíticos que se propagaram da Grécia, pelo leste, centro e sul da Europa até chegarem ao extremo noroeste. Fato que se tornou conhecido como modelo da "onda de avanço", que não dava ao povo indígena do Mesolítico papel algum em todo o desenvolvimento neolítico europeu. Segundo essa visão, o povo da cultura LBK tinha de ser descendente de imigrantes do oeste da Ásia, e não do mesolítico local, como propôs mais recentemente Zvelebil; a interpretação de Zilhão da região mediterrânea tem de ser preferida à de Lewthwaite e RowleyConwy. O modelo da "onda de avanço" ganhou mais apoio, em 1987, de outra fonte de indícios não arqueológicos. Cohn Renfrew — sucessor de Grahame Clark como Professor da cadeira Disney de Arqueologia em Cambridge — dedicou-se à um dos problemas-chave de lingüística histórica: a origem da família de línguas indo-européias. Essa família inclui quase todas as línguas faladas hoje na Europa, e a lingüística há muito tem debatido quando e onde a língua da qual elas evoluíram era falada. Renfrew forneceu uma convincente resposta: a proto-indo-européia como é chamada a língua original, era falada pelo povo neolítico da Anatólia — a Turquia da época moderna — e/ou do oeste da Ásia em 7.500 a.C. Espalhou-se por toda a Europa e algumas partes do centro e do sul da Ásia, enquanto os agricultores migrantes neolíticos colonizavam essas terras. Segundo Renfrew, as línguas não indo-européias, como a basca e a finlandesa, refletem as regiões onde populações mesolíticas sobreviveram e contribuíram para o Neolítico, e por fim para a diversidade lingüística e cultural da época moderna. Mas essas foram
poucas e distantes entre si: as afirmações de Renfrew se encaixam perfeitamente nas datas genéticas de Cavalli-Sforza indicando a "onda de avanço" de agricultores neolíticos imigrantes pela Europa. As afirmações de Renfrew sofreram imediato ataque tanto de lingüistas quanto de arqueólogos — sendo o problema-chave que as línguas podem se espalhar inteiramente independentes das pessoas. Uma contestação das afirmações de Cavalli-Sforza veio em 1996 de Bryan Sykes e seus colegas na Universidade de Oxford. Eles estudaram um tipo de DNA diferente do DNA nuclear em que se baseou Cavalli-Sforza — o DNA mitocondrial — e chegaram a uma conclusão muito diferente. A maior parte do nosso DNA encontra-se no núcleo de cada célula e é herdada em iguais proporções de mãe e pai, por um processo conhecido como "recombinação". Isso envolve uma imprevisível mistura de genes dos pais, e quando repetidos geração após geração a possibilidade de reconstituir a história evolucionária torna-se extremamente difícil. O DNA mitocondrial (DNAmt) é encontrado no corpo da célula, e não no núcleo, e herdado apenas da mãe. Adquiri todo meu DNAmt de minha mãe, e nada dele passou para meus filhos. Sem as complexidades da recombinação, a relação genética entre as pessoas é muito mais fácil de estabelecer, e em geral considerada mais precisa. O DNA mitocondrial também tem uma taxa de mutação muito mais alta que o DNA nuclear, e uma freqüência muito mais alta dessas mutações é inteiramente neutra, não beneficiando nem prejudicando a saúde do indivíduo. O valor disso é apenas que existe o potencial para se obter uma imagem muito mais detalhada da história humana que do DNA nuclear simplesmente porque, com o passar do tempo, mais indícios são estabelecidos pelas mutações aleatórias que ocorrem. Por esse meio, grupos de linhagem podem ser identificados — grupos de pessoas que descenderam todas da mesma mulher, na verdade da mesma molécula de DNAmt. Quando Sykes e seus colegas examinaram o DNAmt de 821 indivíduos distribuídos pela Europa, descobriram que havia seis grupos claros de linhagem; isso logo indicou que os europeus são mais diversos geneticamente do que sugeria o modelo da "onda de avanço". Fazendo a melhor estimativa-palpite para a taxa em que ocorrem as mutações DNAmt, Sykes e seus colegas calcularam a data em que surgira cada linhagem européia. Apenas uma dessas era suficientemente recente para
relacionar-se com a imigração de agricultores do oeste da Ásia, e na verdade tinha alguns marcadores genéticos que apontavam para uma origem asiática ocidental. Além disso, sua distribuição geográfica na Europa combinava com as duas rotas de colonização arqueologicamente reconhecidas: o centro da Europa e a costa mediterrânea. Mas esse grupo só constituía 15% do número total de linhagens nos seis grupos. Todas as outras linhagens datavam de entre 23 mil e 50 mil anos atrás, indicando que 85% das linhagens DNAmt já se achavam presentes no Mesolítico, havendo-se originado durante a era glacial precedente. A onda de avanço não passara de uma marola. Trata-se de uma conclusão surpreendente, e levou a um intenso debate acadêmico entre Cavalli-Sforza e Skyes, os dois questionando a validade dos métodos um do outro. Um problema-chave dos indícios DNAmt é que só reconstituem a linha feminina. Se os imigrantes preferiram tomar como esposas mulheres mesolíticas — como é bastante provável — o registro DNAmt logo deixará de registrar até mesmo a presença dos imigrantes. No entanto, a conclusão de Skyes fortaleceu a posição de arqueólogos como Zvelebil, Rowley-Conwy e Lewthwaite. Se Zilhão realmente identificou um encrave de agricultores imigrantes em Portugal em 5.700 a.C., eles deram pouca contribuição ao desenvolvimento global do Neolítico na Ibéria. Por isso precisamos agradecer às pessoas do Mesolítico cujos antepassados ocuparam os monturos nos estuários dos Tejo e do Sado. Skyes e Cavalli-Sforza continuam em disputa hoje, mas seus resultados mais recentes têm convergido, e alguns arqueólogos — como Colin Renfrew — agora acham as conclusões deles bastante compatíveis. Enquanto Cavalli-Sforza reduziu a contribuição dos agricultores imigrantes para o fundo comum de genes a 28%, Skyes aumentou sua estimativa para pouco mais de 20%. Esses cálculos parecem próximos demais para sustentar qualquer controvérsia, e precisamos concluir que o povo indígena do Mesolítico desempenhou no mínimo um papel tão grande quanto o dos agricultores imigrantes no desenvolvimento do Neolítico europeu. Os genes dos caçadores-coletores do Mesolítico talvez sejam dominantes entre os europeus hoje, mas o estilo de vida deles não sobreviveu muito além de 4.000 a.C. Só no extremo norte da Europa a caça e a coleta
tiveram vida mais longa, Continuando até no mínimo 1.000 a.C., depois que o pastoreio assumiu a predominância. Quanto às regiões temperadas, os que se banqueteavam, dançavam e enterravam seus mortos em túmulos revestidos de pedra em Téviec e Hoëdic foram algumas das últimas pessoas do Mesolítico na Europa. As comunidades mesolíticas da Suécia e Dinamarca, as que tinham vivido em Skaleholm, Vedbaek, Tybrind Vig e Ertebolle, acabaram desabando sob a nova ética de competição introduzida pelo contato com a LBK. O lento e constante escoamento de mulheres como esposas e rapazes como trabalhadores deixou as comunidades esgotadas. Os que permaneceram não mais continuaram a afinidade com o veado-vermelho e o javali; também eles desejavam riqueza material, poder social e controle do mundo natural. Desejavam tornar-se eles próprios agricultores, e assim o fizeram por volta de 3.900 a.C. Como agricultores, foram muito diferentes dos da LBK. Criaram gado, Usaram habitações tipo mesolíticas e ocuparam os mesmos monturos de conchas que seus antepassados do Mesolítico. Como para compensar a ausência de arquitetura doméstica, construíram imensos monumentos fúnebres que chamamos túmulos longos — preferindo erigir casas para os mortos em vez de para os vivos. Sua inspiração veio das compridas habitações comunais da LBK. Os túmulos longos foram uma tentativa dos novos agricultores de alinhar-se com os agricultores que tinham vindo originalmente do leste e negar seu próprio passado mesolítico. Quase a mesma coisa ocorreu ao longo do litoral do Atlântico quando os caçadores-coletores de Téviec e Hoëdic foram engolidos pelo novo estilo de vida agrícola. Surgia mais um tipo de Neolítico, no qual as pessoas construíam túmulos de pedras e grandes lajes. Em vez de aludir aos agricultores ancestrais do leste, esses túmulos megalíticos lembravam o passado mesolítico — as sepulturas de pedra lascada nos monturos de conchas portuguesas e as de família de Téviec. No extremo noroeste da Europa, sobretudo na Grã-Bretanha, túmulos longos e túmulos megalíticos eram partes integrais da nova cultura neolítica. Em 4.000 a.C., a Europa era quase toda habitada por um ou outro tipo de agricultores. Começara um novo capítulo em sua história, que eliminaria quaisquer vestígios restantes do mundo mesolítico. Pelo menos, isto era o que pensávamos até a descoberta de um inesperado legado do Mesolítico em nossos genes.
22 Um Enviado Escocês Colonização, estilos de vida mesolíticos e a transição para o Neolítico no oeste da Escócia, 20.000 – 4.300 a.C. Minha versão da história européia, desde as pinturas de Pech Merle à origem dos túmulos megalíticos, esqueceu várias regiões do continente, que se estendem do extremo sul da Itália ao norte da Noruega, dos Alpes suíços à Meseta espanhola. Embora faltasse a essas regiões o drama que ocorreu em outros lugares, elas são parte da história européia c sua arqueologia fornece mais intuições sobre como as pessoas reagiram ao aquecimento global e à agricultura. Infelizmente, todas, com exceção de uma, têm de continuar ignoradas, pois esta versão logo deve cruzar o Atlântico para tratar dos primórdios da história americana. A única exceção é uma região onde eu mesmo passei muitos anos em busca do passado mesolítico: a Escócia. Não toda a Escócia, mas duas ilhas ao largo na ponta mais ao sul da cadeia insular das Hébridas, ao largo da costa ocidental. Trata-se de Islay e Colonsay que, junto com as ilhas vizinhas de Jura e Oronsay, formam um pequeno arquipélago conhecido como Hébridas do Sul. Embora fiquem na periferia geográfica da Europa e sejam desprovidas de quaisquer sítios espetaculares como Lepenski Vir ou Skateholm, essas ilhas têm sua própria história, que contribui para nossa compreensão da Europa como um todo. Assim, nesse enviado à Europa, vou contar brevemente a história delas desde a era glacial até o Neolítico, pelo relato de minhas próprias escavações nessas ilhas. As quatro ilhas das Hébridas do Sul partilham várias características típicas do oeste da Escócia, c no entanto são muito diferentes umas das outras. São em grande parte desprovidas de árvores, têm litorais acidentados com baías arenosas. Suas populações atingiram o pico no século XIX e foram diminuindo aos poucos desde então; predomina a criação de gado ovino, embora a atividade seja economicamente muito dispendiosa. Islay,
cobrindo mais de 600 quilômetros quadrados, é a maior e mais diversa, com extensas charnecas de urzes e dunas, uma substancial cidade principal, várias aldeias e a maior densidade de destilarias de uísque da Escócia. Colonsay é muito menor, não mais de 13 quilômetros de largura, menos de 5 quilômetros de comprimento, enquanto Oronsay — ligada a Colonsay na maré baixa — é um minúsculo cisco de terra de menos de cinco quilômetros quadrados de extensão. Jura é outra ilha grande e muito mais acidentada que Islay, a paisagem dominada por três picos cônicos conhecidos como os Paps. Em 20.000 a.C., essas ilhas eram quase inteiramente cobertas pela camada de gelo que se estendia até o extremo sul das chamadas terras médias inglesas. Havia apenas uma zona livre do gelo — uma colina, hoje denominada Beinn Tart a’Mhill, e as baixadas em volta que hoje formam "a Rinns", península mais Ocidental de Islay. O fato de ter escapado ao gelo é crucial para a história posterior da ocupação humana. Isso deixou intatos seus sedimentos ricos em sílex, que acabariam fornecendo matérias-primas para os primeiros habitantes de Islay e influenciando onde escolheram viver. Durante cinco mil anos, as encostas de Beinn Tart a'Mhill erguiam-se acima das paisagens terrestres e marítimas de neve e gelo em volta. Cinqüenta quilômetros a leste, os Paps de Jura perfuravam o gelo e pareciam vulcões fumegando quando cercados por nuvens. Um canal marítimo isolava a Rinns do resto de Islay, transformando-a numa ilhota ao largo. Por volta de 15.000 a.C., o gelo começou a derreter-se; a fachada da geleira recuou para leste até, em 12.000 a.C., as Hébridas do Sul ficarem completamente livres. As planícies da Rinns eram agora cobertas por grandes faixas de areia e saibro. A leste havia outeiros de pedra e sedimento — morainas — que assinalavam o lugar até onde tinham chegado as geleiras, tendo este sido nivelado e devolvido à posição pelo gelo. Mais a leste, houve um complexo quebra-cabeça de pântanos, rochas expostas, areias, aluviões e calhaus antes de se chegara mais mar, o trecho de água que separa Islay do continente escocês. Dentro de mais mil anos, formara-se uma camada de solo, sustentando uma mistura de matos e pequenos arbustos — tundra tipo ártica. Aliviada da massa de gelo, a terra elevou-se em altura, fazendo baixar o nível do mar. O canal que antes corria entre a Rinns e a fachada da geleira tornou-
se rasa e muitas vezes seca na maré baixa. Nessa data — 11.000 a.C. — grande parte da Inglaterra fora recolonizada por pessoas que seguiam os passos dos pioneiros que tinham esquartejado seus mortos na Caverna Gough e capturavam lebres árticas em Creswell Crags. A Escócia, porém, continuou inteiramente despovoada até 8.500 a.C. Mas se tinham feito visitas exploratórias a partir do sul; um grupo de caça da era glacial chegara a Islay e perdera pelo menos uma ponta de flecha — uma ponta de sílex desenhada na mesma forma das usadas para caçar rena em Stellmoor, em 10.800 a.C. Um dos meus alunos encontrou essa ponta numa tarde de agosto de 1993, quando colhíamos artefatos de sílex num campo arado perto da aldeia de Bridgend, em Islay. Foi posta num saco junto com várias peças não identificadas mas com chance de ser do Neolítico ou da Idade do Bronze. Só constatei isso alguns dias mais tarde, depois que ela foi lavada e deixada para secar em nosso laboratório de campo. Meus colegas Bill Finlayson e Nyree Finlay, os dois da Universidade de Edimburgo e peritos em artefatos de pedra, concordaram que poderiam ser uma ponta Ahrensbur. Mas nenhum de nós pôde ter certeza. Se assim fosse, significava que pessoas haviam estado na Escócia dois mil anos de qualquer assentamento conhecido. A ponta de Bridgend não foi a primeira de flecha ahrensburiana encontrada na Escócia; cinco outras de desenho semelhante tinham sido descobertas antes — duas nas ilhas Orkney, duas em Jura e uma em Tiree, outra ilha das Hébridas. Mas estavam quebradas, ou eram de desenho questionável, ou não podiam ser incluídas numa locação exata, tendo sido encontradas muito antes da adoção dos métodos de registro modernos. O novo espécime era completo, parecia idêntico a uma ponta ahrensburiana, e sabíamos o lugar exato onde fora encontrada. E assim, logo voltamos ao campo e fizemos uma coleta mais intensa de seus sílex, na esperança de encontrar o primeiro assentamento da era do gelo na Escócia. Mas os únicos artefatos que encontramos eram de evidente data do Neolítico ou da Idade do Bronze. O campo em Bridgend era apenas mais um dos vários que minha equipe vasculhava em busca de assentamentos pré-históricos, como parte do projeto que dirigi em Islay e Colonsay entre 1987 e 1995. Embora registrássemos sítios do Neolítico e períodos posteriores, meu interesse
era encontrar os de uma data da era glacial e — idealmente — mesolítica. Os primeiros foram relativamente fáceis de descobrir. Encontramos mais de vinte conjuntos de artefatos distintivamente mesolíticos — instrumentos e os detritos de sua fabricação. Quando em Islay, deixava muitas vezes meus alunos trabalhando nos campos ou lavando sílex e encontrava-me com Alistair Dawson, da Universidade de Coventry, um especialista em refazer as mudanças do nível do mar na Escócia. Nós dois e Kevin Edwards, agora da Universidade de Aberdeen, que estudava grãos de pólen da turfa de Islay, tentávamos descobrir como fora a ilha para seus antigos habitantes do Mesolítico. Alistair é um escocês que parece sentir-se mais à vontade nas colinas ou nas praias selvagens do Atlântico que no laboratório ou numa sala de conferência. Tinha sua própria equipe na ilha e extraiu longas colunas de sedimento de Grui-nart — a parte de extrato mais inferior da ilha através da qual correra o canal marítimo que outrora isolava a Rinns. À medida que se aprofundavam suas colunas, ele descobriu que o sedimento mudava da turfa da época moderna para aluvião e barro depositados pela água do mar; abaixo dessa, havia turfa, um retorno à terra seca, antes de os sedimentos tornarem-se mais uma vez depósitos marinhos. No laboratório de sua universidade, Alistair extraiu diatomitos — plânctons fossilizados — dos sedimentos; a sucessão de diferentes tipos revelou-lhe as sutis mudanças de terra seca a água salobra, água marinha e depois a sucessão inversa, da mesma maneira como os grãos de pólen informavam sobre a história da vegetação. Alistair também retirou pequenos gravetos e outro material vegetal. Estes foram datados por radiocarbono para estabelecer exatamente quando haviam ocorrido as inundações. Examinando os sedimentos, diatomitos e as datas de radiocarbono, Alistair refez a trajetória do nível do mar em volta das Hébridas, que caíra imediatamente depois que as camadas de gelo desapareceram por volta de 13.000 a.C., atingindo em seguida um nível semelhante ao de hoje, cerca de 8.500 a.C. Ele descobriu que no decorrer de mais dois milênios, o nível do mar subira mais uma vez, inundando o canal de Gruinart e isolando a Rinns do resto de Islay. Mas o oeste da Escócia não parará de subir e descer, após haver sido aliviado do grande peso de gelo, e acabara ultrapassando o mar em ascensão. E desse modo, cerca de dois mil anos atrás, o canal mais uma vez se tornou terra seca e assim continuou até
hoje. Alistair também "lia" a paisagem moderna a fim de entender seu passado da era glacial. Havia, por exemplo, os outeiros de rocha e saibro cobertos de urzes que assinalavam a extensão mais a oeste da geleira. Perto dali, ele constatou um monte de areia e saibro longitudinal que descreveu como uma moraina. Marcava onde outrora um túnel d'água corria embaixo do próprio gelo, entupido pelo saibro; quando o gelo derreteu-se, o que antes era um túnel foi deixado como sua imagem refletida, um monte longitudinal arredondado. Nós caminhamos ao longo das praias e examinamos montes de calhaus, vários metros acima da marca da maré alta, que mostrava como o nível do mar fora antes mais alto do que é hoje. Quando nos planaltos da Rinns, Alistair mostrou-me um espessa argila laranja que fica embaixo das urzes e teria sido levada pelas águas se a camada de gelo tivesse coberto toda Islay. Esse barro fora criado vários milhares de anos antes do LGM, quando toda a ilha ficava sob uma camada de gelo flutuante durante uma glaciação anterior. Seu interesse para mim estava nos grandes nódulos de sílex que continha, transportados por uma geleira muito antiga dos depósitos de greda agora sob o mar da Irlanda. Durante vários milhares de anos, o sedimento laranja vinha sofrendo erosão e caindo no mar; esses nódulos de sílex angulosos foram levados de volta às praias da Rinns como seixos inteiramente lisos e arredondados. Em nenhum outro lugar da Escócia se encontrariam tantos seixos tão grandes e de excelente qualidade, Como o sílex era uma matéria-prima fundamental para os caçadores-coletores pré-históricos, tive certeza de que se pioneiros da era glacial tivessem chegado à Escócia, logo teriam descoberto a Rinns e continuado caçando em sua vizinhança. Mas, lamentavelmente, quase uma década de pesquisa e escavação em Islay não originou mais indícios de caçadores-coletores da era do gelo além da única ponta de sílex de Bridend. As primeiras pessoas a estabelecer-se na Escócia chegaram em 8.500 a.C., viajando do norte da Inglaterra e deixando-nos seu mais antigo sítio conhecido em Cramond, perto de Edimburgo. Não se conhecem quaisquer sítios nas Hébridas do Sul até 7.000 a.C. Quando acabaram chegando, as pessoas foram atraídas a Rinns com seus ricos depósitos de seixos rolados.
Um dos primeiros assentamentos localizou-se a não mais de uma centena de metros de uma praia rica em sílex; foi uma oficina do Mesolítico, onde se separaram pela primeira vez os seixos. Esse sítio passou a ser conhecido como Coulererach, tendo sido descoberto por Sue Campbell, que cultiva uma fazendola do mesmo nome na costa oeste de Islay. No período de vários anos, ela coletou lâminas de sílex, lascas e pedras quebradas em suas valas de drenagem e entregou-os ao museu da ilha numa caixa de sapato. Ao vê-los em 1933, logo percebi que ela descobrira um sítio mesolítico. Escavamos vários pequenos "poços de teste" em seu pasto, para localizar o sítio, e depois uma longa vala, tendo de atravessar dois metros de turfa para chegar à superfície do terreno mesolítico. Ali se espalhavam artefatos e detritos de fabricação de artefatos, as bordas tão novas quanto no dia em que tinham sido feitos. Nyree Finlay — hoje da Universidade de Glasgow — examinou a coleção e encontrou alguns seixos habilmente trabalhados, junto com outros que apenas tinham sido desbastados a pancadas. Alguns eram tão pequenos e tinham tantas inclusões de cristais, que nenhum quebrador de sílex experiente os teria escolhido para trabalhá-los. Nyree sugeriu que Coulererach era o lugar onde as crianças aprendiam a fazer alguns artefatos de sílex, muitas vezes usando as pedras rejeitadas pelos peritos em fragmentação ou encontrando-os por si mesmas nas praias. Era o equivalente a Eliolles na França. Ao contrário dos escavadores em Eliolles, porém, não conseguimos expor grandes áreas da superfície do terreno mesolítico no pasto de Sue Campbell, pois a escavação levava a permanente alagamento. Desse modo embora encontrássemos fragmentos de carvão, jamais descobrimos os locais de fogueira do Mesolítico, nem soubemos se se tinham construído cabanas em Coulererach. Adquirimos apenas uma coleção de artefatos de pedra e tivemos de adivinhar se haviam ocorrido antes outras atividades além da feitura de instrumentos. Desconfio que sim, pois Coulererach fica perto de Loch Gorm, que é o maior lago no interior de Islay. Eu via o tempo todo lontras e gamos em volta de suas margens, e desconfio que as pessoas que acamparam cm Coulererach, cm 6.500 a.C. caçaram esses animais. Nessa época, a paisagem de Islay era muito diferente dos desolados pântanos de turfa cobertos de urzes atuais. Os grãos de pólen vedados dentro e abaixo da turfa de Coulererach nos disseram que salgueiros e
amieiros cresciam nos tempos mesolíticos, junto com bétulas e carvalhos, no terreno superior e mais seco. A turfa também continha pequenos fragmentos de carvão. Alguns tinham sido transportados pelo vento de lareiras de cozinha, mas sua quantidade sugeria o incêndio deliberado de árvores e juncos em volta do lago — exatamente como o que ocorrera em Star Carr em 9.500 a.C." Coulererach foi apenas um dos vários sítios mesolíticos em Islay que examinamos. Todos apresentaram grandes números de artefatos de sílex, mas infelizmente nenhum osso (de animal ou humano), pois tinham sido destruídos pelos solos ácidos da ilha. Os ossos de animais nos teriam ajudado a descobrir quais sítios tinham sido usados em qual estação, como fizera Peter Rowley-Conwy em Skateholm, Ringkloster e vários outros sítios na Europa. Mesmo assim, os instrumentos de pedra de cada sítio indicavam quais atividades tinham ocorrido ali. Em contraste com os de Coulererach, os artefatos que escavamos em Gleann Mor, um sítio localizado nos planaltos e a vários quilômetros de uma praia de seixos, consistiam de diversos pequenos núcleos de sílex jogados fora no fim de sua vida útil. Parece que um acampamento de caça ali foi usado apenas em uma ou duas ocasiões, quando as pessoas procuravam gamos na Rinns. Alguns tinham sido feitos de minúsculas lascas, mais provavelmente resto de um suprimento que fora transportado pela ilha. De Gleann Mor, os caçadores-coletores devem ter retornado a um sítio como Coulererach para reabastecer seus sacos de instrumentos. Encontramos um sítio na margem leste do estuário que chamamos Aoradh, nome de uma fazenda próxima. Era quase vizinho de um esconderijo de observação de pássaros, e imaginamos que as pessoas do Mesolítico tinham feito a mesma coisa que os visitantes modernos. O estuário de Gruinart é hoje famoso por seus bandos de gansos de inverno que passam todo verão no Ártico — um padrão migratório que provavelmente remonta ao Holoceno Inicial. Como os do Mesolítico, os observadores de pássaros modernos em Gruinart vêem mais que gansos. Focas muitas vezes se congregam nos bancos de areia no estuário, e lontras brincam nas partes rasas; aves a patinhar sondam a lama; francelhos e falcões-peregrinos mergulham para pegar roedores nas dunas, e muitas vezes se vêem veados-vermelhos entre as árvores. Sem sinais do mundo moderno à vista, podemos sentar-nos em Gruinart e sentirmo-nos
perto do que viram os olhos mesolíticos. A quantidade de artefatos em Aoradh também sugeria que esse sítio não fora usado mais que em algumas ocasiões; provavelmente há muitos conjuntos de artefatos ao longo das margens do estuário. Mas outro sítio que escavamos, Bolsay, fora sem dúvida um local muito preferido, usado repetidas vezes ao longo de várias centenas de anos. Hoje esse sítio fica no pasto aberto e perto de um pântano conhecido como Loch a'Bhogaidh; no Mesolítico, situava-se na floresta, vizinho a uma fonte, e Loch a'Bhogaidh fora um lago de água doce. A escavação em Bolsay foi a maior que empreendi, recuperando mais de 250 mil artefatos de sílex, que não passavam de uma pequena fração dos enterrados no terreno. A princípio achamos que Bolsay fora um acampamento-base mesolítico, mas quando se analisaram os instrumentos, vimos que eram dominadas por microlitos, muitos deles usados como pontas de flecha. Havia poucos sinais de vida doméstica, como instrumentos para limpar couros e buracos de estaca para moradias. Os microlitos se tinham aparentemente acumulado em muitas visitas breves de caçadores que se sentavam perto da fonte enquanto consertavam equipamento de caça, aproveitando um dos mais privilegiados lugares na ilha. Escavações em Coulererach, Gleann Mor, Aoradh c Bolsay forneceram vislumbres de como diferentes locais em Islay tinham sido usadas para diferentes atividades durante o Mesolítico. Mas as pessoas não se limitaram a apenas uma ilha. Durante as décadas de 1960 c 1970, um dedicado arqueólogo amador chamado John Mercer encontrou vários conjuntos de microlitos em Jura. Foi na muito menor ilha de Colonsay, porém, que obtivemos uma visão inteiramente inesperada da vida do Mesolítico. Procurar sítios mesolíticos em Colonsay é quase como procurar agulha num palheiro, pois envolve a busca de microlitos em lamaçais de turfa c dunas de areia. Quando começamos a trabalhar ali, mal havia campos arados para examinar, "pois quase toda a agricultura já se transformara de lavoura em pasto — transformação ocorrida em todas as montanhas das ilhas escocesas desde a década de 1960. Passamos várias semanas cavando poços de teste no meio da turfa, musgo e areia soprada para chegar à superfície do terreno mesolítico em locais onde imaginávamos que se poderia encontrar um assentamento. Alguns punhados dispersos de
artefatos de sílex foram recuperados, mas nenhum continha microlitos, e todos pareciam mais provavelmente datados da Idade do Bronze e do Neolítico. Começou a parecer que Colonsay fora totalmente deserta durante o período Mesolítico. Isso não teria sido surpreendente. Devido à sua distância do continente, muitos mamíferos jamais tinham colonizado a ilha; sem veado-vermelho, cabrito montes e animais de pêlo como a raposa para caçar, as pessoas do Mesolítico teriam pouco incentivo para remar canoas pelos 20 quilômetros de Islay ou Jura até Colonsay. Nossas primeiras impressões, porém, estavam muito erradas. Houve uma ótima razão para visitar a ilha — como mostrariam nossas escavações em Staosnaig, uma pequena baía na costa leste de Colonsay. Vi pela primeira vez essa estreita baía, com sua praia arenosa, da barca que faz a travessia marítima de três horas desde o continente escocês. Ela chega no norte de Staosnaig, onde o pequeno povoado de Scalasaig, com sua única loja e hotel luxuosos, se desenvolveu em volta do molhe. Dois dias depois, eu deixava minha equipe, de alunos cavando poços de teste no jardim do hotel para visitar Staosnaig, onde havia um dos poucos campos arados na ilha. "Campo arado" talvez seja um exagero, pois o solo era fino e arenoso; fora pouco mais que roçado para plantar sementes de capim. A areia vinha da praia mesolítica que agora fica diretamente embaixo do solo e era vários metros mais alta que a de hoje, Da barca, Staosnaig parecera o lugar ideal para a chegada de canoas mesolíticas, c imaginei um próspero sítio de acampamento em seu litoral. Por isso passei algumas horas vasculhando o terreno arado, confiante em que encontraria artefatos de sílex. Mas não havia nenhum. Isso foi em 1988. Passei três semanas na ilha com meus alunos, inspecionando outras faixas escassas de terra arada e cavando poços de teste em prováveis locais de colonização. Em nosso último dia, retornei a Staosnaig e vasculhei mais uma vez o campo — desta vez encontrando um único nódulo de sílex que fora evidentemente golpeado por um martelo de pedra. Esse achado levou-me a mais três visitas a Staosnaig, no verão de 1989, 1991 e 1992, durante as quais escavamos valas de teste em todo o campo, no esforço de encontrar a colônia que julguei tivesse ali existido. As duas primeiras visitas produziram apenas traços efêmeros de lareiras levadas pelas águas e frágeis quebra-ventos. Mas a perseverança acabou trazendo recompensas.
Em 1994, abrimos uma grande vala, que expôs uma cova circular de 4 metros de largura cheia de cascas de avelã carbonizadas e artefatos de pedra. Foi uma descoberta admirável — nada igual se encontrara na Escócia. Circundando esse depósito havia uma série de cavidades menores e mais profundas, cada uma simplesmente não encontrada em nossas escavações anteriores — terrível falta de sorte. A nova escavação levou o verão todo, um tempo idílico, pois se instalou em Colonsay uma onda de calor e nadávamos durante as interrupções do almoço e ao luar após os churrascos na praia. Foram necessários outros cinco anos para analisar o material que recuperamos, exigindo vários especialistas para examinar os sedimentos, restos vegetais e artefatos de pedra. A cavidade grande continha não apenas fragmentos de cascas de avelã, mas também restos de caroço de maça e outras plantas, sobretudo quelidônia-menor, da família do botãode-ouro, cujas raízes e caules eram comidos por muitos povos tradicionais, alguns dos quais acreditavam que a planta tinha propriedades medicinais — um de seus outros nomes é ficária. A própria cavidade grande parecia ter sido um provável piso de cabana, apesar da frustrante ausência de buracos de estaca; mas fora basicamente usada como aterro de lixo. As cavidades menores que a circundavam tinham sido outrora fornos para assar avelãs — sendo as nozes isoladas abaixo do terreno e um fogo aceso em cima. As cascas e as nozes acidentalmente queimadas eram jogadas no aterro, junto com outros detritos vegetais e de fabricação de instrumentos. Calculamos que as cascas de mais de 100 mil nozes tinham sido jogadas no monturo de lixo, na certa em várias visitas anuais por volta de 6.700 a.C. Embora se conheçam punhados de cascas de avelãs carbonizadas de sítios em toda a Europa do Mesolítico, jamais tinham sido encontradas em tão grandes quantidades quanto em Staosnaig. A coleta e a assadura de avelãs tinham sido feitas em escala quase industrial, tendose dizimado o bosque de aveleiras pelas nozes e lenha. Os indícios de pólen de um lago perto de Staosnaig indicam um quase completo colapso florestal logo após a realização das intensas colheitas. Portanto, esses caçadores-coletores certamente não viviam "em equilíbrio" com a natureza. A destruição da mata em Colonsay que iniciaram foi completada pela chegada de seus primeiros agricultores. Não se cultivam mais aveleiras hoje em Colonsay, mas o passado é
lembrado em seu nome. "Coll" é a palavra gaélica para avelã, por isso as pessoas do Mesolítico deviam ter visto Colonsay como "ilha da aveleira". O peripatético estilo de vida dos caçadores-coletores no sul das Hébridas, deslocando-se entre colônias em Islay, Jura e Colonsay, continuou por mais de mil anos. Nossa compreensão de como chegou ao fim está intimamente relacionada com sítios na quarta ilha — Oronsay. Embora de tamanho minúsculo, Oronsay contém não menos que cinco sítios de conchas mesolíticos. Não se conhece outro nas demais ilhas. Embora originalmente explorada no fim do século XIX, Paul Mellars, da Universidade de Cambridge, realizou extensíssimas escavações na década de 1970. Descobriu que os monturos haviam se acumulado entre 5.300 e 4.300 a.C., pouco antes da chegada dos primeiros agricultores. As pessoas do Mesolítico tinham chegado a Oronsay e coletado diversos crustáceos para usar como comida ou isca; tinham fisgado saithe — um tipo de bacalhau — em suas canoas e pegado em armadilhas uma grande variedade de aves marinhas; focas eram caçadas e teriam sido presa fácil se a ilha foi um viveiro no Mesolítico como é hoje. Conchas de mariscos se tinham tornado colares e, à luz das sovelas de osso encontradas por Mellars — instrumentos úteis para furar couro — faziam-se roupas. Misturados entre os ossos de animais, conchas, lareiras e artefatos quebrados dos monturos, encontraram-se fragmentos de esqueletos humanos, confirmando que pessoas também tinham morrido em Oronsay. Se eram restos de corpos enterrados em cerimônias ou apenas outro tipo de detrito jogado fora, continua não esclarecido. Alguns dos menores achados foram os mais importantes, como os "otolitos", ou ossos do ouvido do saithe. O tamanho de cada otolito era reflexo direto do tamanho do peixe do qual vinha; isso por sua vez indicava a época do ano em que fora fisgado. A partir desse dado, Mellars revelou que diferentes monturos na ilha tinham sido ocupados em épocas diferentes e em todas as estações do ano. Também sugeriu que pessoas tinham vivido na ilha o ano todo — caçadores-coletores sedentários. Mellars publicou os resultados de suas escavações em 1987. Nessa época, eu era estudante em Cambridge e altamente cético em relação às suas afirmações. Estava certo de que a Oronsay mesolítica teria pouco a oferecer a caçadores-coletores, em comparação com a riqueza de recursos nas ilhas Hébridas maiores, e não mais que visitas periódicas e muito
curtas haviam sido feitas ali. Uma ou duas visitas Oronsay todo ano ao longo de um milênio poderiam facilmente ter criado os montes de conchas, sendo estes muito menores que os encontrados na Dinamarca, como os de Ertebolle. E assim, quando comecei a trabalhar em Islay e Colonsay, confiava em que ia encontrar colônias contemporâneas dos monturos de Oronsay e provar que Mellars estava errado. Contudo, à medida que se acumulavam as datas de radiocarbono das minhas escavações, nenhuma delas se classificava no período de mil anos dos monturos de Oronsay. Nem qualquer data dos sítios mesolíticos em Jura. Em 1995, eu tinha mais de trinta datas, metade delas de antes de 5.300 a.C. e metade de após 4.300 a.C. A lacuna no meio estava completamente vazia, e essa era a época exata em que haviam se acumulado os monturos. Logo tive de admitir que Mellars provavelmente estivera certo o tempo todo. Parece que após pessoas terem passado quase dois milênios em Islay, Colonsay e Jura, essas ilhas foram abandonadas pela pequena, empobrecida e ventosa Oronsay. Mesmo que se tivessem feito visitas às ilhas maiores, teriam sido tão breves e inconsistentes que não deixaram traço arqueológico algum. Em 1998, Mellars publicou outra Confirmação da ocupação em Oronsay: a composição química dos ossos humanos indicava uma dieta inteiramente marinha, de peixes, focas, caranguejos, aves aquáticas e crustáceos. O fato de caçadores-coletores trocarem Islay por Oronsay desafia o sentido ecológico. Por que fariam isso? Quando à procura de uma solução, vi-me agarrando ao último recurso dos arqueólogos: Oronsay deve ter sido preferida por algum motivo ideológico que continua sendo inteiramente desconhecido por nós. Embora não tenhamos pinturas nem gravuras de pedra, é provável que os habitantes mesolíticos da Escócia tivessem tido uma mitologia tão complexa quanto qualquer sociedade humana. Ao subir os picos Paps de Jura e a colina Beinn Tart a'Mhill, visitar Loch Gorm e o estuário de Gruinart, sentar-me na destruída floresta de carvalhos em Colonsay e andar em suas praias, sempre achei que aqueles eram tanto lugares malassombrados de espíritos, espectros e deuses mesolíticos quanto de suas pessoas. A paisagem era, tenho certeza, impregnada de mitos de origem e relatos da criação; talvez tivessem sido a inspiração para o que parece ser uma decisão irracional sobre onde viver e o que comer.
Após 4.300 a.C., as pessoas voltavam a viver nas ilhas maiores. O acampamento de caça de Bolsay achava-se mais uma vez em atividade, com microlitos sendo feitos e jogados fora. Mas os novos ocupantes de Bolsay também vinham jogando fora vasos de cerâmica quebrados e machados de pedra polida. E como para substituir os de conchas de Oronsay, novos tipos de montes haviam aparecido em Islay: túmulos megalíticos. Em 4.500 a.C., agricultores imigrantes tinham chegado ao leste da Escócia. Construíram casas de pedra que prefiguram a famosa aldeia de Skara Brae em Orkney e prédios de madeira em outros lugares que pareciam as casas longas da cultura LBK continental. Criavam gado bovino e ovino, cultivavam campos de trigo e cevada. Quaisquer caçadores-coletores do Mesolítico que ainda tivesse desapareceram sem vestígio, No oeste da Escócia, a nova agricultura e os antigos estilos de vida do caçador-coletor parecem ter-se fundido, como tinham feito no Mediterrâneo. Enquanto se construíam túmulos do Neolítico em Islay, sítios do Mesolítico como Bolsay continuavam sendo usados de forma muito semelhante à de antes. Apenas traços esparsos de cultivo de qualquer colheita foram encontrados, portanto deve ter sido em escala muito pequena; não há casas nem aldeias do Neolítico que se comparem com as do leste. Os punhados de pedra lascada são esparsos, raras vezes tendo mais que poucas centenas de peças — um drástico contraste com os vários milhares de artefatos encontrados em quase todos os sítios do Mesolítico. As pessoas do Neolítico no sul das Hébridas e em outras partes no oeste da Escócia eram criadoras nômades de gado bovino e ovino que continuaram caçando animais selvagens c coletando alimentos vegetais. Mas como para distinguir-se dos caçadores-coletores do Mesolítico, recusavam-se a comer frutos do mar. Pelo menos essa é a indicação da química dos poucos ossos neolíticos recuperados de túmulos. Os recursos de crustáceos, mamíferos e peixes marinhos que haviam sustentado as pessoas em Oronsay foram simplesmente ignorados. Quanto à decisão de caçadores-coletores mesolíticos de viver em Oronsay, parece desafiar o sentido econômico. Que aconteceu com as pessoas mesolíticas de Oronsay? Ter-se-iam suas populações simplesmente extinguido? Ou se misturado com recém-
chegados às Hébridas pela troca de produtos, oferta de emprego e casamento? As duas coisas são possibilidades, mas eu desconfio de uma terceira. Meu palpite é que as próprias pessoas em Oronsay se tornaram agricultores; adquiriram novas idéias, novos instrumentos e novos animais das pessoas no leste e retornaram para as ilhas maiores. Assim como tinham feito seus ancestrais, reuniam-se junto à fonte em Bolsay e lascavam pedras para fazer microlitos; mas desta vez tinha gado pastando perto.
As Américas
23 Em Busca dos Primeiros Americanos A descoberta de colonização da era do gelo, 1927-1994 d.C. Os homens observados por John Lubbock estão parados pensativos ao lado dos ossos de bisão. Andam em volta da vala, curvam-se e raspam um pouco do solo, trocam algumas palavras, assentem com a cabeça e dão sorrisos de entendimento uns para os outros. Alguns usam macacões de brim azul, outros camisa branca e gravata-borboleta preta. Os olhos continuam retornando à peça central: uma ponta-de-lança, firmemente enfiada entre duas costelas. Um dos homens parece ter-se decidido; encaminha-se confiante até um outro defronte, aperta-lhe a mão, dá-lhe um tapinha nas costas. Um terceiro suga profundamente seu cachimbo e coca o queixo; também ele se convencerá, pois o caso sem dúvida foi comprovado. Quarenta anos de acalorado debate foram resolvidos: houve gente nas Américas antes do fim da era glacial. John Lubbock encontra-se em Folsom, Novo México, a 30 de setembro de 1927. A disposição dos arqueólogos parece refletir a disposição do país em geral — a nação comemora o vôo solo de Charles Lindbergh até Paris e acha-se em plena prosperidade econômica. Mas idéias de aviões e automóveis não passam pela mente de Lubbock enquanto também anda em volta das valas. Estas são limitadas por uma pequena enseada que corre da Mesa Johnson — a meseta que coroa a paisagem um quilômetro a leste. Jesse Figgins, diretor do Museu de Denver, é o principal recebedor de elogios. Intensamente aliviado, continua meio aturdido com sua impressionante mudança de sorte. Apenas um ano antes, não tinha mais que o museu local em mente quando começou a recolher ossos de bisão da era do gelo para uma nova exposição. Agora reescrevia a história americana. Os ossos de bisão em Folsom foram originalmente expostos por chuvas torrenciais em 1908, nos antigos sedimentos do que parece hoje o impropriamente batizado Vale do Cavalo Selvagem. Logo após começar a
trabalhar, Figgins encontrou duas pontas-de-lança. Soube imediatamente de sua importância em potencial e levou-as a Ales Hrdlicka, o mais antigo antropólogo do Instituto Smithsonian em Washington. Hrdlicka era um imigrante nascido na Tchecoslováquia, tão temível na reputação quanto na aparência, com os cabelos puxados para trás, testa enrugada, espessas sobrancelhas pretas e colarinho branco engomado. Deu a Figgins um conselho crucial: se se encontrassem mais pontas-de-lança, elas deviam ser deixadas in situ, exatamente onde estavam. Figgins devia então notificar as instituições acadêmicas por telegrama, para que mandassem representantes inspecionar as descobertas. Por isso, nesse dia de fim de verão em 1927 um grupo de acadêmicos reuniu-se em Folsom — tendo Lubbock como espectador privilegiado. O grupo incluía o fumador de cachimbo A. Y Kidder, um dos mais respeitados arqueólogos da época, Frank Roberts, estudante de destacado futuro, e Barnum Brown, paleoantropólogo do Museu de História Natural Americana. Lubbock observa Brown apertar uma ponta-de-lança contra a camisa branca engomada e declarar que "a resposta à antigüidade do homem no Novo Mundo está em minha mão". Barnum Brown estava errado; mas pode-se perdoar sua precipitação. Esse sentimento com toda probabilidade foi partilhado, embora não expresso, pela maioria dos arqueólogos americanos durante os últimos 150 anos. Apesar das descobertas de Folsom provarem que houve pessoas nas Américas antes do fim da era glacial, a data de sua chegada permanece desconhecida — 12.000, 20.000, 300.000, 500.000 a.C., ou até antes? Ninguém pode dar uma explicação definitiva de como e quando chegaram as primeiras pessoas às Américas. Tenho pouca duvida, porém, de que isso ocorreu após a grande glaciação de 20.000 a.C.; foi uma das conseqüências-chave do aquecimento global para a história humana. Em vez dessa explicação definitiva, John Lubbock precisa visitar os mais intrigantes sítios arqueológicos do mundo da era do gelo, do norte do Alasca até o sul do Chile. Enquanto ele viaja por entre esses sítios, há uma história admirável para contar, a da pré-história nas Américas — as paixões, criatividade, trabalho árduo e às vezes pura sorte dos que tentavam estabelecer-se exatamente quando se davam os primeiros passos na Idade da Pedra no último dos continentes habitáveis a ser colonizado. Robson Bonnichsen, Diretor do Centro de Estudos dos Primeiros Americanos, no Oregon, descreveu esses passos como "o último fato
pioneiro... uma admirável gente nova num admirável mundo novo". De continente vazio a superpotência global — o Sonho Americano último. David Meltzer, da Universidade Metodista do Sul, no Texas, um dos principais estudiosos da pré-história americana e historiador do pensamento arqueológico, mostrou que os debates sobre os Primeiros Americanos remontam aos primórdios da própria América. O primeiro contato entre exploradores europeus e americanos nativos ocorreu no fim do século XV Os recém-chegados faziam as perguntas óbvias: Quem era aquele povo indígena? De onde viera? A resposta comum por mais de trezentos anos foi que eram uma das Dez Tribos Perdidas de Israel. Em 1590, Frei Joseph de Acosta especulou que essa tribo errante fizera uma migração por terra e chegara ao norte do continente, num ponto de encontro entre os Mundos Novo e Antigo. Meltzer documentou meticulosamente como se desenvolveram essas especulações até as descobertas em Folsom. Alguns dos estudiosos do século XIX — como Charles Abbott, físico e entusiástico arqueólogo amador de Trenton, Nova Jersey— foram inflexíveis ao afirmar que uma raça de pessoas da Idade da Pedra, usando instrumentos primitivos, habitara outrora as Américas. Outros eram ardentemente contra essas opiniões, sobretudo William Henry Holmes, do Departamento de Etnologia Americana. Membro do establishment arqueológico, era em parte motivado pela audácia de um amador como Abbott fazer afirmações sobre o passado humano. Um estímulo para esse debate foi a demonstração de antigüidade humana na Europa, pela descoberta de artefatos humanos em associação com os ossos de animais extintos. Tempos pré-históricos explicara a importância desses achados, estabelecendo que pessoas tinham vivido na Europa durante a era glacial — embora ninguém soubesse bem a data em que isso ocorrera. O John Lubbock vitoriano também dedicara um capítulo à "Arqueologia Norte-Americana", ficando avidamente interessado na arqueologia de seus monumentos, túmulos e artefatos. Cético quanto a duas afirmações da associação de artefatos humanos com animais extintos na América do Norte, concluiu que não havia a menor necessidade de acreditar que pessoas tinham estado nesse continente há mais de três mil anos. Mas teve o cuidado de não rejeitar a possibilidade de povoamento mais antigo; apenas observou que a exigida evidência não
existia atualmente. O tom calculado de Tempos pré-históricos era típico de um cavalheiro inglês escrevendo de longe — o John Lubbock vitoriano jamais cruzara o Atlântico. Os americanos na vanguarda do debate, como Abbott e Holmes, usavam uma linguagem mais severa e defendiam posições dogmáticas. Isso levou David Meltzer a batizar as poucas décadas antes da descoberta de Folsom como a "Grande Guerra Paleolítica" — o nível de aspereza, acusações de incompetência e insultos diretos entre os protagonistas fazem nossos debates atuais sobre a origem humana parecerem a mais jovial das atividades. Não surpreende pois que Jesse Figgins se sentisse ansioso quando vários daqueles protagonistas se reuniram para inspecionar suas escavações a 30 de setembro de 1927. Sua descoberta de pontas-de-lança em meio a ossos de bisão fora bastante inesperada mesmo para os ardentes defensores da existência de americanos na era glacial. Já vinham prevendo a descoberta de instrumentos de corte toscos e restos humanos com características "primitivas" semelhantes aos dos neandertais da Europa. Mas as pontas-de-lança de hábil leitura encontradas no sítio de Folsom testemunhavam caça sofisticada. As pontas-de-lança tinham cerca de 6 centímetros de comprimento, feitas lascando-se as duas faces (técnica conhecida como trabalho bifacial), e uma longa ranhura — flauta — estendendo-se desde a base até a ponta. Passaram a ser chamadas de pontas Folsom, e introduziu-se o termo paleoindígena. Hoje sabemos que as pontas Folsom tinham sido fabricadas em 11.000 e 9.000 a.C. Uma década depois da escavação de Folsom, descobriram-se muitos sítios semelhantes. Agora que as pessoas sabiam o que procurar, só precisavam explorar antigos canais fluviais e sedimentos lacustres em busca de ossos de animais extintos, e depois buscar entre eles a presença de artefatos humanos. Em 1933, encontrou-se um sítio perto de Dent no Colorado. Mamutes, e não bisões, tinham sido a presa, e as pontas eram maiores que as Folsom. As pontas logo passaram a caracterizar uma nova cultura: "Clovis". Este nome veio de uma cidadezinha no Novo México perto do sítio de Blackwater Draw, onde também se encontraram mais pontas e restos de mamutes na década de 1930. As pontas Clovis eram maiores, tinham uma flauta que chegava apenas ao meio da ponta e bases esmerilhadas por uma pedra bruta para facilitar a fixação do cabo. A associação com mamutes
— que se julgava terem-se extinguido antes do bisão de Folsom — sugeria que pré-datavam qualquer descoberta. As escavações em Blackwater Draw confirmaram isso, fornecendo depósitos nos quais as pontas Folsom e ossos de bisão ficam diretamente acima dos que contêm pontas Clovis e ossos de mamutes. Durante a década de 1950, vários sítios Clovis foram escavados no vale do rio San Pedro, no sul do Arizona. Em 1953, encontraram-se não menos que oito pontas Clovis, misturadas com o quase completo esqueleto de um único mamute em Naco. Como não havia outros restos arqueológicos, logo se batizou esse como "o único que escapou" — um mamute que fora atacado, ferido, mas depois fugira e morrera não recuperado. Dois anos depois, 12 pontas-de-lança Foram encontradas com os restos de 8 mamutes na Fazenda Lehner, apenas alguns quilômetros de Naco. Na década de 1970, dispunham-se de numerosas datas de radiocarbono para as pontas Clovis, indicando que nenhuma era mais antiga que 11.500 a.C. Sem vestígios de qualquer colônia anterior, a cultura Clovis parecia ser a dos primeiros americanos. Eram os pioneiros que se originaram no nordeste da Ásia e fizeram a heróica jornada proposta por Frei Joseph de Acosta: pela hoje inundada massa de terra da Beríngia, que juntou a Sibéria e o Alasca quando o nível do mar atingiu seu ponto mais baixo, e depois para o sul, assim que as camadas de gelo que cobriam todo o Canadá começaram a derreter-se. Eram duas: a Laurentida para o leste e a Cordilheirana para o oeste. Quando começaram a derreter-se, criou-se um "corredor livre de gelo" entre elas, pelo qual os caçadores Clovis supostamente passaram para as paisagens da América do Norte. A descoberta de sítios como Naco e a Fazenda Lehner logo levou as pessoas Clovis serem caracterizadas como muito mais que simples pioneiros. Haviam evidentemente atacado mamutes com não mais que lanças com pontas de pedra, e muitos acreditam que os tenham levado à extinção — uma idéia que passou a ser conhecida como a "hipótese da matança excessiva". O mais ardente defensor dos "Primeiros Clovis" e da "matança excessiva" foi — e ainda é — Paul Martin, da Universidade do Estado do Arizona. Ele afirma que os caçadores Clovis chegaram ao extremo sul do corredor livre de gelo em 11.500 a.C. Dali se espalharam pelas matas até as planícies e as florestas da América do Norte e do Sul em questão de algumas centenas de anos, levando não apenas mamutes, mas vários outros tipos de espécies animais gigantescas à extinção.
É fácil fazer a afirmação pós-moderna de que Paul Martin estava apenas inscrevendo o ideal do herói americano no passado Clovis, mas isso seria muito injusto. Na década de 1970, o cenário dos "Primeiros Clovis" era a interpretação mais razoável dos dados existentes. Já fora, porém, contestado por arqueólogos que afirmavam ter descoberto sítios préClovis no continente americano. Louis Leakey, o reverenciado estudioso de origens humanas na África, declarou ter descoberto artefatos humanos "primitivos" nas montanhas Calico, no deserto Mojave Californiano. Estava errado — não passavam de pedras de rio quebradas. Mas em fins da década de 1970 já haviam surgido afirmações muito mais consistentes de colônias pré-Clovis. É 1978 d.C., e John Lubbock se vê no vale do Yukon, logo na entrada do Círculo Ártico. Seu destino é o extremo noroeste, a terra que permaneceu livre de gelo durante todo o LGM, a Beríngia oriental que hoje chamamos Alasca. Se pessoas caçavam mamute na Fazenda Lehner, no sul do Arizona em 11.500 a.C., certamente deve ser ali que se descobrirão seus ancestrais — os que primeiro atravessaram desde a África a ponte de terra hoje inundada. É o solstício de verão, o céu continua claro durante todo o dia e a noite. Os altos picos da cordilheira Brooks ao norte, a cordilheira do Alasca ao sul e as MacKenzies a leste protegem essa paisagem, proporcionando-lhe um moderado calor estival. O Alasca é imenso — quase cinco vezes a área das ilhas Britânicas, mas com uma população inferior a um doze avos da de Londres. Lubbock viajou por entre colinas ondulantes e montanhas baixas, bacias fluviais e infindáveis quilômetros de mato com tufos de erióforo. Viu muitos bandos de gansos acima, lobos e ursos. Mas as únicas criaturas em sua mente são os demoníacos mosquitos e mutucas. Precisa tolerá-los para poder chegar às Cavernas Bluefish, no noroeste do Yukon, onde, nesse ano de 1978, se vai fazer outra afirmação de quebra da Barreira Clovis. Lubbock encontra as cavernas após percorrer a margem do rio Bluefish até um ponto cerca de 50 quilômetros a sudoeste da aldeia Old Crow. Os lados do vale coberto de espruces elevam-se num penhasco calcário denteado. Ele rasteja entre as árvores e encontra a escavação em andamento. Há duas pequenas cavidades na base dos penhascos; a boca de uma acha-se cercada por baldes, pás de ferro e colheres de jardineiro.
Trata-se do trabalho de Jacques Cinq-Mars e seus colegas da Pesquisa Arqueológica do Canadá. Cinq-Mars viu pela primeira vez as cavernas quando fazia um reconhecimento de helicóptero do rio Bluefish em 1975. Hoje ele está cavando numa das valas, vestindo grossas roupas como proteção contra o vento gelado e a praga de mosquitos. Do lado de fora, há uma pilha crescente de sedimento escavado que consiste de loesses — sedimentos transportados pelo vento — e pedras que outrora desabaram do teto da pequena caverna. Mesas, cadeiras, caixas, peneiras, livros de anotações e outras parafernálias de escavação são postos no abrigo das árvores. Alguém se senta e escreve rótulos para os grandes ossos escavados, os códigos cuidadosamente copiados nos livros de anotações. Os ossos são guardados seguros dentro de engradados como preparação para a longa viagem até o laboratório. Há várias caixas de ossos muito fragmentados, rotulados para indicar a camada e área em que foram encontrados. Os ossos vêm de uma imensa variedade de animais: mamute, bisão, cavalo, carneiro, caribu, urso e puma, junto com diversos animais pequenos, pássaros e peixes. Vários espécimes estão cobertos de marcas de dente e roedura — detritos deixados por lobos e ursos que usaram a caverna como abrigo nos tempos da era do gelo. Também há artefatos de pedra, pequenas lascas e os restos dos nódulos dos quais foram separados. Tipos semelhantes de instrumentos já foram estudados em outros lugares do Alasca e designados como cultura Denali, e revelaram não ser mais antigos que 11.000 a.C. Um terceiro tipo de achado está sendo inspecionado, separado e rotulado: ossos animais que Cinq-Mars julga terem sido raspados e aparados por mãos humanas. Quando se obtiverem as datas de radiocarbono, esses "ossos trabalhados" — encontrados logo em seguida aos artefatos de pedra — serão datados de antes de 20.000 a.C. Na época da visita de Lubbock, essas datas são desconhecidas de CinqMars. Mas ele trabalha com a convicção de que suas descobertas revelam uma colônia pré-Clovis nas Américas. Lubbock espreme-se para entrar na caverna e passa pelas condições de trabalho apertadas, escuras e entulhadas. Em vez de serem horizontais e empilhadas com cuidado, as camadas de sedimento mergulham e sobem, começam e param de maneira errática — quase impossível de decifrar. Seus pensamentos estão nos lobos que fizeram covis dentro da caverna e desarrumaram as camadas, e
nos roedores que se entocavam nos sedimentos macios. Finas lascas de pedra podem facilmente ter-se deslocado com eles e se misturado com os ossos trazidos por lobos para a caverna, vários milhares de anos antes de as pessoas chegarem para lascar os nódulos de pedra. Desde que os "ossos trabalhados" foram encontrados, arqueólogos têm debatido se as pontas lisas foram realmente feitas por mãos humanas. Talvez possam ter surgido das constantes lambidas de animais esfomeados, ou mesmo do vento ou da água, antes de fuçados de uma carcaça em putrefação e levados por desespero para a caverna. Se assim for, o fuçador poderia ter sido homem, mulher ou animal. Quase trinta anos após realizar suas escavações, Cinq-Mars continua convencido de que os ossos de bordas lisas são verdadeiros artefatos humanos e demonstram que havia pessoas no Alasca antes do LGM. Eu não vi os ossos, mas por suas descrições continuo cético — a natureza parece ser o mais provável operário. As Cavernas Bluefish são o único sítio em todo o Alasca que pode reivindicar alguma colonização pré-11.500 a.C., e a reivindicação é suficientemente fraca para permitir uma confiante rejeição. Se tais sítios estão ausentes no Alasca — ou Beríngia oriental, como devemos chamá-lo — parece limitada a probabilidade de que existam mais ao sul. Sua ausência no Alasca não pode ser explicada pela falta de trabalho de campo, como se poderia esperar numa paisagem tão desafiante quanto essa. Intensa pesquisa arqueológica encontrou mais de vinte sítios — lugares de acampamento do passado — com data da era do gelo. Vários deles encontram-se profundamente enterrados com conjuntos de artefatos, lareiras e ossos de animal esquartejado intocados. Mas nenhum data de antes de 11.500 a.C. Na verdade, a situação para os defensores do pré-Clovis é muito pior que a ausência de indícios do Alasca; não há sítios conhecidos em toda a Sibéria — que formava a parte ocidental da Beríngia — com uma idade maior que 15.000 a.C. Comunidades de caçadores-coletores tinham-se certamente estabelecido na Sibéria nessa data, e é razoável imaginar que acabaram por espalhar-se para o Alasca, transpondo o que para eles era uma barreira intercontinental inteiramente invisível e desconhecida. As pessoas que chegavam nessa data, porém, não poderiam ter viajado para o sul, devido às maciças camadas de gelo que isolavam o Alasca da rica tundra e das densas florestas da América do Norte. É improvável que o
corredor livre de gelo tenha sido percorrido até 12.700 a.C.; se uma lacuna entre as camadas de gelo tivesse existido antes dessa data, teria sido inóspita para viajar, faltando-lhe quaisquer recursos de lenha e comida. Mas se assim é, como pode haver artefatos de pedra datados de 16.000 a.C. na Gruta do Prado na Pensilvânia? Este é o mais próximo sítio de conteúdo que temos de considerar, ao sul da camada de gelo de Laurentide. Em 1973, James Adovasio, da Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, começou a escavar uma pequena caverna no vale do Cross Creek, tributário do rio Ohio. Adovasio ia passar os trinta anos seguintes estudando e debatendo a importância da Gruta Meadowcrof para o povoamento das Américas — e continua firme. Suas escavações expuseram 5 metros de sedimentos distribuídos em camadas bem definidas, das quais se obtiveram várias datas de radiocarbono. As camadas mais inferiores datavam de cerca de 30.000 a.C. e não têm sinal algum de presença humana. Acima delas, foi datada de cerca de 21.000 a.C. uma camada dentro da qual se descobriu um nó de fibras trançadas, possivelmente um fragmento de cesto. As camadas seguintes foram datadas de 16.000 a.C. e continham o que são incontestavelmente instrumentos de pedra feitos por mãos humanas. Encontraram-se muitos ossos de animais e pássaros na caverna; alguns teriam sido de corujas assadas, carnívoros de covil e roedores entocados, outros são sem a menor dúvida restos de presa humana. Pelo visto, Meadowcroft parece demonstrar assentamento humano nas Américas em 16.000 a.C. - pelo menos 5 mil anos antes da data das primeiras pontas Clovis. Mas antes de podermos abandonar a teoria do "Primeiro Clovis", devemos resolver dois problemas. A geologia em torno de Meadowcroft é crivada de depósitos de carvão. Se esse pó voou para a caverna ou impregnou os sedimentos pela água do solo, as amostras de carvão usadas para datação talvez se tenham contaminado. Podiam Facilmente parecer vários anos mais velhas do que de fato são. Adovasio rejeita essas afirmações, explicando que nenhum dos depósitos ricos em carvão na vizinhança é solúvel em água, e que a quantidade de contaminação exigida para alterar uma data de, digamos, 10.000 a.C. para 16.000 a.C. seria tão grande que nenhum laboratório de datação poderia cometer tamanho erro.
Os ossos animais também suscitam uma questão. Em 16.000 a.C., a caverna ficaria a não mais de 80 quilômetros da borda da camada de gelo Laurentide, e portanto, imagina-se, cercada de tundra estéril. Mas os ossos animais de Meadowcroft são de gamo, tâmia e esquilo; o tipo de animais que vivem em paisagens densamente arborizadas. Se as datas de radiocarbono estiverem corretas, não deveriam vir de animais como mamute, lebre-do-ártico e lêmingue? Adovasio aceita que os ossos datando de 16.000 a.C. vêm de animais de vida florestal, e que carvalho, hicória e nogueira se haviam desenvolvido em volta da caverna quando foi ocupada pela primeira vez. Mas isso, afirma, deveu-se à sua localização sobretudo abrigada — o vale do Cross Creek hoje tem até mais cinqüenta dias livres de gelo que a área em volta. Por isso, mesmo no auge da era glacial, árvores e animais florestais poderiam ter sobrevivido na vizinhança da gruta, proporcionando oportunidades de caça e coleta aos primeiros americanos. Em 1993, Adovasio conseguiu declarar que Meadowcroft se tornara, "de todos os supostos sítios pré-Clovis conhecidos nas Américas, o mais intensamente estudado, sobre o qual se escreveu em maior extensão, e o mais completamente datado". Repetidos testes das amostras de carvão, e o estudo microscópico dos sedimentos, não revelaram traço algum de contaminação das amostras pelos níveis mais antigos. Mas permanecem sérias dúvidas. Se houve pessoas em Meadowcroft em 16.000 a.C., como chegaram lá? Uma resposta a esta pergunta fora de fato proposta na década de 1970 por Knut Fladmark: os primeiros americanos, vindos da Sibéria, desviaram-se das camadas de gelo norte-americanas viajando em volta da costa. Essa idéia tornou-se popular com dois arqueólogos da Universidade de Alberta, Ruth Gruhn e Alan Bryan. Em vez de chegarem pelo corredor livre de gelo, eles afirmam que os primeiros americanos simplesmente caminharam ou navegaram em volta da costa oeste, ou mesmo atravessaram o mar de Bering em barcos, de Kamchatka até a Califórnia. Em conseqüência, os sítios-chave indicando como as pessoas alcançaram Meadowcroft em 16.000 a.C. foram submersos pela elevação do nível do mar quando a era de gelo chegou ao fim. Como é provável que a extensão da glaciação tivesse tornado impossíveis quaisquer rotas costeiras ou marítimas entre 30 mil e 16 mil
anos atrás, Bryan e Gruhn afirmam que a colonização mais provavelmente ocorreu por volta de 50 mil anos atrás. Para apoiar a afirmação, salientam a maior diversidade de línguas americanas nativas encontradas na costa noroeste que em outras partes, o que julgam refletir a longevidade do assentamento nessa região. Quando se fez uma das primeiras classificações de línguas americanas em 1891, não menos que 22 das 58 famílias de línguas foram encontradas na Califórnia. Mas se os primeiros americanos chegaram por uma rota costeira 50 mil anos atrás, e mesmo que suas primeiras colônias costeiras fossem inundadas pela elevação do nível do mar, por que o sinal mais antigo de sua presença é apenas de 16.000 a.C., na Gruta de Meadowcrolt? Poderiam os primeiros americanos ter passado mais de 30 mil anos sem viajar da costa para o interior? Até para Bryan e Gruhn isso parece improvável. Portanto, eles têm uma segunda proposta para a ausência — ou, se se é fã de Meadowcroft, a extrema raridade — de sítios pré-Clovis: os primeiros americanos viviam em grupos pequenos e extremamente móveis, dispersos por todo o continente em baixas densidades. Os sítios arqueológicos que deixaram foram bastante efêmeros — afirmam Bryan e Gruhn — e mesmo que esses sítios hajam sobrevivido aos rigores do tempo, a chance de sua descoberta e datação precisa é mínima. O repentino surgimento de sítios arqueológicos em todo o continente por volta de 11.500 a.C. reflete, segundo Bryan e Gruhn, a passagem de um nível populacional, após o qual se criou um número suficiente de grandes assentamentos para deixar um registro arqueológico reconhecível. Esses argumentos podem parecer convincentes. Mas sem outros grandes assentamentos para apoiar as afirmações a partir de Meadowcroft, e em termos ideais remontar a época dos primeiros americanos a antes de 20.000 a.C., não são persuasivos. E no entanto, na mesma época em que Adovasio concluía sua principal obra em Meadowcroft, fazia-se uma nova afirmação em favor exatamente disso: um sítio que datava os primeiros americanos de no mínimo 40 mil anos atrás. Chamado Pedra Furada, o sítio encontra-se mais distante das camadas de gelo no norte não apenas em Meadowcroft, mas também nos sítios Clovis no sul do Arizona. É 1984, e John Lubbock viajou até uma remota região do nordeste do Brasil, o estado do Piauí, com sua característica caatinga — mata seca e espinhosa — e penhascos de arenito. Estes têm várias cavernas pequenas,
com pinturas rupestres dos animais locais: veados, tatus e capivaras. Algumas pinturas são cenas de caça com figuras de traços: outras retratam sexo e violência. Lubbock acha-a uma terra profundamente desagradável — dominada pela pobreza, seca, quente e transbordando de insetos que picam e perigos que rastejam. A arqueóloga que Lubbock vai visitar é Niède Guidon, da École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris. Ela trabalhou no nordeste brasileiro por mais de 20 anos, fazendo sobretudo um levantamento das grutas e documentando a arte. Numa tentativa de descobrir quando foram feitas as pinturas, começou a escavar num dos sítios maiores e mais brilhantemente decorados, conhecido como Pedra Furada. Isso foi em 1978, e agora, seis anos depois, suas escavações chegaram a proporções bastante significativas. E, como Niède afirma ter indícios de que pessoas viveram em Pedra Furada há mais de 40 mil anos, seu interesse se transferiu das pinturas — que datam de cerca de 10.000 a.C. — para a antigüidade humana. Lubbock primeiro vê o sítio de longe, ou melhor, o penhasco elevandose acima dos espinheiros e cactos. Quando ele chega, a gruta é de tamanho intimidante; recosta-se e sente-se tonto sob a parede muito alta de pedra maciça inclinada, erguendo-se a mais de 100 metros, até a escarpa acima. Esta abriga uma área de cerca de 70 metros de largura e 18 de profundidade, dentro da qual se trabalha. Lá está a própria Niède — uma resistente senhora que sobreviveu ao ataque de duzentos ferrões das notoriamente agressivas "abelhas assassinas" do Brasil — inspecionando um desenho do sítio; continua tão enérgica e empenhada nas escavações quanto no dia em que chegou. Seu trabalho foi evidentemente numa escala à altura da própria gruta; removeram-se mais de 5 metros de depósitos da base, grande parte dos quais jogada com as árvores além da escavação. Colunas de depósitos do piso, barricadas por paredes de pedra, foram deixadas como uma referência para os próprios arqueólogos e quaisquer visitantes que desejem inspecionar o sítio. Fazem-se desenhos e fotografias para garantir um registro exato da seqüência de camadas das quais vieram os artefatos. Lubbock tem uma esplêndida visão do trabalho de uma passarela localizada logo acima da altura original do nível do piso e junto à face da pedra com suas várias pinturas vermelho e branco. Enormes pedras que outrora desabaram da saliência projetada para fora marcam a extensão da
área abrigada. Nos dois lados, amontoam-se pilhas de pedras pequenas e seixos, que evidentemente desmoronaram por erosão do topo do penhasco. Manchas nas paredes mostram que a água escorreu de cima; em algumas épocas, isso deve ter sido persistente, pois há poças escavadas no leito rochoso embaixo. Embora a defesa de um assentamento de 40 mil anos de idade tenha sido feita no início da década de 1990, não surgiram registros detalhados sobre o sítio, especificando exatamente onde foram encontrados os artefatos de pedra, seu relacionamento com as peças de carvão datadas, e desenhos de supostas lareiras. Cônscia de seus críticos, Niède convidou-os a visitar o sítio e inspecionar eles próprios os artefatos. Ao contrário da visita feita por ilustres acadêmicos a Folsom em 1927, as escavações em Pedra Furada já haviam sido concluídas na época em que três reconhecidos peritos — David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay — chegaram em dezembro de 1993. E Lubbock perdeu a visita deles — partiu de Pedra Furada em 1895, rumando para o suposto assentamento pré-Clovis de Monte Verde, do próprio Dillehay, no sul do Chile. Se tivesse permanecido, Lubbock teria visto Meltzer, Adovasio e Tom Dillehay fazerem atentas inspeções das colunas, examinarem as densas camadas de carvão e desaprovarem quando constataram as colunas entulhadas de pedras naturalmente quebradas, em vez de verdadeiros artefatos; os teria visto coletarem pedras descartadas das pilhas de terra entre as árvores e parecerem ainda mais preocupados ao constatarem que eram pouco diferentes das tidas por Niède como artefatos de pedra. Lubbock também os teria visto inspecionarem as manchas de água nas paredes da caverna, perguntando-se como a água corrente poderia ter influenciado a disposição das pedras e a distribuição dos artefatos no abrigo. Meltzer e seus colegas chegaram a Pedra Furada com mentes abertas, e partiram não convencidos. Acharam que os artefatos de pedra podiam facilmente ser pedras de quartzito que se haviam quebrado mais pelas forças da natureza que pelos martelos de pedra dos primeiros americanos. Meltzer encontrou a origem das pedras no topo do penhasco, 100 metros acima da caverna; dali, vinham claramente caindo por sobre a borda, e espatifando-se no terreno abaixo. Os três arqueólogos não encontraram indício algum da contaminação
das amostras de carvão, como poderia ser o caso em Meadowcroft. Aceitaram de imediato que várias peças de carvão realmente tinham mais de 40 mil anos, mas tinha o carvão alguma coisa a ver com atividade humana? O matagal seco que circundava Pedra Furada há pelo menos 50 mil anos é suscetível de incêndios florestais naturais criados por raios. Se esses incêndios tivessem irrompido perto da caverna, o carvão de madeira resultante poderia facilmente ter sido soprado ou levado pela água para os sedimentos. Na verdade, as camadas espessas e difusas de carvão na caverna pareceram a Meltzer muito diferentes das lâminas finas, concentradas de carvão, vistas em lareiras autenticadas em outros sítios, e na verdade na própria Pedra Furada de 10 mil anos antes. Em seu relatório de 1994, David Meltzer e seus colegas concluíram que eram "céticos sobre as afirmações de presença humana em Pedra Furada". Foi uma conclusão ponderada e generosa, oferecida com várias sugestões construtivas a Niède Guidon e sua equipe sobre como mostrar e apoiar suas afirmações — demonstrando como se diferenciam artefatos de pedras quebradas naturalmente. Lamentavelmente, ela reagiu com agressividade ao relatório, afirmando que seus "comentários são inúteis," baseados em "conhecimento incorreto e parcial". Após escrever sobre a "Grande Guerra Paleolítica" do século XIX, David Meltzer tornara-se um protagonista meio involuntário de sua contraparte moderna.
24 O Passado Americano no Presente Testemunho dentário, lingüístico, genético e esquelético para o povoamento das Américas Enquanto Lubbock viaja até Monte Verde, no sul do Chile, precisamos reconstituir outros fatos na busca dos primeiros americanos. Em fins da década de 1970, começou uma mudança fundamental no estudo do passado americano: não era mais possível confiar apenas no testemunho arqueológico. Os lingüistas e geneticistas que estudavam americanos nativos vivos também se tornaram pré-historiadores e passaram a perguntar quando chegaram os primeiros americanos, e de onde eles vieram. E o mesmo fizeram os dentistas. A idéia de uma "pré-história dentária" talvez pareça bizarra, mas seu estudo é muito informativo. Os dentes humanos variam cm forma e tamanho; os incisivos têm uma forma particular de arestas e ranhuras; o número de raízes de cada molar pode variar, como ocorre com o número de cúspides. Esses traços são fortemente determinados por nossos genes e evoluem muito devagar — portanto, duas pessoas com padrões dentários semelhantes têm chance de ser estreitamente relacionadas. Christy G. Turner II, antropólogo da Universidade do Estado do Arizona, tornou-se um pré-historiador dentário há mais de 20 anos, coletando informação sobre os dentes de americanos nativos, e comparando-os com os dentes de pessoas de todo o Velho Mundo. Em 1994, já medira mais de 15 mil grupos de dentes. Em cada grupo, 29 características diferentes, como o comprimento das raízes e a forma das coroas. A maioria dos dentes pertencera a americanos nativos antes do contato europeu e viera de túmulos pré-históricos. Fato importante, pois todos os genes que chegavam ao depósito de genes americanos resultantes de cruzamento com europeus, ou em uma data posterior com africanos, poderiam haver influenciado os padrões dentários que ele estudou. A pergunta feita por Turner era simples: em que parte do Velho Mundo encontramos pessoas com padrões dentários mais semelhantes aos de americanos nativos? Embora dependesse de complexos métodos
estatísticos, a resposta em si foi direta: no norte da Ásia, e mais em particular no norte da China, na Mongólia e na Sibéria oriental. Essas pessoas partilham um tão grande padrão dentário com americanos nativos que Turner as chamou de "sinodontos", contrastando-os com pessoas de outras partes da Ásia, África e Europa, todos os quais batizados por ele como "sundadontos". Assim, confiou em que o norte da Ásia foi a terra original dos americanos nativos. Também se apresentaram diferenças na dentição dos próprios sinodontos norte-americanos. Turner identificou três grupos distintos que, sugeriu, se relacionavam com três diferentes ocorrências migratórias, começando por volta de 12.000 a.C. — idéia que realmente deitou raízes quando se acrescentaram indícios de línguas americanas nativas. Por mais de duas centenas de anos, lingüistas vinham tentando reconstituir a história de contatos entre comunidades humanas e seus padrões de migração. Procuraram semelhanças e diferenças entre línguas, tentando agrupá-las em famílias e depois traçar padrões de descendência — de forma muito semelhante a como os biólogos tentam classificar espécies animais em famílias e buscar relações evolucionárias. Esse trabalho deveria, idealmente, combinar-se com o estudo arqueológico — como vimos Colin Renfrew tentar fazer, relacionando a disseminação das línguas indo-européias com a dos agricultores neolíticos em toda a Europa. O potencial de uma pré-história lingüística do Novo Mundo é considerável, devido a seu grande número de línguas. Mais de mil anos foram registradas desde a época do contato europeu, e seiscentas delas continuam sendo faladas hoje. Tentativas de classificá-las em famílias c depois reconstituir suas origens começaram há mais de 300 anos. Em 1794, Thomas Jefferson escreveu: "Esforço-me para colecionar todos os vocabulários que posso, tanto de índios americanos quanto os da Ásia, convencido de que, seja tiveram um parentesco comum, este vai aparecer em suas línguas. Desde a década de 1960, essas tentativas giraram em torno de argumentos apresentados pelo lingüista Joseph Greenberg, da Universidade de Stanford. Em fins da década de 1950, Greenberg desviou a atenção da classificação de línguas africanas, nas quais construíra sua reputação, para as americanas nativas. Em meados da década de 1980, concluiu que podia agrupar estas em três: esquimó-aleúte, consistindo de dez línguas e restrita
à região ártica da América do Norte; na-dene, com 38 línguas encontradas sobretudo no extremo noroeste da América, incluindo os grupos americanos nativos, como os tlinguites e os haidas; e, polemicamente, os ameríndios, que incluíam todas as línguas da América do Norte, Central e do Sul. Greenberg chegou a essa classificação procurando semelhanças nos sons e significados dos vocabulários básicos de cada língua que estudou, como nas palavras que dão nome a partes do corpo. Afirmou que cada uma das famílias de língua derivava de uma migração de povos para as Américas. A primeira foi de um povo que falava "proto-ameríndio" — sendo o prefixo "proto" a forma convencional de referir-se a uma língua que não mais existe, mas foi a origem da qual divergiram línguas existentes. Greenberg observou que esse primeiro evento migratório ocorreu cerca de 11.500 a.C., e é representado arqueológicamente pela cultura Clovis. As origens do povo permanecem não esclarecidas; dizia-se que o "protoameríndio" tinha semelhanças com línguas encontradas extensamente dispersas em toda a Europa e a Ásia (descrita pelos lingüistas como o "complexo eurasiático"), e portanto surgira numa época antes que as famílias de língua se tivessem estabelecido. A chegada seguinte, que ocorreu cerca de 10.000 a.C., foi de um povo que falava proto-na-dene e é representado arqueologicamente por novos tipos de instrumentos de pedra, aos quais os arqueólogos se referem como cultura Denali: a que Cinq-Mars escavou nas Cavernas Bluefish em 1978. Greenberg achava que sua origem fora na Indochina. Depois, após mais ou menos 500 anos, veio a migração final. Essas pessoas falavam protoesquimó-aleúte, e acreditava se que se tinham originado no norte da Ásia. A idéia dessa colonização em três eventos foi publicada em fins da década de 1980, e saudada com aplausos por alguns acadêmicos e desespero por outros. O mais importante artigo surgiu no jornal Current Anthropology em 1986, no qual Greenberg colaborou com Turner e um colega dele, Stephen Zegura, que vinha estudando padrões na distribuição de genes específicos entre os americanos nativos. Greenberg e seus colaboradores apresentaram uma hipótese poderosa. Propunham que os americanos nativos em cada língua também compartilhavam padrões específicos nos genes e na anatomia dentária. Em outras palavras, três linhas de testemunhos independentes convergiam para dar consistência à afirmação de três migrações discretas para as
Américas, com a primeira relacionada ao surgimento da cultura Clovis. Encontrar tal convergência de testemunhos a partir de diversas fontes é a aspiração de todos os que querem estabelecer a verdade sobre a colonização americana. Mas muitos acharam que era simplesmente bom demais para ser verdade. Ives Goddard, do Instituto Smithsonian, e Lyle Campbell, da Universidade da Louisiana, são dois críticos veementes. Afirmam que as supostas correlações anatômico-genético-lingüísticas não existem — um exame mais atento dos dados mostra uma disparidade nas distribuições, fato hoje reconhecido por Greenberg e seus colaboradores. Os dois críticos se preocuparam em especial, porém, com um problema muito mais fundamental: a classificação das línguas dos americanos nativos de Greenberg estava errada. Os métodos empregados pouco mais fizeram que comparações de palavras e peças de gramática semelhantes; não se dera atenção alguma ao estudo de todas as línguas, e como elas mudam ao longo do tempo — um campo de estudo conhecido como lingüística histórica. As línguas se espalham, mudam e tornam-se extintas de forma inteiramente independente dos genes ou da forma dos dentes; é um absurdo procurar correlações entre eles sem levar em conta a grande quantidade de casamentos endogâmicos, escravidão, migrações internas e guerra que se sabe tiverem ocorrido durante a história americana nativa, quanto mais antes do contato europeu. Escrevendo em 1994, Goddard e Campbell não sabiam de nenhum especialista individual trabalhando na história americana nativa que julgasse a família ameríndia digna de alguma validade. A incoerência disso foi claramente demonstrada quando revelaram que, seguindo os métodos de Greenberg, o finlandês tinha de ser incluído como membro. Na opinião deles, Greenberg apenas cotejou coincidências lingüísticas e depois interpretou-as erroneamente como derivações pré-históricas. Esse debate não é o único no estudo lingüístico dos americanos nativos. Em 1990, Johanna Nichols, lingüista da Universidade da Califórnia em Berkeley, afirmou que o grande número de línguas no Novo Mundo — o "fato lingüístico", como o chamou — torna "absolutamente inequívoco" que o Novo Mundo tem sido habitado há dezenas de milênios, pelo menos 35 mil anos — uma data que teria deixado Niède Guidon, que escavava Pedra Furada em 1990, na verdade muito feliz. Johanna deduziu que o número de línguas em qualquer região aumenta
aos poucos, ao longo do tempo, num ritmo muito constante. Optou pelo termo "tronco" para referir-se à língua original da qual surgiram várias famílias de língua existentes. Na Eurásia, por exemplo, o indo-europeu é o tronco do qual surgiram famílias de língua como a germânica, celta e balto-eslavo. Estas poderiam então funcionar como troncos para novas famílias de língua. Os troncos, afirmou Johanna, deram origem a uma média de 1,6 ramo de troncos/famílias a cada 5-8 mil anos. Salientou que as 140 línguas básicas que ela reconhece no ameríndio teriam exigido cerca de 50 mil anos para derivarem da língua original falada pelas primeiras pessoas nas Américas. Johanna modera essa cifra para apenas 35 mil anos atrás, a fim de permitir mais de um evento de colonização, e portanto mais de um tronco original. Quando Daniel Nettle — lingüista de Oxford — examinou exatamente as mesmas datas que Johanna Nichols, chegou a uma conclusão bastante diferente. Para ele, o grande número de línguas americanas nativas deve ser um sinal de colonização relativamente recente, sem probabilidade de ter ocorrido antes de 11.500 a.C. Nettle afirmou que a proporção para o surgimento de novas línguas apresentada por Johanna é inteiramente infundada; e também questionou toda a premissa de que as línguas até mesmo proliferam dessa maneira. Uma nova língua acaba surgindo, afirmou, apenas em conseqüência de algum acontecimento em particular, freqüentemente o movimento de um grupo de pessoas para uma nova área, sobretudo uma que exige adaptação de seus estilos de vida a um novo grupo de recursos. Segundo Nettle, a colonização de um novo continente logo levaria a uma proliferação de línguas, quando as comunidades se espalhassem e dividissem em novos "nichos" — áreas com sua particular variedade de recursos. Em cada “nicho” os colonizadores começariam um estilo de vida distinto, como caçadores, pescadores, agricultores ou criadores de rebanhos, desenvolvendo seus próprios vocabulários novos, e, por fim, línguas. Todos os nichos existentes acabariam ficando cheios de gente, e em conseqüência haveria uma redução e, por fim, o término do surgimento de novas línguas. E depois, enfatizou Nettle, o número de línguas começaria a cair; alguns grupos ficariam mais poderosos e iluminariam outros, enquanto o desenvolvimento do comércio exigiria a partilha de palavras e um determinado grau de convergência lingüística. À medida que as populações se fossem expandindo mais e tornando-se
muito apinhadas, haveria uma redução ainda maior no número de línguas presente. Esse processo é prontamente visível no mundo atual, onde se espera que o número existente de línguas, cerca de 6 mil 500, chegue à metade nos próximos 100 anos, em conseqüência da globalização. E assim Nettle concluiu que a alta diversidade lingüística do Novo Mundo indicava uma colonização recente, opinião compatível com o cenário do Clovis Primeiro. Uma conclusão exatamente oposta à chegada por Johanna Nichols. Como poderiam ela e Daniel Nettle ter chegado a tão diferentes conclusões? Um dos motivos é que abordam o estudo de línguas a partir de perspectivas muito diferentes. À diferença de Johanna Nichols, Daniel Nettle é antropólogo por formação; preocupa-se basicamente com a maneira como as pessoas usam a língua para manter relações sociais, e como os fatores econômicos e ecológicos influenciam a distribuição e o número de línguas num continente específico. Lingüistas como Johanna, porém, têm apenas um interesse secundário por essas questões, e vêem as línguas como entidades em evolução, com uma dinâmica bastante independente de seu contexto social, econômico e ambiental. Com todas essas afirmações contraditórias sobre colonização americana, os lingüistas parecem estar no mesmo barco que os arqueólogos — incapazes de concordar uns com os outros até mesmo nos fatos mais básicos. Aqueles entre nós que não têm especialização lingüística são deixados num dilema sobre em quê acreditar. Minha tendência é mais para o método antropológico de Nettle e a conclusão meio deprimente de Goddard e Campbell: que a extensão de conhecimento confiável sobre a história lingüística dos índios americanos, por ser tão incompleta, é compatível com uma ampla variedade de cenários para a povoação das Américas. Lá se vão os lingüistas. Estão os geneticistas se saindo melhor? Já vimos como os arqueólogos podem usar a genética de pessoas vivas ao examinarem se a disseminação da agricultura pela Europa surgiu da migração de camponeses com ancestralidade do oeste da Ásia ou a partir da adoção indígena da cultura neolítica. A mesma técnica de busca de padrões específicos de mutação genética, sobretudo no DNA mitocondrial, foi usada para determinar quando as pessoas chegaram pela primeira vez às Américas, e de onde vieram. Têm-se estudado três origens de DNAmt: a dos americanos nativos; a de
pessoas vivas no norte e leste da Ásia, para permitir comparações com os dados americanos; e a partir dos restos de esqueletos de americanos nativos pré-históricos. Os tipos específicos de análises feitas, e as conclusões específicas a que chegaram, têm variado muito. Mas uma importante descoberta foi que as seqüências de DNAmt de americanos nativos classificam-se em quatro grupos principais, descritos como A, B, C e D. Os americanos nativos das famílias de língua na-dene e esquimó-aleúte produzem em especial seqüências DNAmt que pertencem ao grupo A, enquanto — talvez não surpreendentemente — a enorme família de língua ameríndia tem representantes de todos os quatro grupos. Tal diversidade genética — indicando contribuições de várias populações migrantes — apóia os lingüistas que duvidam da realidade da família ameríndia. Mas do mesmo modo que os arqueólogos e os lingüistas, os geneticistas não conseguem apresentar uma única resposta relacionada a quando e como ocorreu a colonização. Em 1993, uma equipe de geneticistas chefiada por Satoshi Horai, do Instituto Nacional de Genética no Japão, sugeriu que cada um dos quatro grupos é produto de uma migração separada para as Américas entre 21-14 mil anos atrás. Um ano depois, uma equipe liderada por Antônio Torroni, da Universidade de Emory, Atlanta, EUA, analisou os dados de maneira ligeiramente diferente e concluiu que os ameríndios haviam migrado para as Américas em duas ondas: a primeira, dos grupos A, C e D, chegando entre 29-22 mil anos atrás, e a segunda do grupo B apenas em uma data muito superior. Em 1.997 Sandro Bonatto e Francisco Salzano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, concluíram que todos os quatro grupos tinham uma origem comum de uma migração anterior a 25.000 anos antes. Por que deveriam os geneticistas achar tão difícil chegar a um consenso? Uma das razões é que enfrentam vários dos mesmos problemas que os lingüistas. Do mesmo modo como há limitada compreensão do ritmo no qual as línguas divergem umas das outras, também há limitado acordo sobre o ritmo da mutação genética. Os geneticistas na verdade usam seus melhores palpites quanto à freqüência das mutações, e esses palpites às vezes são muito diferentes. Além disso, diferentes genes podem mudar em ritmos diferentes, e algumas mutações poderiam mascarar outras surgidas antes.
Outra razão é que, mesmo com nosso conhecimento limitado da história e pré-história americana, está claro que houve uma intensa mistura dos genes de pessoas que podem ter-se originado de migrações separadas para as Américas, em diferentes épocas. Após tanta mistura, talvez seja inteiramente impossível identificar o número e tempo dessas migrações a partir dos genes dos americanos nativos atuais. A tentativa de reconstituir a pré-história americana a partir dos dentes, línguas e genes de hoje também se vê crucialmente diante de outro problema em potencial, suscitado pelos escassos restos de esqueletos dos primeiros e antigos americanos. À partir de 2.000 d.C., não há mais que 37 indivíduos representados em toda a coleção de restos de ossadas que datam de antes de 9.000 a.C. Vários desses indivíduos são conhecidos apenas a partir de poucos fragmentos de osso. Quando essa coleção foi estudada por D. Gentry Steele e Joseph Powell, antropólogos da Universidade A&M do Texas, EUA, eles fizeram uma descoberta surpreendente: os nativos americanos mais antigos pareciam muito diferentes dos registrados de tempos pré-históricos ou históricos posteriores. Os povos mais recentes são descritos como tendo uma aparência mongolóide — rostos relativamente largos e chatos e malares altos, indicando claramente descendência do norte da Ásia. Mas as amostras de esqueleto pré-9.000 a.C. sugerem pessoas com rostos curtos e estreitos e padrões dentários muito diferentes dos descritos por Christy Turner para os nativos americanos. Na verdade, em vez de parecerem com os americanos recentes e o povo norte-asiático, esses primeiros americanos são de aparência muito mais semelhante à dos primeiros australianos, que datam de 60 mil anos atrás, e africanos modernos. Em 1996, descobriram-se um precioso novo crânio e restos parciais de um esqueleto na região do rio Columbia, no Estado de Washington. Após realizar um exame médico-legal, o arqueólogo local, James Chatters, concluiu a partir das feições caucasóides — as que distinguem povos nativos da Europa, norte da África e do Oriente Próximo, como nariz estreito, de cana alta — que os ossos eram de um colonizador europeu recente. Mas quando datado, acabou-se sabendo que o homem morrera cerca de 7.400 a.C. — data que se encaixa no estilo de um projétil de pedra enterrado no osso de sua coxa. O Homem de Kennewick logo virou uma causa célebre. Não menos que 5 tribos nativas americanas reivindicaram-no como ancestral direto. A tribo
umatilla tomou a dianteira e, pela NAGPRA [acrônimo em inglês de Lei de Repatriação e Proteção de Túmulos Nativos Americanos] de 1990, exigiu imediato reenterro num local secreto. Muitos cientistas ficaram horrorizados. Alegaram que isso seria um abuso de legislação, e que não se podiam demonstrar quaisquer vínculos com qualquer tribo: enterrá-lo de novo constituiria a perda de uma prova inestimável sobre a colonização das Américas. Os ossos foram vedados numa urna e realizaram-se demorados processos judiciais para decidir seu destino, antes de concederse permissão para testar o seu DNA; coisa que indignou os índios umatilla. Quando Chatters soube da data de 7.400 a.C., reviu sua opinião, declarando que o Homem de Kennewick era apenas do tipo caucasóide. Uma detalhada análise estatística mostrou que a forma do crânio era mais semelhante à do povo polinésio, sobretudo da ilha Oriental no Pacífico e os ainos do Japão. Os últimos são na verdade de aparência caucasóide, e bem podem descender do mais antigo Homo sapiens, e ter-se distribuído pela Ásia oriental logo depois de 100 mil anos atrás. Alguns deles viajaram para a Austrália há 60 mil anos, e outros têm muita chance de ser os primeiros a chegar no Novo Mundo. Em vista da diferença em sua aparência física, os primeiros americanos, conhecidos a partir do registro do esqueleto pré-9.000 a.C., talvez não tivessem qualquer relação com os nativos americanos conhecidos nos registros históricos e pré-históricos posteriores, e na verdade com os que vivem hoje. É evidente que todos esses nativos americanos mais recentes se originaram de migrações — talvez mais bem descritas como dispersões — de povos do norte da Ásia, depois que evoluíram as distintivas feições mongolóides. Os já presentes nas Américas talvez se hajam simplesmente incluído nessas novas populações, com seus próprios traços dentários, genéticos e lingüísticos sendo inundados pelos dos recém-chegados. Por outro lado, os primeiros americanos poderiam ter-se tornado extintos, não dando contribuição genética e lingüística alguma às populações futuras. Uma terceira — e mais improvável — alternativa é que os primeiros americanos foram deliberadamente varridos pelos novos imigrantes — lembrem-se da ponta do projétil na coxa do Homem de Kennewick. Qualquer que seja o cenário correto, as pré-histórias dentárias, lingüísticas e genéticas podem jamais remontar aos primeiros americanos. Por isso, precisaremos recorrer ao registro arqueológico. Desse modo, lemos de
voltar ao último e talvez mais crítico sítio arqueológico nas Américas: Monte Verde.
25 Nas Margens do Chinchihuapi Escavação e interpretação de Monte Verde, 1977 - 1997 d.C., 12.500 a.C. John Lubbock anda pela margem turfosa do arroio Chinchihuapi, um raso e sinuoso braço do rio Maullin, no sul do Chile. O arroio foi seu guia em todas as florestas, pântanos e verdes campos de gado a pastar. Os alto picos dos Andes, cobertos de neve, pairam acima de copas de árvores a leste; encostas florestais mais baixas da cordilheira litorânea do Pacífico elevam-se a oeste. O próprio oceano Pacífico não fica a mais de 30 quilômetros. O destino de Lubbock é Monte Verde, onde Tom Dillehay, da Universidade de Kentucky, concluiu sua temporada de escavação em 1985 — um sítio que o deixara "oprimido e ligeiramente confuso" quando começou a trabalhar uns 8 anos antes. Turfa, restos de pântano e plantas enlameadas logo se acumularam sobre cabanas abandonadas, áreas de trabalho, locais de cozinha e montes de lixo, inibindo os processos normais de decomposição e criando níveis sem precedentes de preservação. E assim Dillehay não apenas tinha artefatos humano e ossos de animais para escavar, mas também resíduos de plantas, tábuas de cabana, artefatos de madeira, pedaços de couro e até nacos de carne de animal. Ele reuniu uma impressionante equipe de colaboradores: geólogos, botânicos, entomólogos e paleontólogos, para não falar em seus colegas arqueólogos. Além de analisarem as descobertas arqueológicas, eles precisavam reconstituir a paisagem onde tinham vivido os habitantes de Monte Verde. Sua equipe tinha ainda mais uma importante tarefa: estabelecer a idade do assentamento. Enquanto Lubbock segue o arroio, a água se aprofunda e corre mais rápido. A temperatura do ar cai e fica mais úmida; seus passos não mais batem em turfa elástica, mas afundam um pouco na areia fofa. Ele ouve vozes. Quando contorna uma curva no rio, Lubbock espera ver a
escavação em pleno vapor, como nas Cavernas Bluefish e Pedra Furada. Mas chegou a Monte Verde muito antes do planejado — é 12.500 a.C. e o assentamento, com seus habitantes originais, prospera. As pessoas têm cabelos negros de azeviche e pele azeitonada; corpos magros e envoltos em mantos tipo poncho, de pele de animal. Vários trabalham no fim de uma tenda de forma oval, dividida em diversas unidades, talvez casas de família. Fica a alguns metros da margem do rio, e os que trabalham parecem estar acrescentando outra unidade ao fim, já se havendo assentado troncos como fundações de paredes e piso. Trabalhando com rapidez e eficiência, afinam as pontas das estacas com lascas de pedra e enfiam-nas no solo arenoso. Perto, um grupo de mulheres sentadas prepara cordão com fibras vegetais para prender cortinas de couro sobre a armação da tenda. Enquanto homens e mulheres trabalham, crianças espadanam no arroio e um velho cuida de uma grande fogueira diante de outra fileira de moradias. Rearruma os seixos aquecidos pelas brasas, e dois rapazes preparam a comida. Embrulham pequenos legumes parecidos com batata em grandes folhas verdes, empilhando-os numa travessa de casca de árvore, como preparação para cozinhá-los no vapor; nozes são moídas num pilão de madeira e despejadas numa tigela de palha contendo folhas de gostoso aroma. Um grito chega da floresta que fica além do pântano nos fundos da aldeia. Pessoas espreitam pelas cortinas de couro de suas cabanas e o trabalho é esquecido quando um grupo de vultos sorridentes, com pesados sacos, avança por entre as árvores, atravessando o atalho coberto de mato que dá na aldeia. Gritam-se saudações, e toda a comunidade — pelo menos trinta homens, mulheres e crianças — corre ao encontro deles. Os recém-chegados sentam-se ao lado da fogueira, a comida semipreparada empurrada para um canto. Todos se juntam em volta, ansiosos por ver o que foi trazido do litoral. Lubbock se vê espremido no meio deles, roçando ombros com as pessoas de Monte Verde — não os primeiros americanos conhecidos, mas os mais antigos. Os sacos são abertos. Um por um, o conteúdo é retirado, cada artigo erguido e apresentado com um relato sobre a coleta. As pessoas estão atentas. Quase todo relato termina com uma risada, à medida que o artigo é passado em volta do grupo e depois posto com todo cuidado no chão: uma bexiga cheia de sal, provado com grande alegria enquanto circula;
uma cuia de cabaça cheia de betume preto, pegajoso, que será usado para fixar lascas de pedra em cabos de madeira; uma coleção de seixos de praia esféricos, que serão preferidos como pedras de martelo às angulares encontradas na enseadas. Assim que se retirou tudo, os viajantes continuam conversando, respondendo muitas perguntas sobre o que viram e com quem se encontraram. Estiveram ausentes por dez dias, visitando outro assentamento e voltando pela costa para catar iguarias como algas marinhas, mariscos, berbigões e ouriços-do-mar, junto com qualquer outra coisa que julgassem útil. O grupo aos poucos se dispersa, para só retornar depois que cai o crepúsculo, reunir-se e cantar em volta de uma fogueira e sob um céu estrelado. Arrumam-se nas brasas ervas que enchem o ar de aromas pungentes. Um homem dá início ao canto, enquanto os outros ficam calados; a música transfere-se para as moças e depois retorna ao homem, com os outros pondo-se a bater palmas. Tem início a dança, que deixa uma faixa de pegadas em volta da lareira. A comida é dividida em grandes travessas de folhas — as batatas selvagens, carne assada, uma mistura de folhas, caules, raízes raladas e a salada de nozes moídas. Quando a refeição é concluída, recomeçam o canto e a dança, e continuam até bem avançada a noite americana. É 12.500 a.C., e quando Lubbock se afasta para dormir, lembra onde mais esteve nessa data na história humana: pegando em armadilhas lebres árticas em Creswell Crags; tocaiando renas no vale de Ahrensbur; vendo pessoas de Ain Mallaha moerem amêndoas e assarem pão. Os rios sinuosos estão sempre se desviando de seu curso, depositando os sedimentos que levam e criando novos bancos de areia e canais. O arroio Chinchihuapi teve uma enxurrada dessa atividade em 1976, varando um de seus canais anteriores que há muito fora enterrado embaixo de um pântano de turfa. As velhas margens do arroio ficaram expostas e foram ainda mais recuadas por madeireiros locais, para fazer uma trilha destinada ao tráfego de seus carros a boi rebocando madeira. Membros da família local de Gerardo Barria encontraram ossos projetados da margem, que deram a um rapaz, na época estudante de agricultura, achando que eram de vacas. O rapaz mostrou-os a Carlos Troncoso, antropólogo na Universidade de Valdivia, e a seu professor Maurício van
de Maele, diretor do Museu. Os dois examinaram o sítio e encontraram mais ossos, junto com artefatos de pedra. Nesse estágio, Tom Dillehay, que ensinava na universidade, ficou interessado, intrigado com possíveis marcas de corte nos ossos e a freqüência caracteristicamente alta de costelas. Inspecionou o sítio em 1976 e logo começou a escavação que o levaria, a ele e a toda a pré-história americana, até o outro lado da Barreira Clovis. Mesmo que a teoria do "Clovis Primeiro" houvesse permanecido intata, o grau de preservação em Monte Verde continuaria tendo garantido sua fama como um dos mais admiráveis sítios arqueológicos no Novo Mundo. Foram necessários dois enormes volumes para Dillehay publicar e interpretar os dados de sua escavação, o último lançado em 1977 — mais de 20 anos após o início do trabalho. Com tantos testemunhos, ele pôde elaborar uma reconstituição do estilo de vida em Monte Verde, afirmando que as pessoas viviam o ano inteiro no assentamento, e ou comerciavam com moradores do litoral ou simplesmente faziam visitas regulares para coletar comida e matérias-primas dos estuários, poças na rocha e praias. No entanto, é a data de Monte Verde que eleva o sítio acima de todos os outros nas Américas. Dillehay conseguiu identificar duas coleções distintas de artefatos. A maior, que incluía a maioria dos instrumentos, restos de cabanas e a grande parte dos detritos alimentares, foi chamada de MV-II e datada por métodos de radiocarbono de cerca de 12.500 a.C. A segunda coleção, MVI, era mais efêmera e vinha de antigos sedimentos fluviais. Dillehay encontrou punhados de carvão que talvez sejam restos de lareiras junto a possíveis artefatos de pedra e madeira, e estes eram datados de no mínimo 33.000 a.C. Ele próprio permanece cauteloso em relação à MV-I, reconhecendo a necessidade de escavar uma área maior antes de defender qualquer conclusão com confiança. Mas em 1985 não tinha a menor dúvida sobre a validade da data da ocupação de 12.500 a.C. A Barreira Clovis, que permanecera resolutamente intata por mais de 50 anos, fora levada pelas águas do arroio Chinchihuapi. Quando Lubbock acorda na manhã seguinte, a obra na nova cabana já recomeçou mais uma vez; agora amarram-se couros a armações de madeira e estendem-se galhos quebrados de um lado a outro do teto. Outras pessoas fazem e consertam instrumentos com o recém-adquirido
betume. As lascas presas a cabos mal são trabalhadas — podiam ter sido facilmente confundidas com pedras fraturadas pela natureza. Na verdade, Lubbock vê que as pedras polidas coletadas do leito do arroio são usadas como foram encontradas — pouco diferentes das descobertas nas Colinas Calico e em Pedra Furada. A maior parte da atividade ocorre a uns 30 metros das cabanas, no que parece ser a oficina do assentamento. Lubbock vagueia entre vários grupos de homens e mulheres, cada um envolvido numa diferente tarefa, vários mascando enquanto trabalham. Três homens sentados de pernas cruzadas fazem boleadeiras de pedra para caçar. Usando os seixos duros da praia, batem e aparam cada nódulo de pedra mais macia até quase transformá-lo numa esfera perfeita, antes de fazer uma ranhura para encaixar a corda. Outro grupo corta madeira com grandes machados de pedra — técnica muito semelhante à exigida para fazer pontas Clovis. Há apenas uma construção nessa área do assentamento, e é bastante diferente das outras em Monte Verde. Tem forma de domo — árvores novas inclinadas, cobertas com couros. Lubbock olha o interior. O piso tem uma plataforma triangular erguida, feita de areia e saibro socados, com duas extensões curvas que se projetam em cada lado da entrada. Embora sem ninguém dentro, o piso está juncado com uma miscelânea de gamelas, pilões e almofarizes, esmeris e espátulas de madeira. Pendendo do teto, feixes de folhas, matos e flores. Perto, trabalham-se couros de animais. Alguns são presos bem esticados com estacas no chão para que se retirem a gordura e os tendões raspandoos; outros são estendidos e socados a fim de torná-las macios e leves para vestuário. Os implementos de osso empregados quase nem sequer foram modificados, fazendo Lubbock lembrar-se dos supostos instrumentos das Cavernas Bluefish. Um arqueólogo menos meticuloso poderia facilmente não notar as pontas pouco aplainadas e os pequenos cortes nos lados. Dispersas entre esses fabricantes de instrumentos e preparadores de pele, vêem-se várias lareiras antigas. Uma delas é mais uma vez reativada — põem-se seixos em suas cinzas e cobrem-nos com lenha e folhas secas. Quando acesa, há um clarão súbito mas de vida curta. Enquanto o fogo se firma, folhas secas tiradas de dentro da estrutura são amassadas numa gamela com água e, após 30 minutos, acrescentam se pedras quentes de brasas incandescentes para fazer o chá. O trabalho pára e o chá é distribuído, a gamela sendo passada de boca em boca. Antes de bebê-lo,
nacos de plantas mastigadas são cuspidas no chão. Lubbock serve-se do chá. Ali sentado, bebendo-o, vê uma canoa chegar e os dois jovens que a ocupam pedem ajuda para descarregá-la. Trazem uma coleção de costelas e um enorme osso da coxa de um mastodonte — uma grande criatura semelhante ao elefante, que vivia em todas as Américas antes do fim da era glacial. As pessoas de Monte Verde encontraram a carcaça alguns dias antes num tesouro inesperado que já fornecera pêlo, presas e couro. As grossas solas das patas transformaramse em excelentes cestos; órgãos internos selecionados foram esvaziados, limpos e costurados para fornecer sacos impermeáveis. Lubbock lembra-se de um trecho de Tempos pré-históricos. O John Lubbock vitoriano resumira uma história publicada de 1857 sobre os restos de um mastodonte no Missouri. Ao que parece, fora "morto apedrejado pelos índios, e depois consumido parcialmente por fogo". A história fora escrita por um certo Dr. Koch, que achava que os índios tinham encontrado a imensa criatura impotente, atolada na lama, e arremessaram-lhe pedras colhidas na margem de um rio perto. Também afirmou ter encontrado várias pontas de flecha, uma pedra pontuda e machados de pedra entre as cinzas, ossos e rochas. Embora o John Lubbock vitoriano citasse o Dr. Koch extensamente, pareceu cético, comentando que ainda era preciso provar a correção dessas observações. Após as controvérsias em torno das Cavernas Bluefish, Meadowcroft e Pedra Furada, não surpreenderá o fato de nem todos os arqueólogos ficarem tão convencidos quanto Dillehay de que ele transpôs a Barreira Clovis. Thomas Lynch, arqueólogo hoje no Museu de Brazos County, em Bryan, Texas, sugeriu que os artefatos devem ter-se desfeito nos depósitos de uma ocupação humana muito mais recente — embora não se conheça nenhuma na área. A arqueóloga da Universidade de Massachusetts, Dena Dincauze, achou que Dillehay interpretou errado as datas de radiocarbono. Em 1997, um grupo de abalizados arqueólogos visitou Monte Verde para examinar a afirmação de Dillehay — continuando a tradição daqueles que haviam visitado Folsom em 1927 e Pedra Furada em 1993. O grupo de Monte Verde incluiu os principais protagonistas no debate sobre o povoamento das Américas nos 30 anos anteriores. Lá estavam David Meltzer, com seu íntimo conhecimento da história dos estudos arqueológicos; Vance Haynes, paladino do cenário do "Clovis Primeiro"
desde a década de 1960; James Adovasio, que defendera sua posição sobre a Gruta de Meadowcroft; e Dena Dincauze, que questionara as interpretações de Dillehay. A visita deles foi uma coisa extremamente meticulosa. Começou com um estudo da publicação final de Dillehay sobre Monte Verde, prestes a ir para o prelo, e continuou com uma inspeção dos artefatos de Monte Verde abrigados nas Universidades de Kentucky e Valdivia. O grupo depois ouviu palestras sobre os ambientes passados c presentes em Monte Verde, e por fim fez um detalhado exame do próprio sítio. Ao cabo daquele dia, reuniram-se para discutir suas constatações e decidir se Tom Dillehay conseguira o que escapara a Louis Leakey, Jacques Cinq-Mars, James Adovasio e Niède Guidon: uma inequívoca demonstração de assentamento pré-Clovis nas Américas. Chegou-se à unanimidade. Não restou em nenhum do grupo qualquer dúvida de que Dillehay na verdade transpusera a Barreira Clovis. Era inquestionável que vários dos artefatos, sobretudo os instrumentos de pedra lascada, as "boleadeiras" e as fibras nodosas tinham sido feitos por seres humanos; do mesmo modo, não se podia contestar que esses artefatos foram encontrados exatamente onde haviam sido jogados fora, vedados com muita segurança pela turfa que se desenvolvera no sítio. Verificou-se que as datas se tinham mantido incontaminadas — demonstrando inequivocamente que a ocupação humana ocorrera cerca de 12.500 a.C. Poderia ter sido até muito mais cedo. Pois embora os restos da MV-I fossem esparsos e recebessem menos atenção, alguns do grupo pelo menos ficaram impressionados com o indício de uma ocupação de 33 mil anos de idade em Monte Verde. Mas a verificação dessa fase particularmente precoce de ocupação precisa esperar até Dillehay escavar uma área maior. Para as necessidades desta história —- e da arqueologia americana durante pelo menos a próxima década — a aceitação da ocupação em 12.500 a.C. é importante demais. Significa que o cenário do Clovis Primeiro está morto e enterrado. Até 1927, ninguém sonhava que o sítio mais antigo das Américas produzisse pontas-de-lança e ossos de bisão. Folsom transmitiu uma visão novíssima dos primeiros americanos: caçadores de grandes animais nômades das planícies. Monte Verde foi igualmente inesperado e substituiu essa visão por outra: pessoas que habitavam florestas,
coletavam plantas em comunidades estabelecidas. Há mais uma drástica diferença entre esses sítios: enquanto Folsom fica no Novo México e parece razoavelmente situado como um marcador dos primeiros povos a chegarem à América do Norte, Monte Verde está a não menos que 12 mil quilômetros do extremo sul do corredor livre de gelo. Como seria mais fácil para o deslindamento da história da pré-história americana se Monte Verde ficasse no Alasca, ou até na América do Norte. Pois onde estão todos os outros assentamentos que as pessoas fizeram em sua jornada do norte para o sul? Talvez nas Cavernas Bluefish, talvez na Gruta de Meadowcroft, talvez em Pedra Furada. Quantos assentamentos existiriam ali? Isso depende de quanto tempo as pessoas levaram para chegar a Monte Verde, e se viajaram por terra ou por mar. David Meltzer acha que, qualquer que fosse a rota tomada, haveriam sido necessários vários milhares de anos. Embora em tempos históricos caçadores de peles tivessem de fato percorrido o continente no espaço de dois séculos, ele afirma que isso dificilmente poderia ter ocorrido com "pequenos bandos colonizadores (com crianças, claro) viajando por ambientes diversos e desconhecidos e em mutação, transpondo importantes limites ecológicos, de vez em quando enfrentando formidáveis barreiras físicas, ecológicas e topográficas como as camadas de gelo, os lagos inchados e rios drenando-os, e mantendo durante o tempo todo laços de parentesco vitais e tamanhos populacionais". A idéia de que os primeiros americanos eram exploradores ousados, percorrendo aqueles 15 mil quilômetros desde a Beríngia a Monte Verde em menos de 2 mil anos, é para Meltzer muitíssimo improvável. Se ele estiver correto, as pessoas devem ter entrado nas Américas antes da grande glaciação do LGM de 20.000 a.C. Mas, neste caso, a completa ausência de assentamentos validados nas Américas antes de Monte Verde é ainda mais admirável — admirável demais para eu acreditar. Na minha concepção, os primeiros americanos, os que devem ter partido do Alasca e viajado até o sul do Chile em menos de uma centena de gerações, foram o mais extraordinário grupo de exploradores que já viveu neste planeta. Desconfio que o mistério do povoamento das Américas só pode ser desvendado invocando-se as peculiares qualidades humanas de curiosidade e sede de aventura que cm tempos recentes levaram homens aos pólos, ao fundo dos mares e à Lua. Terão as mesmas idéias impelido geração após geração dos primeiros americanos a viajar mais para o sul
desde suas terras natais, talvez após deixar essas terras de barco e chegar à planície costeira do noroeste? Avançaram depois interior adentro e atravessaram lagos de água derretida, cordilheiras de montanhas e rios inchados, a fim de aprender a viver em matas, pradarias e florestas tropicais, e acabaram chegando a tempo em Monte Verde? Se assim for, Robson Bonnichsen estava sem dúvida correto quando, em 1994, descreveu os primeiros americanos como "uma admirável gente nova num admirável mundo novo". Se essa viagem de fato ocorreu, uma jornada através das paisagens em turbilhão da América do Norte quando o aquecimento global se instalava, teria sido um dos mais importantes acontecimentos na história humana. Um acontecimento que agora precisamos visitar para reconstituir o capítulo seguinte da história americana após o gelo — a extinção da megafauna.
26 Exploradores numa Paisagem Agitada Fauna, evolução da paisagem e colonização humana norte-americanas, 20.000 – 11.500 a.C. Imagine-se numa floresta desconhecida numa noite de verão, com a luz começando a declinar, em 12.000 a.C. Você está numa clareira, cercado por zimbros c freixos, bétulas e mognos. Um ruidoso rio abre caminho em corredeiras, proporcionando um acompanhamento de fundo para o zumbido de insetos e o ocasional guincho de um pássaro oculto. Alem das árvores, enormes penhascos dominam o rio e a mata, projetando sombras longas e protetoras. Agora imagine um novo ruído, talvez um novo cheiro. Uma criatura logo se aproxima de você, bufando como um porco ao avançar pela vegetação rasteira, evitando os cactos enquanto busca raízes e caules comestíveis. Pára a menos de um metro e ergue-se nas patas traseiras para farejar um odor desconhecido no ar, Encara-o, na altura dos olhos, mais de 1,80 acima do chão. Marrom e peludo, corpulento, uma cabeça pequena com olhos redondos e brilhantes e narinas abertas. Os membros anteriores pairam imóveis; três garras tipo gancho estendem-se de cada pata em forma de pá. O animal grunhe, volta a ficar de quatro e continua em seu caminho, rumo à caverna no penhasco. Agora se ponha num pequeno outeiro, em meio a uma fileira de ciprestes. O ar é pegajoso com o cheiro de alcatrão. Além de você, há lagos; não cintilantes com doce água azul, mas lagos oleosos, escuros, supurantes, nos quais incham e explodem putrefatas bolhas de gás. Um camelo jaz de lado nesse lodo de alcatrão. Preso. Literalmente grudado no chão. Ergue a cabeça e solta um último berro antes de desistir, exausto de sua luta. Mas não é o alcatrão que toma a vida do animal. Um tigre-de-dente-de-sabre, do tamanho de um leão, com caninos serrilhados de 20 centímetros de comprimento, salta. Escancara a enorme boca antes de apunhalar o camelo e dilacerar sua carne. A pouca distância dali, asas adejam violentamente, quando um abutre
também luta para libertar-se do alcatrão. Ao bater as asas, estas se tornam negras e pesadas. A busca da liberdade é inteiramente inútil. Hoje, claro, seria um tanto surpreendente encontrar um esmilodonte despachando um camelo (apropriadamente chamado Camelo de Ontem pelos cientistas) nos poços de alcatrão de Rancho La Brea, no centro de Los Angeles, ou uma preguiça do chão dirigindo-se para a Caverna Rampart, no Grand Canyon. Para ter visões como essas, você teria de ter sido um dos primeiros americanos. A fauna americana atual encontra-se gravemente empobrecida comparada à vista pelos primeiros habitantes humanos. Não apenas faltam a preguiça do chão c o esmilodonte, mas também o gliptodonte — tatu gigantesco — e o eremotherium, uma gigantesca preguiça do chão com seis metros de comprimento e três toneladas de peso. Não se vêem mais em lugar algum os castorídeos, castores do tamanho de um urso-negro, e os teratornos, aves comedoras de carne cujo tamanho ultrapassava o dos condores. Nem os mamutes e seus primos distantes, os mastodontes, elefantídeos com presas retas e crânios chatos. Nem todos os animais hoje extintos teriam sido estranhos aos olhos modernos. O chacal-medonho e o guepardo se parecem com suas contrapartes modernas. Como também as cinco espécies de cavalos que se tornaram extintas — um animal que teve de ser reintroduzido em sua terra natal por colonizadores europeus . A desorientadora variedade de animais na América do Norte encontrada pelos primeiros americanos foi conseqüência de milhões de anos de evolução biológica e geográfica muito antes da chegada do LGM. Até 50 milhões de anos atrás, a América do Norte era ligada à Europa por uma ponte de terra através da Groenlândia. Os dois continentes partilhavam vários dos mesmos animais, como o hyracotherium, ou "cavalo do amanhecer", um animal de cerca de 30 centímetros de altura, que evoluiria na América do Norte para o cavalo de hoje. Mas quando os dois continentes se separaram, desapareceu a ponte de terra, e os animais na Europa e América do Norte passaram a evoluir em direções muito diferentes. Há 40 milhões de anos, surgiu uma nova ponte — que proporcionou um caminho desde a Ásia e foi tomado por diversas espécies. A mais impressionante era o mastodonte, um animal que tanto os primeiros americanos quanto os Clovis acabariam encontrando, nos
brejos que circundavam Monte Verde ou nas florestas de espruce da América do Norte. Entre 60 e 2 milhões de anos atrás, as Américas do Sul e do Norte eram inteiramente separadas uma da outra. No continente sul, evoluíra uma admirável variedade de animais — entre eles as preguiças gigantescas, o gliptodonte e outras formas de tatus gigantes. Quando se formou a terra panamenha há 2 milhões de anos, alguns desses animais dispersaram-se para a América do Norte, enquanto outros como o cavalo, veado, tigresde-dente-de-sabre e ursos do norte foram para o sul. Não surpreende que os paleoantropólogos descrevam isso como o "Grande Intercâmbio". Em cerca de 1,5 milhão de anos atrás, chegaram as duas primeiras espécies de mamute pela ponte de terra asiático-americana, o mamute colombiano (Mammuthus columbi). Seu primo, o mamute peludo (M. primigenius), espalhou-se pela América do Norte por volta de 100 mil anos atrás e permaneceu nas regiões norte. As duas espécies na verdade partilhavam o continente entre elas. A conseqüência desses períodos de evolução isolada e intercâmbio de espécies foi que, ao chegarem — alguns antes de 12.500 a.C. — os primeiros americanos encontraram alguns animais conhecidos, e alguns que seus ancestrais jamais tinham visto antes. Não teria havido nada semelhante às gigantescas preguiças do chão e tatus gigantes em suas terras asiáticas, embora várias gerações de seus ancestrais tivessem conhecido, e talvez caçado, os mamutes. Sabemos dos animais extintos a partir de mais de um milhão por ossos escavados dos poços de alcatrão de Rancho La Brea. Desde pelo menos 33 mil anos atrás, o petróleo vinha vazando para a superfície onde hoje se localiza o centro de LA. Quando exposto, reagia com a atmosfera tornando-se viscoso e pegajoso, e acabava transformando-se em asfalto e solidificando-se. Os animais eram colhidos nesses poços de alcatrão, oferecendo aos geólogos de hoje um extraordinário registro de fauna da era glacial — uma "gigantesca cápsula do tempo fóssil", como descreveu David Meltzer. As escavações ocorreram durante todo o século XX e geraram uma admirável série de restos de esqueletos, vários em estado quase perfeito. Assim que os cientistas resolveram como retirar o petróleo dos ossos, estes ficaram disponíveis para datação por radiocarbono e mostraram um grande acúmulo entre 33.000 e 10.000 a.C. Outra fonte de indícios da extinta fauna é o estéreo que ela deixou para
trás na Caverna Rampart e outras no Arizona. Os interiores das cavernas permaneceram tão secos desde a idade do gelo que as bactérias não conseguiram fazer seu trabalho destrutivo. Em conseqüência, as bolas de estéreo de preguiças do chão, de mais de 10 centímetros de diâmetro, e ainda compactas nos galhos nos quais os bichos se alimentavam, sobreviveram — em alguns casos a textura e o cheiro tão frescos quanto no dia em que foram gerados. David Meltzer mais de uma vez abriu uma gaveta contendo estéreo de preguiça no prestigioso Instituto Smithsonian, em Washington, e tinha o cheiro de um celeiro. Fios de pêlo e até pedaços de couro são às vezes encontrados. A Caverna Rampart, no Grand Canyon, foi um inestimável tesouro inesperado desses depósitos — até serem destruídos por um incêndio que ardeu de julho de 1976 a março de 1977. Antes disso, Paul Martin tivera de cavar através de camadas de um monturo de fezes de rato e morcego para encontrar as bolas de estéreo. Essa caverna fica no alto da face do penhasco vertical de oito metros e não é de fácil acesso: as preguiças deviam ter uma fenda por onde escalar e, uma vez dentro, ficavam cuidadosamente escondidas dos lobos e tigres-de-dente-de-sabre que rondavam à espreita. Os ossos de animais extintos também foram encontrados erodindo-se das margens de antigos rios e — muito raramente — em sítios arqueológicos do período Clovis. Quando todas as fontes de indícios são reunidas, é visível que, após a evolução ter levado vários milhões de anos para produzir uma deslumbrante série de animais nas Américas, eles se extinguiram quase da noite para o dia, como um trágico final para o Plistoceno americano. Não menos que 70% de todos os grandes mamíferos da América do Norte — trinta e seis espécies — tornaram-se extintos: animais descritos como sua "megafauna". Esse continente não foi exclusivo em sua devastação. Durante o mesmo período de tempo, quarenta e seis grandes animais tornaram-se extintos na América do Sul (80% de sua megafauna). Das dezesseis espécies que viviam na Austrália há 60 mil anos — entre elas marsupiais gigantes, cangurus gigantes e um leão marsupial — apenas um sobreviveu até a época moderna, o canguru vermelho, de mais de l,80 m de altura. Também ocorreram extinções na Europa, que perdeu sete espécies, incluindo o rinoceronte peludo e o alce gigante. Só a África escapou em grande parte ilesa, perdendo apenas duas das quarenta e duas
espécies de sua "megafauna". Felizmente, restou-nos um lugar na Terra onde podemos ver animais extraordinários — os que chamamos de hipopótamos, rinocerontes e girafas. Que aconteceu com toda a outra megafauna da era do gelo? Sua extinção é parte essencial de nossa história, e as que ocorreram nas Américas estão estreitamente relacionadas com outra história — a do povo Clovis. Outrora festejado como os primeiros americanos, julgou-se por muito tempo que foram suas lanças com ponta de pedra que levaram esses animais à extinção — na verdade, os relatos de assentamento humano e a extinção de megafauna talvez estejam tão intimamente entrelaçados que se tornam quase inseparáveis. Mas nesse entrelaçamento há uma terceira história que precisa ser contada: a evolução da paisagem norte-americana após sua libertação do profundo congelamento do LGM. Quando as pessoas pisaram pela primeira vez nas Américas, o continente achava-se, como a maior parte do mundo, às voltas com uma mudança. O grande degelo ganhara velocidade em 14.500 a.C., impelido pela redução das próprias camadas de gelo. A princípio elas ficaram apenas mais finas — no auge da grande glaciação, a probabilidade é de que tinham atingido 3 quilômetros de espessura. Começaram a deslocar-se, mudando de tamanho e forma de maneira muito errática, retraindo-se em algumas regiões e expandindo-se em outras. Pode-se imaginar as bordas como amebas ativas, pulsando instavelmente, ondulando e vacilando. Entre 14.000 e 10.000 a.C., houve pelo menos quatro avanços, chegando até o sul, como Iowa e Dakota do Sul, com o gelo às vezes vazando em seu leito pelo terreno congelado, e em outras vezes deslizando sobre a terra que descongelara. Quando as camadas de gelo perderam contato com o mar, os icebergs não mais viraram e congelaram as águas, o que resultou no sopro de ar mais quente para o interior da terra e ainda maior aceleração da retirada do gelo. E então o Jovem Dryas interrompeu o aquecimento global logo após 11.000 a.C. Embora muito menos severa que na Europa e na Ásia ocidental, essa ocorrência desequilibrou as comunidades animais e vegetais que durante os 7 mil anos anteriores vinham-se adaptando a um mundo mais quente. A confusão ecológica se agravou com a súbita volta do rápido aquecimento global em 9.600 a.C. E então, quando começou o Holoceno, as Américas, junto com o resto do mundo, se firmaram: uma
época de relativa estabilidade climática, hoje ameaçada pelo novo surto de aquecimento global causado pelo homem, que apenas se iniciou. Quando as camadas de gelo acabaram perdendo a batalha contra o aquecimento global, deixaram um poderoso legado na paisagem da América do Norte; na verdade, foi o caos nos litorais e em comunidades costeiras em todo o mundo, quando bilhões de litros d'água derretida foram despejadas nos oceanos. Os que habitavam o extremo norte das Américas teriam visto sua terra natal da Beríngia diminuir de tamanho ano após ano, enquanto a costa se inundava e água salgada escorria pela estepe. Imagino as pessoas em topos de colinas, velhos contando aos pequenos que as florestas de abeto agora estendidas diante deles eram muito novas para sua terra. Explicam que, durante a infância deles, rebanhos de mamutes e zebus almiscarados pastavam em campinas onde agora pastam caribus. Assentamentos foram abandonados quando as comunidades rumaram para a costa, onde caçavam as recém-abundantes focas e morsas. Enquanto faziam isso, os claros céus azul-aço cobriam-se de um sudário de nevoeiro e garoa. Os primeiros americanos que viajaram da Beríngia para o sul, mais provavelmente de barco ou a pé ao longo da planície costeira, exploraram as Montanhas Rochosas quando estas se libertaram da camada de gelo. Vejo-os subindo para apreciar as planícies a oeste, a massa de picos e os labirintos de vales abruptos a leste. Transpuseram rios que corriam pelos desfiladeiros e visitaram as geleiras que permaneceram nos vales altos. Não estavam sozinhos: plantas e árvores alpinas também escalavam as Rochosas, seguidas por carneiros monteses e vários pequenos mamíferos. Além das montanhas, os primeiros americanos encontraram as grandes bacias dos rios Colúmbia e Fraser. Assim que se libertaram do gelo, essas bacias logo foram cobertas de floresta conífera e os peixes voltaram a encher seus rios. E assim, imagine os primeiros americanos, com água fria de rachar até os joelhos, fisgando os salmões que vinham desovar e decidindo se aquele era um bom lugar para colonizar. Quando rumaram mais para o sul, no que hoje chamamos de Califórnia, encontraram paisagens às voltas com falta d'água, árvores escasseando e atrofiando-se. E novas plantas, como o cacto e a iúca. Talvez fosse aí que eles encontraram pela primeira vez a gigantesca preguiça do chão, procurando raízes e tubérculos comestíveis.
Os assentamentos se teriam localizado onde as pessoas encontravam mais abundantes plantas para coletar e animais para caçar; cada assentamento talvez tivesse então funcionado como uma base para outras jornadas exploratórias. O fato de não se ter encontrado nenhum sugere que se espalhavam escassamente e eram ocupados por um número relativamente pequeno de pessoas, talvez no máximo uma centena. Essas comunidades devem ter mantido contato umas com as outras para garantir que as populações fossem biologicamente viáveis: exigiam-se relações sociais disseminadas, para evitar endogamia e arranjar-se com o não retorno de um grupo de caça ou as baixas de um inverno rigoroso. Quando comida, água e lenha eram abundantes, o crescimento populacional talvez tenha sido alto, logo gerando grupos de homens e mulheres prontos a estabelecer novos assentamentos em terras recém-exploradas. Essas terras às vezes podem não ter sido as vizinhas imediatas. Assim como os primeiros fazendeiros da Europa, os primeiros americanos talvez tenham saltado em seu caminho regiões improdutivas, em busca das bacias fluviais, pradarias, estuários e florestas onde a comida era abundante e a vida fácil — pelo menos, a medida em que pode ser fácil para pessoas num mundo desconhecido. Precisamos imaginar grupos deixando assentamentos estabelecidos e dirigindo-se para o sul, a explorarem inexoravelmente um mundo que se ia tornando mais exótico a cada quilômetro percorrido. Em algum ponto de suas jornadas, teriam encontrado os poços de alcatrão do Rancho La Brea, e com toda probabilidade parado para observar as vãs lutas pela vida e as sangrentas cenas de morte. Na certa alguns grupos intrépidos rumaram das Rochosas para leste e fizeram uma penosa caminhada junto à borda da camada de gelo Laurentide, através de um mundo dominado por vento e água. Pense num grupo de homens bem aconchegados, as costas cobertas de peles voltadas para a tempestade de poeira que de repente chegava, e com a mesma rapidez deixava de soprar. Outras vezes, esses exploradores enfrentavam ventos de mais de 150 quilômetros por hora, semelhantes aos que sopram hoje das geleiras antárticas. As gerações que se seguiram passaram por um período mais fácil, pois os ventos acabaram cedendo e a poeira assentando-se, criando sementeiras férteis que deram origem aos resistentes arbustos e árvores que tinham ladeado seu caminho para o norte. E assim podemos imaginar os netos e bisnetos dos pioneiros acuados pela tempestade acampando entre alamos,
salgueiros e zimbros. Outras chegadas incluíram insetos, sempre rápidos na reação à temperatura mais quente, e pássaros que logo se seguiram. Quando nossos viajantes imaginários levantaram acampamento para continuar sua jornada, terão dado sua própria contribuição ao mundo em mudança levando mais sementes e insetos nos pés envoltos em couro e deixando-os atrás para florescerem nos novos solos. Avançando na Beríngia, pelas Rochosas, ao longo da borda das camadas de Belo e depois mais ao sul, os primeiros americanos tinham de traçar mapas do Novo Mundo — mapas mentais que seriam envoltos em relatos e canções. Pois pela primeira vez as Rochosas, a Sierra Nevada e as Montanhas Apalache teriam adquirido nomes, mais provavelmente toda uma legião de nomes — um para cada pico, vale e caverna. E assim também os lagos, rios, quedas d'água e estuários, florestas, bosques e planícies. Mas tão grande era a confusão ambiental causada pelo aquecimento global que cada nova geração de viajantes teria encontrado uma paisagem bem diferente da aprendida das histórias em volta da fogueira. Onde tinham esperado encontrar gelo, novos viajantes talvez encontrassem tundra; inversamente, tundra anterior talvez tivesse sido enterrada sob uma geleira que avançava. Onde esperavam encontrar renques de álamo e salgueiro, é possível que encontrassem bosques de espruce e pinheiro, árvores que excluíram pela força do número as espécies pioneiras. Deviam ter testemunhado inesperados tipos de insetos e pássaros, e começaram a encontrar novos animais, como os mastodontes, que chegavam para pastar nas novas florestas de espruce. E às vezes viam cenas de devastação: imagino um grupo parado, lívido, com a visão de árvores esmagadas, quebradas e enterradas por uma nova onda de gelo ao sul — árvores que tinham sido florestas onde seus pais tinham caçado gamos e coletado plantas para comer. A visão mais assustadora deles, porém, certamente teria sido os enormes lagos que surgiam ao longo da borda das camadas de gelo. Eram imensas extensões de água, muito diferentes de quaisquer outras existentes hoje na América do Norte — na verdade em todo o mundo. Formadas pelas águas derretidas e represadas por penhascos de gelo na encosta norte, subiam suavemente o terreno até o sul. O primeiro teria surgido em 15.000 a.C. — o lago Missoula, na encosta sul da camada de gelo cordilheirano, do tamanho do lago Ontário atual — mas seu apogeu veio com o lago
Agassiz no oeste, que surgiu em 12.000 a.C. e durou 4 mil anos. Quando no máximo de sua expansão, cobria 350 mil quilômetros quadrados. É quatro vezes a área do lago Superior hoje, que em si equivale a um país europeu de dimensões médias, como a Irlanda ou a Hungria, e é atualmente o maior lago de água doce do mundo. As rotas de drenagem desses lagos eram mutáveis — o exemplo mais drástico sendo o lago Agassiz que, até 11.000 a.C., vazara para o sul, no golfo do México. Logo após essa data, uma represa de gelo em sua margem oriental rompeu-se, e em vez de tomarem a rota sul, bilhões de litros d'água começaram a correr para leste, para o rio Lawrence e depois o Atlântico Norte. É provável que tenha havido então um efeito catastrófico na circulação de águas oceânicas, o que por sua vez influenciou o clima, talvez causando o próprio Jovem Dryas. Enquanto alguns lagos norte-americanos desapareciam completamente, criando devastadoras enchentes tão logo tinham surgido, outros, como o lago Missoula, não decidiam o que fazer. Parte do limite ocidental deste lago era formada por uma represa de gelo que se tornava cada vez mais insegura à medida que a bacia lacustre se enchia de água derretida. Quando a represa flutuou, o lago de repente vazou, desaguando vários milhões de litros d'água no lago vizinho, e depois no vale do rio Columbia, submergindo violentamente qualquer floresta que se interpunha em seu caminho. Em apenas duas semanas, o leito do lago secou, e a terra além não apenas perdeu suas árvores e plantas, mas também grande parte do solo, deixando exposto o leito de rocha firme. Um novo avanço do gelo recriou a represa de gelo, e o lago Missoula recomeçou a encher, para acabar rompendo-se mais uma vez a represa. Isso aconteceu não menos que quarenta vezes durante os 1 mil 500 anos de existência do lago, cada vez destruindo o frágil ecossistema aquático que acabara de ser restabelecido após a drenagem catastrófica anterior. Essas enchentes destrutivas não foram exclusivas do lago Missoula — mas uma característica constante da vida na vizinhança das geleiras em recuo. E assim, temos de imaginar os primeiros americanos encontrando imensas expansões de lama da qual as águas lacustres tinham recémvazado, onde as primeiras plantas — artemísia e ambrósia-americana — encontravam um lar. Continuando a explorar e conhecer seu mundo, teriam encontrado praias lacustres sem lagos, deltas fluviais sem rios. Mais drasticamente ainda, os que se aventuraram dueto até o litoral leste
da América do Norte teriam testemunhado o rápido avanço do Atlântico. Enquanto a água derretida se despejava no mar, o litoral precipitava-se para o interior, às vezes a uma velocidade de 300 metros por ano. Ao norte de Cape Cod, ilhas foram submersas, enquanto mais ao sul uma extensa planície costeira mista de tundra e floresta de espruce era inundada e depois afundada. Hoje traineiras içam dentes de mamute e ossos de mastodonte em suas redes, como lembretes momentâneos do desaparecido mundo da era glacial. Quando o gelo que bloqueava o vale do rio Lawrence desapareceu cerca de 12.000 a.C., o mar inundou o interior do continente. Durante 2 mil anos, Otawa, Montreal e Quebec ficaram submersas sob o mar de Champlain. Vejo os primeiros americanos à procura de baleias, toninhas e focas, talvez planejando caçá-las com seus caíques. Esse mar era instável, às vezes aquecido e diluído pela drenagem de lagos de água doce, outras esfriado por águas derretidas do gelo, e ainda outras salinizado por novos influxos do Atlântico. Hoje, pouco sobrevive desse lago — a não ser que se tenha olhos aguçados o bastante para encontrar as conchas de água do mar e fios fossilizados de alga marinha enterrados nos sedimentos em terreno elevado e seco no vale do rio Otawa. O mar desapareceu simplesmente porque a terra acabou ressurgindo, aliviada do peso do gelo. A vida na borda das camadas de gelo não era daquelas que se poderia gozar por muito tempo; as matas e planícies ao sul eram o lugar para viver, mas também viviam mudando. Temos de imaginar um grupo dos primeiros americanos desorientados num novo tipo de floresta — na qual as árvores pendiam para iodos os lados ou haviam desabado em concavidades, talvez indo flutuar em lagos de água. Esses primeiros americanos estariam no que hoje os ecologistas chamam apropriadamente de "mata bêbeda", aquela em que o solo florestal se transformava em água. Tal floresta desenvolvera-se em solo que ficava em camadas estagnadas de gelo. Por grandes áreas de Saskatchewan, Dakota do Norte e Minnesota, poeira carregada pelo vento, aluvião e saibro levados pela água, depósitos de solo e rocha deslocados pelo novo avanço do gelo tinham enterrado e isolado as camadas de gelo. O solo desenvolveu-se, foi colonizado por sementes e insetos pioneiros, e em menos de uma geração humana surgiu a mata. Mas como as temperaturas continuavam subindo sem parar, o gelo enterrado começou a derreter-se, a princípio onde a
cobertura do solo era fina, permitindo que poças e lagos vazassem para a superfície. À água derretida nesses lagos juntou-se a da chuva, aquecendoa o suficiente para que a vida se fixasse. Os primeiros americanos não foram os únicos a descobrir esses lagos: teriam visto a chegada de patos e gansos, as patas enlameadas desprendendo sementes de plantas e ovos de caracóis. Os lagos começaram a correr para os rios, que acabaram se juntando aos tributários do Missouri. Espinhelas, barrigudinhos e outros peixes puderam então chegar a novos lagos florestais; os peixes traziam sua própria legião de colegas viajantes em forma de parasitas. A ecologia florescia, e no meio dela achavam-se os primeiros americanos. Ao rumarem mais para o sul, teriam deixado atrás florestas de coníferas por matas abertas, um mosaico botânico de árvores e plantas raras vezes encontradas juntas hoje. Era uma paisagem que proporcionava pasto e folhas para vários dos grandes mamíferos, como os mastodontes e o mamute-colombiano. Este era maior e menos peludo que os mamutes peludos do norte, muitas vezes tendo quatro metros até o ombro e exigindo 225 quilos de comida diária. Os primeiros americanos talvez tivessem encontrado um pequeno grupo de mamutes-colombianos abrigado numa caverna no Planalto do Colorado, no sul de Utah. Ali, eles deixaram densas camadas de estéreo, montículos de excremento esféricos de até 20 centímetros de diâmetro, o que nos mostra que se alimentavam de capim, junça, abeto e espruce. A quantidade não surpreende — sabemos que um elefante moderno evacua de 90 a 125 quilos da matéria todo dia. Hoje chamamos essa gruta de Caverna Bechan; é o nome navajo — quer dizer "a caverna dos grandes tolocos". Em 13.000 a.C., o meio-oeste era uma paisagem encharcada, uma composição de peças recortadas de lagos, pântanos e fragmentos de floresta de espruce. Mas quando se intensificou o aquecimento global, surgiram novos padrões, e o meio-oeste começou a secar. Secas periódicas chegaram em 11.500 a.C., e foram exacerbadas pelo início do Jovem Dryas algumas centenas de anos depois. As árvores não mais conseguiam sobreviver nas áridas condições e foram substituídas por uma série de matos e ervas como a salva, ambrósia-americana e muitas plantas florescentes. Os mamíferos de pasto — mamutes, camelos, cavalos, bisões e vários outros — exploraram as novas pradarias, avidamente transformando-as numa Serengeti norte-americana. Os primeiros
americanos teriam encarado essas manadas com a mesma reverência que hoje sentimos ao ver os animais selvagens, antílopes e zebras nas planícies africanas. À medida que continuavam seu inexorável avanço para o sul, alguns dos primeiros americanos rumaram para a América Central e além, até os ambientes que logo se tornavam tropicais. Aquele era um mundo novo, exótico, em que sua capacidade de aprender sobre novas paisagens e novos recursos deve ter sido explorada ao extremo. As florestas tropicais haviam permanecido em grande parte intactas durante toda a grande glaciação de 20.000 a.C.; ao entrarem nelas, os primeiros americanos devem ter observado os hábitos alimentares dos veados c macacos, na tentativa de identificar quais folhas e bagas eram comestíveis e quais deviam ser evitadas. Ali teriam encontrado animais ainda mais fabulosos, entre eles o grande gliptodonte — a gigantesca criatura semelhante ao tatu que pastava ao longo das margens dos rios. Os primeiros americanos devem ter sofrido muitas perdas em suas jornadas da Beríngia à América do Sul: exploradores afogados em enchentes e deslizamentos de lama repentinos, mortos por carnívoros e vítimas de novas doenças. É provável que algumas comunidades tenham ficado isoladas. Se biologicamente viáveis, podem ter desenvolvido sua própria língua, cultura e até marcadores genéticos. Talvez essa gente "perdida" tivesse tornado encontros-surpresa para novas gerações dos primeiros exploradores americanos, originados de novas dispersões do norte da Ásia. Algumas comunidades isoladas talvez tenham sido pequenas demais para sobreviver. Para elas, o futuro era sombrio — seus números reduzindo-se até a extinção final. Em 11.500 a.C., os primeiros americanos se dispersaram por todas as Américas, desde a Terra do Fogo, no sul, até a Beríngia, no norte. Essa população provavelmente resultará de várias migrações, e já adquirira uma infinidade de línguas, mutações genéticas e tradições culturais. Cresceram os números humanos, que talvez fossem aumentados por novas ondas de imigrantes — ou pelo menos inflados pelo que David Meltzer descreve como gotas migratórias. Num lugar desconhecido e por um motivo desconhecido, inventou-se a ponta Clovis. Isso com toda probabilidade ocorreu nas florestas do leste da América do Norte, onde se encontraram em maior abundância as pontasde-lança. Com o novo conjunto de instrumentos Clovis e seus grandes
números, as pessoas de repente se tornaram visíveis para os arqueólogos. Ainda não está claro por que as pessoas começaram a fazer grandes pontas das melhores pedras que encontravam. É fácil imaginar que eram para caçar — algumas sem dúvida foram usadas dessa maneira. Mas as pontas Clovis podem igualmente ter sido facas para cortar material de plantas ou talvez fabricadas sobretudo para exibição social. A admirável rapidez com que se disseminaram por todo o continente, possivelmente mais como idéia que como objetos, atesta os estreitos laços entre comunidades que haviam sido essenciais para a sobrevivência quando terminou a era do gelo. Na verdade, os números, desenho e distribuição dessas pontas a mim me sugerem que eram usadas tanto para estabelecer laços sociais entre grupos quanto para adquirir comida da paisagem. Cada grupo parece ter moldado a idéia em seu próprio e específico desenho, por isso há diversas variações sutis no tamanho, forma e estilo da ponta. Os arqueólogos deram a cada tipo um nome diferente: pontas Gainey em Ontário, pontas Suwanee na Flórida, pontas Goshen em Montana e assim por diante, em todo o continente. Seja qual for o motivo para a disseminação dessa tecnologia, uma vez presentes não precisamos mais falar dos evasivos primeiros americanos, mas nos referirmos aos povos Clovis. Agora a exótica fauna norte-americana enfrentava um novo tipo de predador em potencial, armado com lanças de ponta de pedra, que caçava em grandes grupos, preparava emboscadas e montava armadilhas. Os mamutes, mastodontes e outros herbívoros gigantescos estavam certamente acostumados a predadores que tentavam levar seus filhotes: lobos, leões e tigres-de-dente-de-sabre. Vinham vivendo e co-evoluindo com esses carnívoros há milhões de anos, e tinham seus meios de defesa: manadas de grande dimensão, corpos enormes, presas letais, formações de grupo para proteger os padrões de movimento vulneráveis que lhes possibilitavam ficar fora do caminho dos carnívoros. Haveria tudo isso sido de alguma utilidade quando chegou um novo tipo de predador? Cujas lanças eram ainda mais mortais que os dentes do esmilodonte, cujas táticas de caça eram mais sofisticadas que as do lobo, e que tinha uma "arma" que as preguiças do chão, os mastodontes e até os esmilodontes jamais haviam enfrentado antes: um grande cérebro com o qual superar em astúcia sua presa.
27 Caçadores Clovis em Julgamento Extinção da megafauna e estilos de vida Clovis, 11.500 – 10.000 a.C. Quando a afirmação de que os caçadores Clovis haviam caçado as grandes feras da América do Norte e as levado à extinção foi discutida pela primeira vez por Paul Martin, na década de 1960, havia uma compreensão relativamente limitada das datas precisas nas quais haviam ocorrido essas extinções. Mas, à medida que se acumulavam indícios, a cultura Clovis e algumas extinções da megafauna na verdade parecem coincidir. Em 1985, David Meltzer e Jim Mead, geólogo da Universidade do Arizona do Norte, conseguiram reunir não menos que 363 datas de radiocarbono de animais extintos, vindas de 163 localidades fósseis, sobretudo os poços de alcatrão do Rancho La Brea e as cavernas de ossos secos do sudoeste. Com as datas de radiocarbono reunidas, Meltzer e Mead eliminaram todas as que julgavam talvez suspeitas, como as possivelmente contaminadas por carbono antigo no terreno, o que os deixou com uma amostra de 307 datas. Alguns anos depois, Donald Grayson, da Universidade de Washington, outro especialista em datação por radiocarbono, julgou necessário retirar mais datas como inconfiáveis, reduzindo a amostra final a apenas 125 determinações por radiocarbono. Tal rigor significou que não se poderia afirmar a data da extinção de vinte e nove espécies com nenhuma precisão maior do que tendo ocorrido em alguma época nos últimos 50 mil anos. Grayson advertiu contra a suposição de que esses animais foram extintos durante os últimos 1 mil 500 anos da era glacial, quando partilharam as paisagens norteamericanas com os primeiros americanos e os caçadores Clovis. Ainda assim, isso deixava os "sete da era de gelo": mamute, mastodonte, camelo, cavalo, tapir, preguiça do chão e o esmilodonte. Os últimos representantes norte-americanos vivos dessas espécies foram confiavelmente datados como tendo ocorrido entre 11.000 e 10.000 a.C. — exatamente quando os povos Clovis existiam em grande quantidade.
A afirmação de Paul Martin, de que os povos Clovis foram responsáveis pela extinção deles, apresenta um convincente argumento quando considerada com os indícios de sítios no vale do rio San Pedro. Diante dos restos de 13 mamutes, pontas-de-lança, instrumentos de chacina e lareiras na Fazenda Lehner, podemos de imediato imaginar o drama: caçadores Clovis emboscando uma pequena manada quando vinha beber, o resultante banho de sangue no arroio; fogueiras acesas quando começa a matança, o cheiro de carne assando; abutres sobrevoando em círculos acima e gigantescos teratornos empoleirados nas rochas próximas, à espera de banquetear-se com a carne e as entranhas jogadas fora. Este é exatamente o tipo de cena reconstituída a partir de um estudo dos ossos de mamute feito por Jeffrey Saunders, da Universidade de Illinois. Talvez essas cenas se repetissem em todo o continente; não apenas com mamutes, mas também com as preguiças, o camelo, o gliptodonte e o castor gigante. Os caçadores Clovis eram simplesmente poderosos e astutos demais para suas presas; foram culpados de matança excessiva e levaram à extinção os sete da era do gelo. Um cenário, mas é correto? Devemos dar aos povos Clovis um julgamento justo. O próprio Paul Martin sabia de uma grave fraqueza na acusação. Embora tenhamos alguns (possíveis) sítios de matança de mamutes, não existem sítios semelhantes — com exceções muito raras ou altamente ambíguas — dos outros trinta e poucos animais extintos. Martin tem uma astuta explicação: as matanças apocalípticas ocorreram tão depressa, e com animais tão sensíveis à predação, que houve muito poucos sítios. Tomando emprestada a terminologia militar, descreveu isso como uma "guerra-relâmpago". Ademais, afirmou Martin, as chances de os arqueólogos encontrarem qualquer sítio da última era de gelo são tão remotas que deveríamos ficar surpresos com o número de sítios mamute/Clovis localizados, em vez de lamentarmos a ausência de sítios de matança de preguiças, camelos e gliptodontes. Esses animais talvez fossem mortos em campinas ou nas colinas, onde ocorre erosão e não sedimentação. Ali, quaisquer ossos com marcas de corte e lareiras se teriam desfeito e desaparecido muito tempo atrás — parte da poeira e terra sopradas e inundadas hoje em todo o continente. Em 1970, a idéia de caçadores Clovis entrando numa paisagem virgem, avançando para o sul e realizando um ataque relâmpago aos animais
ingênuos não podia ser provada nem refutada, mas se encaixava nos indícios arqueológicos. Hoje isso não mais se aplica, em grande parte por causa de Monte Verde — um assentamento que nos diz que pode ter havido pessoas na América do Norte milhares de anos antes da invenção da tecnologia Clovis e, mais significativamente, antes da extinção em massa. Se os primeiros americanos não caçavam grandes animais, estes não poderiam ser a presa fácil sugerida por Paul Martin. Ao contrário, se foram caçadores de grandes animais, não poderia ter havido um ataque relâmpago e deveríamos ter sítios de matança de preguiças, camelos e gliptodontes. Martin perde o debate nos dois casos. Não são apenas os indícios circunstanciais de Monte Verde que vêm em defesa dos povos Clovis. De fato, eles têm um grande número de álibis em todo o continente — os próprios sítios arqueológicos Clovis. Embora os do sudoeste tenham rendido uma substancial quantidade de ossos de mamute, os de outros lugares sugerem um estilo de vida dedicado à caça de animais pequenos, captura de tartarugas e coleta de plantas comestíveis. Quando em Shawnee-Minisnik na Pensilvânia, os povos Clovis coletaram bagas de pirilteiro e amoras silvestres; quando no sítio de Debert na Nova Escócia, caçaram caribu; e no lago Lubbock, no Texas, eram coelhos, gansos e perus selvagens. Em outros lugares, como no sítio Old Humboldt, em Nevada, as pessoas Clovis jantavam trutas, ovos de pássaros e moluscos. Caçavam-se grandes animais em algumas ocasiões. Se o mamute em Murray Springs, no vale de San Pedro, foi ou não caçado, uma manada de bisão certamente foi emboscada e chacinada num pântano. Mas mesmo nos sítios onde predominam ossos de mamute, como na Fazenda Lehner, é a pequena caça presente que talvez seja mais representativa da dieta Clovis normal. Os povos Clovis parecem ter sido oportunistas, catando todas as plantas e matando todos os animais existentes, em vez de especializadas na caça de grandes animais. Pode, portanto, não ter sido mais que uma oportunidade única que os levou a fisgar com lança uma gigantesca tartaruga terrestre em Little Salt Spring, na Flórida, ou a matar um mastodonte em Kimmswick, no Missouri. Se tivessem estado particularmente à procura de caça grande, poderíamos esperar ter encontrado pontas Clovis em Big Boné Lick, no Kentucky, e Saltville, na Virgínia — afloramentos naturais de sal e ímãs durante toda a era glacial para enormes mamíferos, que talvez tivessem oferecido fácil caça de animais grandes. Embora os dois
sítios tenham sido vasculhados por duzentos anos e fornecido vastos números de ossos animais, jamais se encontrou uma única ponta Clovis.'' Em conseqüência, os prováveis sítios de matança de mamutes parecem ser mais a exceção que a regra para a colonização Clovis — e mesmo estes talvez sejam menos indicativos de caça do que parecem à primeira vista. O problema-chave é que vários acúmulos "naturais" de ossos de mamute na América do Norte parecem muito semelhantes aos de sítios Clovis, a não ser pela ausência de detritos humanos. São de desastres naturais, por exemplo, quando manadas afundavam no gelo ao atravessarem um lago congelado, ou ficavam atoladas em lama inesperada. Os animais teriam morrido juntos, inteiramente independente de ajuda humana. Essa interpretação foi favorecida por Gary Haynes, antropólogo na Universidade de Nevada que estudou os sítios de morte natural de elefantes africanos durante períodos de seca na década de 1980. Quando examinou o acúmulo e decomposição de carcaças em volta de buracos d'água secos, ele encontrou uma impressionante semelhança com os restos de mamutes em sítios como Murray Springs e a Fazenda Lehner. Haynes sugere que as pessoas Clovis foram espectadoras da morte natural de mamutes atacados pela seca, de vez em quando dando um coup-degrâce para despachar um animal surgido em seu caminho. Grande parte das carcaças foi deixada intocada porque havia nelas muito pouco para comer: não valiam nem o trabalho de quebrar os ossos pelo tutano, pois esses animais tinham morrido de fome. Os mamutes na verdade talvez tivessem vivido durante um período de seca, logo antes ou logo depois do Jovem Dryas — porém aqui, mais uma vez, os indícios não são conclusivos, com a gravidade e até a existência de secas nessa época em grande debate. Coup-de-grâce, ou mesmo a passiva observação de mamutes morrendo de fome, apresentam uma visão do passado muito diferente das de Paul Martin e Jeffrey Saunders. Na verdade, as próprias pontas Clovis poderiam ter tido uma função muito diferente da que primeiro se sugeriu; essas valiosas pontas de pedra talvez tivessem sido postas perto dos animais mortos, ou até neles, como um sinal de respeito ou como parte de uma celebração religiosa. Tal especulação é um lembrete de que o estilo de vida Clovis devia ser muito mais que apenas tentar encontrar a refeição seguinte. Lamentavelmente, os indícios de crenças religiosas e da organização de
suas sociedades são muito limitados. O que quer que fizessem com seus mortos, sem dúvida não os enterravam regularmente, pelo menos em lugares onde os restos sobrevivessem ou onde os arqueólogos pudessem ver. Há apenas duas exceções: a Caverna Fishbone em Nevada forneceu os restos de um esqueleto envolto em mortalha de casca de cedro, e os restos fragmentados de dois jovens adultos encontrados no sítio Anzick, Montana. O sítio Anzick foi descoberto em 1968, numa pequena gruta desmoronada. Na terra seca, encontrou-se uma aglomeração de mais de uma centena de artefatos de pedra, entre eles várias pontas-de-lança excelentes. Não foram jogadas fora ao acaso, mas intencionalmente postas num esconderijo de artefatos de pedra borrifado com ocre-vermelho. Tesouros escondidos de artefatos de pedra semelhantes foram encontrados em outros lugares do continente. Se eram apenas estoques de artefatos a ser recuperados quando um grupo de caça retornasse a uma região, o ocrevermelho, o acabamento particularmente primoroso das pontas de pedra e a associação com um enterro em Anzick permanecem sem explicação. As impressionantes cores de várias pontas Clovis também sugerem que talvez fossem mais que objetos apenas utilitários. As pontas eram feitas de sílex córneo com faixas alternadas de vermelho e marrom, calcedônia multicolores, jaspe vermelho, vidro vulcânico e madeira petrificada. Por que escolher uma variedade tão exótica de matérias-primas coloridas? Os aborígines australianos faziam o mesmo por causa de suas crenças religiosas. Empregavam um sílex córneo vermelho-escuro por ter sido formado do sangue de seres ancestrais; o quartzo era muito valorizado, porque seu brilho se relacionava com o tom do "arco-íris", que os aborígines acreditavam ser a essência da vida. As pessoas Clovis talvez tivessem tido razões semelhantes para escolher pedras coloridas. Mas se assim o fizeram, não deixaram nenhuma pintura rupestre como testemunho de suas crenças religiosas. Só podemos supor que viveram num mundo social e simbólico em que essas pontas de pedra talvez fossem tão significativas quanto o eram as esculturas de miniaturas para os caçadores-coletores da era do gelo, na Europa, ou as pontas de quartzo para os recentes aborígines da Austrália, Embora haja decididamente sangue nas lanças, os indícios arqueológicos nos deixam em considerável dúvida sobre se as pessoas Clovis desempenharam o papel único, ou na verdade qualquer um, na extinção
em massa. Mas se são inocentes — ou pelo menos temporariamente libertadas sob fiança — quem ou o quê mais pode ser detido para interrogatório? Há duas alternativas, a primeira das quais se pode tratar rapidamente como uma idéia intrigant,e mas apenas hipotética: uma praga letal. Ross MacPhee, paleontóloga do Museu de História Natural Americana, e Preston Marx, professor de Medicina Tropical da Universidade de Tulane, sugeriram que em 11.000 a.C., na América do Norte, um vírus saltou dos novos colonizadores humanos para a caça graúda. Essa "hiperdoença" teria sido mais letal que qualquer coisa conhecida na história registrada. Mas não há um fio de indício, embora eles sugiram que uma praga poderia explicar vários dos fatos estranhos na extinção em massa, sobretudo a rapidez e a preferência pelos grandes animais, que, afirmam, teriam sido mais suscetíveis, por causa de seus lentos índices de procriação. Teoricamente, se poderiam encontrar indícios: talvez sobrevivam fragmentos do DNA nas infecções viróticas a serem extraídos dos ossos de animais extintos. Bem, talvez. Parece uma possibilidade mínima, e recuperar DNA de osso antigo revelou-se imensamente mais difícil do que os cientistas tinham imaginado apenas alguns anos atrás. A segunda alternativa para a excessiva matança é a mudança climática, e para ela temos um trio de promotores principais: Russell Graham, paleontólogo do Museu de Denver, Ernest Lundelius, professor de Ciência Geológica da Universidade do Texas, e Dale Guthrie, professor de Paleontologia da Universidade do Alasca. Eles acreditam que a mudança climática, com sua conseqüência para habitats animais, foi a causadora da extinção em massa. Segundo esse formidável trio, o clima não matou diretamente as vítimas tornando os habitats demasiado quentes, frios, úmidos ou secos para elas, mas os destruiu. Sabemos que essa é a principal causa da extinção animal no mundo moderno, logo devemos ser solidários com a hipótese deles. A afirmação de Graham e Lundelius é que a grave perda de habitats no fim da era glacial foi conseqüência de mudança nos padrões de temperatura — os verões passaram a ser relativamente mais quentes c os invernos mais frios. Comunidades de animais e plantas que tinham evoluído durante vários milhares de anos em condições de limitadas diferenças sazonais desmoronaram quando alguns membros se tornaram incapazes de tolerar os invernos, e outros os verões.
Um dos mais surpreendentes aspectos das comunidades animais da era do gelo é o fato de espécies que hoje vivem a milhares de quilômetros de distância entre si, em ambientes radicalmente diferentes, então roçavam ancas umas com as outras. Os primeiros americanos, percorrendo seu novo mundo, teriam visto o que hoje são espécies de tundra do extremo norte, como caribus, boi almiscarado e lêmingues, vivendo lado a lado com o que para nós são espécies inteiramente sulistas (que vivem em florestas ou em pradarias), como alce e bisão. Esses mosaicos animais puderam existir na era glacial porque o contraste entre as estações não era tão acentuado quanto agora. Quando os invernos se tornaram mais frios, alguns animais foram impelidos para o sul; no sentido contrário, verões mais quentes impulsionaram outros para o norte. Os dois tipos não mais poderiam encontrar-se em terreno neutro, pois esse lugar simplesmente deixara de existir. Os animais que encontraram novos nichos foram felizardos; vários que não conseguiram adaptar-se extinguiram-se. Dale Guthrie explicou por que alguns animais sobreviveram e outros não, reconstituindo o impacto da mudança climática na distribuição de comunidades vegetais. No mundo de hoje, nós as vemos como faixas distintas: no extremo norte, uma faixa de tundra; ao sul desta, floresta de coníferas; mais uma vez ao sul, floresta transitória; c depois pradarias. O mundo da era do gelo dos primeiros americanos não era nada parecido com esse; em vez de dispostas em faixas latitudinais, as comunidades vegetais eram encontradas em "mantas xadrez" ou mosaicos — pedaços da tundra atual, floresta de coníferas, árvores transitórias e pradarias, tudo misturado. Foram os verões mais quentes e os invernos mais frios que forçaram a separação dessas faixas. Quando ocorreu isso, os animais que antes dependiam dessa mistura de tipos e planta sofreram — e eram predominantemente de tamanho muito grande: mamutes, mastodontes, preguiças gigantescas, Esses animais sofreram devido ao encurtamento da estação de cultivo, restringindo o tempo existente para alimentar seu imenso volume. Também sofreram com a acentuada redução da diversidade vegetal — dependiam de comer um enorme sortimento de plantas para obter suficiente energia e nutrientes. Quando as estações passaram a ser mais acentuadas e a diversidade de plantas reduziu-se, alimentadores especializados ganharam ascendência. No extremo norte, foi o caribu que contava apenas com
líquen; no sul, o bisão, que se alimentava dos poucos tipos de matos de caules curtos, substituídos pela mistura de variedades de caules longos e ervas preferidas pelos ruminantes generalistas. Essas novas plantas também chegaram com defesas químicas que os bisões podiam tolerar, mas eram tóxicas para vários outros. Na verdade, tudo se amontoava contra os mamutes, mastodontes e preguiças. A hipótese de Guthrie é que a extinção era inevitável. A competição entre espécies nos lembra que todos os animais são partes de comunidades, e assim que um elemento é perturbado, pode haver uma cascata de conseqüências em toda a rede alimentar. Assim, a perda de carnívoros como o leão americano, o guepardo e o esmilodonte talvez se tenha devido simplesmente a perda de sua presa preferida. E isso talvez explique também a extinção de aves gigantescas, a maioria das quais era de águias, abutres e condores. Todas se alimentavam de carne, como os teratornos. Deviam depender de filhotes de camelos, cavalos e até de mamutes, como predadoras ou carniceiras. A ecologista E. C. Pielou expressa cautela ao aceitar essas explicações ambientais e ecológicas para as extinções em massa. Por que, ela pergunta, seria o pequeno castor moderno o vencedor na competição contra os imensos castorídeos? Por que não poderiam o leão americano e o esmilodonte alimentar-se dos vários animais de pasto que não apenas sobreviveram, mas cujos números floresceram, como o bisão, o alce e o veado? E por que não poderiam as carcaças putrefatas de suas vítimas ter alimentado os teratornos e os abutres? Não pensamos em geral nessas aves como comedores exigentes. Um forte argumento, e que vem com um ainda mais forte — o simples fato de que, longe ser um acontecimento único, esse período de aquecimento global foi apenas o mais recente na montanha-russa de mudança climática ao longo da qual nosso planeta vem sendo lançado pelo menos nos últimos milhões de anos. Períodos de impressionante aquecimento global têm ocorrido aproximadamente a cada 100 mil anos, para logo depois o planeta retornar a condições da era do gelo. Em cada uma dessas ocasiões, é improvável que as mudanças resultantes na sazonalidade e distribuições tenham sido significativamente diferentes das que ocorreram durante nosso período de interesse, o milênio seguinte ao mais recente máximo glacial de 20.000 a.C. Mas a megafauna sobreviveu a todas essas reviravoltas climáticas, perda
de habitat e devastação climática anteriores. Não há a menor dúvida de que seus números sofreram, mas se arranjaram, encontrando refúgios, talvez no extremo norte, onde as condições continuaram sendo suficientemente semelhantes às da era do gelo anterior. E depois, assim que o clima reverteu, eles se dispersaram desses refúgios para tornar-se mais uma vez um elemento importante da fauna global. Por que, então, não poderiam os mastodontes ter simplesmente mudado seu espaço para o norte no fim da última era glacial, para onde as florestas de espruce e pinheiro sobreviviam, e ali esperado a partida daqueles dias horrivelmente quentes e úmidos do pós-glacial? Não poderiam o camelo de ontem, as preguiças gigantescas, os castorídeos e até os cavalos ter encontrado algum lugar para sobreviver no imenso e espantosamente diverso continente da América do Norte? Mesmo que não dispusessem de nada ideal ou acessível, não poderiam esses animais ter aprendido a adaptar-se aos novos habitats, e não teria a seleção natural dado uma mãozinha de ajuda, fazendo sutis mudanças na fisiologia e comportamento deles? É exatamente isso que essas espécies devem ter feito várias vezes durante os milhões de anos anteriores. Então, por que a mesma tática não funcionou no fim da mais recente era glacial? Temos uma descoberta sensacional sobre uma tentativa de sobrevivência — um indício que chocou os cientistas quando veio a público, em 1993. Até março daquele ano, acreditava-se que todos os mamutes no mundo morreram em 10.000 a.C. — ou pelo menos muito pouco depois. Mas aí veio o anúncio de que cientistas russos tinham encontrado ossos de mamute que haviam sobrevivido até muito depois dessa data na Ilha Wrangel — um remoto e desolado ponto de terra no oceano Ártico, 200 quilômetros ao norte da Sibéria. Esses mamutes haviam sobrevivido não apenas uma centena de anos, mas, espantosamente, mais 6 mil, até a época das pirâmides egípcias. Há 12 mil anos, a Ilha Wrangel era parte da Beríngia, e os mamutes que vagavam por suas colinas eram exatamente iguais aos de qualquer lugar, cerca de 3 a quase 4 metros de altura no ombro. Quando o nível do mar subiu, eles ficaram isolados — mas pagaram um preço pela sobrevivência. Pois em cerca de quinhentas gerações o tamanho deles encolheu, deixando-os anões; o último dos sobreviventes não tinha mais de l,80 m de altura. Não se trata de um fato único — vários outros casos de minimamutes e minielefantes foram encontrados em épocas muito
anteriores na história humana, como em Chipre, na ilha de Malta e em outras ilhas ao largo da Califórnia. Alguns desses mamutes não eram maiores que cabras. Tornar-se anão é uma boa estratégia de sobrevivência quando se vive numa ilhota isolada. Quando a quantidade de comida é limitada, ganha-se um prêmio de reprodução com a redução do tamanho do corpo — pode-se alcançar pleno desenvolvimento e maturidade sexual mais depressa e, em conseqüência, transmitir mais rápido os próprios genes à geração seguinte. E se um dos motivos para ter um grande casco era deter predadores, isto se torna desnecessário quando não há lobos, leões ou tigres-de-dente-de-sabre por perto. Portanto, não devemos surpreendernos com o fato de os mamutes da Ilha Wrangel serem meros anões, comparados com os que haviam sido mortos pelas pessoas Clovis na Fazenda Lehner. Embora essa descoberta fosse sensacional, pouco fez para resolver o mistério da extinção em massa em outras partes do mundo em 10.000 a.C. Os mamutes da Ilha Wrangel muito provavelmente sobreviveram porque a ilha conservou uma rica diversidade de capim, ervas e arbustos, devido aos seus particulares clima e geologia. Assim, foi na verdade um refúgio para mamutes, enquanto a tundra e florestas pantanosas se espalhavam por outros lugares. Um refúgio onde os mamutes poderiam ter-se expandido em número e recuperado mais uma vez o tamanho total do corpo — mas só se a era glacial seguinte, a queda no nível do mar e o retorno de uma extensa estepe de mamute tivessem ocorrido antes que os minimamutes de Wrangel também caíssem no poço da extinção. Caíssem ou fossem empurrados? Na certa a última hipótese, pois a primeira data para a ocupação humana na Ilha Wrangel coincide com a última data para os mamutes. Pouco sabemos sobre essa ocupação. Simplesmente temos alguns traços de artefatos de pedra que devem ter vindo de pessoas empurradas aos extremos limites de sua própria sobrevivência numa terra tão inóspita. Mas que presa poderia ter sido mais fácil que os minimamutes, animais totalmente ingênuos sobre predadores e sem nenhum lugar para onde ir? As descobertas da Ilha Wrangel parecem pôr os caçadores Clovis no banco dos réus. Mostram que os mamutes podem ter encontrado refúgio no fim da última era do gelo, mas assim que os seres humanos entram na equação, logo pode seguir-se a extinção. Assim, talvez tenham sido
apenas aqueles poucos animais que as pessoas Clovis matavam todo ano, representados em sítios como Naco, Murray Springs e Fazenda Lehner, que empurraram os mamutes por sobre a beira do abismo da extinção — animais cujas populações se tenham fragmentado e esgotado em número, animais que se achavam fracos e com a saúde debilitada quando buscaram refúgio em condições de caos ecológico. Precisamos fazer um retorno final ao continente norte-americano e investigar o que agora parece ser a única solução possível para a extinção. Pois embora nem os caçadores Clovis nem a mudança climática pareçam ter tido suficiente impacto sozinhos, equivaleram a uma sentença de morte para mamutes, preguiças, mastodontes e outras vítimas quando juntaram suas forças. Ao realizar este julgamento final dos caçadores Clovis e conspiradores da mudança climática, vou recorrer à minha própria pesquisa do início da década de 1990. Por mais que eu adorasse escavar um sítio de matança Clovis, esse trabalho foi feito com um computador, longe dos rigores do trabalho de campo. Assim como os economistas usam computadores para prever o futuro, como o impacto de um aumento das taxas de juros no nível de inflação, os arqueólogos também podem construir modelos para "prever" o passado. O objetivo de minha pesquisa foi examinar o impacto de índices de predação ligeiramente maiores, em conjunto com freqüências igualmente maiores de secas, sobre o nível da população de mamutes na América do Norte. Uma das habilidades que adquiri como aluno foi a de construir modelos matemáticos de populações animais e depois usar um computador para simular métodos de caça pré-históricos. Eu trabalhara com um ecologista na criação de um programa de computador que simulava a dinâmica populacional de populações de elefantes na África. Fizemos então experiências com as populações simuladas no computador, "atingindo-as" com anos de seca e caça predatória para examinar a probabilidade de os elefantes sobreviverem como espécie viva pelo século seguinte. Os mamutes e o problema Clovis sempre estiveram no fundo de minha mente. Por suas semelhanças no tamanho do corpo, a dinâmica populacional dos elefantes africanos atuais e a dos mamutes norteamericanos pleistocênicos também terão sido semelhantes. Por isso, criei algumas versões alternativas das simulações geradas para a caça de mamutes Clovis. Depois, como com os modelos de elefante, usei essas
simulações para fazer algumas experiências: diferentes níveis de caça de mamutes, diferentes estratégias — como a matança de manadas inteiras ou apenas animais de uma determinada idade ou sexo — e diferentes graus de tensão ambiental. As constatações foram inteiramente surpreendentes. Era possível, claro, levar mamutes à extinção só com a mudança ambiental. Tornando a intensidade das secas ainda mais severas e seu surgimento mais freqüente, acabaria eliminando qualquer população de mamute. A mortalidade infantil se tornaria tão alta, e o início da maturidade sexual tão tardio, que as populações declinariam, em vez de aumentar. De modo semelhante, mesmo sem qualquer mudança ambiental, as populações de mamutes eram muito suscetíveis à predação humana. Ainda que os caçadores estivessem tirando aleatoriamente animais de uma manada numa proporção de não mais que 4 a 5% a cada ano, as populações entrariam em serio declínio e acabariam sofrendo extinção. O motivo disso é simplesmente a lenta taxa de reprodução deles. É retirar algumas das fêmeas reprodutivamente ativas de um rebanho, que as conseqüências podem ser imensas. Depois combinei uma pequena quantidade de caça com uma leve seca, nenhuma das duas sozinha teria sido suficiente para extinguir a população. A mistura, porém, era poderosa. Em meu computador, vi populações de vários milhares de animais precipitando-se para a extinção em algumas décadas. Uma aluna minha, Melissa Reed, construiu modelos mais sofisticados, que geraram o mesmo resultado. Nada parecido com um ataque-relâmpago foi necessário para isso — o baixo nível de caça oportunista compatível com o registro arqueológico parece inteiramente suficiente. Seguindo a analogia militar, a guerra de guerrilha teve conseqüências devastadoras. Além disso, a tensão ambiental c a caça não precisam ser concorrentes. As conseqüências populacionais da matança de alguns mamutes, sobretudo fêmeas novas, talvez não se façam sentir antes de uma década; se é então que também ocorre a tensão ambiental, seu efeito na população pode ser devastador. A mesma explicação talvez bastasse para a extinção da preguiça do chão, do mastodonte, do cavalo americano, do camelo e do tapir. Contudo, deve-se lembrar que há uma completa ausência de indícios arqueológicos de qualquer um desses animais, e que os indícios da seca durante o Jovem Dryas permanecem questionáveis. Além disso, também precisamos tentar
descobrir por que alguns grandes mamíferos evitaram a extinção, sobretudo o bisão, que precisa consumir imensos volumes de água para sobreviver. Na primavera de 1997, Melissa e eu viajamos para a Fazenda Lehner, Murray Springs e Naco com Paul Martin e Vance Haynes, o geoarqueólogo que escavou o sítio em fins da década de 1960. Havíamos feito um seminário sobre nossa pesquisa na Universidade do Estado do Arizona, descrevendo os resultados de meu trabalho e das novas simulações de Melissa. Isso envolveu uma demonstração no monitor enquanto falávamos, para que Vance, Paul e outros pudessem ver encenada nossa versão da pré-história: gente colonizando o Alasca, camadas de gelo recuando, pessoas passando pelo corredor livre de gelo e dispersando-se pela América do Norte, o surgimento da cultura Clovis e o início das condições de seca no sul, e as populações de mamutes caindo em extinção. Encaramos o seminário com certa apreensão. Vance e Paul haviam passado mais de trinta anos envolvidos com a questão da extinção do mamute; vinham trabalhando nela antes de Melissa nascer; haviam escavado e visitado os sítios, publicado livros e trabalhos, participado das principais conferências apresentando as probabilidades a favor ou contra a matança excessiva, quando eu ainda estava na escola. Desse modo, enquanto fazíamos nossa apresentação, mantive um olhar vigilante sobre eles, preocupado, vendo-os sussurrar um com o outro, imaginando o que pensavam, e temendo que pudéssemos haver cometido algum erro fundamental que só eles podiam detectar. Não havia motivo algum para ansiedade, pois Vance e Paul acabaram sendo construtivos nas críticas e generosos nos elogios. E ofereceram-se para levar-nos aos sítios clássicos — Murray Springs, Fazenda Lehner e Naco, os sítios "do único que escapou". Antes disso, Paul proporcionou outro prazer — uma visita a seu laboratório no topo da colina dando para Tucson e o deserto do Arizona. Num esplêndido gabinete, no qual pessoas mais simples teriam guardado moedas, medalhas ou borboletas alfinetadas, ele tinha sua valiosa coleção de bolas de excremento. Vance parecia querer reviver as escavações em Murray Springs. Para chegar lá, tivemos de deixar o veículo e seguirmos a pé por uma curta distância pelo deserto coberto de matagal. No sítio, ele explicou a estratigrafia, apontando as camadas nas seções expostas que poderiam
indicar seca prolongada no fim da era glacial, e depois a transição para o Holoceno. Mostrou-nos o lugar exato onde Elouise fora descoberta — seu nome para o mamute fêmea que encontrara, intacta. Não revelava sinal algum de ter sido morta, e julgou-se que tivesse morrido de causa natural. Vance supunha que as pessoas Clovis tinham comido sua carcaça. Vimos onde suas pegadas tinham sido encontradas; talvez seus últimos passos, ou de outro animal, curioso e talvez interessado na fera agonizante. Paul tirou do paletó uma réplica de um enigmático artefato encontrado no sítio: um pedaço de osso de mamute de uns 25 centímetros, esculpido e perfurado com um orifício, que se julgava fosse um retificador de cabo de flecha. Pediu a Vance para que o pusesse no lugar exato onde fora encontrado, como se fosse um ato ritualístico. A alguns metros do sítio de Elouise, mostraram-nos o sítio da matança de bisão; ali, encontraram-se os restos de uma manada de bisão que parece ter sido enxotada para um pântano e chacinada. Os últimos mamutes norte-americanos morreram em alguma época por volta de 10.000 a.C. Se houve uma morte violenta, sangrenta, perpetrada por caçadores Clovis, ou se morreram tranqüilamente, vistos apenas por abutres a sobrevoar em círculos, não se sabe. Numa data semelhante, a vida também deixou a última preguiça do chão e mastodonte, o último dos gliptodonte, o camelo antigo e o cavalo americano. O mundo tornou-se um lugar muito mais pobre e menos interessante sem eles. O bisão dominava as pradarias e os caribus eram os senhores da tundra pantanosa que substituiu a estepe de mamute, outrora habitat de tão magnífica variedade de mamíferos da era glacial. A América do Norte adquiriu sua aparência moderna. O sudoeste transformou-se em deserto; grandes planícies estenderam-se pelo centro do continente. No leste, estabeleceu-se a floresta transitória e no norte a floresta conífera. As camadas de gelo quase desapareceram, e os grandes lagos logo vazaram, deixando os que conhecemos hoje. O clima estabilizou-se, sem mais aquelas violentas oscilações dos últimos poucos milhares de anos. Alguma coisa também acontecera: a última ponta Clovis fora fabricada, usada c jogada fora. Com a passagem dos animais selvagens da era do gelo, e o surgimento de um ambiente mais estável, desaparecera o modo de vida Clovis. Com isso, a cultura humana sofreu o exato inverso de natureza diversificada, e tornou o continente norte-americano um lugar
muito mais rico e interessante. Todos os seus habitantes continuaram a viver como caçadores-coletores, mas jamais voltaria a ter para o povo norte-americano a unidade encontrada durante os tempos Clovis.
28 Virgindade Reconsiderada Caçadores-coletores da Terra do Fogo e no Amazonas 11.500 – 6.000 a.C. É 11.000 a.C. A água gelada do arroio Chinchihuapi lambe os dedos dos pés de John Lubbock quando ele se senta tranqüilamente em sua margem, meditando sobre a viagem seguinte, que o levará pela história até chegar a 5.000 a.C. A superfície reverbera com fachos de luz do sol recém-surgido que varam o dossel de folhas. Fora um martim-pescador grande empoleirado acima num galho projetado sobre a água, Lubbock está sozinho. Monte Verde foi abandonado, mas em outras partes da América do Sul vivem pessoas em quase todos os cantos e recantos ecológicos, e de basicamente todo tipo de caça e coleta imagináveis: alguns sobrevivem como caçadores de grandes animais, alguns como pescadores, outros como coletores de plantas. Suas culturas também são variadas: alguns continuam usando os mais toscos instrumentos de pedra, outros adotaram elegantes pontas lascadas de diversas formas. Na verdade, a América do Sul nessa data é muito mais culturalmente diversificada que sua vizinha do norte, um continente onde a ponta Clovis e suas variantes menores penetram em toda parte. De Monte Verde, Lubbock segue o Chinchihuapi até o vale do rio Maullín, e depois dirige-se para os Andes acima e caminha por eles. Ao fazê-lo, a floresta temperada dá lugar à mata de abetos e depois à de pinheiros enfezados, escassos. Ele acaba caminhando por um tapete de capins e flores, atravessa uma passagem montanhosa entre geleiras e contorna um lago azul cristalino. Picos de granito encimados por neve dominam acima, passando de cinza a róseo no sol brilhante. As geleiras estendem-se abaixo pelas encostas ocidentais até as línguas de gelo que se precipitam vales adentro e além. Lubbock ruma para o sul e começa a encontrar acampamentos abandonados e ossos de animal queimados espalhados. Os capinzais em que se encontram cobrem um imenso planalto cortado por profundas ravinas. O planalto inclina-se suavemente para o oceano Atlântico, o litoral muito mais ao leste do que é hoje, pois o nível do mar permanece na altura baixa
da era do gelo. Durante os 10 mil anos seguintes, essas pastagens se tornarão inteiramente áridas, ficando tão estéreis que Charles Darwin as considerará amaldiçoadas pela esterilidade quando também ele percorrer a Patagônia, no início do século XIX. Lubbock chega a uma região de vales de fundo plano e raso, desfiladeiros e colinas baixas próximas ao litoral Atlântico. A ravina onde ele entra oferece abrigo contra o exaustivo vento que tem sido um companheiro constante desde os Andes. Outros também encontram abrigo — um grupo de caçadores que retornam à sua caverna na parede tipo penhasco na encosta do vale. São quatro, vestidos de peles e couros, e trazem pedaços de um cavalo. Lubbock acompanha-os ao interior. O ar está enfumaçado e denso, da fogueira de um monte de estéreo a arder. Ao ajustar os olhos, Lubbock vê mais seis — mulheres, crianças e um velho — sentados na caverna; ao fundo, outros corpos arrastam os pés na escuridão. Pedaços de preciosa lenha são acrescentados para reativar o fogo e filés de carne de cavalo postos para assar. Lubbock senta-se junto ao fogo, tão grato quanto os caçadores pelo seu calor, e ouve a história da caça. Fica sabendo que eles encurralaram o cavalo numa ravina, o emboscaram e mataram de cima com lanças de pontas de pedra. O animal foi esquartejado e as melhores postas trazidas para casa. Durante a viagem de volta, os homens encontraram uma preguiça gigante recém-morta. Não tivessem matado o cavalo, estariam se alimentando de sua carcaça. Em vez disso, deixaram-na para os abutres, pois sabiam que logo chegariam. Durante os dias seguintes, Lubbock sabe que esse grupo de caçadorescoletores, usa várias cavernas diferentes, transferindo freqüentemente seus poucos pertences e dependentes de um abrigo para outro. Um dos preferidos fica cerca de 30 quilômetros a oeste, localizado numa antiga cratera vulcânica. Além de cavalo e preguiça, eles caçam guanaco — uma criatura semelhante à lhama que vive em pequenos rebanhos no matagal. São caçadores competentes, usando pontas-de-lança tão letais quanto as usadas pelos caçadores Clovis muito mais ao norte, só que de desenho muito diferente. Faltam em suas pontas a flauta Clovis, a essencial ranhura rasa, mas têm uma elegante haste longa. Numa ocasião, Lubbock viaja com o grupo de caçadores até o extremo sul, ao que hoje chamamos Tierra del Fuego. Sentado num abrigo entulhado, conhecido como Tros Arroyos, quase ensurdecido pelo vento a uivar e envolto na mais negra das noites, Lubbock sabe que chegou ao fim
mesmo da própria terra. Do outro lado das brasas incandescentes, seus companheiros conversam em voz baixa, decidindo se devem passar o dia seguinte à procura de cavalo ou montando armadilhas para raposa. Lubbock abre Tempos pré-históricos e encontra suficiente luz de fogueira para ler o que seu xará pensava sobre os habitantes do século XIX dessa terra árida. O vitoriano John Lubbock não tinha experiência pessoal alguma dos fueguinos, e assim recorreu ao relato de seu grande amigo e mentor Charles Darwin, que estivera na Tierra del Fuego em 1834, durante sua viagem no Beagle. As pessoas que Darwin encontrou vinham vivendo inteiramente de caça e coleta, o que tornava o seu relato, e os de outros viajantes vitorianos, de grande valor para os arqueólogos modernos, quando tentam interpretar os restos de cavernas pré-históricas como Tros Arroyos. Na verdade, os fueguinos do século eram muito provavelmente descendentes diretos dos primeiros habitantes da Tierra del Fuego, os que tinham usado Tros Arroyos e outras cavernas em 11.000 a.C. Mas os relatos vitorianos precisam ser lidos com grande cautela, a fim de separar observação útil de preconceito racial. "Quando desembarcamos", explicava Darwin, "paramos ao lado de uma canoa com seis fueguinos. Foram os seres mais abjetos e miseráveis que já vi... Os pobres infelizes eram enfezados, rostos hediondos lambuzados de tinta branca, pele imunda e gordurosa, cabelos emaranhados, vozes dissonantes, gestos violentos e sem dignidade. Vendo esses homens, mal podemos fazer-nos acreditar que são criaturas irmãs e habitantes do mesmo mundo." Darwin dizia em seguida que eles "dormiam na terra molhada, enroscados como animais", e evitavam a fome com o canibalismo e o parricídio (assassinato de um parente próximo). Robert Fitzroy, capitão do Beagle, achou que as mulheres deviam ser chamadas de fueguinos fêmeas, e que "talvez servissem para... homens toscos, mas para pessoas civilizadas sua aparência é repugnante". O John Lubbock vitoriano também extraíra descrições do relato de Darwin sobre a tecnologia do hábil artesanato e métodos sofisticados de caça e coleta — inteiramente o contrário do que se esperaria de pobres e rústicos desgraçados. Os fueguinos tinham abrigos tipo oca, "flechas retas e bem acabadas" e "anzóis de forma quase igual à dos nossos", como parte de uma ampla variedade de lanças de ponta de pedra, apetrechos de pesca, arcos e flechas. Tinham cães de caça muitíssimo bem treinados,
eram excelentes nadadores e evidentemente capazes na emboscada de lhamas. "Ao ler quase todo relato sobre os selvagens," concluíra John Lubbock, "é impossível não admirar a destreza com que usam suas toscas armas e artefatos." É evidente que lutava para reconciliar as predominantes atitudes vitorianas em relação aos selvagens, comungadas por ninguém menos que o próprio Charles Darwin, com sua própria admiração pelas habilidades exigidas pela feitura e emprego de instrumentos de caçadores-coletores. A viagem do John Lubbock moderno de Monte Verde às cavernas do sul da Patagônia levaram-no de uma das mais recentes escavações na América do Sul a duas das mais antigas. A primeira caverna em que ele entrou foi a Caverna de Fell; a da cratera vulcânica que fora Palli Aike. As duas foram examinadas em 1934, durante a pioneira pesquisa arqueológica do sul da Patagônia feita por Junius Bird, do Museu de História Natural Americana. Suas escavações descobriram restos de lareiras, os instrumentos de pedra típicos que logo se tornaram conhecidos como pontas "rabo-de-peixe" e ossos de cavalo, preguiça e guanaco. Bird sabia que aqueles depósitos eram de grande antigüidade. Reconheceu os ossos de animais extintos, e constatou que os restos na Caverna de Fell tinham sido vedados sob desmoronamento do teto, sobre o qual depois pessoas tinham acampado. Não tinha muita idéia sobre a idade das pontas rabo-de-peixe, nem o meio de encontrá-las, pois a datação por radiocarbono ainda não fora inventada. Só em 1969 esta técnica revelou que a Caverna de Fell fora ocupada já em 11.000 a.C. Isso, claro, muito antes da descoberta de Monte Verde, mas o sítio continua sendo um das mais antigas ocupações em todas as Américas. Já é 10.800 a.C. Lubbock está na Amazônia, após viajar mais de 5 mil quilômetros pelo norte da Tierra del Fuego. Rema uma canoa num rio que um dia será conhecido como o Tapajós, embora seu curso vá mudar várias vezes antes de receber esse nome. Na Europa e Oeste da Ásia, o Jovem Dryas acabou de chegar; caçadores em Stellmoor, no vale de Ahrensbur, inspecionam seus arcos, e as casas de Ain Mallaha foram abandonadas. Mas ali na Amazônia o Jovem Dryas vai passar inteiramente despercebido. Lubbock vê jacarés-de-papo-amarelo tomando sol nas margens arenosas do rio; um boto segue a canoa. A Amazônia hoje é o maior museu na Terra, com um conteúdo que vale muito mais que os tesouros do British Museum, do Louvre e do
Metropolitan de Nova York juntos. Suas comunidades de plantas passaram pela era glacial quase inalteradas. E embora estejamos fazendo o máximo para destruí-lo hoje, esse museu sobrevive como um mundo pré-histórico do século XXI. Acreditava-se antes que a Amazônia fora dizimada pela era do gelo. Supunha-se que as condições áridas tivessem fragmentado a floresta contínua numa colcha de retalhos de bosques, savanas e campinas. Mas quando se coletaram amostras de pólen de sedimentos da era glacial, eles revelaram que a floresta permanecera quase intata. Basicamente a mesma variedade de plantas e árvores em geral nas mesmas proporções continuara a florescer na bacia durante toda a queda de temperaturas globais que culminaram no LGM e nas elevações de temperaturas até hoje. Alguns desmembramentos de fato ocorreram; em 20.000 a.C., as planícies amazônicas abrigavam várias espécies de árvores que exigem um clima frio e limitam-se hoje às encostas orientais dos Andes. Mas sua exclusão quando as temperaturas se elevaram não passou de um detalhe — a floresta tropical dificilmente chegou sequer a mudar. Lubbock entrou na bacia amazônica após uma jornada pelos matagais e bosques espinhosos do leste da América do Sul, passando perto de Pedra Furada, onde Niède Guidon iria escavar um dia. Encontrou várias comunidades de caçadores-coletores, mas passou depressa por eles, ansioso por chegar à floresta tropical. A mata fora-se aos poucos tornando mais densa, as temperaturas elevaram-se, e logo ele passara a viajar por água em vez de terra. Animais e plantas tropicais surgiam quando um pequeno tributário levava a outro e transportava Lubbock até o coração da floresta tropical. O rio de Lubbock junta-se a outro muito maior, que corre mais rápido, de água escura em vez da cristalina — o próprio Amazonas. Uma tropa de macacos no dossel das árvores alarma-se e põe-se a uivar, garças assustam-se e alçam vôo. Logo após entrar na nova corrente, Lubbock vê uma canoa atracada na margem defronte, e depois dois vultos em pé perto do raso, prestando atenção à agitação. Eles dão as costas e desaparecem entre as árvores. Lubbock atravessa o rio, amarra seu barco ao deles e segue a trilha, percorrendo uma faixa de mata pantanosa que leva então à densa floresta, e logo se torna um caminho bem batido. Sob as árvores é mais frio e muito escuro, pois o denso dossel oferece poucas vigias ao sol. O solo, formado por grossas camadas de lixo de
folhas em decomposição, é macio embaixo dos pés; o ar espesso com a pungência da deterioração orgânica. Lubbock passa por uma imensa variedade de árvores florestais, várias com enormes troncos verticais envoltos em gigantescas trepadeiras serpeantes. Algumas têm contrafortes tão imensos que parecem muros de madeira na floresta. Ele capta ocasionais vislumbres dos dois homens, e repara que um deles leva um grande peixe pendurado nas costas, o rabo às vezes arrastando no chão. Andam apressados, sem parar para descansar. Após quase 10 quilômetros, ergue-se em triunfo um pico de brilhante rocha vermelha acima das árvores, e logo Lubbock se vê diante de uma coelheira de cavernas num morrote de calcário. Os carregadores do peixe desaparecem lá dentro, gritando que voltaram, Lubbock ouve saudações; uma piada é evidentemente contada, pois se segue uma gostosa gargalhada. Ao aproximar-se da entrada da caverna, ele vê pinturas na parede de pedra: círculos concêntricos em vermelho e amarelo, impressões manuais e uma figura esquemática de cabeça para baixo, com raios emanando da cabeça como de um sol. Fazem-no lembrar as de Pedra Furada. Lubbock chegou a Monte Alegre, e logo vai juntar-se aos ocupantes da Caverna da Pedra Pintada. Trata-se de um dos mais importantes sítios arqueológicos da bacia amazônica — na verdade de toda a América do Sul. Foi descoberta em 1991, durante um levantamento na bacia amazônica inferior, por Anna Roosevelt, do Museu de Campo de Chicago. Quando sua equipe escavou o sítio, encontrou provas de habitação humana em 10.800 a.C., comprovando — para surpresa de muitos antropólogos — que pessoas conseguiram viver como caçadorescoletores na floresta tropical amazônica. Os antropólogos acreditavam antes que sem a agricultura de corte e queimada, elas não teriam condições de adquirir suficiente comida da floresta, e em conseqüência a Amazônia tivesse permanecido desocupada até pelo menos 5.000 a.C. Mas, como está prestes a descobrir Lubbock, os que vivem em Pedra Pintada caçam e coletam sozinhos. No arejado interior da caverna há pelo menos 10 pessoas de pé em círculo, admirando a presa. Usam poucas roupas e lembram os índios amazônicos atuais — robustos, pele cor de cobre, cabelos negros lisos e rostos elegantemente pintados. O chão é coberto de tapetes feitos de enormes folhas; vêem-se cestos e sacos empilhados junto a uma parede; lanças, varas de pescar e arpões encostados num canto. Gamelas no fundo
da caverna contêm grumos de pigmento vermelho esmagados e misturados com água. Junto à outra parede, feixes de mato macio amarrados com fibras vegetais, que os transformam em almofadas. No meio, uma pequena lareira fumegando, ao lado da qual jaz o peixe magnificamente no chão. Uma mulher acocorada e com uma faca de pedra retira a cabeça do peixe. Oferece-a à um jovem, o primeiro portador, que a recebe com um sorriso radiante. Ele suga cada órbita alternada, o sangue e outros fluidos escorrendo-lhe pelo peito. Feitas as preliminares, o peixe é levado para fora e estripado. Lubbock passa os dias seguintes com as pessoas de Pedra Pintada, ajudando a catar mexilhões de água doce e colher um estonteante sortimento de frutas, nozes, raízes e folhas. Algumas, como as castanhasdo-pará e castanhas-de-caju, ele conhece, enquanto outras são muito novas. Vê uma nova técnica de fabricação de instrumentos: lascas de pedra são moldadas em forma de pontas-de-lança não a golpes de martelo de pedra, mas apertando pedaços pontudos de osso contra a pedra com tanta força que se soltam minúsculas lascas. Isso é conhecido pelos arqueólogos como "lascar por pressão", e foi usado em todo o mundo préhistórico para fazer artefatos especialmente elaborados, como as pontas triangulares encontradas nesse sítio e as pontas Clovis da América do Norte. Como Lubbock já viu muita caça e coleta de plantas em suas viagens à América do Sul, a sofisticação da cata a alimentos desses anfitriões desconhecidos não é surpresa alguma. Nem sua habilidade e engenhosidade no uso de uma enorme variedade de material vegetal para fazer roupa e equipamento. Mas a extensão da pesca em água doce é inteiramente nova para Lubbock, e nisso as pessoas se superam. Grandes peixes são lanceados das canoas, e os menores apanhados em redes. Amazonenses recentes usam veneno para pegar peixes, e é fácil acreditar que as que habitaram Pedra Pintada em 10.800 a.C. também o fizeram. Lubbock fica sabendo disso quando acompanha um grupo de homens, mulheres e crianças — cerca de uma dezena ao todo — à floresta. Vão até uma árvore específica a um quilômetro da caverna. É de um tamanho monumental, a circunferência muito maior do que qualquer outra já vista por Lubbock. Vários metros além da base, o solo florestal foi evidentemente perturbado muitas vezes antes. Ele vê o grupo espacejar-se
e começar a cavar pequenos fossos, expondo uma rede de raízes. Em seguida, empregam serras e facas de pedra para cortar pedaços, cada um do tamanho do antebraço de Lubbock, e empilhá-los em cestos. Assim que os enchem, o grupo parte, com as jovens levando a carga na cabeça. Uma estreita trilha é seguida até uma pequena clareira junto à margem de um arroio raso, onde se esvaziam os cestos no chão. Homens e mulheres desaparecem por um momento na floresta; Lubbock fica com as crianças, atirando gravetos na água escura. Os homens retornam com paus resistentes e se põem a moer as raízes até formar uma polpa, mantendo a boca bem fechada enquanto porções de fibra e seiva branca espirram no ar. Nesse meio tempo, as mulheres retornaram com grandes folhas lisas enceradas. Em alguns minutos, amarram-nas a cestos maleáveis. A polpa de raízes é posta dentro e os homens levam embora os cestos, tomando cuidado para evitar qualquer contato com a papa fibrosa a escorrer. Lubbock permanece com as mulheres e crianças, passando-lhes galhos e folhas para construir uma represa no arroio. Os homens chegaram 500 metros corrente acima, onde patinham com a água na altura dos joelhos e despejam cestos em volta, criando uma nuvem branca leitosa. Na represa, as mulheres agora descansam, comendo algumas bagas. Os homens logo se juntam a elas, mas preferem mastigar chumaços de folhas. As crianças olham atentas a água, e então soltam gritinhos quando vêem os primeiros peixes chegarem. Estes nadam literalmente para salvar a vida, tentando escapar ao veneno que corre rio abaixo. Assim que chegam à represa, não têm mais para onde ir. Alguns se viram e voltam nadando para a morte imediata, e outros se debatem nos paus e folhas, onde sufocam. Minutos depois, a superfície da enseada brilha com os corpos de peixes mortos. São apanhados pelas mulheres, que enfieiram cada um pelas guelras com agulhas de osso. Logo todo o grupo retorna a Pedra Pintada envolto em sua pesca prateada. Mas Lubbock não está mais com eles: partiu para os distantes Andes a oeste. A escavação de Anna Roosevelt encontrou os restos de vários animais e plantas ainda explorados pelos amazonenses hoje, entre eles os frutos da tarumã, usados como isca de pesca. Embora mal conservados, os ossos de animais permitiram a identificação de uma imensa variedade de espécies, entre elas cobras, anfíbios, pássaros, tartarugas e — em maior abundância — peixes, que variam entre os de apenas alguns centímetros aos de mais
de l,5 m de comprimento. Entre os restos de plantas, ossos de animais e lareiras, Anna encontrou mais de 30 mil lascas de pedra da feitura de instrumentos — porém não mais que vinte e quatro peças acabadas — e centenas de grumos de pigmento vermelho. Ela tomou imenso cuidado de certificar-se de que era o mesmo pigmento que fora usado para fazer as pinturas na caverna, examinando-o microscopicamente e analisando sua composição química. Na verdade, acabou-se revelando idêntico ao usado em várias das pinturas, fornecendo um dos argumentos mais bem documentados em defesa da arte rupestre do Pleistoceno nas Américas. Pedra Pintada foi abandonada logo após 10.000 a.C. Como em Monte Verde, não sabemos para onde foram as pessoas. Durante mais de 2 mil anos, a caverna ficou vazia, o piso sendo coberto de areia soprada. E então novos ocupantes chegaram, passando a usar a caverna numa base muito mais casual e não tendo o menor interesse em pintar as paredes. Também deixaram uma série semelhante de restos vegetais, animais e de peixes, junto com mais alguma coisa, uma coisa inteiramente nova em toda a América do Sul — cerâmica. Em 6.000 a.C., os que viviam na Amazônia inventaram o uso de vasos de cerâmica, às vezes decorados com simples desenhos geométricos. Enquanto surgia essa nova tecnologia, uma antiga desaparecia, pois as finas pontas de pedra triangulares eram abandonadas e os instrumentos de pedra passavam a ser apenas simples lascas e pedras polidas amorfas. Seriam necessários outros 1 mil 500 anos para a cerâmica ser adotada na América Central, e mais 4 mil para encontrá-la nos Andes centrais, embora sua gente já viesse domesticando plantas e animais. Fragmentos de cerâmica semelhantes são encontrados em monturos de conchas que surgem entre as margens de rios após 6.000 a.C., mostrando que algumas das pessoas da Amazônia tinham começado a especializar-se na fauna fluvial, moluscos e nas diversas variedades de peixe. Com o passar do tempo, surgiram aldeias ribeirinhas, e iniciou-se por fim o cultivo da mandioca e do milho. Essas foram o tipo de pessoas encontradas primeiro por viajantes vitorianos, como o colega intelectual de Darwin, Alfred Russel Wallace, muito depois de os caçadorescoletores da Caverna da Pedra Pintada — e talvez de outros lugares na bacia amazônica — terem desaparecido da memória. Acredita-se que as pontas-de-lança de pedra triangulares encontradas te-
nham vindo de horticultores pré-históricos, vivendo de modo muito parecido ao dos índios amazônicos recentes. Contudo, sua forma e técnica de manufatura eram muito semelhantes às pontas encontradas em outros lugares na América do Sul, e já se sabia que tinham uma data terminal da era glacial. E assim as escavações de Anna Roosevelt em Pedra Pintada foram na verdade muito especiais — não apenas estendendo a duração de ocupação conhecida na floresta tropical amazônica, mas acrescentando mais um modo de vida para pessoas que viviam na época em que a era do gelo chegava ao fim. A conseqüência mais intrigante do trabalho dela, porém, é que questiona a "virgindade" das florestas. Este foi o termo usado por Alfred Russel Wallace no relato de 1889 de suas viagens amazônicas. Como todos os outros viajantes do século XIX, ele supôs que toda a floresta era inteiramente inalterada por mãos humanas. Mas agora que Anna Roosevelt revelou mais 5 mil anos de ocupação humana, isso deve ser questionado. Surge a possibilidade de que os distintos agrupamentos de plantas produtoras de alimento encontrados, como as castanhas-do-pará e de caju, sejam tanto uma conseqüência de atividade humana quanto da natureza. As exposições do grande museu da Amazônia talvez tenham sido lenta e sutilmente rearrumadas por gerações de catadores de alimentos pré-históricos.
29 Pastores e o "Menino Jesus" Domesticação animal e vegetal nos Andes, e forrageiros litorâneos, 10.500 – 5.000 a.C. Com as pernas doendo, John Lubbock abriga-se de um vento violento, tomado de outra onda de tonteira. Além das rochas há uma planície coberta de mato, e depois um lago que se funde imperceptivelmente com o céu distante. Ele se encontra nas campinas da puna, o planalto frio da cordilheira dos Andes peruana, após há muito ter deixado os trópicos para percorrer vales íngremes, enquanto a floresta se reduzia a matagal e depois a árvores esparsas e mirradas. O ar se rarefez, sua mente e corpo doem de fadiga e náusea. A puna é uma paisagem de 4 mil metros de altura, com morros ondulantes e escarpas rochosas, sulcada por pequenas torrentes e esburacada de lagos. O que está diante de Lubbock é o maior que ele viu; será conhecido como lago Junin, localizado 800 quilômetros a noroeste de seu maior e mais famoso lago Titicaca. Lubbock precisa visitar a puna, pois essa se tornará a terra dos incas. Suas grandes cidades, estradas e templos vão surgir vários milhares anos depois que suas viagens chegaram ao fim. Mas uma fundação da civilização deles agora pastoreia diante dele na planície. Não uma, mas todo um rebanho de criaturas mais ou menos do tamanho de um gamo, com longos pescoços e orelhas pontudas. São vicunhas, os ancestrais selvagens da alpaca, que logo se tornará uma fonte essencial de comida e lã. Em sua viagem até a puna, e na verdade em todas as suas jornadas sulamericanas fora dos trópicos, ele encontrou um tipo semelhante embora maior de camelídeos, como são chamados esses animais, o guanaco, que também vive em rebanhos, mas prefere elevações mais baixas e é menos ligado a torrentes e lagos. Este dará origem a outro animal domesticado fundamental, que tem as costas largas e será o principal meio de transporte de produtos pelos altos Andes — a lhama. Todos os animais que Lubbock viu são selvagens e assim permanecerão durante mais vários milhares de anos. A data é 10.500 a.C., e eles são caçados por pessoas que já vivem nos prados da puna há muitas gerações.
Um grupo de caçadores chega ao lado de Lubbock, seus passos e vozes silenciados pelo vento. São oito, vestidos com peles grossas e armados com lanças de ponta de pedra. Em alguns minutos, quatro terão ido embora, partindo na direção oposta ao lago. Os outros se sentam e inspecionam suas armas; precisam certificar-se de que as pontas das lanças estão seguras e afiadas. Um deles pega uma sovela da sacola e finca-a com tanta força na ponta da lança que uma lasca é retirada perto do bico; isto aperfeiçoa a simetria e reforça sua capacidade de penetração. Após uma hora de descanso, os homens partem em busca do rebanho de vicunha; a tonteira de Lubbock passou, e assim ele os acompanha, escalando o penhasco rumo ao lago. Eles seguem devagar e calados, logo começando a acocorar-se em meio ao mato à altura do joelho. Pouco depois estendem-se de bruços rentes ao chão, serpeando centímetro por centímetro por entre o capim molhado em direção a um animal selvagem. O alvo é o líder do grupo, o macho que raras vezes se afasta muito de seu harém e cuida para que se mantenham nos limites territoriais. Momentaneamente perturbada, a vicunha ergue a cabeça, fareja o ar e olha interrogativa em volta, mas nada vendo nem ouvindo, logo retorna ao mato. Lubbock avança mais uma vez com os caçadores e acaba chegando tão perto que ouve o rasgar e triturar de talos duros de mato nos dentes das vicunhas. Um sutil aceno da cabeça é dado c os caçadores levantam-se e atiram suas lanças em uníssono. As armas erram o alvo, mas nem tudo está perdido, pois, com Lubbock observando, os caçadores recomeçam a caça, dispersando o harém c pondo o macho a correr direto para um segundo grupo de lanças. Estas vêm dos outros caçadores que se esconderam nos juncos da margem do lago, no outro lado do harém. Nesse anoitecer, Lubbock reúne-se com os caçadores c suas famílias na boca de uma grande caverna situada entre escarpas de calcário no lado sul do lago. Construíram-se pequenos anteparos na boca da caverna para afastar o vento que persiste durante toda a ocupação de verão deles. Há uma espetacular vista do outro lado da água até os picos distantes, antes cobertos de neve, mas agora silhuetas que se apagam com o dia chegando ao fim. Quando John Rick, da Universidade de Stanford, escavou a Caverna Pachamachay, em 1974 e 1975, encontrou os restos da várias carcaças de vicunhas e as lanças usadas para caçá-las. As de 10.500 a.C. estavam
profundamente enterradas embaixo dos detritos deixados por muitas gerações posteriores de ocupantes, pois a caverna continuou em uso durante 9 mil anos. Mas, enquanto os primeiros ocupantes tinham sido caçadores de vicunha e guanaco, os últimos de rebanhos de alpaca e lhama — ocorreu uma mudança econômica, na certa mais como um deslocamento gradual da caça para o pastoreio do que uma súbita ruptura de estilos de vida. Embora seja impossível saber exatamente quando se deu esse deslocamento, pois os ossos desses quatro animais são quase idênticos, o melhor palpite é que foi em torno de 5.000 a.C. Nessa data, os camelídeos passam a corresponder à vasta maioria dos animais mortos, não apenas na Caverna Pachamachay, mas em todas as escavadas da puna peruana. Antes disso, os caçadores vinham matando uma diversidade de caça muito maior, entre elas gamos e aves. Talvez mais revelador seja que, por volta de 5.000 a.C., a proporção de recém-nascidos e animais jovens aumenta cerca de um quarto para a metade do total. Bruce Smith, do Instituto Smithsonian, e um dos principais especialistas nas origens de produção alimentícia nas Américas, desconfia que isso reflete o aumento na mortalidade infantil, que sobe quando os animais são mantidos em currais apinhados e doenças passam a grassar. Esses altos níveis de mortalidade por doença são uma disseminada característica dos rebanhos de lhama atuais. Os estudos de John Rick concluíram que os caçadores das pastagens da puna assentaram residência permanente na maior das cavernas logo após 10.500 a.C. Eram na certa, vários grupos, cada um usando um território centrado numa bacia lacustre e contendo uma caverna como sua residência principal. A densidade e variedade de artefatos na Caverna Pachamachay, junto com os indícios de paredes e constante limpeza, sugerem que a caverna foi usada de uma maneira muito diferente das ocupações temporárias, de curta duração, dos caçadores-coletores sempre em movimento. E assim, como aconteceu com o povo Nafutiano do oeste da Ásia, o sedentarismo talvez tenha sido um passo crucial para a agricultura. Mas neste caso, mais prelúdio da criação animal que do cultivo de plantas. Pode-se logo imaginar caçadores estabelecidos desenvolvendo um íntimo conhecimento dos rebanhos na sua caverna, muito provavelmente identificando vários dos animais individuais, sobretudo os machos que controlavam os haréns. Os outros machos viviam em tropas e talvez logo
tivessem se tornado a principal presa, pois esses eram descartáveis — sua perda não causava nenhuma ameaça à sobrevivência e reprodução da população como um todo. A caça seletiva talvez fosse então complementada pelo fornecimento de forragem durante os invernos rigorosos, controlando assim os movimentos dos rebanhos. Animais feridos ou órfãos talvez tivessem sido tratados e cuidados, o que acabaria proporcionando a base de um rebanho domesticado. Uma vez presentes esses rebanhos, talvez tenham desempenhado um importante papel trazendo outra espécie da selva, não um animal, mas uma planta: a quina. A quina é uma das duas plantas que dominaram as economias de produção alimentícia das bacias e vales de alta altitude dos Andes, a outra sendo a batata. Membro do grupo de plantas da família das quenopodiáceas, mais conhecida por alguns como arroz-miúdo-do-peru, a quina passou a ser uma colheita essencial dos incas e continua sendo cultivada hoje por agricultores de subsistência, que a valorizam pelo seu alto conteúdo protéico. Quando madura, as espigas de suas sementes multicolores chegam à altura da cintura, e são colhidas para fazer biscoitos, pão e mingau. As duas diferenças básicas entre as variantes quenopodiáceas silvestres e domésticas são as mesmas que as entre o trigo silvestre e doméstico do oeste da Ásia: as variantes domésticas "esperam pelo colhedor", e nenhuma das duas atrasa a germinação, o que resulta no amadurecimento simultâneo de todas as plantas numa única colheita. A mais antiga quina veio de outra caverna na bacia do Junin, a não mais de 30 quilômetros de Pachamachay e também escavada por John Rick. Trata-se da Caverna Panaulauca, que contém uma variedade semelhante de artefatos e ossos animais, e foi muito provavelmente um acampamento-base usado por outro grupo de caçadores-coletores que se estabeleceram na puna. As sementes quenopodiáceas da Panaulauca de 5.000 a.C. tinham pequenas "testas", comparáveis às das de quinua doméstica e indicativas da reduzida capacidade de atrasar a germinação. Assim, nessa data, é possível que capões de quinua florescessem nas vizinhanças da caverna, talvez próximos a currais onde se mantinham Ihamas e alpacas — ou talvez até dentro dos próprios currais antigos. Os camelídeos gostam de comer as variedades silvestres da quina, mas não digerem as sementes. Estas passam pelas vísceras do animal ilesas e são depositadas com um volume natural de fertilizante, muitas vezes longe de onde as plantas brotaram originalmente. Bruce Smith sugere que
se os primeiros pastores tivessem começado a encurralar seus rebanhos à noite, capões de quenopódio teriam brotado em seus solos orgânicos. Transferindo-se apenas os currais e usando-se as cercas para proteger os novos capões florescentes do pasto, poderia ter surgido uma substancial fonte alimentar perto do assentamento. Teria sido então um pequeno passo para o cultivo — capina, rega, transporte — dando início às sutis e não intencionais alterações genéticas dessas plantas, e transformando as quenopodiáceas silvestres em quina doméstica. Outra planta foi domesticada nos Andes, provavelmente na bacia do lago Titicaca. Mas ao contrário da quina, essa desempenhou importante papel na história global depois que foi levada da América do Sul para a Europa no século XVI: a batata. Há diversas variantes de batatas silvestres e cultivadas hoje na América do Sul, e a bacia do lago Titicaca é o centro de variabilidade genética — sinal de que foi ali que surgiram as variantes domesticadas. Não se encontraram ainda quaisquer traços de cultivo anterior na bacia e vales fluviais em volta. Isso muito provavelmente, porém, reflete a limitada procura de assentamentos abertos. Quase toda a escavação foi realizada nas cavernas do planalto, sem muita chance de fornecer uma imagem completa da vida pré-histórica no centro do Peru. Bruce Smith acredita que assim que se descobrirem esses assentamentos abertos, se constatará que a domesticação da batata surgiu como parte de um pacote conjunto com a lhama, a alpaca e a quina. Mais uma espécie talvez estivesse também envolvida: os porquinhos-daíndia. Ossos desses animais foram encontrados por John Rick na Caverna Pachamachay, e sabe-se que foi uma espécie muito caçada em todos os Andes, antes de tornar-se uma fonte domesticada de carne. Exatamente quando ocorreu isso, continua desconhecido. Como os camundongos e ratos do oeste da Ásia, as variantes selvagens talvez tivessem sido atraídas aos primeiros assentamentos sedentários devido aos recursos alimentares de detritos humanos ou colheitas. Os porquinhos-da-índia são suscetíveis à domesticação por causa de sua alta taxa reprodutiva e a facilidade de serem criados em áreas confinadas — o que também os torna animais de estimação ideais para as crianças de hoje. O dia começa devagar na Caverna Pachamachay. John Lubbock acorda ao amanhecer e vê que a maioria dos demais continua dormindo. Eles usam o fundo da caverna, que tornam confortável e quente com acolchoamento
macio e peles de animais. Uma jovem senta-se na entrada amamentando seu bebê; algumas crianças brincam com gravetos por perto. Um homem acorda e reforça o fogo que ardeu a noite toda. Quando os outros tições se inflamam, pequenas esferas espinhosas são retiradas de um cesto de palha e jogados nas cinzas. São as opúncias, frutos de cactos espinhentos, que dão em montes arredondados por toda a região da puna. Após alguns minutos, são arrastadas ou retiradas com um piparote das cinzas. As opúncias agora sem espinhos e suculentas são passadas em volta, limpas com as mãos e comidas. Todos os vegetais consumidos pelos moradores da Caverna Pachamachay são de espécies selvagens. Seus restos escavados foram analisados por Deborah Pearsall, da Universidade do Missouri, que encontrou uma grande variedade de espécies, embora a oportunidade de preservação se limitasse ao que fora carbonizado acidentalmente no fogo. Enquanto alguns restos, como os das opúncias e anserinas, vieram com maior probabilidade de frutas e sementes colhidas para comer, outros talvez tenham tido um papel medicinal. Tinha, por exemplo, noventa sementes de uma planta da família das euforbiáceas. Essas plantas são muito usadas hoje na medicina popular andina: a seiva branca de algumas é empregada como laxativo, os tubérculos de outras ajudam a aliviar dores estomacais, e fornecem uma pomada para erupções cutâneas. Lubbock pega um pequeno pedaço de carne de vicunha seca e duas opúncias e deixa a bacia do Junin, embarcando numa desafiante jornada pelas montanhas até o lago Titicaca. Dali, desce por um labirinto de vales até as terras litorâneas do Peru atual. Em 10.000 a.C., chega a uma paisagem de sopés áridos, cobertos de poeira, entrecortados por estreitos vales ladeados de árvores que formam oásis parecendo faixas. É mais quente que nas montanhas, mas surpreendentemente frio para os trópicos, sobretudo quando as colinas costeiras se encontram muitas vezes cobertas por um denso nevoeiro cinzento. Cheiro de peixe acolhe Lubbock em sua chegada a um pequeno aglomerado de casas circulares na margem norte do que se tornará conhecido como Quebrada Jaguay, ou Desfiladeiro Jaguay. Canoas também chegam, retornando de uma pescaria na foz do estuário, a cerca de 8 quilômetros de distância. Pesadas redes estão sendo arrastadas para a terra à meia-luz do crepúsculo. Lubbock junta-se a eles, esvaziando os peixes em cestos e retirando os enredados entre os fios de fibras vegetais.
As choupanas semi-subterrâneas são feitas de galhos, rebocos de barro e grossas estacas de madeira. A fumaça prolonga-se pelos telhados e logo tenta Lubbock a sentar-se junto ao fogo lá dentro. Entre as choupanas há detritos típicos da vida dos caçadores-coletores: detritos da feitura de instrumentos, pilhas de raízes à espera de ser transformadas em fibras e restos de poços de lareiras e de assar. Lubbock encontra esses habitantes litorâneos em meio à mudança. As pessoas vivem na mesma vizinhança há quase mil anos, pescando e catando moluscos durante todo esse tempo. O assentamento foi outrora um acampamento usado por gente que viajava todo ano da costa para as montanhas. Em suas visitas ao planalto, caçavam o guanaco e coletavam obsidianas — as lavas vulcânicas de aspecto vítreo valorizadas durante toda a Idade da Pedra — voltando com o máximo que podiam carregar. Mas essas temporadas montanhesas deixaram de ocorrer, e Lubbock não vê obsidiana em lugar algum. As pessoas agora passam o ano inteiro nas terras costeiras, embora ocupem três ou quatro assentamentos diferentes a cada ano. Chegam à Quebrada Jaguay com um fim específico em mente: capturar cardumes de piraúna que abundam na foz do estuário e catar os moluscos, igualmente abundantes. Ao fazerem isso, também restauram as choupanas e pegam abóboras no solo do vale. Assim que os cardumes partem, as pessoas vão embora para o sítio seguinte de sua trajetória anual, talvez para pegar cormorões em armadilhas ou pescar anchova. O sítio de Quebrada Jaguay foi descoberto em 1970, mas as escavações só foram iniciadas em 1996 por Daniel Sandweiss, da Universidade do Maine. Como não tinha quaisquer instrumentos de pedra de forma característica — como as pontas "rabo-de-peixe" que Lubbock viu na Tierra del Fuego, ou as triangulares da Amazônia — Sandweiss ficou sem a menor idéia de qual era a idade das espinhas de peixe, conchas de molusco, pedras queimadas e buracos de estaca antes da datação de carbono. Quando se revelou que pessoas tinham vivido na encosta de Quebrada Jaguay desde 11.000 a.C., o sítio foi logo aclamado como uma importante descoberta. Demonstrou que as pessoas mais antigas no Peru eram destras no uso de recursos marinhos, envolvendo barcos e tecnologia de pesca. Também ofereceu mais indícios da diversidade dos primeiros estilos de vida americanos. Lubbock permanece com essa gente costeira durante algumas semanas —
ajudando a tecer fibras, juntando as tripas de peixe e acompanhando-as quando visitam vizinhos e olham com atenção o mar e o céu em constante mudança. Durante suas viagens, ele nota que grande parte da paisagem está coberta por um denso manto de sedimento — às vezes um superficial aluvião, outras saibro grosseiro. Na boca de um vale, essa camada chega à altura da cintura em volta dos troncos de árvores; nas de outras, as árvores foram evidentemente derrubadas e esmagadas. Numa ocasião ele encontra uma exposição vertical que parece a lateral de uma escavação arqueológica extraordinariamente profunda. Água de rio solapou a íngreme encosta do vale e uma massa de sedimento desabou no rio, deixando uma parede vertical. Ali dentro, ele vê as paredes esmagadas, madeiras e lareiras de uma choupana. Mais de 10 mil anos depois, David Keefer, da Pesquisa Geológica dos EUA, fez uma descoberta semelhante quando inspecionou um corte em sedimentos feitos por novas estradas na Quebrada Tacahuay, um vale cerca de 50 quilômetros ao sul da aldeia de pesca de Lubbock. Imprensados entre grossas camadas de saibros brutos, ele encontrou traços de lareiras e monturos de detritos que foram datados de 10.800 a.C.: restos de um assentamento que fora inundado de repente por uma imensa enchente de detritos causada por chuvas violentas. Após adquirirem mais datas, Keefer e seus colegas perceberam que o litoral do sul do Peru sofrerá quatro importantes enchentes de detritos entre 10.800 e 8.000 a.C. Só poderia ter havido uma causa de tão grande devastação da paisagem. Keefer encontrara a mais antiga, embora mais desconhecida, obra do "Menino Jesus" — mais famoso por seu nome espanhol — El Nino — que continua a fazer estragos no mundo moderno. El Niño é causado por uma mudança no padrão de temperaturas da superfície do mar e na pressão atmosférica no oceano Pacífico tropical. Isso acontece quando se forma uma grande massa de água quente ao largo das Américas Central e do Sul, em intervalos regulares de períodos entre 2 e 10 anos, perturbando as correntes marítimas e impedindo que os nutrientes de níveis inferiores e mais frios cheguem à superfície. Em conseqüência, populações de peixes abandonam a região por águas mais frias e ricas em nutrientes. Isso pode ter um efeito devastador na indústria pesqueira — que muito provavelmente sustentava não mais que algumas centenas de pessoas em 10.000 a.C., mas agora sustenta milhões de vidas. Ainda mais dramáticos são os estragos feitos pela mudança da pressão do
ar nos padrões de temperatura regionais em todo o mundo. As costas do Pacífico nas Américas são inundadas por tempestades El Niño, levando a extensas enchentes, enquanto o sudeste asiático é flagelado pela seca. Programas de computador prevêem que a freqüência e os eventos El Nino têm chance de intensificar-se com o aquecimento global. Isto parece ter sido provado pela descoberta de que esses eventos só ocorriam mais ou menos a cada 700 ou 800 anos no término da era glacial, mas se intensificaram para um ciclo de meros 10 anos nos últimos 150. Esse fato deveu-se com muita probabilidade apenas ao aquecimento global natural, que atingiu o pico em 7.000 a.C. E assim resta-nos perguntar-nos sobre o impacto — ambiental e econômico — das próximas centenas de anos de aquecimento global sobre El Niño. Embora só possamos imaginar os eventos e os sofrimentos na Quebrada Tacahuay em 10.800 a.C., uma vívida ilustração da força de El Niño foi dada pela catástrofe que atingiu a costado Peru em 1997-1998. Uma concentração de água quente de 400 metros de profundidade e do tamanho do Canadá formara-se no Pacífico. As tempestades resultantes começaram a martelar a costa pacífica em dezembro de 1997, e seu impacto logo alcançou proporções apocalípticas. Em seis meses, rios cheios pela chuva e deslizamentos de terra tinham destruído trezentas pontes, varrido do mapa aldeias inteiras, e deixado meio milhão de pessoas desabrigadas. A indústria pesqueira foi arrasada, portos destruídos, e criadas as condições ideais para a propagação de doenças. O mar inundou 15 quilômetros interior a dentro. O dilúvio que atingiu a cidade do deserto de Trujillo provocou a erosão do mais antigo cemitério da cidade e levou caixões e cadáveres antigos a flutuarem pelas ruas. Diante desse espetáculo apavorante, os líderes da cidade dedicaram um tempestuoso domingo de março de 1998 para que os sitiados cidadãos pedissem ajuda a Deus. Talvez fosse exatamente isso o que as pessoas fizeram em 10.800 a.C., quando seu assentamento foi destruído. Que mais podem fazer as pessoas ao enfrentar a força de El Niño — o Menino Jesus? Dois cormorões surgem momentaneamente ao luar, sobrevoando a água, as pontas das asas quase tocando o mar. Desaparecem na escuridão quando nuvens engolem a lua e ondas sorvem a areia ao se retirarem nas praias. Lubbock senta-se tremendo de frio num pontal, no silêncio da noite, hipnotizado pelo oceano pacífico.
É hora de partir da América do Sul. Enquanto ele avança na escuridão, seus pensamentos voltam-se para a ingestão de chá quente em Monte Verde. E depois para a carne de cavalo na Tierra del Fuego, a pesca na Amazônia, a perseguição à vicunha nos Andes, a coleta de moluscos na Quebrada Jaguay. Pergunta-se se as pessoas de Monte Verde são realmente os primeiros americanos, sobre os significados das pinturas rupestres, e por que as pessoas se tornaram pastores em vez de caçadores. A América do Sul após o gelo foi um continente de gente admirável e perguntas não respondidas. Mas agora ele precisa viajar para o México e depois à América do Norte, para descobrir o que aconteceu após a época de mamutes e Clovis.
30 Um Duplo Olhar ao Vale de Oaxaca A domesticação de milho, abóbora e feijões no México, 10.500 – 5.000 a.C. Devo confessar uma sensação de excitação infantil, numa tarde de setembro de 2.000 d.C., quando me sentei de pernas cruzadas encostado na parede de uma caverna, e depois saltei para acocorar-me ao lado de outra. O desejo de realizar essas travessuras dominara-me assim que penetrara na última mata cerrada de espinheiros, contornara a última opúncia e chegara a Guilá Naquitz, uma pequena caverna na região central do México. Mal chegava a ser uma caverna — pouco mais que um rebordo abaixo de uma saliência numa face de penhasco, localizado no vale de Oaxaca. Perto dali havia cavernas de verdade, as de entradas escancaradas e túneis profundos na rocha. Mais adiante no vale, viam-se espetaculares sítios arqueológicos, o mais admirável deles a antiga cidade de Monte Alban, onde a sociedade zapoteca construiu a sede de sua capital há 2.500 anos. Embora a arquitetura de Monte Alban fosse impressionante, minha visita ao seu topo era de interesse secundário. Eu fora a Oaxaca visitar Guilá Naquitz — o sítio onde se encontraram as mais antigas plantas domesticadas no Novo Mundo. E apesar de suas credenciais espeleológicas serem limitadas, acocorar-me abaixo da saliência valeu todo o suor, espetadas de cacto e arranhões que eu sofrerá durante a longa caminhada ao sol do meio-dia. Num momento, imaginei-me como um dos caçadores-coletores que tinham acampado em Guilá Naquitz em 8.000 a.C., e no seguinte era o arqueólogo sediado em Michigan Kent Flannery, no instante de sua (re)descoberta da caverna a 26 de janeiro de 1966 — 34 anos e 243 dias antes de minha própria visita. Ele diria depois que encontrara artefatos de pedra e restos vegetais na superfície, os últimos sobrevivendo devido à extrema aridez do solo. Para mim, a caverna estava vazia — a não ser pela pilha de excremento de cabra deixada por ocupantes mais recentes. Flannery levara apenas um mês e meio para fazer sua escavação na primavera de 1966. Depois precisou de mais quinze anos para analisar os achados e publicar os resultados.
Minha fascinação por Guilá Naquitz devia-se ao contraste que oferecia entre vidas comuns e acontecimentos extraordinários na história do mundo. Entre 8.500 e 6.000 a.C., a caverna fora ocupada em várias ocasiões por não mais que quatro ou cinco pessoas, provavelmente membros de uma única família. Tinham usado o abrigo como um lugar para consertar instrumentos de pedra, cozinhar coelhos e pequenas tartarugas, descascar, moer, raspar e assar uma imensa variedade de plantas alimentícias coletadas nas imediações da caverna. E dormido em Guilá Naquitz, usando folhas de carvalho e capim como roupa de cama. Imagino que passavam grande parte do tempo mexericando, brincando, talvez até cantando e dançando. Cada visita fora feita no outono, e é possível que tivessem durado qualquer coisa entre alguns dias e alguns meses. Para eles, Guilá Naquitz era apenas mais um dos vários sítios de acampamento no vale de Oaxaca; não tinha especial importância, e os que iam estavam simplesmente tocando sua vida cotidiana durante o início do Holoceno na América Central. Flannery descobriu que enquanto eles faziam isso, também faziam história. Quando chegaram pela primeira vez à caverna, todas as suas comidas eram de espécies selvagens. Na época da última visita, porém, algumas eram de variedades domesticadas — plantas dependentes de seres humanos para a sobrevivência. Sem o conhecimento das pessoas de Guilá Naquitz, as novas plantas que criaram acabariam sustentando as grandes civilizações centro-americanas — olmeca, zapoteca e asteca. Eu pensava nisso quando saltei do carro alugado, de tração nas quatro rodas, até onde ousara aventurar-me pelo leito seco do rio Gheo-ala acima, pequeno tributário do vale de Oaxaca, a caminho de Guilá Naquitz. Depois tomei uma trilha invadida pelo mato, e às vezes entrava na floresta coberta de vegetação rasteira, não inteiramente seguro do itinerário e à procura da característica face escarpada que vira ilustrada no livro de Flannery. Vários dos arbustos e árvores, sem falar nos cactos, eram inteiramente desconhecidos para mim. Alguns estavam carregados de epífitos — plantas que vivem sobre uma outra sem se alimentar dela, apenas apoiando-se, e estendem tentáculos errantes pelo ar. Abundavam as borboletas e abelhas. Minha incapacidade para identificar as plantas causava-me considerável frustração. Adorei as exóticas flores amarelas e brancas, os ocasionais aromas pungentes, as pequenas bagas começando a formar-se e vagens de
semente a inchar. Mas eu mal sabia o que olhava. Aborrecia-me o fato de não ter feito meu dever de casa, pois se acredita que a vegetação nessa parte do vale de Oaxaca é íntima da que cercava Guilá Naquitz em 8.000 a.C. Assim, aqueles antigos catadores de comida teriam visto as mesmas flores e vagens de sementes, cheirado os mesmos aromas e se espetado no mesmo tipo de espinhos. Mas eles, claro, sabiam exatamente o que eram as plantas — quais as que lhes forneciam a melhor comida, as de melhores fibras, as que tinham propriedades medicinais e as estimulantes. Quando cheguei à caverna, um ninho de vespas em forma de campânula pendia do teto. Cercavam-no as cascas de ninhos anteriores, que se sobrepunham e enterravam uns aos outros, como tinham feito as camadas de detritos das sucessivas ocupações humanas no chão. Assim que acabaram minhas estrepolias, retornei por entre as árvores, descendo pela encosta coalhada de pedregulhos do penhasco até encontrar a trilha coberta de vegetação rasteira. Só então me dei conta de que aquela era a mesma trilha que Kent Flannery e sua equipe haviam tomado quando repetidas vezes dirigiram seus veículos até muito mais perto de Guilá Naquitz do que eu ousara. Parei um instante para ver uma fila de formigas marchando e julguei ouvir um motor forçando o caminho por entre raízes e buracos. E então imaginei Flannery e companhia sacolejando e saltando ao passarem por mim em sua picape, no fim de um dia de trabalho há mais de 30 anos. Continuei a vagar e imaginei um segundo veículo, menos coerente com o cenário: um Mercedes-Benz percorrendo o leito do rio que agora se estendia à minha frente. Era Kent Flannery em sua primeira visita ao vale de Oaxaca, após aceitar emprestado o carro de um parente — na certa inteiramente inocente sobre os costumes dos arqueólogos. Parece que o Mercedes-Benz fora bem mais eficaz que muitos veículos de tração nas quatro rodas para conduzir Flannery pelo vale, ao longo de trilhas de jumento e desfiladeiros. Voltei caminhando pelos cactos e espinheiros para pegar meu próprio veículo, cansado mas excitado por haver-me sentado na caverna de Guilá Naquitz. É 8.000 a.C., e John Lubbock senta-se nessa caverna lendo Tempos préhistóricos. À sua volta, a desordem e os detritos de um acampamento de caçadores-coletores; os ocupantes saíram para coletar plantas. O chão tem tapetes tecidos; pilhas de mato arrumadas como roupa de cama; uma lareira com cinzas quentes. Há bacias, cestos e sacos sobre o tapete e
pendurados de cavilhas enterradas na parede. Lubbock retornou ao capítulo sobre arqueologia norte-americana, para conferir o conhecimento que tinha seu xará da agricultura americana, e se ele manifestava opiniões sobre como começara a atividade agrícola. O vitoriano John Lubbock sabia que ela se baseara em milho, e comentava que "resultou do desenvolvimento gradual da semicivilização sul-americana, que por sua vez tornou possível". O John Lubbock moderno meditou sobre estas palavras, que sugeriam que as lavouras domesticadas haviam surgido numa sociedade muito mais complexa que a que ele encontrou em Guilá Naquitz. Hoje sabemos que a domesticação agrícola inicial se deu no centro do México porque os ancestrais selvagens das três variedades de plantas domesticadas fundamentais — milho, feijão e abóbora — são encontrados nessa região. Os do milho e feijão foram identificados precisamente pela localização de quais populações selvagens têm os marcadores genéticos específicos das variedades domésticas. O milho evoluiu de uma planta herbácea da família das gramíneas selvagens chamada teosinto, que continua a dar em áreas remotas do México atual. Em vez de ter um único talo, com os grãos encapsulados em algumas vagens facilmente colhidas, o teosinto tem numerosos talos ramificados, cada um com várias pequenas espigas de grãos. A que dá nas encostas do vale do rio das Balsas, no centro do México, é particularmente semelhante — em termos bioquímicos — ao milho moderno. Portanto, talvez tenha sido nesse vale que o cultivo intenso do teosinto foi iniciado por coletores agrícolas, com a repetida seleção das plantas de maiores ganhos como alimento e sementes para novas plantas. O pé de feijão selvagem, por outro lado, dá em toda a América Central. Um conjunto de detritos em volta da moderna cidade de Guadalajara foi identificado como o ancestral do feijão comum domesticado (Phaseolus vulgaris), que dá em várias formas diferentes, entre elas o vermelho, feijão-fradinho e feijão-comum. Todos têm uma diferença-chave do ancestral silvestre: como a cevada, trigo e lentilhas que examinamos no oeste da Ásia, o pé de feijão selvagem "espera pelo colhedor". E se ele não vem, o feijão não pode espalhar suas sementes. Quanto às plantas asiáticas ocidentais, a transição para o feijão doméstico ocorreu porque as pessoas preferiram repetidas vezes — intencionalmente ou por acaso — as vagens que tinham menos tendência a desfazer-se.
O ancestral selvagem da terceira domesticada chave, a abóbora, ainda não foi localizado. Há certamente muitas variedades selvagens de abóbora ainda em cultivo por todo o México, todas elas com pequenos frutos verdes. Parece provável que uma dessas logo será identificada como a progenitora específica das variedades domésticas que dão frutos laranja maiores e eram cultivadas pelos que usaram a gruta de Guilá Naquitz como abrigo. O estudo de quando e por que surgiram essas plantas domesticadas começou na década de 1940, quando Richard MacNeish, na época recémdiplomado pela Universidade de Chicago, foi trabalhar no México, atraído para a região pelas plantas nativas. Isso representou o início de uma longa e destacada carreira, terminada por um acidente rodoviário em janeiro de 2001 — quando ele continuava em trabalho de campo, aos 82 anos. MacNeish começou a trabalhar no nordeste, escavando cavernas com sedimentos de ossos secos nas montanhas Tamaulipas. No início da década de 1960, transferira seu trabalho mais para o sul, avançando pelo vale de Tehuacán adentro, no centro do México. Ali escavou a Caverna Coxcatlán, que rendeu abundantes restos de milho, feijão e abóbora, junto com uma legião de plantas selvagens. Embora não tivessem mais de dois centímetros de comprimento, as espigas de milho eram sem a menor dúvida plantas domesticadas. A princípio julgou-se que datavam de entre 6.000 e 4.500 a.C., com base em datas de radiocarbono extraídas de pedaços de carvão encontrados perto. Mas quando se dataram diretamente as espigas, estas se revelaram muito mais novas, datando de não mais de 3.500 a.C. O mesmo ocorreu com os restos de feijão domesticado das escavações de MacNeish: foram inicialmente consideradas 4 mil anos mais velhas do que se acabou sabendo.
Isso deixa as vagens encontradas em Guilá Naquitz, que datara de 4.200 a.C. como as mais antigas atualmente conhecidas. Se esta for a data em que ocorreu a domesticação, indica um atraso muito longo entre o fim da era glacial e o surgimento do milho doméstico no México — uma situação totalmente diferente da dos cereais domésticos do oeste da Ásia. Mas as datas de radiocarbono talvez estejam dando uma imagem inteiramente errada de quando surgiram as variedades domésticas. Esta é a mensagem de um recente estudo da genética do milho moderno, que indica que a domesticação já ocorrera em 7.000 a.C. Flannery também recuperou de Guilá Naquitz as mais antigas amostras conhecidas de abóbora domesticada. Embora não passassem de fragmentos de casca, talo e sementes, bastaram para diferenciar as variedades selvagens das domésticas. A diferença essencial é apenas o tamanho: as abóboras domésticas são bem maiores. Quando se estudou pela primeira vez a amostra de Guilá Naquitz, porém, julgou-se que apenas uma semente fora de um fruto suficientemente grande para ser rotulado de doméstico. Essa semente foi datada de 8.000 a.C. Quando Bruce Smith, do Instituto Smithsonian, reestudou a amostra em 1995, encontrou muito mais dados para confirmar a idéia de que as pessoas de Guilá Naquitz já cultivavam abóbora nessa data. Embora esses fragmentos de abóbora dos primeiros níveis fossem inequivocamente de plantas selvagens (com exceção daquela única semente), os de níveis datados de entre 7.500 e 6.000 a.C. eram sem dúvida alguma de plantas domesticadas. Os fragmentos de sementes e talo eram significativamente maiores que os de plantas selvagens; as cascas eram grossas e de uma cor laranja vivo, em vez de finas e verdes como ocorre num fruto selvagem. Smith concluiu que as pessoas de Guilá Naquitz cultivavam abóbora em 8.000 a.C. — capinando o mato em volta das plantas selvagens, selecionando sementes das abóboras maiores para replantar e garantir a colheita do ano seguinte. E se assim foi, parece provável que as pessoas de Guilá Naquitz, as dos vales de Tehuacán e das Balsas, e as que colhiam nos sopés em volta de Guadalajara cultivavam feijão e teosinto/milho. Surge então a pergunta de por que as pessoas começaram a fazer isso. Por que deitavam sem saber as fundações das futuras civilizações centroamericanas? Há no momento duas teorias importantes, mas radicalmente diferentes, sobre a origem de plantas domesticadas no centro do México. Uma foi
concebida pelo próprio Flannery, com base em suas escavações em Guilá Naquitz, a outra por Brian Hayden, da Universidade Simon Fraser, recorrendo a extenso conhecimento sobre caçadores-coletores historicamente documentados. Essas teorias não dependem do conteúdo das cavernas, mas de saber se houve aldeias de caçadores-coletores permanentes no fundo do vale de Oaxaca e outros vales fluviais. Embora Flannery tenha a vantagem da experiência de campo direta, no vale de Oaxaca, temos de examinar as duas teorias antes de escolher a mais provável de ser correta. Para permitir-nos isso, John Lubbock precisa dar um duplo olhar ao vale de Oaxaca em 8.000 a.C.: precisa passar 10 anos vivendo no mundo que Kent Flannery imaginou para as pessoas de Guilá Naquitz, seguidos pelos mesmos 10 anos no imaginado por Brian Hayden. Durante sua primeira década no vale de Oaxaca, Lubbock participa de todas as atividades de coleta de plantas, caça, cantos e relatos orais das pessoas de Guilá Naquitz. Enquanto faz isso, vê crianças crescerem e aprenderem os ofícios de caça e coleta como sustento. Isso inclui as técnicas para fazer armas de caça, cestos para coletar plantas e recipientes para transportar água. Sapatos e roupas têm de ser feitos de fibras vegetais, cascas, couros e penas. Também precisam aprender sobre plantas medicinais, como cuidar dos muito pequenos, dos enfermos e dos velhos. Dificilmente alguma dessas atividades era feita por instrução. As crianças simplesmente participavam delas com os adultos; observavam, ouviam; faziam experiências, cometiam erros, e aos poucos iam-se tornando tão tarimbadas e bem informadas quanto os pais e avós. Próximo ao fim dessa década, uma das meninas deixou o grupo para juntar-se às famílias que moram no vale de Tehuacán. Logo depois, com o consenso de outros membros, um dos meninos torna-se o chefe tácito do grupo. Agora lhe é permitido dar a primeira e última palavra quando se exigem decisões que afetam a todos, como, por exemplo, quando levantar acampamento e para onde ir. Todos ouvem com cuidado as opiniões dele, mas também expressam as suas próprias. Dá-se especial atenção aos mais velhos, homens e mulheres. As decisões vão aos poucos surgindo dessas conversas em grupo — o papel do chefe é essencialmente o de presidente, agindo para resumir opiniões e expressar o ponto de vista manifestado. Eles passam os meses de verão no fundo do vale, num acampamento conhecido pelos arqueólogos como sítio Gheo-Shih. Aboboreiras são
cultivadas nos solos aluviais, e olmos e algarobeiras ceifados. Caçam-se grandes iguanas pretos, depois assados na brasa. Em alguns anos, ao grupo de Gheo-Shih junta-se outro, sobretudo quando a comida é abundante. Visitantes chegam freqüentemente e permanecem por alguns dias, enquanto se trocam notícias e mexericos; tomam-se providências para comemorações comunais em que se fazem casamentos. O casal depois parte como membros de um novo grupo, logo a ter filhos. Passa-se todo o outono em Guilá Naquitz. Lubbock logo compreende a atração do lugar. Abundam perto plantas comestíveis — pelo menos se as pessoas sabem diferenciar tubérculos subterrâneos de moitas de capim; quais bagas comer e quais evitar; onde se podem encontrar melões selvagens, feijões-trepadores e cebolas; e que algumas plantas só se tornam comestíveis após serem assadas durante várias horas num forno no chão. Há animais para caçar, sobretudo cariacus e coelhos, e pássaros para capturar — codornas, pombas e rolas. Água potável permanente é o recurso-chave; vem do rio que corre abaixo da face escarpada e de fontes espalhadas. Estas muitas vezes não passam de pequenas poças, mas tornam a caverna e suas vizinhanças muito mais atraentes que outros lugares. É freqüente a presença de tartarugas nos lagos ou nas barrentas margens fluviais, capturadas para serem assadas inteiras nos cascos. Lubbock logo vê que a região é coberta por uma rede de pequenas faixas que correm entre fontes, renques de nogueira, tufos de cactos e canteiros de pés de abóbora. Trata-se, na verdade, de outra horta selvagem — muito semelhante àquela em volta de Ain Mallaha, mas abastecida por uma variedade de plantas inteiramente diferente. Com o fim do outono, chega a estação quente. No fim do ano, o rio muitas vezes não passa de um fio d'água, e as fontes só são reconhecíveis por manchas de terra úmida. E assim Lubbock parte com as pessoas de Guilá Naquitz para passar o inverno nos planaltos mais úmidos. Muitos pertences são deixados na caverna — o clima é tão seco que não há receio algum de que umedeçam ou apodreçam. Na verdade, se a coleta durante o outono foi particularmente frutífera, provisões de sementes, bolotas, tubérculos e, sobretudo abóbora — que eles sabem estocar muito bem — são deixadas como suprimento de comida para quando o grupo retornar. Todo outono as pessoas retornam a Guilá Naquitz, aliviadas por estarem de volta no centro de seu mundo. Têm uma vida movimentada, na qual são primordiais os valores de partilha, cooperação e consenso. Embora a
caça raras vezes seja bem-sucedida, os tubérculos às vezes pequenos e as vagens de semente quase vazias, elas raramente passam fome. Quanto mais Lubbock fica com as pessoas de Guilá Naquitz, mais compreende que alguns anos são relativamente úmidos, com abundante comida, e outros muito secos. A ocorrência de um ano úmido ou seco é inteiramente imprevisível, e as pessoas de Guilá Naquitz acostumaram-se a reagir a quaisquer condições que cheguem. Quando a primavera e a chuva de verão são fartas, Lubbock vê que elas se dispõem a viajar da caverna mais para o sul e fazer experiências com uma maior variedade de plantas comestíveis e a caça de espécies mais exóticas. Conseguem fazer isso porque há um suprimento garantido das comidas tradicionais se tais empreendimentos fracassarem. Essas incursões são essenciais para manter o conhecimento das paisagens que as cercam, mesmo quando retornam de mãos vazias. Nesse aspecto, as pessoas de Guilá Naquitz são muito parecidas com as de Monte Verde, e na verdade com todos os outros caçadores-coletores que Lubbock visitou em suas viagens — têm uma sede insaciável por história natural, que tentam satisfazer em toda oportunidade. É durante um ano especialmente úmido que Lubbock testemunha pela primeira vez outra atividade. As pessoas conhecem bem vários canteiros de diferentes pés de abóbora na vizinhança de Guilá Naquitz, sabendo que esse ano vão produzir frutos grandes e abundantes. Visitam-nos no início da estação, para inspecionar suas flores e os frutos em desenvolvimento. Quando fazem isso, arrancam simplesmente outras plantas em volta dos pés de abóbora, e mesmo destes só deixam os de melhores flores e frutos. Podem permitir-se esse desperdício porque haverá muitas das outras plantas comestíveis nesse outono, embora não mais que uma ou duas abóboras se desenvolvam em cada pé. Todas as plantas com folhas doentes são simplesmente arrancadas e jogadas fora. Numa ocasião, Lubbock chega a um canteiro de pés de abóbora particularmente denso e emaranhado. As mulheres às quais seguiu usam as varas de cavar para desenraizar duas ou três das plantas de aparência mais forte e põem-nas num cesto. Em seguida desbastam as outras, e ajudam a polinização das flores restantes. No caminho de volta para Guilá Naquitz, fazem uma pausa e, em não mais que um momento, já replantaram os pés de abóbora, aguando-os com uma grande cabaça que levam. Isso ocorre no que parece a Lubbock uma parte indefinível da
paisagem, que ele teria dificuldade de encontrar de novo. Qualquer pessoa que chegasse a esses pés de abóbora recém-plantados não teria motivo algum para julgar que fossem outra coisa que não mato. As pessoas de Guilá Naquitz jamais falam de sua atividade de cultivo. Fazem-na como parte rotineira da caça, coleta e viagem. Só num ano especialmente seco Lubbock compreende o dividendo que isso fornece. Nesse ano, falta à paisagem a vibração que ele passou a esperar. As flores amarelas e brancas são escassas, o verde dos cactos morto, e quando chegam os frutos vermelhos são insípidos e encarquilhados. A caça está especialmente escassa. Mas na paisagem ressecada, as pessoas podem contar com os pés de abóbora. Quando as plantas não têm doenças e quaisquer cepas fracas foram arrancadas, há sempre frutos cheios de substanciais sementes a serem colhidos. Embora a quantidade de comida que fornecem seja limitada, é suficiente para sustentar uma visita breve à caverna. Durante a década de Lubbock com as pessoas de Guilá Naquitz, ele não nota nenhuma mudança nos próprios frutos. Mas se houvesse permanecido durante cem, ou mesmo mil anos, teria visto os frutos aumentarem de tamanho e mudarem de cor, do verde para o laranja. A polpa comestível se teria desenvolvido, brotando das finas camadas nas quais as sementes foram antes introduzidas. Essas plantas passariam a ser dependentes do dedicado cuidado das pessoas de Guilá Naquitz. As cepas domesticadas surgiram simplesmente das tentativas desses caçadorescoletores de se protegerem contra escassez de alimentos quando a chuva era escassa. John Lubbock passou esses 10 anos vivendo como uma personagem da reconstrução por Kent Flannery das pessoas de Guilá Naquitz e vendo-as representar a explicação para a domesticação das abóboras — do tipo que se poderia prontamente estender a milhos e feijões. Era um mundo de caçadores-coletores móveis, igualitários, que cultivavam abóbora para compensar potenciais privações de comida nos anos em que a chuva escasseava. Nesse mundo, Guilá Naquilz era uma das localidades-chave; eles retornavam todo outono e usavam a caverna como base para caça e coleta. Para Kent Flannery, as origens de plantas domesticadas estão nas tentativas desses caçadores-coletores de combater a chuva irregular e o suprimento de comidas silvestres. Mas talvez estivesse errado. E assim Lubbock precisa reviver essa década num mundo bastante diferente — o
mundo imaginado por Brian Hayden, que tem idéias muito diferentes sobre a origem das plantas domesticadas. No início desse segundo "olhar" à vida no vale de Oaxaca em 8.000 a.C., Lubbock está sentado no piso de Guilá Naquitz com três mulheres, uma das quais tem um bebê amarrado às costas. É fim de tarde, e esse grupo horticultor descansa antes da caminhada de volta para seu assentamento no sopé do vale de Oaxaca. Estiveram coletando uma variedade de sementes, nozes e folhas, e cada uma tem um saco bojudo para carregar, um dos quais contém vários frutos esféricos verdes — abóbora selvagem. À luz que morre, o grupo põe-se em marcha, desce a encosta até o rio embaixo da caverna e depois entra na floresta coberta de mato baixo até o próprio vale. As mulheres não têm dificuldade para encontrar o caminho, embora não disponham de hortas selvagens por onde avançar nem trilhas para seguir — as visitas são esporádicas demais para o aparecimento disso. Três horas depois, Lubbock surge com eles das trevas e entra na aldeia iluminada por fogueiras. Dez ou talvez doze choupanas formam um círculo irregular em volta de uma fogueira central, que brilha com brasas incandescentes. As choupanas são circulares, com telhados de mato pendendo sobre armações de latada e paredes com estrutura de madeira toscamente pintadas. Muitas pessoas estão sentadas em volta do fogo; várias se levantam para acolher as mulheres, ajudando-as a descarregar os sacos e oferecendo água. O alívio de Lubbock talvez seja maior que o das mulheres quando larga o saco no chão e vê levarem-no para armazenagem. Ele se senta com as mulheres, que contam aos outros aldeões o que viram e trouxeram, respondendo perguntas sobre o estado da caverna, das fontes e trilhas de animais. Lubbock olha as casas de madeira e os pátios em volta. Não havia essas aldeias no mundo de Guilá Naquitz estabelecido pelo extenso trabalho de campo de Kent Flannery — apenas pequenos locais de acampamento como Gheo-Shih, pouco diferentes dos das cavernas. Mas Lubbock vive na imaginação de Hayden, e imagina se essa aldeia é a semicivilização concebida pelo seu xará vitoriano, da qual ele achava que se originara a agricultura. Deita-se no chão e adormece. Acorda muito depois do início dos preparativos para um banquete. As sementes e nozes que ajudou a carregar já foram descascadas e são agora moídas em almofarizes de madeira, para fazer uma pasta. Vários fornos
pequenos assam tubérculos, e preparou-se uma grande cavidade para assar um caititu. Lubbock vê vários outros cestos de comida, entre eles um com uma alta pilha de grandes abóboras laranja, muito diferentes das colhidas na vizinhança de Guilá Naquitz. Põem-se toros, tapetes de junco e almofadas de feixes de capim em volta do fogo. Lubbock perambula pela aldeia e vê que na choupana maior se prepara um elaborado robe. A veste básica, tecida de fibras vegetais entrelaçadas, foi retirada de uma caixa de casca e é agora enfeitada com uma variedade de plumas, flores e conchas de cores vivas. Logo atrás dessa choupana há uma horta bem cuidada, de plantas da família das cucurbitáceas, sobretudo pés de abóbora. Os frutos maiores já foram colhidos, mas vários outros começam a amadurecer. Uma cerca de galhos quebrados protege a horta, sugerindo que é uma propriedade privada. O banquete começa no fim da tarde. É oferecido a um grupo visitante do vale de Tehuacán, que agora se senta num dos lados da fogueira. Seu chefe também veste um robe colorido e eleva-se acima dos seguidores num assento de madeira. As pessoas de Oaxaca sentam-se no outro lado de seu chefe paramentado, cada um na posição de seu status. Lubbock também se senta junto ao fogo, num lugar privilegiado para ver a competição de palavras, músicas e comida prestes a começar. Durante as 5 horas seguintes, é exatamente isso que acontece: um lado conta uma história, que depois é respondida pelo outro. A princípio as histórias são curtas e relacionadas a temas práticos; mas com o avançar da noite tornam-se mais longas e são contadas com mais paixão, envolvendo súbitas manifestações de música, dança e reconstruções dos feitos ancestrais descritos. Periodicamente, as mulheres oaxacan trazem comida dos fornos e poços de assar e distribuem-na entre os convidados. Alguns relatos envolvem a doação de presentes de um chefe ao outro — pedras preciosas, conchas e plumas exóticas. Quando o chefe de Oaxaca atinge o clímax em sua narrativa, uma travessa de abóboras laranja é levada ao fogo e posta para assar nas cinzas. Lubbock vê os visitantes se espantarem com o número, tamanho e cor das frutas. Depois de assadas, são divididas e as sementes distribuídas por todos os presentes, o chefe de Tehuacán recebendo uma cabaça cheia para comer. Ele jamais viu frutos tão impressionantes e tanta quantidade de sementes; come-os e então admite a derrota, contando uma história final que exalta o vale de Oaxaca e sua gente.
O banquete continua até a lua surgir. As pessoas de Tehuacán partem para o local de seu acampamento temporário; as de Oaxaca retiram-se para suas choupanas, algumas acompanhadas por um ou mais visitantes, talvez para desfrutar de um sexo tão extravagante quanto a comida que consumiram. No dia seguinte, as pessoas de Tehuacán partem para seu próprio vale, as obrigações cumpridas e o status de seu chefe mantido. Quando chegar à aldeia, ele vai exibir os presentes recebidos, objetos que não se encontram em seu vale. E instruir os seguidores a tratarem das plantações de milho nas colinas circunvizinhas com cuidado ainda maior, para garantir que ele tenha uma pilha das maiores espigas já vistas— talvez do tamanho do polegar que estica — quando receber as pessoas de Oaxaca no ano seguinte. Cultivar essas plantas é uma atividade síria — não pelas calorias que fornecem, mas pelo status que conferem. O banquete competitivo continua ano após ano, às vezes com apenas dois grupos, outras com três, quatro ou cinco. Lubbock vê uma variedade de comidas exóticas nessas ocasiões. Além de abóboras e espigas de milho, há pimentão, abacate e feijão — todos muito menores que os que ele conhece no mundo moderno, mas a caminho de tornar-se variedades plenamente domesticadas. São comidos como iguarias e usados pelos chefes para impressionar não apenas os visitantes, mas também sua própria gente. Se não o fizerem, serão substituídos — todos os jovens têm suas próprias hortas atrás das choupanas, nas quais trabalham cultivando plantas. Sem o saber, estão deitando os alicerces da civilização zapoteca, que um dia irá nivelar o topo de uma montanha e construir sua cidade em Monte Albán, com espetacular vista do vale de Oaxaca defronte. O mundo imaginado por Hayden para as pessoas de Guilá Naquitz e os motivos por ele propostos para a domesticação das plantas eram radicalmente diferentes dos de Flannery. Guilá Naquitz era agora inteiramente periférica para as pessoas de Oaxaca. Só de vez em quando a usavam como abrigo em viagens de caça e coleta de plantas distantes de uma aldeia permanente no fundo do vale. No mundo imaginado por Hayden, os "chefões" — indivíduos que exerciam autoridade e poder — escolhiam as mulheres como esposas e exibiam seu poder por meio de banquetes comunais e aquisição de conchas, pedras e plumas exóticas. Nesse mundo, as origens das colheitas domesticadas estão nas tentativas desses caçadores de impressionar os vizinhos com comidas cada vez mais exóticas.
Para decidir qual das duas teorias sobre a domesticação da abóbora e do milho tem mais chance de estar correta, precisamos avaliar a afirmação de Hayden, de que existiram aldeias de caçadores-coletores nas bases do vale, onde ele achava que ocorreram os banquetes competitivos. Embora não se tivessem encontrado traços de nenhum desses sítios, Hayden afirma que isso se deve ao fato de os restos arqueológicos terem sido enterrados por vários milênios de sedimentos fluviais. Kent Flannery é um ardente crítico das opiniões de Hayden. Argumenta que, embora pudesse existir aluvião em alguns lugares, este é muito mais velho que 8.000 a.C. Em conseqüência, se essas aldeias tivessem existido, seus traços arqueológicos teriam permanecido na superfície hoje. Fizeram-se extensos e detalhados levantamentos dos fundos do vale e encontraram-se muitos sítios arqueológicos; mas nenhum deles nem de longe se parece com o tipo de aldeias que Hayden concebe sendo usadas para banquetes competitivos em 8.000 a.C. Gheo-Shih, que muito provavelmente era um pequeno acampamento de verão, localizado a alguns quilômetros de Guilá Naquitz, foi escavado em 1967 e forneceu um grande número de artefatos, mas sem sinal algum de qualquer construção. As atividades que ocorreram ali parecem ter sido pouco diferentes das que tinham nas cavernas. Qualquer madeira de choupana substancial encontrada em processo de erosão nas valas de drenagem foi datada de no máximo 1.500 a.C., época em que parecem ter surgido as primeiras aldeias. Quando voltei de carro à cidade de Oaxaca, após minha visita a Guilá Naquitz, prestei atenção nos campos de cada lado da estrada, ponderando as respectivas afirmações de Hayden e Flannery. Embora o crepúsculo já tivesse baixado, vi que eram intensamente cultivados, com uma variedade do que me pareceram safras exóticas — pimentão, abacate, feijão, milho —junto com as mais conhecidas cenoura e alface. Imagino que também se cultivasse abóbora. A probabilidade de que tivessem existido aldeias em 8.000 a.C. parecia remota, e vi-me inteiramente convencido pelo cenário de Flannery para a origem de plantas domesticadas. Os banquetes competitivos eram sem a menor dúvida, importantes entre muitas comunidades americanas nativas historicamente conhecidas — mas isso só ocorria quando tinha um imenso suprimento de comida. Os índios da costa noroeste tinham fabulosas quantidades de salmão do Pacífico e usavam o banquete — ou festanças — para impressionar e
humilhar chefes rivais. Parece inteiramente inadequado impor esse estilo de vida aos que viviam no vale de Oaxaca em 8.000 a.C. Não apenas suas vidas sociais parecem ter-se baseado muito mais na divisão que na competição, mas parece improvável que um rival tivesse ficado impressionado, quanto mais humilhado, só com um punhado de sementes de abóbora, por maiores que fossem. Antes de chegar à cidade de Oaxaca, parei num bar à beira da estrada e provei um gole de mescal — a aguardente local. Embora de gosto desagradável, pareceu esplêndida numa garrafa recheada de ervas e frutas. Comprei uma para levar — uma bebida tão exótica certamente ia impressionar os convidados quando oferecêssemos um jantar em casa.
31 Rumo a Koster Estilos de vida caçadora-coletora na América do Norte, 7.000 – 5.000 a.C. A viagem de John Lubbock a partir do México leva-o pelo vale do rio San Pedro no Arizona, passando pelas localidades da Fazenda Lehner e Murray Springs, onde ossos de mamute e pontas Clovis jazem enterradas no chão. Ele encontra pessoas usando pontas Folsom para caçar bisão e gamo; pontas como as que Jesse Figgins escavará na própria Folsom. Outros usam novos estilos de pontas de pedra, todas desprovidas da característica flauta dos tempos antigos. Todos dependem muito mais de comidas vegetais que na época Clovis, como um dia ficará evidente para os arqueólogos pelo número de mós que escavam em locais de acampamento do Holoceno Inicial. A mudança na alimentação reflete o aumento de floresta resultante das temperaturas mais quentes e chuva mais intensa. Ao longo dos vales fluviais, renques de salgueiro, choupo e freixo vão-se tornando densos, quando Lubbock caminha pelas matas de carvalho e zimbro onde as pessoas Clovis caçavam nas planícies descampadas. A vegetação rasteira é rica em arbustos e gramíneas; para os que têm conhecimento suficiente, há comida, medicamento e materiais à vontade. Os arqueólogos referem-se aos americanos do Holoceno Inicial como caçadores-coletores arcaicos. Essa definição distingue-os dos paleoíndios, os do Pleistoceno Tardio, como as pessoas Clovis, e é um termo mais ou menos equivalente ao do Mesolítico na Europa. E como as pessoas do Mesolítico, os caçadores-coletores arcaicos eram diferentes em seus estilos de vida. Alguns adotaram uma vida sedentária muito rápido, e acabaram tornando-se agricultores, criando sociedades que incluíam chefes, sacerdotes e escravos. Outros continuaram como caçadorescoletores durante todo o Holoceno — até o ano fatídico de 1.492 d.C., com a chegada dos primeiros europeus e o início da dizimação da sociedade nativa americana. Em 7.500 a.C., Lubbock atravessou o Arizona e entrou nos acidentados desfiladeiros na ponta sul do platô do Colorado. Ele descansa numa
caverna no Chevelon Canyon atual, que os arqueólogos hoje conhecem como Sandal Shelter [Caverna da Sandália]. Era outrora uma lenda numa juntura de arenito abaixo e calcário acima, mas sofreu erosão e alargou-se numa caverna quando o rio corria vários metros acima de sua altura atual. Atrás dele, no chão da caverna, encontram-se os restos de uma fogueira, um punhado disperso de ossos queimados, lascas de pedra e gravetos enterrados. Também há um par de sandálias ao lado da parede da caverna. Feitas de folhas de iúca de fina trama, deixam os dedos de fora e têm tiras para amarrar em volta do tornozelo. Lubbock experimenta uma e fica-lhe muito bem; mas ele resiste à tentação de um novo calçado, caso o dono retorne. Um número curiosamente grande de sandálias do período arcaico foi encontrado por arqueólogos nas cavernas do platô do Colorado, preservadas pelas condições secas e por serem feitas de materiais resistentes. Outros restos orgânicos incluem fragmentos de roupa, sacos e cestos. Também precisamos agradecer ao bando de ratos que ainda prospera nas cavernas hoje. Os grandes ninhos de gravetos e folhas construídos por esses roedores peludos prestaram um inestimável serviço à arqueologia. Ao construí-los, eles usaram detritos humanos que de outro modo se haveriam decomposto. Em Sandal Shelter, arrastaram para os ninhos não menos que 19 sandálias abandonadas, esquecidas ou apenas misteriosamente desaparecidas. Em 1997, Philip Geib, da Universidade do Arizona do Norte, começou a investigar esse museu local, após encontrar um par de sandálias esquecido apanhado outrora num monturo de ratos compactado na caverna. Obteve datas de radiocarbono que cobrem um período de quase 1.500 anos, a mais antiga datando de 7.500 a.C. As sandálias estavam tão bem preservadas que Geib pôde reconstituir exatamente como haviam sido feitas e compará-las com outras de cavernas mais ao norte. Documentou que os calçados arcaicos variaram entre as regiões e mudaram com o tempo — uma alternativa muito bem-vinda aos estudos de artefatos de pedra que tanto dominaram a pesquisa arqueológica. Em conseqüência, provavelmente sabemos mais sobre os calçados das pessoas do platô do Colorado que sobre qualquer outro aspecto de suas vidas. Amanhece, e como ninguém voltou atrás das sandálias, Lubbock deixa a caverna e segue o Chevelon Canyon até sua confluência com o Little Canyon, o que o leva 200 quilômetros até o próprio Grand Canyon a
noroeste. Ali encontra caçadores-coletores tão maravilhados com os imensos penhascos, as cores, sombras em movimentos e quedas-d'água quanto qualquer visitante moderno. Lubbock continua em frente e começa sua travessia da Grande Bacia — um topônimo errôneo, pois é na verdade uma área de várias pequenas bacias entre as Rochosas ao leste e Sierra Nevada a oeste. Hoje inclui a maior parte de Nevada e sofre de extrema aridez. No LGM, havia muitos lagos azuis cristalinos, sobretudo o imenso Lago Bonneville. Eram uma conseqüência de padrões de chuva muito diferentes, surgidos do impacto das camadas de gelo norte-americanas na circulação atmosférica. Mas mesmo em 7.500 a.C. já haviam desaparecido quase todos esses lagos, e Lubbock percorre uma paisagem de pequenos poços, lagos rasos, pântanos, córregos e fontes. Algumas bacias e vales estão completamente secos, os solos aos poucos colonizados por plantas resistentes ao sal. Em outros lugares, um matagal dominado por arbustos de salva já começa a assumir a aparência de deserto. Pinhões e zimbros crescem em encostas mais baixas das colinas, e florestas de pinheiros e espruce florescem em elevações mais altas. Os caçadores-coletores da Grande Bacia vivem em grupos pequenos e dispersos. Caçam vários animais: gamos, antílopes, coelhos, esquilos, geômis e um ou outro bisão. Também pescam e coletam uma ampla variedade de plantas comestíveis. Como nunca permanecem num mesmo lugar por mais de poucas semanas, muitas vezes apenas alguns dias, seus abrigos são frágeis, e quaisquer ossos de animal ou material vegetal jogados fora logo se decompõem nos solos ácidos. E por isso, são mínimos os traços deixados para futuros arqueólogos: pequenas concentrações de pontas-de-lança quebradas e pedras lascadas jogadas fora. Essa magra dieta arqueológica é complementada, porém, pelas descobertas de cavernas ainda mais secas. Quase tão boas quanto elas são seus nomes evocativos: Caverna da Última Ceia e Gruta da Vergonha Indecente, onde se encontraram sessenta peças de cordame; Caverna da Espinha de Peixe e Caverna do Perigo, que forneceram um tapete de casca de cedro e cestaria de salgueiro; Caverna da Alma, onde se encontrou o único túmulo arcaico da região — com uma veste de pele de coelho e uma esteira de fibra vegetal como mortalha. Uma das mais ricas cavernas em termos arqueológicos é conhecida como
Hogup, localizada na extremidade noroeste do Grande Lago Salgado de Utah. Ali, o material escavado incluía pedras lascadas e restos de vários cestos, sacos e bandejas de casca de salgueiro. Mas talvez os achados mais importantes tenham sido os coprólitos — excrementos fósseis humanos depositados na caverna. Escavaram-se 11 coprólitos, junto com outros seis da vizinha Caverna do Perigo. Quando separados, descobriu-se que continham um sortimento diverso de restos vegetais, sobretudo de opúncias, juncos e quinas. Pedaços de osso esmagado, insetos e pêlo animal também se achavam presentes, o último possivelmente originando-se do uso dos dentes para limpar peles, e minúsculos fragmentos de carvão e saibro derivam provavelmente de métodos de preparação de comida, o saibro sendo usado para ajudar a moer as plantas. Lubbock desce pelos sopés da Montanhas Rochosas até as Altas Planícies — uma imensa faixa de colinas ondulantes e pradarias que divide o continente desde o Canadá até o México. É agora 7.000 a.C., e ele chegou à bacia Bighorn, no norte de Wyoming, no que se tornará o sítio Horner. Uma nuvem de poeira acabou de baixar, revelando 12 homens e mulheres acocorados em volta de um bisão recém-morto, na base de um barranco estreito. Nos últimos momentos, passaram de assassinos brutais a amantes da natureza, e prestam solene homenagem aos animais que deram suas vidas por essas pessoas das planícies. Os caçadores mais valentes tinham-se colocado atrás de pedras no cul-desac do barranco; outros ficaram nos lados da inclinação espreitando o fundo; todos seguravam firme as lanças, o sangue martelando nas veias. A princípio, ouviram um estrondo e depois sentiram um gosto de poeira; era o estrépito de cascos galopando e o arfar de poderosos pulmões. Quatro bisões desembestados carregaram em sua direção, fugindo de homens e mulheres que gritavam e batiam paus. Os caçadores esperaram o momento perfeito — que punha a morte potencial dos animais apenas a alguns segundos de distância — antes de atirar as lanças. O primeiro, o segundo e o terceiro bisão desabaram no chão quando atingidos; contorciam-se de dor e berravam de fúria, agitando os cascos letais. E então, com um potente bramido, morreu o quarto bisão, o coração e os pulmões perfurados pelas lanças finais atiradas. Inicia-se a carnificina. Quando facas e machados são retirados de sacos de couro, Lubbock lembra-se das renas chacinadas em Verberie, na bacia de
Paris, há 5.500 anos e um continente atrás. Os caçadores de bisão enfrentam uma tarefa mais urgente, pois lhes falta o profundo congelamento em volta, e as moscas já se congregam nas feridas. Esses animais selvagens são muito maiores que o bisão visto por Lubbock em parques de vida selvagem e filmes do Oeste Bravio, antes de iniciar suas viagens; são alguns dos últimos membros da espécie Bison antiquus, que logo se extinguira. Uma vez desaparecidos, as planícies serão pasto de animais menores e de nome menos criativo, Bison bison, o bisãoamericano. O trabalho é feito com grande rapidez. Todos estão ávidos por terminá-lo antes que as moscas ponham ovos e a carne comece a azedar. Grandes lâminas de pedra são usadas para retirar o couro da barriga de cada animal, do rabo até o pescoço. Retiram as entranhas — imensas vísceras entornadas no chão — e deixam-nas para futuros carniceiros, enquanto separam cuidadosamente os órgãos preferidos. Os açougueiros limpam o tempo todo a gordura e sangue da lâmina de seus instrumentos de pedra, passando-os no grosso couro do bisão. Alguns trabalham com os próprios ossos: as patas inferiores, esfoladas e partidas, formando facas de esfolar e estripar tão eficazes quanto qualquer instrumento de pedra. A carne é retirada em longas e finas tiras, que logo pendem da árvore no fim do barranco. Em alguns minutos se formará uma dura película sobre sua superfície, e embora cheguem em hordas, as moscas não conseguem penetrar nessa crosta para pôr seus ovos. Logo a árvore não suporta mais peso e por isso se constroem armações de galhos e pedras. A carnificina continua durante várias horas, enquanto se removem traquéias e línguas, pelves esmagadas, couros parcialmente limpos e dobrados. Lubbock auxilia sempre que pode — ajudando a virar os animais para o outro lado depois que se acaba o trabalho no primeiro, levando a carne para as armações de secagem, atirando pedras nas pegas e corvos ladrões. Ao entardecer, acendem-se fogueiras para deter os animais carniceiros e assar parte da carne. As pessoas vão passara noite no barranco antes de retornar à colônia ao raiar do dia com a pesada carga. Quando desce a escuridão e findo o trabalho, sentam-se em volta da fogueira e revivem a caçada. Os fígados são comidos crus — uma iguaria predileta — igualmente divididos entre todos os presentes, com Lubbock usurpando uma pequena tira. Um homem deixa a fogueira para remexer num monte de entranhas jogadas fora e volta com uma vesícula biliar, que espreme
sobre seu pedaço de fígado, antes de mastigá-lo com prazer. De manhã, os caçadores rumam para o norte, de volta ao assentamento de verão, onde os velhos e os pequenos esperam ansiosos seu bife de bisão. Lubbock dirige-se para o sul, seguindo as planícies até o Colorado. Ali, junta-se a outro grupo de caçadores, e fica com eles enquanto caçam cabritos monteses nas colinas e gamos no meio da floresta. Ratos-calunga e geômios são às vezes capturados em armadilhas, ou desentocados, e plantas comestíveis coletadas — uma seleção meio triste, comparada com a que ele ajudou a colher em Abu Hureyra, Monte Verde e na Amazônia. Mas tocaiando gamos ou moendo sementes, as mentes desses anfitriões desconhecidos nunca se afastam muito do bisão e do planejamento de uma caçada. As lanças são os bens valorizados. As pontas de pedra parecem as mais excelentes que Lubbock já viu, algumas com mais de 15 centímetros de comprimemto e destramente trabalhadas em perfeita simetria com lâminas de gume letal. As hastes são apreciadas — não há macieira apropriada em abundância, e o sucesso de uma caçada depende tanto do arremesso da lança quanto da própria ponta. O encaixe de tendão e resina também é essencial. Precisa ser suficientemente forte para prender a ponta, mas também fina e aerodinâmica para não interferir com a penetração da lança. O segredo é atingir o animal entre as costelas, fazer com que as bordas varem o couro e a haste penetre o suficiente para que os pulmões ou o coração sejam perfurados pela ponta. Numa fração de segundo, os caçadores têm de mirar e lançar com correção e força. Lubbock permanece nas planícies até o fim do outono de 6.500 a.C. Durante esses anos, a vida para os caçadores de bisão torna-se mais dura, e assim continuará por mais dois milênios. Todo ano há menos chuva; vêm secas periódicas que depois se tornam regulares e persistentes. Esse período climático é conhecido na América como Holoceno Médio altitermal, e suas secas foram rigorosas, atingindo todo o sudoeste. Os lençóis d’água reduziram-se muito, ao mesmo tempo que tempestades de poeira passaram a ser freqüentes, causando erosão e o estabelecimento de dunas. Os pântanos da Grande Bacia acabaram secos, enquanto a mudança gradual para deserto acelerava-se e alcançava seu final. Embora sobrevivessem campinas em grande parte das Altas Planícies, a diversidade vegetal entrou em colapso, deixando apenas as espécies mais resistentes. Com pasto mais pobre, o bisão deu à luz bezerros menores e
mais fracos, poucos dos quais sobreviveram até a idade adulta. Os caçadores de bisão de 6.500 a.C. tiveram de cavar poços para chegar ao muito reduzido lençol d'água. Após ajudar nisso, Lubbock assume seu turno nas mós, pois os alimentos vegetais se tornaram essenciais para a sobrevivência. Os homens falam em sair à procura de bisão, embora não mais saibam onde encontrá-los, e muitas vezes simplesmente decidem que o esforço não vale a pena. Com o secar de rios e fontes, os assentamentos ficam presos às poucas fontes de água restantes. A qualidade das pontas de pedra deteriora-se e as pessoas são obrigadas a contar com pedra local de baixa qualidade. As secas acabarão por passar, e a caça ao bisão por retornar; na verdade, continuar até bem avançados os tempos históricos. Mas os solos das planícies serão sempre secos demais e as geadas freqüentes demais para os americanos nativos assentarem-se e cultivarem o milho, abóbora e feijões que vinham disseminando por todo o continente em 2.000 a.C. Vão porém desenvolver novos métodos de caça: manadas de bisão serão tocadas para penhascos; quando não dispuserem mais de quedas naturais, cercas e currais serão construídos como armadilhas animais; arcos e flechas substituirão as lanças. Eles vão queimar imensos tratos de campinas para promover novos rebentos e atrair os bisões. Nada disso ameaçará a sobrevivência das manadas; esse apocalipse só virá depois da chegada dos cavalos ao continente com os europeus. Então, americanos nativos e brancos usarão o cavalo para despejar uma saraivada de balas nas manadas de bisões e chaciná-los aos milhares. O sol se levantou para dar início a um quente dia de outono em 6.000 a.C., e as planícies secas e poeirentas parecem um mundo à parte. De seu assento num penhasco de calcário, Lubbock vê a oeste um rio largo, prateado, de rápida torrente, margeado por pântanos e penhascos íngremes. Além disso, uma densa floresta transitória, suave e dourada, viceja agora que as chuvas voltaram. Embaixo dos penhascos, a íngreme encosta cai para uma depressão coberta de árvores e matagal. No fundo, uma aldeia — cinco choupanas retangulares, com telhados de palha cujos vermelhos e pardos combinam com as folhas e o mato dessa manhã outonal. A fumaça sobe delicadamente da primeira fogueira do dia; um cachorro late, uma criança chora. O rio é o Illinois, e a aldeia Koster, nome tirado de Theodore Koster, o fazendeiro em cujas terras os restos foram encontrados em 1968. Fosse
esse o ano da visita de Lubbock, ele teria estado 80 quilômetros a nordeste de St. Louis e 400 quilômetros a sudoeste de Chicago, vendo abaixo um milharal indistinto dos milhares de outros que pontilhavam as planícies. A escavação começou em 1969, e tornou-se uma das maiores feitas em solo americano. Revelou que as pessoas tinham acampado pela primeira vez na depressão em 8.000 a.C. As sucessivas camadas de solo e detritos humanos identificaram como elas continuaram a morar dentro da depressão por muitos milhares de anos. Com a ajuda de terra trazida pela água das encostas do vale, criaram 10 metros quadrados de depósitos, à medida que construíam vários assentamentos, um em cima do outro. Em 5.000 a.C., estabelecera-se uma aldeia permanente, a partir da qual as pessoas caçavam, coletavam plantas e pescavam sem medo de fome — um Jardim do Éden no meio oeste americano. O dia na antecessora dessa aldeia em 6.000 a.C. começa com as pessoas afastando cortinas de couro e saindo de suas casas. Sentam-se e conversam, fazem chá e comem mingau de sementes moídas e aquecido com pedras em brasa. Algumas vestem túnicas e saias bem cortadas, outras evitam roupas, expondo os corpos esbeltos ao sol matinal. Um velho artrítico senta-se num umbral de porta com a esposa e ali ficará grande parte do dia, fazendo pequenas tarefas que lhe trazem, contando histórias às crianças e jogando paus para os cachorros. As pessoas aos poucos se dispersam para suas tarefas diárias. Um grupo de mulheres e crianças vai para um bosque de figueiras, sabendo que terão uma rica colheita, sendo as nozes de nogueira amarga o mais abundante de seus alimentos no outono. Rapazes partem com lanças para caçar gamos; outros se dirigem para o rio. O trabalho começa na aldeia — há cestos de vime a consertar e remédios a preparar para uma criança doente. Lubbock observa, agora sentado junto à fogueira e feliz por descansar após suas recentes viagens. Uma mulher vem sentar-se junto dele. Pega um nódulo de pedra e coloca-o entre as brasas. Enquanto a pedra se aquece, ela mexe um pequeno vaso de resina e faz cortes num cabo de faca de madeira. Retira a pedra. Com o nódulo quente, segura-o num invólucro de couro e bate, para extrair cinco ou seis finas lascas da pedra agora quebradiça, e as coloca nos cortes, lixando-as com a resina. Afastase, a faca incompleta. Duas lascas jogadas fora continuam junto à fogueira, para ser meticulosamente escavadas, lavadas e rotuladas muitos
milhares de anos depois. O sol começa a pôr-se por trás das colinas a oeste. As coletoras de nozes retornam com cestos pesados, os caçadores de mãos vazias e os do rio com feixes de junco. Estendem-se tapetes de palha e couros macios ao redor da fogueira, e uma ceia comunal é seguida por histórias. Quando a lua desponta e a noite baixa, Lubbock continua sentado e os outros retornam a suas moradas para dormir. A noite trás mariposas às brasas vivas, e morcegos acima. Também trás as estrelas e o frio. Lubbock ouve ratos correndo de um lado para outro no mato. Começa outro dia, quando a fogueira é acesa por um madrugador, e mais uma vez Lubbock observa a vida diária desenrolar-se em Koster, uma das muitas aldeias espalhadas pelos vales do meio oeste. A maioria das pessoas permanece em casa; é dia de descascar e moer nozes, fazer tapetes de palha e cuidar de reparos nos telhados. E então outra noite e outro dia — um dia de chuva torrencial. Durante uma sucessão de crepúsculos e auroras Lubbock continua sentado à beira da fogueira, observando os gravetos estalarem, fruindo o calor de um fogo a rugir, as cinzas frias voando na brisa noturna. Dia a dia ele observa a vida na aldeia e a arqueologia que ela está criando: ferramentas perdidas no mato, lixo jogado em monturos, poços cavados para desviar a chuva. Então começa a geada noturna. À noite, ele se encolhe sob as peles e os couros das mulheres deixados junto à fogueira. Após uma noite gelada, vê um velho ser carregado de seu leito e estendido no mato coberto de geada sob um céu azul. Todos os dias as pessoas vão prestar seus respeitos ao lado do corpo, lembrando que ele lhes ensinou a caçar e o pescar; suas histórias dos "velhos tempos", quando o povo estava sempre na estrada. Nessa noite, enterram-no atrás das cabanas. Dá-se um banquete; cantos, danças e preces de um xamã. Nas sombras, uma velha chora. Chega o inverno, e Lubbock continua sentado junto à fogueira. Agora observa cada família embalar seus pertences e deixar a aldeia. Algumas partem juntas, outras sozinhas — para onde, nem ele nem os futuros arqueólogos podem saber. Mas não se passam invernos em Koster em 6.000 a.C., com exceção de Lubbock, que espera a volta do povo. Eles retornam na primavera; consertam e limpam suas cabanas e iniciam outro ano. Alguns sentam-se junto a Lubbock, e passam muitas horas
tecendo redes de pesca com fibras. Em outro dia, ele vê as mesmas pessoas voltarem do rio, as redes cheias de peixes. No verão, Lubbock escuta seus planos para caçar o gamo de cauda branca; por todo o outono, a aldeia reverbera com o pilar de nozes para fazer farinha, não apenas as amargas, mas também de nogueira comum, bolotas e avelãs. E depois, mais uma vez, o povo parte, e Lubbock fica, para enfrentar outro inverno de geada e neve. Assim continuou após ano, até que, uma primavera, ninguém voltou e a aldeia foi deixada à natureza. Desse modo terminou o que os arqueólogos chamam fase Koster 8. Com o passar dos anos, Lubbock vê as moradas desabarem e suas madeiras apodrecerem. Brotos surgem nos monturos e tornam-se girassóis e sabugueiros, rebentos de nogueira e nogueira amarga. A água da chuva cai em cascatas pelas encostas do vale, trazendo aluvião e sepultando o mato que há muito escondia as ferramentas perdidas, poços de drenagem e os montículos que assinalavam os mortos. Vê a natureza retomar o que antes era dela: a pedra que foi transformada em facas e pontas; a madeira, junco e casca de árvore usados nas casas; os ossos, couros e tripas dos animais destinados a fins humanos e não a apodrecer na terra. Ano a ano a chuva aumenta e o rio explode a margem mais cedo e com força crescente. As enchentes anuais não mais se escoam, e assim criamse lagos no que eram pântanos e prados. Agora Lubbock vê revoadas de gansos, patos e cisnes descobrindo os novos lagos e adotando-os como lar de verão. As águas logo pululam com peixes e mexilhões. E então, numa manhã de primavera, um voz de tom esquisito o faz levar um susto. Após mil anos, as pessoas retornam a Koster. Lubbock decide levantar-se e observar a chegada. Desatola os pés da terra, que lhe chega aos joelhos, acumulada à sua volta enquanto ele pacientemente aguardava esse momento. Mas tudo que vê são dois homens que se aproximam vindos do rio. Eles passam, perguntando-se em voz alta se alguém viveu algum dia naquele oco protegido, tão bem servido por matas, rios e lagos. Na semana seguinte chegam várias famílias. Algumas erguem tendas, e outras começam a derrubar árvores, abrir clareiras e construir suas casas. Em poucos dias, já surgiu o esqueleto de uma nova aldeia, aquela que, para os arqueólogos dos anos 1970, formará as fases Koster 6 e 7. É uma fase diferente, mas pouco difere em natureza, uma vez que as pessoas continuam a viver da caça e da coleta. No verão que se segue, fazse um terraço na encosta e cava-se uma vala para os mourões, pois outras
casas são construídas. Lubbock ajuda firmando as madeiras, que são cobertas de pedras, e com a tessitura de galhos para as paredes. Passa dias com as mulheres à beira do rio, segurando cestos embaixo de cabeças secas de sabugueiro e girassol, sacudidos para soltarem as sementes. Em outros dias, ao nascer do sol, vê-se metido até os joelhos nos novos lagos, pronto para ajudar a lançar redes com pesos sobre patos selvagens e marrecos. Vai à mata e tocaia gamos, fica na aldeia e varre as casas. À noite, pinta o rosto e junta-se ao povo de Koster nos cantos e danças em torno da nova fogueira que arde entre as cabanas. O assentamento é agora maior que antes, pelo menos uma dúzia de cabanas e cem pessoas. Come-se uma gama muito mais ampla de alimentos, gambás e perus juntando-se aos gamos, muitos tipos de peixe e molusco delicadamente cozidos em poços revestidos de barro. A aldeia torna-se muito mais movimentada com os muitos visitantes que chegam de canoa — sendo o rio agora tanto uma auto-estrada quanto um lugar de pesca. Eles trazem artigos para comerciar: cobre dos grandes lagos, conchas marinhas do Golfo do México, sílex de alta qualidade do que será Ohio. Grande parte desse material acaba como braceletes e pingentes, e parece ser usado por poucos, não muitos. Assim, a mudança está em andamento, e rachaduras aparecem no velho igualitarismo. Lubbock lembra-se de suas viagens na Dinamarca mesolítica em data semelhante; como os machados e o grão de cereais dos camponeses tinham ajudado a destruir o antigo estilo de vida dos caçadores-coletores. Em Koster, ele observa outro sinal de mudança social: os mortos não mais são enterrados todos juntos; os que morrem com um belo físico são postos em cemitérios nos promontórios acima dos rios e lagos, e onde o sol bate assim que nasce. A aldeia prospera, e assim continuará até ser finalmente abandonada. Antes dessa data, por volta de 1.000 a.C., se tornará uma aldeia de camponeses que usam um novíssimo conjunto de plantas domesticadas: os descendentes do sabugueiro do pântano, girassol e anserina que Lubbock ajudou a colher. Mais tarde ainda, os do vales de Illinois finalmente adotarão as formas cultivadas originadas muito tempo atrás no centro do México: abóbora, milho e feijão — embora a abóbora possa ter sido independentemente domesticada no próprio leste dos Estados Unidos. Os cestos de trama cerrada serão substituídos por vasos de barro, as pontas-de-lança desprezadas pelas de flecha, e se construirão grandes
montes funerários para chefes que reivindicam o poder por direito de nascença. Mas só depois da chegada dos europeus ao continente as florestas serão abatidas e o meio oeste começará sua transformação no grande cinturão de milho dos Estados Unidos. Tais fatos estão muito além do âmbito desta história. O último dia de Lubbock em Koster passa-se em 5.000 a.C. Pela manhã, ele caça gamo e colhe cogumelos; ao meio-dia, sobe a um penhasco de calcário onde se sentou ao chegar pela primeira vez a Koster e dá a última olhada à aldeia. Mais tarde nesse dia, segue dois mercadores até a canoa deles. Os homens carregam os couros e peles recém-adquiridos e partem, remando para o norte, rumo à sua terra na margem do que se tornará o lago Michigan.
32 A Pesca do Salmão e a Dádiva da História Complexos caçadores-coletores da costa noroeste, 6.000 – 5.000 a.C. A viagem de John Lubbock como clandestino na canoa pelo rio Illinois inicia o fim de suas andanças pela história americana. Após vários dias, ele alcança o assentamento dos mercadores no extremo sul do que é hoje o lago Michigan. Parece ser um lugar de fabricação e troca, com pessoas vindo de todos os lados, e onde a população logo estará se expandindo rápido demais para que se mantenha a ética de igualdade e partilha dos caçadores-coletores. Sentado na beira do lago numa tarde de verão, Lubbock tem diante de si uma cena tranqüila: céus sem nuvens e água parada, crianças chapinhando e o cheiro de fumaça de cabanas espalhadas pela margem. Não foi sempre assim, nem assim permanecerá. No LGM, esse local foi coberto por denso gelo, a margem sul da camada de gelo laurentina. Nos milênios que se seguiram, foi inundado pelos vastos lagos de água derretida, sujeito a rios torrenciais, transformado em tundra, açoitado por ventos violentos, colonizado por pinheiros e espruces, antes de ser descoberto pelos primeiros americanos. Mas talvez tudo isso não tenha sido nada em comparação com o futuro que aguarda o local. Vai tornar-se Chicago; as canoas e as cabanas de arbustos são os arautos de trens a vapor e arranha-céus. Lubbock, porém, tem de voltar à costa oeste, ao oceano Pacífico, ao lado de cujos extremos mais ao sul sentou-se um dia quando estava no Peru. E assim embarca em outra enorme viagem. Começa a pé até chegar ao Mississipi, e depois continua de canoa para o norte, entre muitas aldeias ribeirinhas, rumo aos vastos sertões canadenses, que continuarão, pouco mudados, até os tempos modernos. Nessa terra de lagos, rios e densas florestas, Lubbock encontra pessoas vivendo em pequenos grupos móveis, pouco diferentes do há muito desaparecido povo Clovis. Eles caçam caribus e alces, fazem armadilhas para castores e ratos almiscarados, e deixam poucos traços para os arqueólogos encontrarem. Lubbock dirige-se para o oeste, acabando por deixar as matas e atravessar
a extensão mais ao norte das Grandes Planícies. Os bisões ainda são caçados e ele passa perto do que se tornará um famoso penhasco de massacre conhecido, apropriadamente, como "Cabeça-Esmagada". Após as planícies, Lubbock cruza as Montanhas Rochosas e depois as montanhas canadenses. Atravessa o rio Fraser, seguido por um planalto de altas cristas e prados onde ele vê a caça à cabra e ao carneiro monteses. Desce um vale de íngremes gargantas e desfiladeiros, os topos cobertos de florestas de pinheiro. O rio alterna-se entre curvas vagarosas e corredeiras turbulentas. Nos dias chuvosos de inverno, Lubbock segue um caminho bem batido entre densos fetos e sob altas coníferas, até onde o rio desemboca no mar. As águas são rasas e abrigadas por uma cadeia de ilhas. É o Pacífico. Lubbock senta-se exausto após os 3.500 quilômetros de sua jornada desde Koster. A terra além do rio Fraser é conhecida pelos arqueólogos como Cascadia. Inclui os modernos estados de Washington e da Columbia Britânica, e estende-se do sul do Alasca até o norte da Califórnia. Seu litoral no Pacífico é cortado por profundos fiordes, sinuosas passagens marinhas e muitas ilhas ao largo. É varada por uma série de grandes rios — Columbia, Klamath, Skeena, Stikine e o próprio Fraser — e uma multidão de riachos menores. Cascadia é um lugar final adequado para a jornada americana de Lubbock, pois é onde se desenvolverão as mais complexas sociedades de caçadores-coletores dos Estados Unidos, e com toda probabilidade de toda a história do mundo. Quando os europeus encontraram os americanos nativos da costa noroeste em fins do século XV11I, descobriram pessoas bastante diferentes de quaisquer outras que tinham encontrado antes. Isso não se devia às suas casas com estrutura de madeira e assentamentos com mais de mil habitantes. Tampouco a terem encontrado aristocracias, homens livres e escravos, e grandes chefes que contratavam artistas para esculpir e pintar as fachadas de suas casas e seus totens, à maneira dos mecenas do Renascimento. Também não era porque as pessoas tinham idéias de propriedade de terra e entregavam-se a festas teatrais, durante as quais imensas quantidades de comida e materiais eram distribuídas como meio de demonstrar riqueza e status. Tais casas, cidades, obras de arte e costumes não teriam sido surpresa se eles estivessem cultivando milho e criando gado. Mas as pessoas da costa noroeste eram caçadores-coletores. Mais exatamente, pescadores: suas
complexas culturas se baseavam na coleta de salmão. O nível do Pacífico Norte se estabilizara por volta de 6 mil anos atrás, após milênios de subidas e descidas, à medida que o impacto das águas derretidas das geleiras era contrabalançado pelo retorno da terra liberta de seu fardo de gelo. Vastos cardumes de salmão começaram a nadar com infalível regularidade pelos grandes rios do noroeste acima para reproduzir-se e morrer. Todo ano, os pescadores estavam prontos; com anzóis e linhas, ancinhos, redes, porretes, arpões e armadilhas, colhiam os peixes exatamente como um camponês colhe o milho. Tais colheitas só tinham valor se o produto pudesse ser armazenado. Os peixes eram cortados em fatias e colocados em grades para secar ao sol e ao vento; outros eram suspensos de tetos e preservados na fumaça das fogueiras da casa. Cascadia tinha uma abundância de recursos, portanto o salmão não era a única comida; também se pegavam muitos outros tipos de peixe. As pessoas caçavam focas e leões-marinhos, gamos, alces e ursos; colhiam bagas, bolotas e avelãs. Na verdade, talvez fosse a imensa diversidade de comidas à disposição, e não a superabundância do salmão, a chave do seu sucesso. Com alimentos selvagens tão ilimitados, os americanos nativos de Cascadia viviam em aldeias permanentes, contando com seus suprimentos armazenados durante os períodos magros do ano. Podiam dar-se ao luxo de manter artesãos especializados e dedicar-se ao comércio. As populações cresceram, não inibidas pelas restrições habituais aos números dos caçadores-coletores: a necessidade de seguir em frente e a periódica escassez de alimentos. Dificilmente surpreende que, em meio a tal riqueza, surgissem chefes que faziam guerra aos vizinhos. Esses "caçadores complexos", como os chamam os arqueólogos, apareceram primeiro por volta de 500 a.C. Mas quando Lubbock chega à costa noroeste em 5.000 a.C., a base para o surgimento deles já está sendo deitada. Depois de haver descansado, ele explora o promontório na boca do rio que o trouxe pelos desfiladeiros e florestas. Nota conchas de ostra e alguns ossos de animais espalhados, em parte enterrados pela areia e o mato. Entre eles, há alguns seixos quebrados e lascas de pedra; descobre que alguns foram lascados em pequenas pontas. Próximos, os restos do que foram um dia cabanas de arbustos: umas poucas estacas no chão, alguns galhos trançados, pedaços de couro ainda amarrados a estruturas, mas pendurados em estado desordenado. Lubbock pega duas das estacas
mais grossas, um pouco dos galhos trançados, colhe novos arbustos e faz um abrigo para si. O barulho de vozes interrompe seu trabalho. Voltando-se, descobre meia dúzia de pessoas, duas famílias, inspecionando as cabanas desabadas exatamente como ele fez algumas horas antes. Elas puxam fragmentos de couro e frangalhos de parede, firmam as estacas instáveis com pedras e começam a reconstruir. Alguns vão até a margem e voltam em menos de uma hora trazendo moluscos. Uma vez comidos, as conchas são jogadas em cima das já em parte enterradas embaixo do mato — bem junto do pequeno abrigo que Lubbock se apressa a concluir, pois nuvens de tempestade se avolumam no céu do anoitecer. Por todo o dia seguinte chegam famílias, todas cumprimentando-se umas às outras após um verão passado espalhadas pela costa e as matas. Logo uma aldeia de cabanas de arbustos abriga pelo menos cem pessoas. O monte de lixo se acumula e Lubbock vê-se cercado não apenas de conchas de ostra e mexilhão, mas dos restos de gamo e toninha esquartejados. O cozido de peixe indesejado é despejado no monturo; as pessoas usam-no como privada. Às vezes acende-se uma fogueira para matar os vermes e deter os bichos necrófagos; a cabana de Lubbock é envolta em fumaça e no fedor de comida podre e detritos humanos. As pessoas atarefam-se preparando-se para a subida do salmão. Em alguns dias, Lubbock deixa-as e explora a mata. Busca gamo e rato almiscarado entre os pinheiros, abetos e espruces. Encontra pequenos cedros vermelhos, árvores colonizando as matas cujos enormes descendentes serão valiosos pela madeira quando as pessoas começarem a construir casas, canoas e totens. Em outros dias, Lubbock senta-se entre os pescadores que fazem arpões e lanças, preparam facas de pedra e usam galhos para montar grades de secagem. Toda noite contam-se histórias, muitas histórias sobre os espíritos da mata e do mar. Chega o salmão, inicialmente dois e três, e depois em grandes cardumes forçados a nadar rio acima. Os pescadores estão prontos — homens e mulheres, jovens e velhos, todos armados com lanças e arpões, de pé dentro do rio com água pelos tornozelos ou joelhos. Dentro de poucos dias, a corrida do salmão já acabou; centenas foram mortos, mas milhares passaram incólumes. As grades estão cobertas de fatias a secar ao sol de outono. Algumas famílias pegam seu quinhão e partem, mas a maioria fica. Logo
o arenque se tornará abundante no estuário, e enquanto esperam eles têm bastante salmão para comer. Chove na maioria dos dias; os velhos e jovens sofrem com as roupas do corpo e da cama sempre úmidas; uma velha morrerá e será sepultada numa cova rasa atrás do monturo. Visitantes chegarão e trocarão obsidiana por peixe seco. Na primavera, as famílias seguirão caminhos separados, planejando voltar no outono seguinte, quando os salmões mais uma vez nadarão por suas vidas. Enquanto isso, os abrigos desabarão e o lixo será levemente enterrado na areia soprada pelo vento. Quando a chuva é torrencial, Lubbock abriga-se dentro de sua instável morada e lê Tempos pré-históricos. Lá pelo fim, seu xará escreve sobre os índios americanos como mais um exemplo de selvagens modernos. O Lubbock vitoriano obteve sua informação em grande parte de uma publicação de 1853, de um certo Sr. Schoolcraft, intitulada History, Conditions and Prospects of the Indian Tribes [História, condições e perspectivas das tribos índias]. O tom era bastante diferente dos trechos constantemente abusivos sobre as tribos da Terra do Fogo; a maior parte era uma descrição relativamente desapaixonada das roupas, equipamentos, caça, pesca e práticas agrícolas de vários grupos por todo o continente. O monturo de lixo em volta da cabana de Lubbock tornou-se o sítio arqueológico de Namu, nome do rio em cuja boca se localiza, na costa da Colúmbia Britânica. Quando Roy Carlson, da Universidade Simon Fraser, o escavou em 1977-1978, descobriu que começara a acumular-se em 9.500 a.C., e assim continuara por 8 mil anos. Inicialmente, o lixo fora jogado durante breves visitas à boca do rio, restos de uma variedade de peixes, pássaros, moluscos e animais. Ferramentas quebradas e detritos de sua fabricação também tinham sido deixados no monturo, incluindo microlitos. Logo após 6.000 a.C. ocorre uma mudança na composição do monturo, quando os ossos de salmão de repente esmagam todos os outros. Isso indica o início das corridas do salmão. Os instrumentos jogados fora também mudam: não há mais microlitos, mas números crescentes de pontas de pedra. Aparecem fragmentos de obsidiana, sugerindo que começaram o comércio e a troca, mas além de alguns buracos de estaca, não há sinal de casas. Provavelmente, eram demasiado frágeis para deixar muitos traços, indicando que embora a corrida do salmão em Namu fosse
produtiva, não era de tamanho suficiente para permitir a ocupação o ano todo. Namu é apenas um dos muitos monturos de conchas ao longo da costa noroeste que foram se acumulando no Holoceno Inicial. Revelam como as pessoas começaram a se especializar em salmão enquanto continuavam a explorar a imensa diversidade de outras fontes. Durante as próximas centenas de anos se aplicaram até que uma nova tecnologia foi inventada para pescá-los em maior número. A demanda por comida aumentava em função de uma crescente população. Alguns povos aproveitaram a oportunidade e melhoraram a pesca; outros desagregaram e começaram a brigar. Sentado no promontório, Lubbock vê do outro lado do que se tornará o Estreito de Fitzhugh um cordão de ilhas. As praias brancas brilham à luz do sol do entardecer; a água parada e quebrada por uma canoa solitária que atravessa do continente para a margem de uma ilha. Poucos milhares de anos atrás, uma canoa era inteiramente desnecessária. As pessoas poderiam ir a pé a essas ilhas como se fossem colinas dentro de uma larga planície costeira. O primeiro passo humano em solo americano pode ter ocorrido nessa planície, um pé que poderia ter saltado de um barco que cruzara as águas geladas do Pacífico Norte vindo da margem asiática. Esse foi o início da história americana. Era uma época em que nenhum ser humano jamais tenha subido as Rochosas, navegado de canoa pelo Amazonas nem se aventurado na Tierra del Fuego. Mas agora, em 5.000 a.C., pessoas vivem desde o extremo norte até o extremo sul do continente, a maioria da caça e coleta, algumas da agricultura. Deram-lhe uma história, mas tomaram sua natureza em troca. Seus ancestrais Clovis podem ter ajudado na extinção do mamute e da preguiça do chão; seus ancestrais arcaicos criaram novas variedades de abóbora e mais. Mas as pessoas de Namu — nem grandes caçadores de caça graúda nem camponeses — fizeram muito mais; apropriaram-se de toda a natureza para si. Para eles, o urso e o corvo já não são meros animais; os picos de montanhas e rios são muito mais que produtos da geologia; as estações não mais vêm e vão porque a terra orbita em torno do sol; e a noite não segue o dia porque o planeta gira. A poucos metros, uma fogueira arde e vozes cantam. As pessoas de Namu agradecem aos espíritos que criaram as montanhas e rios, e que visitam o mundo delas como o urso. Lembram que o corvo chegou à sua terra e
encontrou-a fria e vazia de gente, mas com uma abundante quantidade de caça. Cantam para que o sol se levante e a primavera venha. Lubbock levanta-se, volta-se e dirige-se para a fogueira. Senta-se e ajuda a chamar a nova aurora com o canto.
A GRANDE AUSTRÁLIA E O LESTE ASIÁTICO
33 Revelação de um Novo Mundo Caçadores-coletores tasmanianos, 20.000 – 6.000 a.C A luz do dia entra por um poço, ilumina reluzentes rostos pardos e faz cristais de quartzo luzirem quando os seixos são divididos. Pele de canguru, envolvendo corpos humanos, brilham quando mãos musculosas trabalham a pedra. Mais adiante, há luz mais forte — a entrada da caverna, que traz um vento gelado e por isso as pessoas se sentam e trabalham num canto abrigado, semi-iluminado. John Lubbock adianta-se do escuro e profundo recesso da caverna. Treme de frio, mas está pronto para iniciar sua jornada pela pré-história australiana. No LGM, a Austrália era um continente de caçadores-coletores, e assim permaneceu até 1788, ano do primeiro assentamento europeu. Pelo menos 250 mil aborígines viviam em sua massa de terra sul, distribuídas entre as florestas tropicais do norte e a beira das águas da Antártida no sul. Os estilos de vida eram variados. No árido interior, os aborígines viviam em baixas densidades, com poucas posses, e cobriam vastas distâncias durante suas atividades de busca de comida; nos vales fluviais do fértil sul, havia aldeias quase permanentes com cabanas de madeira, as paredes rebocadas de barro e construídas sobre fundações de pedra. Como era de prever, as primeiras histórias dos australianos nativos são muitas vezes pouco mais que tratados racistas de descarte. Os antropólogos, porém, logo começaram a valorizar a complexidade da sociedade aborígine. Registraram-se pelo menos duzentas línguas distintas; documentaram-se extensas redes de comércio nas quais viajavam alimentos, machados, lajes de moagem e ocre; o mitológico mundo do Tempo do Sonho, no qual seres ancestrais criaram a paisagem e continuaram a intervir nos assuntos humanos, foi em parte revelado. Descobriu-se que o que pareciam ser simples descrições de animais, pessoas e sinais tinham significados complexos, muitas vezes relacionados com seres ancestrais. Revisaram-se as suposições iniciais de uma existência da mão para a boca e vale tudo, quando se compreendeu a sofisticação da caça e coleta dos
aborígines. Descobriu-se que eles tinham um profundo conhecimento da distribuição das plantas e do comportamento animal; podiam adaptar-se a condições em constante mudança, muitas vezes adotando estilos de vida radicalmente diferentes em estações úmidas e secas, segundo a gama de recursos existentes. Embora fossem todos caçadores coletores, muitos administravam suas paisagens e reservas de alimentos com a queima controlada da vegetação. Reconhecer a complexidade da sociedade aborígine foi a primeira de duas mudanças nas opiniões européias sobre os nativos australianos. A segunda foi compreender que aquelas pessoas não eram viúvas atemporais de uma sociedade humana original, um povo sem história. Suas sociedades eram tão produto da história quanto as dos colonizadores europeus. O início da história deles — a data em que a Austrália foi colonizada pela primeira vez — foi aos poucos recuado no tempo, de um cálculo inicial de 10.000 a.C. a 35.000 a.C., nos anos 1980, para quase 60 mil anos atrás hoje. John Lubbock viajou à Austrália para explorar parte dessa história: os fatos da sociedade aborígine entre 20.000 e 50.000 a.C., entre a época do LGM e o pico das condições quentes e úmidas que chegaram com o Holoceno. Embora fosse o surto de aquecimento global em 9.600 a.C., que teve o maior impacto sobre as pessoas da Europa e do oeste asiático, só lá para o fim desse período ocorreram as mudanças mais fundamentais nas sociedades aborígines. Além disso, enquanto as pessoas em todos os demais continentes já haviam adotado a agricultura em 5.000 a.C., por invenções indígenas ou disseminação de idéias e povos, todos os aborígines australianos continuaram como caçadores-coletores — embora com estilos de vida inteiramente diferentes daqueles de seus antepassados do Pleistoceno. A data da chegada de Lubbock é 18.000 a.C.; o continente continua como "Grande Austrália" — uma massa de terra contínua que vai da Tasmânia no sul até a Nova Guiné no norte. Enquanto ele atravessa o continente e o tempo, o nível do mar, mais de 100 metros mais baixo que hoje, subirá, as temperaturas e chuvas aumentarão, contrastes sazonais no clima se tornarão acentuados. Os encontros de Lubbock com aborígines pré-históricos dependerão da interpretação de um esparso registro arqueológico. Em comparação com outros continentes, há relativamente poucos sítios arqueológicos do Pleistoceno, e muitos deles não consistem de nada mais que umas poucas
lascas de pedra. Por conseguinte, é difícil resistir ao impulso de aproveitar as versões históricas dos aborígines quando tentamos traduzir tais artefatos mudos em vidas humanas. Nisso está o risco de simplesmente escrever o presente aborígine no passado distante e não reconhecer como a sociedade deles mudou com o tempo. E um risco que não pode ser inteiramente evitado quando Lubbock se senta no chão da caverna e espia por cima dos ombros mãos da era do gelo trabalhando. Ele entrou no que se conhece hoje como Caverna Kutikina; devido ao seu tamanho e localização, é um lugar favorecido pelos aborígines tasmanianos de 18.000 a.C. Mesmo assim, eles só ficarão algumas semanas, preferindo manter-se em movimento a esgotar os animais e plantas em torno de cada um desses acampamentos transitórios. Os que se acham dentro da caverna esperam o retorno do grupo de caça. Lubbock vê acender-se uma fogueira em outro dos cantos abrigados, onde qualquer fumaça se dispersará por uma segunda entrada, muito menor. Com seu novo conjunto de facas e facões de pedra completo, o grupo muda-se e senta-se em torno desta última fogueira. Lubbock junta-se a eles, tendo um vislumbre da vista do outro lado do vale adiante. Duas notáveis realizações permitem-lhe sentar-se com esses caçadores da era do gelo, a não mais de mil quilômetros do mar de gelo do oceano Antártico. A primeira foi a dos próprios australianos da era do gelo. Após terem chegado ao extremo norte da Austrália por volta de 60 mil anos atrás, numa viagem de ilha em ilha do sudeste asiático que envolveu travessias marítimas de pelo menos 100 quilômetros, geração após geração continuaram espalhando-se para o sul e acabaram moldando um novo estilo de vida em torno da caça ao pequeno canguru na Tasmânia, como os habitantes mais ao sul do mundo na era do gelo. A segunda realização foi a dos arqueólogos australianos que descobriram e começaram a reconstituir esse mundo tasmaniano da era do gelo há não mais de duas décadas. Hoje os vales do sudoeste da Tasmânia são desabitados. Cobertos por uma densa e quase impenetrável floresta tropical temperada, com rios traiçoeiros de rápida correnteza, são um dos últimos grandes sertões do planeta Terra. E assim, quando Rhys Jones, da Universidade Nacional da Austrália, observou artefatos de pedra incrustados nas margens do rio Denison, ali de janeiro de 1981, e descreveu-os como "uma descoberta muito importante", pôde ser acusado, justificadamente, de não fazer uma
descrição completa. Os artefatos específicos revelaram não ter mais de 100 mil anos; mas sua descoberta foi muitíssimo importante. Poucas semanas depois, Rhys Jones e seu colega, Don Ranson, visitaram a Caverna Kutikina com Kevin Kiernan, geomorfologista da Universidade da Tasmânia. Depois de viajarem por rios durante 10 horas, às vezes tendo de carregar o barco para transpor corredeiras e vadear com água gelada pela cintura, transpuseram com esforço a densa vegetação e espremeram-se entre as árvores que hoje escondem a entrada da caverna. Quando acenderam uma lâmpada, Rhys Jones viu-se dentro de uma imensa caverna de brilhantes paredes brancas a refletirem a luz do sibilante lampião: O chão era de barro friável cor de laranjal, que se erguia em bordas de 70 cm de altura em três lados... Projetados da face ligeiramente erosada e espalhados em torno da base, havia centenas de instrumentos de pedra e fragmentos queimados de ossos de animais. Densas camadas de carvão, alternando-se com barro vermelho queimado, documentavam uma série de antigas fogueiras. Além de uma das bordas, uma vala fora cortada pela água, um trecho de dois metros através do qual surgiam claramente fragmentos de crânio de cangurus pequenos, ossos de queixadas e membros empilhados alto uns em cima dos outros... Naquela noite, cozinhamos nossa comida no abrigo da caverna e estendemos nossos sacos de dormir em duro calcário numa alcova seca no fundo da câmara principal. Mais tarde, íamos ficar sabendo que éramos as primeiras pessoas a dormir ali em mais de 13 mil anos. Jones e seus colegas escavaram menos de um metro cúbico de depósito e recuperaram uns estonteantes 250 mil ossos de animais e cerca de 40 mil instrumentos de pedra, depois datados de cerca de 15.000 a.C., e carvão de uma camada de lixo abaixo, de 20.000 a.C. Assim, revelou-se que as hoje desabitadas florestas do sul da Tasmânia foram um dia terra de caçadores-coletores. A descoberta na Caverna Kutikina iniciou duas décadas de pesquisa nas florestas tropicais da Tasmânia. Chefiadas por Jim Allen e Richard Cosgrove, da Universidade La Trobe, muitas temporadas foram passadas em árduas condições, enquanto sítios arqueológicos eram escavados e produziram um espantoso registro de vida da era do gelo. A data dos primeiros tasmanianos foi recuada para 35 mil anos atrás, e seu repertório expandiu-se de artefatos de pedra para incluir ótimas pontas-de-lança
feitas com osso de wallaby e facas de vidro natural. Fragmentos de ocre na Caverna Kutikina tinham sugerido arte, e esta foi descoberta em janeiro de 1986: viu-se à luz de lanterna um painel de 16 impressões de mãos, de pelo menos cinco indivíduos, nos fundos recessos da Caverna Ballawinne, no vale do rio Maxwell. Triturara-se óxido de ferro, que fora misturado com água e espalhado em mãos postas espalmadas contra a parede. No ano seguinte, descobriram-se outras impressões de mãos na Caverna Wargata, 85 quilômetros a sudeste. Adultos e crianças, usando sangue humano como um dos pigmentos, tinham deixado as marcas. No início dos anos 1990, Rhys Jones pôde comparar a arqueologia do sul da Tasmânia na era do gelo com a do sudoeste da França — Ballawinne e Wargata sendo as Lascaux e Altamira do hemisfério sul. Trata-se de uma comparação generosa, para dizer o mínimo. Embora a Tasmânia tenha sítios arqueológicos da era do gelo onde se encontraram instrumentos de pedra, ossos de animais e arte rupestre, quaisquer semelhanças com os caçadores de renas de latitudes do norte são bastante tênues. Seja como for, deve-se examinar a arqueologia de cada região em seus próprios termos — os dias em que a Europa da era do gelo proporcionava o "padrão ouro" pelo qual se medr a arqueologia de outras regiões deviam ter acabado muito tempo atrás. De maior interesse é o detalhado trabalho feito por Allen, Cosgrove e seus colegas sobre os artefatos e ossos escavados das cavernas tasmanianas. O estudo que eles fizeram da caça do wallaby [pequenos cangurus do grupo Macropus] é de particular interesse. Exigiu uma reconstituição da paisagem da era do gelo a partir de indícios do pólen, um estudo da moderna ecologia do wallaby e a análise de muitos milhares de ossos escavados. Parece que os caçadores da era do gelo viveram nos vales durante o inverno, primavera e início do verão. Utilizavam uma área escolhida de matagal até os wallabies se tornarem tão escassos que justificassem a caça mais adiante; passavam então para outras áreas, talvez usando uma nova caverna como base. Embora se pegassem às vezes outros animais, os wallabies eram o alvo especial, provavelmente sendo tocados em direção aos caçadores com lanças à espera, em emboscada. Devido à raridade de ossos de patas dentro das cavernas, Cosgrove e Allen ficaram sabendo que os wallabies eram em parte esquartejados nos
locais das matanças — só as partes mais carnosas das carcaças levadas. Examinando a maneira como os ossos dos membros eram quebrados, souberam que se comia o tutano dos wallabies, além da carne. Em algumas ocasiões, o cardápio incluía os miolos. No final do verão, os caçadores deixavam os vales pelos planaltos, onde alimentos vegetais aparecem com mais destaque em sua dieta. Em 18.000 a.C., John Lubbock observa caçadores que voltam à Caverna Kutikina com uma posta de carne de wallaby. Os ossos das pernas dos animais maiores são separados para transformar-se em pontas-de-lança. A maioria dos outros ossos é aberta para tirar-se o tutano; até os ossos dos dedos dos pés são rachados pelo petisco lá dentro. Joga-se o lixo num canto da caverna, junto com ferramentas cegas e engorduradas. As pessoas dispersam-se para diferentes partes da caverna — algumas vão dormir, levando cinzas da fogueira para espalhar no chão e manter os filhos aquecidos, e outras vão transformar os ossos em pontas elegantes. Lubbock senta-se junto à fogueira na entrada da caverna. Com luz suficiente para ler, abre Tempos pré-históricos para descobrir o que seu xará vitoriano sabia e pensava dos aborígines tasmanianos em 1865. Num curto trecho, citam-se duas "autoridades". Segundo o Capitão Cook, que visitou a "Terra de van Dieman", como foi conhecida originalmente a Tasmânia, em sua terceira viagem entre 1776 e 1779, os aborígines não tinham "casas, roupas, canoas, instrumento para pegar peixes grandes, redes nem anzóis; viviam de mexilhões, amêijoas e litorinas, e sua única arma era uma vara reta afiada numa das pontas". Viria coisa pior ainda. O John Lubbock vitoriano citava o Reverendo T. Dove, que escrevera no Tasmanian Journal of Natural Science que os tasmanianos se "distinguiam pela ausência de todas as opiniões e impressões morais. Toda idéia sobre nossa origem e destino como seres racionais parece ter sido apagada de seus peitos". Lubbock olha os tasmanianos da Caverna Kutikina dormindo sob suas grossas mantas de pele, após terem partilhado a carne de wallaby, cuidado dos filhos e acabado de fazer novos instrumentos. Bastante moralidade, mas nem uma amêijoa ou litorina à vista. O grupo pensa permanecer na caverna Kutikina nos próximos dias seguintes; eles viram vários grupos de wallabies pastando nos matagais dos fundos do vale e nos arbustos das cristas entre eles. No dia seguinte, Lubbok acompanha três homens numa jornada de 23 quilômetros pelo vale do rio Franklin, e depois um dos seus
tributários, até o que é hoje a Cratera de Darwin. A rota segue caminhos bastante trilhados, no meio do mato à altura dos joelhos e capões de árvores enfezadas em cantos abrigados do vale. As encostas mais altas estão cobertas de arbustos, e vêem-se pequenas geleiras nos platôs. Embora os companheiros de Lubbock não cacem, ainda assim examinam cada rastro de animal e muitas das folhas, para ver onde os cangurus pequenos andaram se alimentando. Também podem dizer onde os animais dormiram e o tamanho do rebanho. A Cratera de Darwin é de fato uma cratera — um buraco de um quilômetro de largura e 200 metros de profundidade, criado pelo choque de um meteorito 700 mil anos atrás. Os companheiros de Lubbock sobem até a borda e passam uma hora colhendo nódulos de vidro — núcleos de rocha de silício derretida pelo impacto. O vidro é precioso, e será usado para fazer pontas e facas afiadas. Será comerciado com pessoas que vivem mais ao sul, para que um dia os arqueólogos encontrem pontas de vidro a mais de 100 quilômetros de sua fonte. Lubbock deixa os companheiros e entra nas baixadas batidas pelo vento do norte da Tasmânia, paisagem interrompida por esporádicas colinas e cristas. Em 15.000 a.C., abriga-se numa caverna sobre um afloramento rochoso, perturbando duas corujas no ninho com sua chegada. Ossos roídos espalhados mostram que um carnívoro, talvez um demônio tasmaniano, usou recentemente a caverna. Pode ter vindo catar comida nos detritos deixados por ocupantes, pois cinzas e pedras queimadas também se espalham pelo chão. Da entrada da caverna, Lubbock olha uma vasta planície coberta de mato. A norte, leste e oeste, o mar já começou a infiltrar-se na planície; acabará por cercar o afloramento rochoso e transformá-lo na ilha Hunter de hoje. O abrigo em terra de Lubbock se tornará uma gruta marinha, açoitado pelas águas e ventos violentos do estreito de Bass, que separará a Tasmânia do continente, e uma cultura aborígine de outra. A Caverna da Baía da Caverna, como é conhecida hoje, fica agora seis quilômetros ao largo da costa norte da Tasmânia. Seu auge de ocupação humana foi nos dois milênios anteriores ao LGM, quando caçadores de visita acendiam fogueira e deixavam atrás os seus detritos. Caçavam wallabies, marsupiais de toca e nesóquias nos matagais em volta. Quando chegou o LGM, as paisagens em torno da caverna ficaram pobres demais em alimentos animais e vegetais para sustentar ocupantes humanos. Os
constantes congelamentos e descongelamentos da água nas fendas da caverna desestabilizaram seu teto, criando avalanches que sepultaram todos os detritos humanos pré-LGM. Quando as extremas condições da era do gelo começaram a abrandar-se, a caverna foi usada apenas numa ocasião antes de ser cercada pelo mar. Foi em 15.000 a.C., quando se fez uma única fogueira, acesa por caçadores que exploravam o que se tornara uma terra desconhecida. Esses caçadores foram mais ao norte e sepultaram um de seus mortos numa caverna entre colinas que acabaria por tornar-se a ilha King, hoje 100 quilômetros ao sul da costa australiana. Os arqueólogos descobriram o túmulo e examinaram os restos de esqueleto depois que o Centro Aborígine da Tasmânia lhes concedeu permissão para fazê-lo. O morto fora um homem entre 25 e 35 anos, cujos ossos foram enfeixados e cobertos com pedras irregulares, formando um montículo dentro da caverna. Encontraram-se pequenos torrões de ocre entre os ossos. Podem ter sido artigos de decoração corporal semelhantes aos usados pelos tasmanianos quando os europeus os encontraram pela primeira vez. O físico desse homem era revelador: tinha ossos curtos e robustos, que lhe davam uma aparência atarracada semelhante à das pessoas modernas que vivem em paisagens frias, como os inuit do extremo norte. Esse físico serve para conservar o calor do corpo, minimizando a área de superfície. As primeiras pessoas a viverem na Tasmânia há 35 mil anos devem ter parecido inteiramente diferentes — altas e esguias, como convém aos que vivem em ambientes tropicais. A mudança em estatura foi sem dúvida conseqüência da vida em condições glaciais dessa terra do sul. Da Caverna da Baía da Caverna, Lubbock dirige-se para noroeste, atravessando a planície norte da Tasmânia até encontrar o mar vindo na direção oposta. Grande parte da planície já foi inundada, mas levará outros 3 mil anos, pelo menos, para separar a Tasmânia do continente australiano. Lubbock segue a linha costeira para a leste e depois para norte, cruzando o istmo de 2 quilômetros de largura que leva às colinas e logo se tornarão a costa sul da Austrália. O nível crescente do mar transformou a vida de muitos habitantes do litoral na Austrália da era do gelo. Mas para os dos vales do sul da Tasmânia, foram as crescentes chuva e temperatura que ameaçaram seu estilo de vida e acabaram por levar à sua morte. Cada geração de
caçadores que usaram a Caverna Kutikina foi achando o vale menos atraente que a última. A invasão das árvores e a subida dos rios tornaram mais difíceis o trânsito e a observação da caça. Ano a ano surgiam novos brotos de bétula e pinheiro, e os já existentes tinham um crescimento extraordinário. Entre as árvores, brotava um cerrado mato baixo. Os rebanhos de cangurus wallabies dividiram-se em grupos pequenos e espalhados, que se apegavam a tratos de matagal sobreviventes; o número deles desabou com o domínio da floresta tropical. Uma nova fauna de habitantes das árvores começou a prosperar: alguns animais de nome conhecidos como o camundongo de cauda longa e o gambá de cauda enrolada, junto com criaturas mais exóticas como o pandemelão e o quoll de cauda pintada. Logo depois de 15.500 a.C., a Caverna Kutikina foi inteiramente abandonada; era a mais baixa e a primeira a sair da ronda sazonal dos caçadores de wallaby. Dentro de mais algumas gerações, a floresta tropical já se espalhara para terreno mais elevado e todas as cavernas do sudoeste tinham sido abandonadas e logo foram esquecidas. Umas poucas no sudoeste da Tasmânia escaparam ao estrangulamento da floresta tropical e continuaram a ser usadas por mais alguns milhares de anos. Dificilmente há algum sítio arqueológico na Tasmânia entre 10.000 e 6.000 a.C. Para onde foram as pessoas? Talvez os números tivessem declinado por baixa taxa de natalidade ou migração para o norte, cruzando os restos do istmo para a Austrália. Ou talvez não tenha tido declínio de população e os arqueólogos ainda precisem fazer mais descobertas. Os sítios arqueológicos que datam de depois de 6.000 a.C. são relativamente abundantes e falam-nos de um estilo de vida completamente novo dos tasmanianos: os descendentes dos habitantes da floresta e caçadores de wallaby tornaram-se moradores do litoral e coletores de mariscos. Quando chegarem os colonos europeus, quando os antropólogos e arqueólogos começarem seu trabalho, se presumirá que essa ocupação da costa foi tudo que algum dia aconteceu na ilha. Era o que o Capitão Cook acreditava, nas opiniões sobre a Tasmânia tão fielmente comunicadas em Tempos pré-históricos. Só quando Rhys Jones e seus colegas penetraram na floresta tropical e encontraram os ossos de wallaby, instrumentos de pedra e locais de fogueiras no chão da Caverna Kutikina, seria dada a partida na revelação de um mundo perdido da era do gelo. Somente então iríamos começar a compreender a profundidade da história humana em
seu canto sul do mundo.
34 Escultura Corporal no Pântano Kow Enterro e sociedade no sudoeste da Austrália, 14.000 – 6.000 a.C., e extinções da megafauna A faixa de dentes de canguru em torno da cabeça do morto reflete o luar quando seu corpo é baixado à cova arenosa. Deitam-no sobre o lado esquerdo, os joelhos encolhidos sob o queixo. O canto cessa para esse momento de liberação das preocupações humanas; ele junta-se agora aos ancestrais cujos ossos também jazem dentro das dunas, mas cujos espíritos residem na noite. Silêncio. E então um grito reacende a música, corpos pintados saltam das trevas para a luz da fogueira e dançam até um frenesi, enquanto a lua sobe alto no céu da noite. Espalha-se areia sobre o corpo, e o morto se foi para sempre. É 14.000 a.C. A viagem de John Lubbock desde a Tasmânia o fez atravessar planícies cobertas de mato até o rio Murray, no sudeste da Austrália. Árvores, pássaros e animais tornaram-se abundantes, e a jornada foi agradável. Ele chega a um punhado de cabanas de madeira com coberturas de junco e couro, numa localidade conhecida como Pântano Kow. Fazem-se preparativos para um enterro. Lubbock passa várias horas entrando e saindo de moradias; vê a mistura e aplicação de tintas nos corpos, e o cadáver sendo preparado para a cova. Grupos de velhos sentam-se conversando em voz baixa; mulheres fazem comida e mantêm os filhos dentro de casa. Acendeu-se uma fogueira sobre um montinho de areia vizinho, perto do lugar onde já se cavou o buraco. Quando a noite desce e surgem as primeiras estrelas, as pessoas se reúnem sobre a duna. Lubbock senta-se entre elas e logo entra no ritmo de seu suave canto, que parece erguer a lua no céu noturno. Acende-se a fogueira, enterra-se o corpo e começa a dança. Não longe dele, uma mulher aperta o polegar na testa do bebê que traz nos braços. Começa pouco acima das sobrancelhas e corre o dedo até o topo da cabeça, depois solta-o. E repete a ação sempre e sempre, entrando em ritmo com a dança. Fará o mesmo na manhã seguinte, no ritmo da moagem de tuberosas. Há sempre um ritmo a seguir; se tudo estiver em silêncio, ela cantará para criar o seu próprio ritmo, o polegar agindo com
amor nos frágeis pele e osso. Pelo menos cinqüenta pessoas se reúnem em volta da fogueira, as mentes consumidas pelas chamas, o canto, a dança que celebram a passagem do morto. Lubbock levanta-se para olhá-las, seguindo a luz que tremula de rosto em rosto; algumas usam faixas na cabeça como a do morto, outras estão pintadas; rostos de velhos e jovens, homens e mulheres. Alguns parecem chocados, outros assustados; uns cantam e batem palmas, e outros quedam-se em silêncio, mesmerizados pelo espetáculo. Há uma familiaridade na ocasião, adquirida nas viagens de Lubbock pela história em outras partes do mundo. Os cantos e danças sempre diferem, como também os ritos e costumes de enterro; mas a intensa emoção, a idéia de passado e presente fundidos num só é sempre a mesma. E no entanto há uma coisa nova, uma coisa inteiramente diferente nesse determinado grupo de pessoas sob a lua e as estrelas da noite australiana. As chamas lançam luz no rosto de um velho; ele tem a pele seca e esticada. O maxilar é imenso, inteiramente desproporcional ao corpo encarquilhado. Rosto grande — largo e projetado; órbitas pronunciadas, angulosas na base e com o osso curvando-se muito para trás; bordas das sobrancelhas proeminentes. Acima delas, a testa parece anormalmente longa, inclinando-se para longe das sobrancelhas. As chamas tremulam, devolvendo-o à escuridão, e surge um jovem; também ele tem o rosto grande e áspero, a testa inclinada, e o maxilar parece firmemente cerrado. Canta alto, os lábios curvados para trás revelando dentes que combinam com o maxilar em tamanho. E assim Lubbock vai de rosto em rosto, em todos encontrando as mesmas feições, menos pronunciadas nas mulheres e crianças, mas ainda ali. Sem pensar, ele corre os dedos por sua maxila fina; a língua explora os dentes. Depois apalpa as sobrancelhas, bem chatas, e a testa, bem vertical; as duas inteiramente diferentes das pessoas que cantam e dançam no Pântano Kow no sul da Austrália em 14.000 a.C. Em agosto de 1967, Alan Thorne, hoje aposentado da Universidade Nacional da Austrália, encontrou fragmentos de um esqueleto não registrados e esquecidos numa caixa no fundo de um armário no Museu de Victoria. Esses ossos teriam sido bastante comuns para o olho não treinado, mas ele ficou intrigado: lembravam lhe um crânio encontrado em 1925 perto da cidade de Cohuna, anormalmente grande para um nativo australiano. O único rótulo referia-se à delegacia de polícia local;
Thorne seguiu essa pista, que acabou por levá-lo a descobrir o lugar, a não mais de 10 quilômetros da própria Cohuna. Em 1972, Thorne já escavara mais de 40 indivíduos de uma duna em forma de luneta no Pântano Kow. A maioria fora enterrada em covas rasas entre 9.500 e 1.000 a.C., num dos maiores cemitérios de caçadorescoletores do mundo. Alguns tinham sido sepultados com artefatos — torrões de ocre, conchas, instrumentos de pedra e dentes de animais. Um tinha uma faixa de dentes de canguru na cabeça. Alguns enterros tinham sido feitos numa data anterior, mais provavelmente remontando a 14.000 a.C. Fez-se um estudo dos restos em conjunto com os de 126 indivíduos recolhidos em 1950 de outro cemitério, conhecido como Arroio Coobool. Murray Black, um arqueólogo amador, escavara estes na margem oposta do rio, mas não mantivera quaisquer registros. Mesmo a localização específica do cemitério permanece vaga; mas acredita-se que os túmulos do Arroio Coobool cobrem o mesmo período de tempo de Pântano Kow, e as duas amostras podem ser razoavelmente situadas juntas. Quando se reconstituíram os crânios mais antigos, Thorne descobriu que tinham ossos faciais grandes, caixas cranianas rugosas, órbitas oculares retangulares numa posição baixa e testas de forte inclinação. Os corpos combinavam com as cabeças em tamanho. Ele os descreveu como "robustos". Diante desses crânios, fez uma afirmação radical: embora não contestasse que as pessoas do rio Murray eram Homo sapiens, propôs que eram descendentes das populações de Homo erectus que viviam no sudeste asiático mais de um milhão de anos atrás. Os crânios fossilizados desses humanos pré-modernos, como o espécime conhecido como Sangiran 17 de Java, eram também "robustos", e Thorne compilou uma longa lista de características partilhadas. Na verdade, estava contestando a opinião amplamente aceita de que o Homo sapiens teve uma origem única na África por volta de 130 mil anos atrás. Supunha-se que o Homo erectus se extinguira completamente sem contribuir para o fundo de genes moderno; mas Thorne declarou-os ancestrais dos aborígines australianos. É muito provável que esteja certo. As semelhanças que ele afirma existirem entre os espécimes H. erectus de Java e os do Pântano Kow são espúrias — ou pelo menos não têm maior significação que entre quaisquer outras amostras de H. sapiens e H. erectus. E assim, o único cenário
factível para a origem dos australianos é com uma ou mais populações colonizadoras de H. sapiens, os primeiros dos quais chegaram por volta de 60 mil anos atrás. Por que, então, são os crânios do rio Murray tão robustos e inteiramente diferentes dos de outras partes do continente? A resposta parece estar na natureza particular dos ambientes e comunidades do final do Pleistoceno na região do rio Murray, entre os quais chegou recentemente Lubbock. Assim que os crânios do Pântano Kow foram dados a conhecer na publicação científica Nature, levantou-se a questão da deformação craniana: podia a forma particular daqueles crânios ter sido mais produto da cultura que da biologia? Peter Brown, da Universidade Nacional da Austrália, comparou os crânios do Pântano Kow e Coobool com os do povo arawe do sul da Nova Bretanha, uma ilha na Melanésia cujos habitantes, sabe-se, praticavam deformação do crânio. Imediatamente após o parto, a cabeça do bebê arawe era firmemente amarrada como um tecido de casca de árvore durante três semanas. O impacto disso era imediato — mesmo após um dia, o crânio já começara a tomar uma forma alongada. À medida que a cabeça do bebê crescia, a bandagem era substituída, até a mãe sentir que a cabeça já fora suficientemente moldada. Brown encontrou fortes semelhanças entre os crânios dos arawe e do rio Murray, suficientes para afirmar que as pessoas do Pântano Kow e Coobool também deformavam os crânios de seus bebês. Mas as deformações destes eram mais sutis que as dos arawe, não tendo estreitamento de largura nem alongamento de comprimento. Em vez de usar um pano apertado, parece que os que viviam às margens do rio Murray simplesmente usavam os polegares e palmas para aplicar pressão constante na testa de seus recém-nascidos. Tais esculturas corporais explicam a testa inclinada, mas não as características robustas dos crânios do Pântano Kow, sobretudo as grandes mandíbulas e dentes. Elas só podem ser explicadas por herança genética. Como populações contemporâneas em outras partes da Austrália não tinham tais características, as comunidades do Pântano Kow parecem ter sido geneticamente isoladas, com considerável endogamia entre sua gente. Por que deveria ser assim? Colin Pardoe, do Museu do sul da Austrália, explica a questão com o desenvolvimento de um estrito comportamento territorial para proteger o acesso aos abundantes recursos da região do rio Murray, que superavam
em muito os de outras partes. Em 14.000 a.C., o rio Murray começava a aproximar-se de sua Forma moderna — que Pardoe descreve como "abastecida com inimaginável abundância em peixes, aves e invertebrados". As árvores colonizavam a terra bem aguada imediatamente vizinha ao rio e abrigavam mamíferos, como os gambás e lagartos. Havia abundância de alimentos vegetais, como grãos e tubérculos. Longe do próprio rio, vivia uma grande gama de mamíferos na terra de mato baixo em volta: canguru, wallaby e nesóquia. No início do século XX, o antropólogo social britânico Alfred Radcliffe Brown descreveu o rio Murray como "a parte mais densamente povoada da Austrália antes dos dias do Assentamento Branco". Encontrou tribos aborígines que reivindicavam propriedade exclusiva de trechos do rio e da terra em volta; pessoas dispostas a defender suas fronteiras pela força. Como tais, muito se pareciam às que Lubbock observara em Skateholm quando viajava pela Europa em 5.000 a.C. Além disso, as tribos do rio Murray que Radcliffe-Brown encontrou, como os yaralde, organizavam suas vidas sociais de forma inteiramente diferente das dos desertos áridos da Austrália. Em vez de terem um sistema no qual todos se relacionavam com os demais, em grupos vizinhos e distantes, por um complexo sistema de ligações sociais, as da região do rio Murray tinham muito menos ligações externas. Preocupavam-se com regras e costumes que excluíam pessoas de seu grupo social, em vez de incluírem tantas quanto possível, como se descobriu entre aborígines que viviam no deserto. Colin Pardoe acredita que a origem das sociedades do rio Murray descritas por Radcliffe-Brown se encontra vários milênios antes do início do Holoceno, com as pessoas de Pântano Kow e do Arroio Coobool. Acredita que estas foram as primeiras a viver em grandes densidades num ambiente de recursos abundantes; as primeiras a estabelecer fronteiras e desenvolver um sistema social com base mais no princípio da exclusão que da inclusão. Ele sugere que isso explica os esqueletos e crânios "robustos": com maiores graus de endogamia, o fluxo de genes foi restringido e apareceram as diferenças regionais na psique. Também explica por que se fizeram cemitérios: para investir a terra com os ossos e espíritos dos ancestrais da pessoa, e com isso reivindicar propriedade. E explica a escultura corporal: era um meio de acentuar diferenças físicas existentes em relação a outros grupos. Ter o crânio alongado era um sinal
de que se pertencia ao Pântano Kow ou ao Arroio Coobool, e com essa filiação vinham direitos de caça e pesca. As pessoas de Pântano Kow e do Arroio Coobool em 14.000 a.C. parecem ter sido os primeiros australianos a viver dessa forma. Durante os próximos milhares de anos seguintes, seu estilo de vida espalhou-se por todo o vale do rio Murray. Adotaram-se novos métodos de demonstrar filiação ao grupo, como a avulsão dos dentes — quebrar um determinado dente num rito de passagem da adolescência para a idade adulta. Homens e mulheres sofriam ferimentos na defesa de territórios. Em 6.000 a.C., estabeleceram-se muitos cemitérios ao longo do rio. Não é irracional supor que continham os ancestrais diretos dos aborígines que RadcliffeBrown e outros antropólogos anteriores encontraram; na verdade, ancestrais dos australianos de hoje. Assim, é correto que os restos de esqueletos do Pântano Kow e do Arroio Coobool tenham sido devolvidos dos museus e laboratórios de cientistas ocidentais às atuais comunidades aborígines. Em 14.000 a.C., a persistente comichão de moscas andando pelo rosto de Lubbock obriga-o a acordar. Ele se levanta do lugar onde dorme numa duna e descobre que o sol já nasceu. As mulheres e crianças do Pântano Kow já partiram para coletar plantas e mariscos, e os homens foram caçar. No rio, uma canoa está para partir, dirigindo-se para a lagoa onde seus dois ocupantes planejam pescar, e assim Lubbock senta-se atrás deles e é levado à remo rio abaixo. A canoa desliza rápido, às vezes proporcionando vistas de campo aberto, às vezes viajando entre margens cobertas de árvores e corredores de juncos. Os dois homens que remam têm testas longas e inclinadas para trás, como os que Lubbock viu na noite anterior, e ele se lembra de um trecho de Tempos pré-históricos sobre deformação craniana entre as tribos de índios norte-americanas. Vários métodos foram descritos: amarrar os bebês em pranchas-berço, pôr sacos de areia na testa, bandagens apertadas. O John Lubbock moderno lembra — e concorda com elas — as últimas palavras de seu xará sobre o assunto: "É bastante extraordinário que esse processo artificial não pareça ter tido nenhum efeito prejudicial na mente de quem o sofria." Lubbock tem a atenção subitamente atraída para a mata na beira do rio, onde vislumbra o movimento do que poderia ser um grande animal — um animal muito grande. Seus olhos registraram a curva de um ombro, e
depois uma anca, mas o bicho estava em grande parte oculto atrás de árvores. A canoa já passou adiante e assim ele vira o pescoço para dar uma segunda olhada; mas é tarde demais. Talvez fosse um canguru, ou talvez não houvesse animal algum. Como na América, a Austrália tem uma abundância de grandes animais — megafauna — durante o Pleistoceno, todos os quais, com exceção de um, se extinguiram antes do início do Holoceno. De quase 50 espécies diferentes, sobreviveu apenas o canguru vermelho, um animal que pesa até 90 quilos e tem dois metros de altura. Houve outrora cangurus duas, três ou mesmo quatro vezes maiores, assim como vombates gigantes e uma gama de outras criaturas exóticas. O Megalania era o maior carnívoro no continente; um lagarto de sete metros de comprimento com dentes e garras afiados; o Genyornis, uma ave semelhante ao emu que não voava, pesando 100 quilos e com um bico de 30 centímetros de comprimento; o Diprotodon, um mamífero da forma do vombate e com o tamanho de um rinoceronte; o Thylacoleo, o marsupial leão. Como acontece com a megafauna americana, tem-se discutido se esses animais foram extintos devido a mudanças climáticas associadas à era do gelo ou à pressão da caça causada pela chegada dos humanos modernos ao continente. E, como no debate americano, faltam indícios fortes a qualquer dos lados. Há apenas um sítio onde se encontraram artefatos humanos com os ossos de animais extintos: Cuddie Springs, na Nova Gales do Sul. As escavações desse olho d’água revelaram artefatos de pedra associados aos ossos de Diprotodon e Genyornis datando de cerca de 30 mil anos atrás. Quando examinados ao microscópio, encontraram-se resíduos de sangue e pêlos desses animais. Mas como não havia implementos de caça, os escavadores acreditam que os aborígines simplesmente passaram a comer os restos dos animais recentemente mortos de sede ou atolados na lama do olho d'água. A diferença-chave entre as extinções australianas e americanas é a cronologia. Enquanto os mamutes sobreviveram até o fim mesmo do Pleistoceno, parece que toda a megafauna australiana, menos o canguru vermelho, já estava extinta em 20.000 a.C., e talvez muito antes. Isso torna mais convincente a explicação climática: em 20.000 a.C., as pessoas já se achavam no continente australiano há mais de 30 mil anos, e as extinções podem coincidir com o desenvolvimento das condições extremamente áridas do LGM.
É provável que a megafauna extinta fosse particularmente susceptível à perda de nascentes e com toda probabilidade morreu de fome e sede. Mas o momento exato de muitas extinções permanece vago. Os indícios recém-disponíveis da Tasmânia sugerem que a megafauna daquela região já morrera em 13.000 a.C. Isso foi antes da chegada de pessoas, deixando a mudança climática como única explicação. Muitos arqueólogos australianos acreditam que a extinção em toda a Austrália ocorreu numa data mais anterior ainda — entre 50.000 e 40.000 a.C. Como tal, indicam a coincidência com a chegada de pessoas ao continente. Por outro lado, Colin Pardoe acredita que parte da megafauna sobreviveu muito depois de 20 mil anos atrás nas vizinhanças do rio Murray. E assim Lubbock bem pode ter tido um vislumbre do Diprotodon ou de algum outro animal. Ou não — a canoa navegava rápido demais para saber. Na lagoa, os homens que remavam a canoa começam a abrir uma rede feita de fibras de plantas trançadas. Ma,s com mais 5 mil quilômetros e 9 mil anos de pré-história australiana para cobrir, Lubbock não tem tempo para pescar. Atravessa a pé as densas árvores em torno da lagoa e passa à planície aberta, dirigindo-se para noroeste, o árido centro da Austrália.
35 A Travessia do Árido Deserto Adaptações dos caçadores-coletores ao Deserto Central Australiano, 30.000 a.C. – 1.966 d.C. Crepúsculo no Deserto Central Australiano: O céu do oeste está impregnado com um rico arrebol da tarde, contra o qual os galhos de acácia se destacam nítidos e finos. Todos os arbustos e tufos de mato exibem uma profunda cor roxa vistos contra a luz dourada. Para os lados do leste, a cena muda completamente. Os arbustos, azul esbranquiçados, com trechos cinza-claro de erva baixa e tufos ainda mais claros de grama, destacam-se em forte contraste com os marrons cálidos e exuberantes dos campos de gibber que se estendem até o horizonte, onde o céu é de um frio azul-aço que se derrete acima num rosa-salmão, e este num profundo ultramarino salpicado de estrelas brilhantes. Aos poucos, a luz morre e a silhueta do horizonte torna-se indistinta. A não ser pelo misterioso chamado queixoso de um maçarico de passagem, tudo é absoluto silêncio. Uma após outra, as estrelas surgem no leste e sobem cada vez mais alto no céu, e então, com uma sensação de perfeita liberdade e um delicado senso de absoluto ar novo, quando o vento da noite começa a soprar sobre nós, fazendo farfalhar suavemente as folhas de uma velha árvore de goma, adormecemos. Asim escreveram Baldwin Spencer e Frank Gillen em seu livro de 1912, Across Australia [Cruzando a Austrália]. Spencer era professor de biologia na Universidade de Melbourne, e Gillen tinha o bombástico título de "Magistrado Especial e Subprotetor dos Aborígines do sul da Austrália". Além de descreverem o deserto, eles escreveram uma das primeiras histórias dos aborígines arrente da Austrália Central — aos quais se referiam como a tribo arunta — concentrando-se em seus costumes e crenças religiosos. Seja viajando hoje, em 1.912 d.C. ou 14.000 a.C., tudo na Austrália Central é em vasta escala — ilimitadas planícies cobertas de matagal, grandes vales de 4 ou 5 quilômetros de comprimento, impressionantes gargantas e largos canais fluviais absolutamente secos ou inundados de água. Para moradores urbanos como eu, as descrições de Spencer e Gillen
fazem o deserto parecer celestial. Até, quer dizer, lermos sobre as pragas de mosquitos e moscas. Um bocado deles muitas vezes acompanhava qualquer comida que eles comessem; em algumas ocasiões, acordavam pela manhã com "olho de rolha" — tentativa de uma mosca fêmea de depositar seus ovos na membrana macia e mucosa da pálpebra. Assim que o sol se levantava, lembravam, tinha início o baixo zumbido dos mosquitos, que crescia em intensidade, tornando-se cada vez pior, até alcançar um clímax que continuava até o anoitecer. Suportando tais condições, Spencer e Gillen forneceram uma das primeiras histórias dos aborígines da Austrália Central, publicando uma sucessão de clássicos que incluem The Native Tribes of Central Austrália [As tribos nativas da Austrália Central] em 1899, The Northern Tribes of Central Australia [As tribos nortistas da Austrália Central] em 1904 e The Arunta [Os aruntas] em 1927. Spencer escrevera os textos e Gillen fizera a maior parte do trabalho de campo, enviando extensas cartas e anotações ao colega e recebendo pedidos de mais informações e esclarecimento em resposta. Seus livros fizeram extenso uso de lâminas em preto e branco e contribuíram para o desenvolvimento do trabalho antropológico, influenciando Durkheim, Freud e Lévi-Strauss. Across Austaália combinava histórias de várias expedições numa "narrativa simples de algumas das coisas mais interessantes que vimos". E fora muito, não apenas das paisagens australianas, mas do povo indígena. Spencer e Gillen tornaram-se membros plenamente iniciados da tribo arunta e podiam assistir a muitas cerimônias antes não testemunhadas por olhos ocidentais. E, no entanto, uma vida inteira de estudo dos aborígines não conseguiu desfazer suas idéias vitorianas sobre povos tribais. A introdução a Across Australia fazia uma advertência a algum leitor desavisado que pudesse se enganar com as descrições feitas pelos dois de complexos rituais e cerimônias: Deve-se lembrar [escreveram os autores] que embora as cerimônias nativas revelem, em certa medida, o que se descreveu como "complexo ritual", são eminentemente brutas e selvagens. São realizadas por selvagens nus a uivar, que não têm moradas permanentes, roupas, conhecimento de quaisquer implementos, salvo os feitos de madeira, osso ou pedra, nem a mínima idéia de cultivo de safras ou do armazenamento de comida para enfrentar tempos difíceis, nem palavras para qualquer
número além de três ou quatro. A ironia é que são exatamente essas qualidades de grande mobilidade, posses limitadas e intensa cerimônia que tanto impressionam os antropólogos hoje. Sobrevivendo dentro do deserto central australiano, os aborígines documentados por Spencer e Gillen haviam realizado um dos maiores feitos da humanidade. E, no entanto, os que lá viviam no século XIX e início do XX talvez tivessem uma vida relativamente fácil em comparação com seus antepassados, os que ocuparam o deserto no LGM, ou muito pouco depois. A Austrália Central fora quente e árida durante mais de um milhão de anos. Hoje, a zona árida do país cobre 5 milhões de quilômetros quadrados, 70% do continente. Definida como a região onde a evaporação iguala ou excede a chuva, as temperaturas no verão passam dos 35°C, quando a precipitação média anual é de menos de 500 milímetros e não chega aos 125 nas partes mais secas, quase 80% da região consistem de "deserto aberto" — superfícies de pedra ou areia, rochas nuas e depressões de barro sem padrões de drenagem definidos; a água de superfície pode ser abundante após a chuva, mas desaparece rápidamente. Espalhadas entre as vastas extensões de deserto aberto há as montanhas: as Serras Musgrave, James e McDonnell do centro, o distrito de Pilbara no oeste e as serras Kimberley no noroeste. Dentro dessas montanhas, o escoamento concentra-se em regatos que fornecem as fontes de água mais confiáveis da zona árida e sustentam uma relativa abundância de vida vegetal e animal. Ao longo das margens da maioria das montanhas há planícies aluviais ribeirinhas. A água de superfície pode ser encontrada nelas a maior parte do ano, fornecendo uma surpreendente fonte de alimentos para uma terra tão árida: peixes, moluscos, aves e plantas aquáticas. Quando as pessoas entraram pela primeira vez na zona árida, perto de 10.000 a.C., as temperaturas eram pouco diferentes das de hoje, mas era muito mais úmido, resultando em generalizados lagos e cursos d'água permanentes. À medida que as temperaturas globais caíam para o LGM, a chuva já escassa foi reduzida à metade; a velocidade dos ventos aumentou, os lagos secaram e formaram-se extensas dunas. A zona árida expandiu-se e cobriu 80% do continente, deixando não mais que a ponta norte e as margens leste com um clima temperado. Quando o clima virou após 20.000 a.C., as condições começaram a
melhorar, a chuva aumentou, levando mais uma vez a fontes d'água confiáveis; a cobertura vegetal também aumentou, o que, junto com o declínio nos ventos, levou à estabilização das dunas. As condições para assentamento humano aumentaram continuamente até 7.000 a.C. Depois disso, o clima se tornou um pouco mais frio e mais seco, resultando no deserto de hoje, tão evocativamente descrito por Baldwin Spencer e Frank Gillen. Para examinar a história de sua ocupação, John Lubbock chegou ao deserto central em 13.500 a.C. Em sua viagem a partir do Pântano Kow, ele cruzou uma vasta extensão de caatinga morta pela estiagem, encontrou carcaças secas e passou por muitos lagos extintos. Estes eram brilhantes lençóis brancos de sal, inteiramente estéreis, mas que falavam de um tempo quando havia vastidões de água doce cercadas por matas que abrigavam miríades de animais e pássaros. Lubbock atravessou baixadas de barro; algumas tinham superfícies tênues, quebradas em pequenas lascas curvas reluzindo ao sol, cobertas pelas pegadas de emus e cangurus e cercadas por matagais secos e conchas de caramujos e mexilhões mortos. Quando vinha a chuva, os arrotos normalmente secos logo se transformavam em torrentes e as baixadas de barro em poças d'água transbordantes de caramujos, caranguejos e pitus. Milhares de rãs surgiam do subsolo onde a areia ficara fria com um resto de umidade. As rãs desovavam, os ovos chocavam, girinos se desenvolviam e transformavam-se em rãs verdes e laranja-brilhante a tempo de desaparecer no chão quando a seca voltava. Alimentavam-se de lagartas que apareciam como do nada nas plantas revitalizadas e da enorme quantidade de brotos que irrompiam do chão. Chegavam as aves aquáticas — galeirões, colhereiros, pelicanos — e também gaviões, águias, todos alimentando-se com febril ansiedade. Agora Lubbock se senta numa grande gruta de rocha calcária no centro do continente. E uma escarpa voltada para o sul no lado sul da cadeia de montanhas James. Ele vê a caatinga aparentemente interminável em que apreciou o crepúsculo e foi empestado pelas moscas; agora escalda sob o sol do meio-dia. Subindo a escarpa, olhou para o norte e viu coloridas cadeias de montanhas, todas a reverberar na névoa de calor, ameaçando, mas convidando o viajante, nos tempos pré-históricos ou modernos. A seu lado no chão da caverna há detritos de outros que procuraram abrigo recentemente ali: cinzas, fragmentos de ossos animais, umas poucas
lascas de quartzo espalhadas. Na época da visita de Lubbock, as paredes da caverna estão inteiramente nuas. No futuro, porém, serão cobertas com impressões de mãos e a gruta de rocha ganhará o nome de Kulpi Mara, que quer dizer "caverna de mãos". Foi assim que Peter Thorley, da Universidade do Território do Norte, a encontrou quando escavou a caverna em 1955-1956, descobrindo os restos de sucessivas fogueiras ensanduichados em sedimentos caídos do teto e das paredes, complementados por um pouco de areia soprada pelo vento. Datas de radiocarbono indicaram que as pessoas haviam acendido fogueiras dentro de Kulpi Mara em alguma data antes de 30.000 a.C., por volta de 27.000 a.C. e entre 13.700 e 11.500 a.C. Cerca de 200 quilômetros a nordeste de Kulpi Mara fica Puritjarra, outra e maior gruta de calcário, que oferece datas comparáveis de ocupação. Localizada nas Colinas Cleland, o nome significa "área de sombra" — um título apropriado, pois proporciona proteção do sol do meio-dia e do vento predominante. Sua enorme entrada tem 45 metros de comprimento por 20 de altura; pinturas e impressões cobrem as paredes. A ausência de vento foi uma bênção para os aborígines que ocuparam Puritjarra até a década de 1930, mas uma praga para Mike Smith, da Universidade da Nova Inglaterra, o arqueólogo que escavou ali entre 1986 e 1988. Sem poeira soprada, havia uma taxa tão baixa de sedimentação que artefatos feitos com milhares de anos de diferença não puderam ser separados por mais que alguns milímetros de sedimento. Smith acredita que a gruta foi ocupada pela primeira vez cerca de 30 mil anos atrás, embora sua mais antiga data de radiocarbono — de uma camada contendo fragmentos de carvão e ocre vermelho, instrumentos de pedra e lascas jogadas fora — seja cerca de 25.000 a.C. Acima disso, havia muito poucos artefatos incrustados nos depósitos da caverna antes de se chegar a uma data de 15.000 a.C. Os horizontes superiores cobriram os últimos 7 mil anos e continham fogueiras de cozinha, pedra lascada e implementos de moagem. Puritjarra e Kulpi Mara tinham sido usadas entre 25.000 e 15.000 a.C., por todo o tempo do LGM em que as condições climáticas foram mais severas? Mike Smith acha que sim, propondo que as Colinas Cleland mantiveram permanentes olhos d'água, o que criava um refúgio para pessoas expulsas do deserto em volta pela seca. Mas se as poucas datas de Puritjarra e Kulpi Mara derivaram dl visitas esporádicas, exploratórias, ou
registram uma presença humana constante no centro árido da Austrália, ainda não está claro. Qualquer que seja a resposta, os aborígines evidentemente usavam as grutas de rocha quando as condições eram muito menos áridas do que as que Spencer e Gillen testemunharam um século atrás — ou mesmo do que hoje. Como conseguiram fazê-lo? Sabemos como os aborígines recentes sobreviveram aos desertos australianos graças a antropólogos que estudaram meticulosamente suas adaptações, empreendendo tipos de pesquisa bastante diferentes dos de Spencer e Gillen. Em fins da década de 1960, Richard Gould, que depois se tornou professor de antropologia na Universidade do Havaí, viveu com aborígines numa região a oeste da Caverna Puritjarra — uma região que pode dizer que tem o abastecimento de água mais inconfiável e as comunidades animais e vegetais mais pobres no mundo. Os aborígines em geral viviam em grupos de cerca de 20. Os homens passavam várias horas todo dia caçando, mas raramente matavam qualquer coisa maior que lagartos e camundongos, enquanto as mulheres coletavam sementes e tubérculos de mais de 30 plantas diferentes, das quais sete forneciam o grosso da comida. Elas também pegavam caça pequena, junto com insetos e vermes — na verdade, coletavam-se quase 50 variedades diferentes de comida de carne e polpa. A chave da sobrevivência era o oportunismo — estar preparado para mudar-se para onde se vira a chuva cair, e onde se sabia haver água empoçada. Para fazer isso, precisavam de muito poucas posses, e "moradas permanentes" não teriam tido utilidade alguma. Podia-se ver a chuva de 80 quilômetros de distância, e cobriam-se regularmente grandes distâncias; em apenas 3 meses durante 1966, o grupo de Gould mudou-se para nove diferentes acampamentos espalhados por 2 mil 600 quilômetros quadrados. Esse estilo de vida exigia um detalhado e extenso conhecimento geográfico, embutido nas histórias do Tempo do Sonho. Quando os membros mais jovens do grupo aprendiam a mitologia e eram iniciados em conhecimento sagrado, tinham de memorizar os nomes e lugares de muitos marcos territoriais, notadamente olhos d'água. Tais iniciações se davam nas raras ocasiões em que a caça era boa; até 150 pessoas se reuniam e permaneciam juntas enquanto a caça local não se esgotava. E assim as histórias, cerimônias e danças — executadas pelos "selvagens nus a uivar" de Spencer e Gillen — eram absolutamente essenciais para a sobrevivência humana.
Outro ingrediente chave da adaptação ao deserto era a ética da partilha. Toda a comida trazida ao acampamento era meticulosamente dividida entre todos os membros do grupo, mesmo quando não passava de um pequeno lagarto. Além disso, os laços de parentesco entre grupos serviam para assegurar que um grupo seria bem-vindo ao território de outro, se estivesse sofrendo da seca e escassez de comida. Esses laços eram estabelecidos por meio de um sistema de casamento "entre primos", em que se esperava que um homem se casasse com uma mulher que era filha da filha do irmão da mãe da mãe. Como essas relações não eram, compreensivelmente, fáceis de encontrar, os homens muitas vezes buscavam parceiras entre grupos que viviam a centenas de quilômetros de distância. E como um homem podia tomar várias esposas, muitas vezes se aparentava com várias famílias que viviam em milhares de quilômetros quadrados do deserto. Em conseqüência, havia sempre a possibilidade de encontrar parentes, e com isso acesso à água e oportunidades de busca de comida, em tempos de necessidade. Gould descreve o fogo como o mais útil instrumento dos aborígines do deserto. Grande parte da paisagem deles era coberta por espinifex — um arbusto espinhoso que não fornecia nenhum material comestível. Era queimado, resultando no crescimento e sucessão de várias plantas produtoras de comida até que o espinifex mais uma vez se estabelecia. Gould viu os aborígines queimarem extensos tratos de terra, mas nunca manifestavam qualquer intenção de encorajar o crescimento de novas plantas. Também se empregava o fogo para espantar caça pequena, e às vezes fazer sair com a fumaça lagartos e mamíferos de suas tocas. As pedras de moer eram igualmente essenciais; sem elas, muitas das sementes colhidas não teriam sido comestíveis. Essas pedras eram adquiridas em pedreiras ou pelo comércio e deixadas nos acampamentos na previsão de uma futura volta. Com uma exceção, todos os outros instrumentos eram extraordinariamente simples: lascas de pedra, muitas vezes usadas como encontradas no chão e depois jogadas fora, paus de cavar para plantas, lanças de madeira. A exceção era um lança-lanças — uma vara de até um metro de comprimento usada para muitas outras tarefas além de atirar lanças. Eram geralmente achatadas, para servir como bandeja de mistura de pigmentos e tabaco; usadas para acender fogueiras, e muitas vezes tinham uma lasca de pedra numa das pontas, para trabalho em madeira. As superfícies eram freqüentemente talhadas
com figuras geométricas que funcionavam como mapas de marcos territoriais sagrados. Os aborígines do século XX sobreviviam no ambiente incrivelmente difícil do deserto australiano com essa combinação de instrumentos, regras e profundo conhecimento geográfico. Mas era assim que os que fizeram as lascas de pedra e fogueiras nas Cavernas de Kulpi Mara e Puritjarra também viviam? Devemos ser extremamente cautelosos na imposição de padrões modernos de comportamento ao passado — sobretudo quando lidando com assuntos arqueologicamente invisíveis como casamentos entre primos. Richard Gould escavou duas grutas de rocha no deserto: Puntutjarpa e Intirtekwerle, As duas tinham longas seqüências de depósitos que se estendiam para trás a 10.000 a.C. e artefatos pouco diferentes dos usados pelos aborígines com os quais Gould viveu durante os anos 1960. Em seu livro de 1980, Living Archaeology [Arqueologia viva], que descrevia suas experiências e escavações, ele propôs que a cultura de moagem de sementes, redes de casamentos e mitologia do Tempo do Sonho remontava não apenas até aquela data, mas à primeira ocupação da zona árida em 30.000 a.C. Era uma afirmação ousada, pois na década de 1960 as mais antigas pedras de moer conhecidas datavam apenas de 3.500 a.C. Só em 1997 Gould foi justificado pela descoberta de fragmentos de pedra de moer cm Cuddie Springs — o sítio na Nova Gales do Sul onde as pessoas outrora ou caçavam ou se alimentavam de carcaças de mamíferos hoje extintos. Escavações de Richard Fullagar e Judith Field, da Universidade de Sydney, recuperaram 33 fragmentos de pedras de moer de uma vala de 150 centímetros com camadas que datam de antes de 30.000 a.C. até hoje. Muitos dos fragmentos vieram das mesmas camadas, em que se encontraram ossos da megafauna esquartejados. Restos microscópicos de tecidos de plantas e um verniz típico nos fragmentos da pedra de moer confirmaram que foram usados para processar sementes. Os indícios de Cuddie Springs sugerem que os aborígines que viviam nos desertos da Austrália durante e imediatamente depois do LGM tinham uma economia de moagem de sementes, semelhante à observada na década de 1960 por Richard Gould. Mas os fragmentos de ocre recuperados das Cavernas Kulpi Mara e Puritjarra dificilmente bastam para possibilitar aos arqueólogos determinar se os aborígines do deserto tinham mitologias semelhantes à do Tempo do Sonho e regras de
casamento — tão cruciais para a sobrevivência recente quanto a moagem de sementes. Durante três dias John Lubbock permaneceu na Caverna Kulpi Mara, esperando a Volta de quem quer que tivesse feito recentemente a fogueira. Desejava conhecer essas pessoas, viajar com elas, descobrir como viviam. Não veio ninguém. Ele colheu sua própria comida: figos e raízes selvagens, um lagarto arrancado da toca. Enquanto esperava, abriu Tempos pré-históricos para ler sobre o conhecimento e opiniões de seu xará quanto aos aborígines. Nas poucas páginas dedicadas aos australianos, o autor usou informações de vários viajantes do século XIX — mas não as de Spencer e Gillen, cuja publicação inicial só saiu 30 anos depois da primeira edição de Tempos pré-históricos (1865). Para o John Lubbock vitoriano, os aborígines eram — o que não surpreende — "infelizes selvagens". Mas como o moderno John Lubbock descobrira quando lera sobre as pessoas da Tierra del Fuego e os índios norte-americanos, essas declarações conflitavam com a evidente apreciação pelo Lubbock vitoriano de muitos instrumentos que os aborígines faziam e usavam com grande habilidade. Tempos préhistóricos explicava que eles tinham "boa prática" no uso de lança-lanças, bumerangues e lanças de tartaruga com farpas móveis, descrevendo com certo detalhe esses implementos. Também parecia difícil compreender como os tasmanianos podiam ser descritos como na mais completa falta de opiniões morais (na citação do Reverendo Dove) e os australianos como capazes de reconhecer comportamentos egoístas e irracionais. Mais uma vez, o Lubbock vitoriano parecia debater-se para conciliar as opiniões flagrantemente racistas daqueles em cujas publicações se apoiava e o evidente valor que ele próprio dava à tecnologia e estilos de vida daqueles aos quais chamava "selvagens modernos". Após uma vigília de manhã cedo na busca do sinal-chave de vida humana, uma espiral de fumaça, Lubbock desce dos penhascos e deixa a Caverna Kulpi Mara. Dirige-se para o norte, atravessando o que se tornará as serras McDonnell e a futura Alice Springs. Tem mais 1 mil 200 quilômetros de deserto para cruzar antes de chegar à Terra de Arnhem, que será transformada pelo aquecimento global.
36 Combatentes e o Nascimento de uma Serpente Arte, sociedade e ideologia no norte da Austrália, 13.000 – 6.000 a.C. Dois homens de frente um para o outro, prontos para o combate. Usam roupas enfeitadas com elaborados adereços de cabeça. As mãos seguram bumerangues. Armas letais. Nenhum dos dois pensará duas vezes antes de matar o outro. John Lubbock já viu muitas cenas semelhantes durante os últimos dias de viagem. Em sua maioria, foram disputas homem a homem com bumerangues e lanças, perto de olhos d'água. Os combatentes eram todos homens, usando túnicas e calças de couro de animal enfeitadas com plumas e contas; os rostos pintados de vermelho e as estaturas aumentadas por ameaçadoras construções de plumas, peles, ossos e cascas de árvores. Alguns transformavam-se em feras com o uso de máscaras de animais, mas continuavam sobre as duas pernas quando avançavam para atacar os que ousavam interpor-se em seu caminho. Na Garganta do Surdo Adder, Lubbock viu um homem correr para o outro, pronto para lançar seu bumerangue. O adversário, vestido de animal selvagem, manteve-se firme, pronto com um punhado de lanças. Entre os penhascos acima das Cataratas Gêmeas, dois homens tinham ficado frente a frente, cada um decidido a levar o outro a uma morte sangrenta. Um erguia uma lança, em posição de ataque, e o outro segurava um bumerangue, pronto para atacar e quebrar o braço do adversário. Em outro lugar, Lubbock viu o resultado dessas batalhas: corpos desabando no chão ou jazendo mortos, varados por lanças. Agora, porém, ele chegou aos penhascos e eucaliptos acima das Cataratas Jim Jim. É meio-dia; o sol escorcha e o ar está seco como um osso. Dois pássaros, talvez abutres, circulam no límpido céu azul. Apesar do calor, está para começar mais uma luta — dois homens vestidos, armados e empenhados numa batalha mental, antes do lançamento do primeiro bumerangue. Lubbock o vê em pleno vôo, deixando o pincel do pintor quando a pintura rupestre é concluída com um hábil rabisco de tinta vermelha. Ali o bumerangue permanecerá, pregado na parede durante
muitos milênios futuros. Lubbock volta-se para o pintor: é um velho aborígine de cara enrugada e tocos de pêlos grisalhos; um homem pacífico, que jamais ergueu uma lança ou bumerangue enfurecido em toda a sua longa vida, mas que repisa cenas de violência e morte. Lubbock está na Terra de Arnhem de hoje, na "ponta de cima" dos Territórios do norte na Austrália. É uma paisagem de escarpas de calcário, matas de savana e fundos desfiladeiros. Uma paisagem árida, em que os rios lutam para sobreviver e periodicamente perdem. A data é incerta — difícil saber com exatidão quando ele poderia estar visitando as pinturas rupestres de combatentes e sentando-se com o artista que mistura em silêncio seu pigmento de ocre. Os aborígines de hoje da Terra de Arnhem atribuem essas pinturas, que os arqueólogos chamam de "Figuras Dinâmicas", ao povo mimi. Acreditam que eles foram seus precursores na Terra de Arnhem, e os ensinaram a pintar. Os mimis decoravam os tetos das cavernas voando, e sobrevivem hoje como espíritos, às vezes aninhados dentro das lendas de um paredão de rocha. "Dinâmica" é uma descrição adequada. Cada figura não tem mais de alguns centímetros de altura; muitas esticam as pernas como se corressem em velocidade máxima, o que é enfatizado pelos pequenos traços perto dos pés, sugerindo movimento. Sinais semelhantes parecem emanar das bocas, talvez descrevendo respiração forte ou gritos de guerra. Mas nem todas as Figuras Dinâmicas estão envolvidas em luta; algumas são mostradas caçando emus; outras simplesmente de pé, sentadas ou revoluteando no ar; algumas seguram galhos com folhas e outras fazem sexo. O simples fato de que essas pinturas foram criadas além do tempo da história oral aborígine, e, portanto postas no mundo mítico do povo mimi, sugere grande antigüidade. Christopher Chippindale e Paul Taçon, arqueólogos da Universidade de Cambridge e do Museu Australiano em Sydney, tentaram identificar a idade exata. Para começar, as Figuras Dinâmicas não são o primeiro estilo de arte na Terra de Arnhem; abaixo das figuras pintadas encontram-se traços leves de uma arte mais antiga: descrições de gigantescos cangurus, wallabies, cobras, crocodilos e peixes. Também sabemos que tais gravuras não podem ter mais de 60 mil anos, pois essa é a data da chegada de pessoas ao continente australiano. Mas, além disso, as coisas se tornam difíceis. O uso de bumerangues como armas é significativo, pois todos os
aborígines conhecidos da Terra de Arnhem os usaram apenas como instrumentos musicais — tábuas de batuque. Os animais descritos também são cronologicamente sugestivos, pois alguns estão hoje extintos, como o tilacino — ou tigre da Tasmânia — cujos flancos listrados podem ser vistos em várias pinturas. Esse animal já havia desaparecido da Terra de Arnhem em 5.000 a.C. Umas poucas pinturas parecem descrever animais extintos de uma época muito anterior, como o gigantesco vombate conhecido como Palorchestes, que se extinguiu antes do fim do Pleistoceno. Além disso, a ausência de certos animais também é útil; há poucas descrições de peixes, e quando presentes são variedades relativamente pequenas de água doce. Nos estilos de arte posteriores da Terra de Arnhem, os peixes ganham mais destaque, e julga-se que isso reflete o nível crescente do mar, surgimento de pântanos e mudança de dieta do povo aborígine depois que a era do gelo chegou ao fim. Chippindale e Taçon pegaram esses poucos fios de indício, teceram-nos e concluíram que as Figuras Dinâmicas descrevem pessoas nas áridas paisagens da Terra de Arnhem antes do surto final de aquecimento global em 9.600 a.C. Outra sugestão sobre a idade das pinturas vem de fragmentos de ocrevermelho em depósitos em grutas que também contêm os artefatos de pedra deixados pelos australianos do Pleistoceno. As Figuras Dinâmicas foram criadas com o mesmo tipo de pigmento, embora este se tenha tornado depois de uma exuberante cor de amora e pareça ter-se entranhado na própria rocha. Por volta de 12.000 a.C., há um acentuado aumento na quantidade de ocre-vermelho nos depósitos das grutas, sugerindo o início de intensa atividade artística; Paul Taçon acredita que foi então que se criaram pela primeira vez as Figuras Dinâmicas. Parece mais provável, portanto, que Lubbock esteja na Terra de Arnhem numa data entre 20.000 e 9.600 a.C. — vou seguir Taçon e pô-lo perto do fim desse período, digamos 10.000 a.C. Mas embora saibamos que andou visitando as rochas pintadas, e vendo os artistas trabalharem, terá também visto ele a luta na vida real? Descrevem as pinturas a realidade da vida durante o estágio final da era do gelo na Terra de Arnhem? Elas podem ser um registro histórico autêntico de disputas públicas de homens brigando por acesso a recursos preciosos, talvez pelos poucos olhos d'água ciumentamente apropriados e guardados nas áridas paisagens. As lutas podem ter sido sangrentas e durado até a morte ou de natureza em
grande parte ritualizada. Alternativamente, podem não ter passado de fantasia: descrições de seres míticos, empenhados em batalhas imaginárias com trajes inteiramente diferentes de qualquer um visto no mundo real. Na verdade, os pintores aborígines da Terra de Arnhem podem ter sido uma gente pacífica, que vestia roupas simples e assegurava a partilha equitativa de toda comida e água. Chippindale e Taçon preferem a interpretação da "arte como registro histórico." E assim, em suas viagens pela Terra de Arnhem, Lubbock viu não apenas os combatentes pintados em vermelho, mas os próprios combatentes. Lubbock agora senta-se à sombra de um eucalipto na margem de um raso regato. Esse curso d'água foi sua rota desde uma funda garganta dentro da escarpa, passando por grutas onde as pessoas lascavam quartzo e uma planície com árvores esparsas. O regato continua até onde ele pode ver, serpeando por pelo menos outros 500 quilômetros até encontrar o mar. Lubbock pretende segui-lo até o estuário e depois a linha costeira, até chegar às montanhas cobertas de neve que ficam 1 mil quilômetros ao norte, na Papua, Nova Guiné de hoje. Mas por enquanto faz calor demais, Lubbock está cansado. Por isso, senta-se junto a uma árvore e confere um trecho de Tempos pré-históricos que ele lembra tratar da arte aborígine. "Numa caverna na costa nordeste", escreveu seu xará em 1865 d.C., "o Sr. Cunningham observou algumas 'figuras toleráveis de tubarões, toninhas, tartarugas, lagartos, tripangos, estrelas do mar, porretes, canoas, abóboras d'água e alguns quadrúpedes provavelmente pretendendo representar cangurus e cachorros'. É, porém, duvidoso se são obras dos nativos atuais. O John Lubbock moderno pensa em como as pinturas que viu na escarpa careciam de quaisquer figuras assim. Ele fecha o livro e começa a cochilar ao lado das águas rasas do que um dia se tornará o rio Jacaré leste da Terra de Arnhem. Chegam-lhe lembranças oníricas de suas viagens em outras partes nessa data na história humana: o reenterro de pessoas há muito mortas em Ain Mallaha pelas pessoas do Natufiano Tardio obrigadas a mudar-se pelas secas do Jovem Dryas; a chegada no sudoeste da França e a descoberta de que as cavernas pintadas estavam desertas e esquecidas; a pesca com as pessoas da Quebrada Jaguay no Peru. Lubbock mergulha num sono profundo, não apenas pelo resto do dia, mas
pelo resto da era do gelo e além. Novos tipos de sonho: gotículas d'água de iciclos que de repente se avolumam; lagos de água derretida que estouram as margens; rios em cheia carregando enormes rochas e árvores; penhascos de gelo desabando no mar. Estes últimos o acordam com o estrondo. Em vez do límpido céu azul e da sombra do eucalipto que o fizeram dormir, Lubbock acorda num mundo sombrio e cavernoso, sentado numa ilha de lama e cercado por um pântano. Quatro mil anos se passaram desde que começou a cochilar, e já é 6.000 a.C. Troncos retorcidos e nodosos de cada lado lançam ameaçadores galhos enlameados. Acima, um denso dossel de folhas. O ar está sufocante, impregnado com um quente vapor miasmático. Há um intenso silêncio, quebrado apenas pelo calmo arquejar de moluscos afundados na lama ou grudados às raízes e troncos do mangue. Enquanto Lubbock dormia, a maré chegou; não as marés diárias que lambiam as praias da Grande Austrália do Pleistoceno, mas a da subida pósglacial do nível do mar. Quando as geleiras desabaram, as camadas de gelo se derreteram e os lagos se esgotaram, os mares do sul incharam. Os níveis subiram sem parar, às vezes inundando 45 metros por ano da planície pela qual Lubbock planejara viajar. Em 6.500 a.C., a terra baixa entre o norte da Austrália e a Nova Guiné foi inteiramente submersa sob o Mar de Arafura. Quando as águas inundaram a Terra de Arnhem, pequenos rios interiores transformaram-se em largos estuários; surgiram diques que levaram a terras molhadas de água doce; os mangues tomaram tudo. Lubbock atravessa a borda do pântano, trepando em enormes raízes e perturbando as tartarugas que descansam nos bancos de areia. Por algum tempo os pântanos parecem intermináveis e ameaçadores, sobretudo os crocodilos que se escondem nos rasos. O socorro chega quando o dossel é penetrado por minúsculas manchas azuis, que crescem em número e tamanho. O ar esfria, a escuridão recua. De repente, o mangue termina e ele entra na luz do sol e em solo seco e sólido. Outros saíram poucos instantes antes. A alguns metros de distância, um grupo de aborígines sentou-se no chão e acendeu uma fogueira. Lubbock junta-se a eles e descobre que andaram recolhendo mariscos do mangue. Uns poucos serão comidos enquanto descansam, antes de retornarem a seu acampamento na estreita franja de mata entre o fim dos manguezais e
o início da escarpa. Quando se levantam e partem, Lubbock os segue. As semanas seguintes são gastas com essas pessoas — pescando, caçando tartarugas, colhendo inhames, mais mariscos. Têm uma rica variedade de alimentos para escolher; os monturos acumulam-se nas beiras dos rios, e logo serão sepultados pela lama do mangue, com a expansão dos pântanos. Lubbock faz uma viagem de dois dias com eles até a beira-mar para pegar mariscos e sal. No caminho, desaba uma tempestade; ventos uivantes e chuva fazem o grupo abrigar-se dentro de uma caverna e depois encontrar inesperadas novidades na praia. São grandes volumes de algas marinhas dentro das quais se escondem águas-vivas e ouriços-domar, enquanto os pequenos corpos de cavalos-marinhos e síngnatos espalham-se pela areia. Embora essa caça à comida dentro dos mangues do pântano e na beira do mar seja uma nova forma de vida aborígine, os instrumentos de pedra continuam pouco mudados em relação aos dos seus antepassados, sobretudo simples lascas de quartzo. Alguns novos tipos apareceram, como pontas de osso, e eles tem uma série de artefatos feitos de material orgânico como cestos trançados e lanças de madeira. Mas só as lascas de pedra sobreviverão nos detritos deixados atrás para os arqueólogos encontrarem. Lubbock retorna à escarpa, ao platô e aos penhascos onde um dia encontrou os combatentes dinâmicos. A violência continua, mas agora toma mais a forma de batalhas campais que de disputas homem a homem. Numa dessas batalhas, dois grupos estão frente-a-frente — talvez 50 ou 60 ao todo — armados com lanças farpadas e machados com cabos. A não ser por um homem com adereço de cabeça que comanda cada grupo, os outros vestem roupas simples, quando vestem alguma coisa. Uma saraivada de lanças foi atirada e um dos comandantes recebe um golpe fatal no abdome. Ele continua a cair, mas está destinado a jamais chegar ao chão, assim como as lanças vão permanecer em vôo; essa batalha é outra pintura encontrada nos paredões de pedra da Terra de Arnhem. Chippindale e Taçon pensam que essa e outras cenas de batalha foram pintadas por volta de 6.000 a.C. As novas pinturas são muito mais simples que os pares de homens dinâmicos; muitas não são mais que desenhos de traços com círculos por cabeças. Os novos artistas fizeram mais que reunir grupos inteiros em batalha;
também mudaram os animais e adotaram novos estilos artísticos. Peixes, cobras e tartarugas — animais das terras úmidas — são agora comuns na arte; uns poucos estão pintados à maneira de raios X, que mostra seus órgãos internos. Outra nova característica são as figuras Yam — pessoas e animais pintados com corpos parecendo tubérculos. Essa gama de imagística substitui as Figuras Dinâmicas e reflete os alimentos vegetais e animais coletados nos ambientes mais úmidos e quentes do Holoceno. A mudança de brigas individuais para cenas de batalha sugere que a sociedade também mudou. Quando os arqueólogos olham essas pinturas de guerreiros, lanças e morte de 6.000 a.C. descobrem uma notável ressonância com as práticas de guerra do século XX de grupos aborígines. Essa guerra foi registrada por Lloyd Warner, um antropólogo que viveu entre os aborígines murngin do nordeste da Terra de Arnhem na década de 1920. Os murngin viviam da caça e coleta numa paisagem não diferente da reconstituída para 6.000 a.C. Violência e guerra eram endêmicas em sua sociedade; Lloyd Warner estimou que isso causava cerca de 200 mortes de rapazes todo ano. Descreveu vários tipos, que iam de nirimaoi yolno, lutas um a um entre homens e que raramente resultavam em alguma baixa, até milwerangel, batalhas campais entre membros de vários clãs acertadas para ocorrer num lugar e tempo determinados, em geral terminando numa violenta briga com várias baixas. Grande parte dessas lutas originava-se de disputas por mulheres. Geralmente surgia nirimaoi yolno quando um homem de um acampamento acusava um de outro de ter sido — ou pelo menos tentar tornar-se — amante de sua esposa. Os dois homens raramente chegavam além de lançar insultos um ao outro, felizes por serem "contidos" pelos amigos para poderem fingir muita bravata sem correr o risco de machucar-se. Em outra forma de combate — narrup — um homem era fisicamente atacado quando dormia. Todo o clã do atacante seria responsabilizado e o incidente podia escalar rapidamente para maringo, uma expedição para vingar o assassinato de um parente, ou mesmo uma milwerangel. Lloyd Warner afirmou que guerra e assassinato entre os murngin eram uma conseqüência do sistema de casamento deles. Era a poliginia, que permitia aos homens terem várias esposas; a maioria dos homens de meia-
idade dos murngin tinha pelo menos três. Como o número de homens e mulheres murngin era igual, e como as mulheres se casavam pouco antes da puberdade, havia simplesmente poucas mulheres para os homens jovens se casarem. E assim, nas palavras de Lloyd Warner, ocorria uma "matança sazonal de rapazes" que haviam passado para a adolescência e estavam prontos para encontrar a primeira esposa. Essa seleção dos jovens e elegíveis era supostamente do interesse dos membros mais velhos da sociedade, que tinham prazer em encorajar os homens mais jovens a lutarem. Não há indício direto de que as pinturas de cenas de batalha de 6.000 a.C. na Terra de Arnhem descrevam a vida real; mesmo que o fizessem, nada prova que as batalhas correspondam às descritas para os murngin ou fossem feitas pelos mesmos motivos. Chippindale e Taçon confiam, porém, em que essa mudança de pinturas de combatentes individuais para cenas de batalha é de fato um registro histórico e em última análise explicada pela mudança de ambientes da Terra de Arnhem trazidas pelo aquecimento global. Ainda não está claro exatamente como as mudanças ambientais, sociais e artísticas se relacionam. Um dos cenários é que o aparecimento de terras úmidas criou nova diversidade e abundância de alimentos vegetais e animais. Com a melhor nutrição, a população aumentou. Mas as fontes de alimento não se distribuíam igualmente pela paisagem. Em vez disso, os trechos de rio, bosques, olhos d'água e habitats de animais particularmente lucrativos eram muito localizados. E assim, os grupos se interessaram em estabelecer e defender territórios que abrangessem esses locais. Fizeram isso em parte por meio de cerimônias e em parte pela guerra. Pode ter sido nessa época que começaram a surgir os padrões territoriais e divisões lingüísticas historicamente conhecidos dos grupos aborígines da Terra de Arnhem: entre os grupos conhecidos como jawoyn, gundjeibmi, kunwinjku e murngin. Além disso, a ideologia do Tempo do Sonho de hoje também pode ter origem nessa época de adaptação ao mundo do Holoceno, como descobrirá Lubbock em seu próximo encontro no platô da Terra de Arnhem. Lubbock já viu uma variedade de novas pinturas na escarpa, além das cenas de batalha. Incluíam descrições de lagartos, tartarugas e cabaças, que lembram os descritos em Tempos pré-históricos. Mas agora está diante de uma coisa inteiramente nova: uma estranha criatura de corpo
alongado, cabeça parecendo de canguru, ou talvez crocodilo, e cauda em ponta parecendo uma cobra. Estranhos apêndices pendem do corpo: talvez outros animais, ou uma combinação destes, inhames e lírios. A criatura serpeia pela superfície da rocha, pintada em vermelho forte e destinada a sobreviver durante muitos milênios. Acabará por ser descrita como a Serpente do Arco-Íris do Tempo do Sonho aborígine. A Serpente do Arco-Íris é um dos Seres Ancestrais-chave, conhecida pelos aborígines em todo o continente. Acredita-se que desempenhou um papel fundamental na criação da paisagem australiana, e é descrita por Paul Taçon como entre as criaturas mitológicas mais poderosas do mundo. Como acontece com outros Seres Ancestrais, sua forma não foi fixada; podia mudar entre a de uma cobra, um canguru e um crocodilo, e foi muitas vezes descrita como uma combinação de todos três. Durante os dias de fundação, essa cobra serpeou por todo o país, criando todos os olhos d'água e arroios, abastecendo-os com criaturas e pondo pessoas na paisagem, cada clã numa área designada. Julgava-se que os arco-íris no céu eram a alma da serpente; quando desapareciam, o Ser retornara aos olhos d'água permanentes onde gostava de ficar. Taçon e seus colegas acreditam que a idéia da Serpente do Arco-Íris foi inspirada pelo síngnato, trazido para as praias recém-formadas pelos mares turbulentos do Holoceno Inicial. Quando foram descobertos, os aborígines também viam serpentes fugindo de paisagens inundadas e arco-íris acima após os raios e trovões. Os olhos d'água agora continuavam permanentemente cheios e leitos de arroios antes secos se tinham tornado rios de rápida correnteza. E assim a Serpente do Arco-Íris e suas histórias foram adotadas para dar sentido a esse mundo em mudança, à nova paisagem e à espantosa natureza da experiência humana nos primeiros milênios do Holoceno. Josephine Flood, famosa arqueóloga australiana, acredita que muitos outros mitos aborígines também se relacionam com fatos ambientais no fim da era do gelo. As histórias mitológicas de uma grande enchente são muitas vezes tão detalhadas e específicas que ela não duvida de que lembrem de acontecimentos reais ocorridos milhares de anos antes. Muitos mitos contam como as colinas foram separadas do continente e se transformaram em ilhas: a Ilha Mornington no Golfo de Carpentaria de hoje foi criada por Garnguur, a mulher gaivota que puxou sua jangada de um lado para outro no que fora uma península, a fim de formar um canal
para o mar. A Ilha Elcho, hoje ao largo da costa norte da Terra de Arnhem, resultou do tropeço de um Ser Ancestral que acidentalmente enterrou seu cajado na areia, trazendo a invasão do mar. No sul da Austrália, havia um disseminado mito sobre a criação da Ilha Canguru, conhecida como Nar-oong-owie pelos aborígines. Fala de Ngurunderi, um grande ser ancestral que ficou furioso quando suas esposas fugiram. Tendo-as descoberto a atravessar a vau o raso canal que separava Nar-oong-owie do continente, ele "decidiu castigar as esposas e em fúria ordenou que a água subisse e as afogasse. Com uma terrível precipitação, as águas rugiram e as mulheres foram trazidas de volta ao continente. Embora tentassem freneticamente nadar contra a maré, estavam impotentes e afogaram-se. Seus corpos viraram pedras e elas são vistas como rochas ao largo da costa do Cabo Jarvis, chamadas de "Pagens" ou "Duas Irmãs". Outros fatos ocorridos no fim da era glacial também podem ser lembrados nos mitos do Tempo do Sonho. Uma dessas histórias começa assim: Há muito tempo, muita gente acampava na confluência dos rios Lachlan e Murrumbidgee. O dia era muito quente e uma neblina subia da planície sem ventos, fazendo o horizonte dançar, e miragens distorciam a paisagem. Todos jaziam imóveis, descansando no calor. De repente, avistou-se ao longe uma tribo de cangurus gigantes, e o chefe saltou de pé com um grito galvanizante. O acampamento tornou-se uma cena de desvairada excitação e medo. Pegaram rapidamente as crianças e todos desapareceram no mato. Naquele tempo, porém, os homens não tinham armas, e eram indefesos diante do inimigo. Os cangurus avançaram implacavelmente sobre eles no meio do mato e sem piedade esmagaram as vítimas com os poderosos braços. Quando os animais acabaram, poucos da tribo haviam sobrevivido. A história continua com o chefe criando armas e camuflagem, e usando o fogo para espantar os cangurus. Josephine Flood imagina se tais histórias sobre cangurus gigantes abrigam lembranças de animais extintos outrora temidos e caçados. Uma outra história conta que férteis lagos secaram e tornaram-se estéreis salinas — outro disseminado fato que ocorreu no fim da era do gelo. Se Josephine Flood está correta, os aborígines passaram histórias de geração em geração sobre mudanças no nível do mar, na megafauna e na secagem de lagos interiores durante 10, talvez mesmo 20 mil anos. Essas
histórias podem ter começado como versões factuais e aos poucos foram embutidas na mitologia do Tempo do Sonho. Ou talvez — como sugere o síngnato — as transformações ambientais ocorridas quando a era do gelo chegou ao fim tenham dado origem não apenas a Serpentes do Arco-Íris, mas ao próprio Tempo do Sonho. Em 6.000 a.C., a Grande Austrália não mais existe; um sétimo de sua terra, cerca de 2,5 milhões de quilômetros quadrados, foi inundado pelo mar. A Tasmânia, antes uma península no sul, é agora a ilha cujos aborígines perderam todo contato com os do continente, separados dele pelas ferozes águas do Estreito Bass. Os povos da Nova Guiné, porém, permanecerão em contato com os da Austrália do outro lado do mais benigno Estreito de Torres, pontilhado de ilhas. Para chegar à Nova Guiné, John Lubbock viaja para leste e depois norte, ao longo da costa do Golfo de Carpentaria até a Península do Cabo York. Essa viagem o leva pela linha costeira de manguezais, lagoas de água doce, estuários e águas rasas. Ele parte quando começa a estação seca em maio, uma época em que os rios e lagoas estão secando e as pessoas que encontra vivem em grupos pequenos e nômades. Quando a seca se estabelece, eles se congregam em torno das poucas fontes de água permanentes. Lubbock descobre que coletam alimentos vegetais, notadamente as sementes e tubérculos de lírios, e caçam wallabies espantando-os das bordas da mata que se espalha para o interior. Com o passar do ano, o clima se torna cada vez mais quente e sufocante. As árvores perdem todas as folhas e o mato baixo é queimado pelos aborígines. Finalmente, o clima explode em raios e tempestades, que ocorrem todos os dias da semana. Já é outubro. O chão e os galhos nus rebentam em novos brotos; rios secos enchem-se de água e logo estouram as margens e inundam grande parte do terreno baixo. Os aborígines que Lubbock encontra já estabeleceram substanciais acampamentos em terreno elevado. Esperaram as primeiras chuvas e recolheram grandes folhas de casca de eucalipto, que se soltaram assim que a seiva começou a correr. Com essas folhas de casca de árvore, envoltas sobre galhos, constroem cabanas cônicas. Também usam as cascas para fazer canoas, essenciais para viagem, agora que parte tão grande da paisagem está inundada. Como a dos aborígines, a dieta de Lubbock muda, à medida que caranguejos, mariscos e ovos de pássaros se tornam disponíveis. A caça continua, mas os grupos que
espantam wallabies são substituídos por indivíduos que tentam tocaiar e matar cangurus. Eles sabem que se falharem — o que geralmente acontece — haverá bastante alimento vegetal e caça pequena no acampamento, enquanto o sucesso trará muito louvor e status. Em março seguinte, as comidas vegetais já se tornaram abundantes. No caminho, Lubbock ajuda a colher inhames, tubérculos e uma multidão de sementes em bandejas de casca de árvore, e depois a construir caniçadas e armadilhas para peixes quando as águas da inundação começam a recuar. Ao chegar ao fim a estação úmida, os acampamentos se desfazem e as pessoas se dispersam em canoas pelos cursos d'água, sabendo que dentro de semanas as chuvas terão acabado por mais um ano. A essa altura, Lubbock chegou à ponta do Cabo York e está pronto para cruzar o Estreito de Torres.
37 Porcos e Pomares nas Montanhas A criação da horticultura tropical nas montanhas da Nova Guiné, 20.000 – 5.000 a.C. Três aborígines sentam-se diante de John Lubbock, remando com habilidade sua canoa para as correntes e evitando os recifes. Ele se recosta, relaxado; a mão risca a água, e gaivotas deslizam no brilhante céu azul acima. Lubbock cruza o recém-formado estreito que separa a extremidade mais ao norte da Austrália da costa sul de Papua Nova Guiné. No LGM, essa extensão de água de 500 quilômetros de largura era de matagais, com campos de caça para os aborígines da era do gelo. Em 6.000 a.C., data da viagem clandestina de Lubbock na canoa, níveis crescentes do mar inundaram a planície de Arafura e romperam o último istmo restante da terra. Só as colinas escaparam, sobrevivendo como mais de 100 ilhas espalhadas pelo Estreito de Torres. Algumas têm suas próprias colinas, outras linhas costeiras rochosas cercadas de manguezais, e outras ainda são meros atóis de areia. As primeiras ilhas que Lubbock alcançou são conhecidas hoje como Muralug, Moa e Badu. Ele as encontrou habitadas por pessoas com estilo de vida semelhantes aos que viu no Cabo York. Mas quando viajou mais para o norte, as ilhas foram-se tornando cada vez menores e não tinham sinais de vida humana. Algumas permaneceram desabitadas até hoje; outras foram colonizadas por pessoas da Nova Guiné, embora seja difícil dizer quando, uma vez que a pesquisa arqueológica tem sido muito limitada. Certamente estavam ocupadas em 1898 d.C., ano em que o antropólogo de Cambridge A.C. Haddon chegou ao Estreito de Torres para fazer uma pesquisa do seu povo. Sua monumental obra em seis Volumes tornou-se um registro inestimável de estilos de vida aborígines tradicionais. Os estudos de Haddon apoiaram-se nas primeiras observações científicas do Estreito de Torres, feitas em 1770 por Joseph Banks, que trabalhou como naturalista do navio do Capitão Cook, o Enterprise. Antropólogos, geólogos e, mais recentemente, o arqueólogo David Harris, do University
College em Londres, desenvolveram o trabalho de Haddon. Desde 1974, Harris esteve reconstituindo os estilos de vida dos ilhéus do Estreito de Torres na época da viagem do Capitão Cook e da visita de Lubbock — 6.000 a.C. — tão logo após a formação das ilhas. Harris descobriu que, enquanto as pessoas encontradas por Banks e Haddon nas ilhas maiores do sul eram caçadores-coletores, as mais ao norte eram agricultores, ou mais precisamente horticultores. Todo ano queimavam a mata e plantavam inhame, batata-doce e taro — safras de raízes tropicais ainda básicas na dieta de grande parte do sudeste asiático hoje. Capões de banana, manga e coqueiros também eram cuidados em tais hortas. Colhiam-se comidas vegetais, especialmente dos manguezais que contornavam as ilhas, enquanto se caçavam dugongos pela carne e a gordura. A intensidade da horticultura encontrada por Harris era mínima, em comparação com a observada pelos primeiros europeus a visitarem a Nova Guiné. Nas terras baixas e altas, vastas áreas de florestas tinham sido abertas e transformadas em hortas para safras de raízes. Em completo contraste com os acampamentos transitórios dos caçadores-coletores do norte da Austrália, os primeiros exploradores europeus encontraram aldeias densamente povoadas, governadas por chefes poderosos, cuja riqueza se media pelo número de porcos que possuíam, e que regularmente guerreavam. Daí o fino Estreito de Torres dividir dois mundos diferentes: caçadores-coletores no sul e agricultores da Nova Guiné no norte. Por que os aborígines australianos não adotaram a agricultura? O Capitão James Cook fez essa pergunta quando desembarcou na ilha Possession, ao largo do Cabo York, em 1770, e refletiu que "os nativos nada sabem de cultivo, e "quando se pensa na proximidade entre esta região e a Nova Guiné... que produz cocos e muitos frutos próprios para o sustento do homem, parece estranho que não tenham sido há muito tempo transplantados para aqui". Para ele, e muitos outros antropólogos posteriores, os aborígines pareciam muito atrasados por terem permanecido caçadores-coletores quando podiam ter adotado estilos de vida "próprios para o sustento do homem". Por estudos dos aborígines, tornou-se claro que não se podia explicar sua dedicação à caça e à coleta com a falta de conhecimento agrícola, pois sabiam bem como cultivar plantas. Quando os do Cabo York colhiam
inhame selvagem, por exemplo, muitas vezes tinham o cuidado de deixar partes dos tubérculos atrás, ou mesmo as replantavam para garantir o abastecimento no ano seguinte. Além disso, substanciais contatos comerciais entre os aborígines e os ilhéus do Estreito de Torres haviam posto os caçadores-coletores em contato direto com os agricultores. Logo, por que a agricultura não se disseminara da Nova Guiné para a Austrália, como fizera do oeste da Ásia para a Europa? Uma resposta foi fornecida por Peter White, da Universidade de Sydney, em 1971: os caçadores-coletores australianos "estavam simplesmente em situação demasiado boa para se preocuparem com agricultura". Nessa data, as opiniões sobre a agricultura tinham mudado muito em relação às defendidas por James Cook, e na verdade por acadêmicos até final da década de 1960. A opinião de que a agricultura era um passo inevitável no caminho da civilização, que podia ser dado em toda oportunidade, fora derrubada. Acadêmicos ocidentais que viveram com caçadores-coletores na Austrália e na África concluíram que tinham estado entre o que o antropólogo Marshall Sahlins declarou ser a "sociedade afluente original". Descobriu-se que esses caçadores-coletores não trabalhavam mais que algumas horas por dia, eram livres dos males causados pelas exaustivas aradura e colheita e não estorvados pelas tensões sociais e violência encontradas em comunidades agrícolas densamente povoadas. E assim, a pergunta que Peter White e seus colegas faziam em 1970 não era porque alguns caçadores-coletores "deixaram" de adotar a agricultura, mas o que obrigara os outros a fazê-lo, quando tinha conseqüências tão desastrosas para sua qualidade de vida. Lubbock tem sua primeira visão da Nova Guiné de longe — baixadas verdes sob nuvens claras que se definem em montanhas de aparência fantasmagórica. Os companheiros que não o vêem ficam numa das ilhas e ele segue remando sozinho para a linha costeira bordejada de manguezais. Uma larga boca de rio leva-o à própria Nova Guiné. Por alguma distância o rio continua largo, serpeando em finas curvas embaixo de margens cobertas de mangues, até que, após uma hora de remo, se divide em dois. Um braço é de água cor de chocolate, indicando ser um rio de floresta que surge em terras baixas, e o outro é branco como leite, revelando que suas águas correram antes sobre calcário, e, portanto tem nascente montanhesa. Para encontrar assentamento humano, Lubbock deve seguir este último. Embora com toda probabilidade existissem assentamentos substanciais
nas baixadas da Nova Guiné em 6.000 a.C., os arqueólogos ainda não os encontraram. Assim começa a exploração das baixadas por Lubbock. A primeira exploração européia na verdade só ocorreu na década de 1930. Expedições anteriores à Nova Guiné, como a do Sindicato de Ornitólogos Britânicos chefiada por A.F.R. Wollaston em 1910, acreditaram que se podia encontrar outras "novidades" além de pássaros exóticos acima de 1 mil metros. Mas não tinham idéia de quais novidades poderiam ser; tampouco sabiam que existiam férteis vales entre as montanhas, julgando que uma única cadeia de montanhas atravessava o meio da ilha. O primeiro contato europeu com os montanheses da Nova Guiné que viviam dentro desses vales foi de missionários luteranos alemães em 1919. Eles mantiveram sua descoberta em segredo por receio de atrair rivais no ramo de salvação de almas humanas: os batistas, anglicanos, wesleyanos e, a mais temida oposição, os católicos romanos franceses. Foi a busca de ouro de garimpeiros australianos na década de 1930 que trouxe os montanheses da Nova Guiné ao conhecimento público. Em 1935, Jack Hides penetrou num dos vales entre as montanhas como seu colega garimpeiro Jim O'Malley. Depois escreveu que "em cada encosta tinha quadrados cultivados, e pequenas colunas de fumaça que subiam no ar parado revelaram-nos as casas das pessoas desta terra. Eu nunca linha visto nada mais bonito. Além de tudo ficavam as alturas de uma poderosa cadeia de montanhas que faiscava em alguns pontos com as cores do sol poente". A jornada de Lubbock também leva às montanhas, mas muito antes do início desse intenso cultivo. Com a continuação de sua viagem fluvial, pequenas árvores, das quais ele colhe frutas frescas, substituem os manguezais. Quando o rio corre reto, ele tem vislumbres das montanhas ao longe; mas tais vistas infreqüentes logo se perdem quando o rio se estreita mais e começa a serpear entre árvores enormes que tapam tudo, com exceção de uma fina faixa de céu. A viagem torna-se monótona; a vegetação da beira do rio transforma-se em mirrado matagal e troncos podres projetam-se de íngremes margens lodosas. Nos dias bons o ar é rançoso; na maioria dos outros fede a decomposição orgânica. Chove freqüentemente, e as sanguessugas são implacáveis na busca do sangue de Lubbock. A compensação por essas provações chega nas ocasionais visões de pássaros exóticos, em especial as plumas grandiloqüentes de uma ave do paraíso. Quando o rio começa a
subir, os pássaros exóticos são substituídos por outras maravilhas naturais: iguanas tomando sol em troncos; abelharucos e andorinhas mergulhando em enxames de mosquitos amarelo-vivo; pés de fetos e trepadeiras floridas. Lubbock, porém, está mais interessado na primeira indicação de que outro tipo de morador da floresta se encontra próximo. Algumas das árvores caídas foram evidentemente cortadas com machados de pedra; outras, queimadas. Ele passa por uma canoa de tronco escavado afundada na lama do rio. E há trilhas — pequenos sendeiros onde o mato foi cortado ou simplesmente pisado. Algumas cruzam o rio, outras correm paralelas por curtos trechos antes de desviar-se para dentro da floresta. Algumas devem ser de animais, mas pés humanos marcaram muitas outras. Lubbock poja a canoa, deixa o rio e começa a seguir uma dessas trilhas rumo ao que hoje chamamos Vale Wahgi. O ar continua quente, úmido e rançoso; a luz é sombria e assume um tom esverdeado. Só em raras ocasiões é o dossel incompleto, espadanando sol no chão da floresta. Novos odores sobem — alguns parecendo madressilva, outros frutos podres. E novos sons, talvez os mesmos pássaros e animais que ele ouviu antes, mas agora limitados e abafados pela confusão de árvores. Talvez vozes humanas. A trilha continua, pela floresta, ao longo de margens de rios, e segue para cumes dos quais ele vê a imensa vastidão da floresta subindo as colinas e desaparecendo sob pesadas nuvens. Abaixo dessas nuvens, a floresta sobe até 4 mil metros acima do nível do mar. Em 6.000 a.C., só recentemente atingiu esse nível; durante o LGM, baixas temperaturas é reduzida chuva mantiveram as nuvens abaixo de 2 mil 500 metros. Em vez de floresta montanhesa, havia matagais abertos com dispersos arbustos e samambaias. As geleiras formaram-se nos cumes e estenderam-se pelos vales montanheses mais altos. Os matagais podem ter sido bons territórios de caça. Conhecem-se dois sítios perto da linha das árvores, mas nenhum revela muita coisa sobre o que as pessoas faziam nas montanhas. Kosipe tinha artefatos espalhados, incluindo machados, a 2 mil metros acima do nível do mar, alguns lá deixados desde 27.000 a.C. Densos capões de árvores frutíferas e de nozes ainda crescem próximo, sugerindo que Kosipe pode ter sido ocupado por pessoas em expedições sazonais para colher produtos vegetais. Um pouco mais abaixo, 1 mil 720 metros, encontra-se a caverna Nombe, que foi esporadicamente ocupada entre 27.000 e 12.500 a.C.
Junto com artefatos de pedras, encontraram-se ossos de animais que viviam no chão e nas árvores. Os ocupantes humanos de Nombe parecem ter dividido o tempo com o tilacino, o cão selvagem também conhecido como tigre da Tasmânia. Encontraram-se igualmente os ossos de vários animais da floresta, mas ainda não está claro se eles, e outros, foram presa de ocupantes humanos ou animais. Com a chegada do acentuado aquecimento global em 9.600 a.C., as árvores espalharam-se acima de 3 mil metros, seguindo na esteira de arbustos que já tinham invadido as maiores altitudes. Ao contrário da tendência global, o clima parece ter-se tornado menos sazonal, em vez de mais. Dentro de mais dois milênios, as florestas eram muito parecidas com as que Lubbock viu em sua viagem ao Vale Wahgi, e com os que se vêem hoje. As partes superiores desse vale ficam cerca de 20 quilômetros a oeste do Monte Hagen, no centro de Papua Nova Guiné. Os missionários chegaram pela primeira vez em 1933 e encontraram uma série de pequenos impérios governados por chefões ditatoriais. A riqueza e poder deles eram medidos pelo número de porcos, mulheres e bens de contas que possuíam, adquiridos por um complexo sistema comercial entre tribos conhecido entre os antropólogos como escambo Moka. As mulheres e os homens de baixa condição trabalhavam em hortas, cultivando safras de inhame, batata-doce e taro. A guerra entre aldeias era endêmica, um meio pelo qual os chefões ampliavam e consolidavam seu poder. Os missionários, seguidos de perto pelos garimpeiros em busca de ouro e autoridades de governos, foram tratados como pessoas do mundo dos espíritos. Forneciam um suprimento aparentemente ilimitado de desejados machados de aço e conchas marinhas. Ao fazerem isso, solaparam o tradicional sistema cerimonial de escambo do qual dependiam os chefões para assegurar sua riqueza. A guerra também foi eliminada e os administradores europeus começaram a usurpar a autoridade dos chefes tradicionais. Em conseqüência, quando o antropólogo Andrew Strathern foi viver com a tribo kawelka no Alto Vale Wahgi, no início da década de 1960, para fazer um estudo clássico da sociedade de chefões, o estilo de vida tradicional já fora substancialmente alterado pelo contato com o Ocidente. Por volta dessa época, membros da tribo kawelka retornaram à parte do Vale Wahgi conhecida como Pântano Kuk. Tinham abandonado essa terra
em 1900, após a derrota numa luta tribal, e todos os sinais de cultivo anterior se achavam cobertos por um denso tapete de mato. O Pântano Kuk fica 1 mil 500 metros acima do nível do mar, e parece hoje uma extensa área de matagal quase sem árvore alguma. Ao norte e a leste do pântano há um cume alto e estreito conhecido como Ep, coberto de mato muito mais baixo e as únicas árvores da região. Não fazem, porém, parte da floresta original do Vale Wahgi, são uma leva secundária que ocorreu depois que a área fora inteiramente desmatada para a agricultura. Encontram-se pântanos ao sul, e baixas colinas separadas por terreno drenado a oeste. A tribo kawelka iniciou sua recolonização do Pântano Kuk criando hortas nas terras secas em volta; dentro de três anos, a confirmação de seus direitos territoriais por tribos vizinhas, e o aumento do número de seus membros, levaram-nos a recuperar o próprio pântano, abrindo grandes valas de drenagem. Mas o governo tomou grande parte do Pântano Kuk em 1969 para suas obras, incluindo uma estação de pesquisa agrícola, e inibiu a expansão kawelka. Foram as escavações nessa estação de pesquisa na década de 1970, feitas por Jack Golson, da Universidade Nacional da Austrália, que revelaram uma história muito mais antiga de agricultura nas montanhas da Nova Guiné. John Lubbock chega a uma clareira acima do Pântano Kuk em 5.500 a.C., a trilha levando-o às colinas a oeste da própria área pantanosa. A paisagem é bem diferente do matagal aberto que será encontrado pelos missionários e antropólogos do século XX. A floresta que veio crescendo e evoluindo nessa altitude durante muitos milhares, provavelmente milhões, de anos permanece em grande parte intata, após sobreviver por todo o LGM. Mas nas terras secas em torno do pântano há clareiras onde a floresta já desapareceu; dentro de algumas destas, estabeleceram-se arbustos e mato, que criaram um emaranhado de vegetação rasteira. As árvores na clareira de Lubbock só recentemente foram abatidas — tocos calcinados sugerem o uso de machado e fogo. Como resultado, a luz do sol inunda as poucas árvores e plantas que restam. Exatamente quando Lubbock se agacha para examinar uma dessas plantas, tem a atenção atraída para uma coisa mais impressionante — um porco. Um porco gordo, pardo e peludo, com presas brancas, dormindo num buraco que ele mesmo fez. Lubbock aproxima-se com cuidado. O bicho se mexe e ele pára. Grunhindo, o porco levanta-se e Lubbock
primeiro fica espantado com o seu tamanho, e depois com medo. O animal adianta-se, fareja e torna a grunhir; tenta dar outro passo, mas é detido por uma corda — uma corda de fibras de casca de árvore trançadas que o amarra a uma estaca. O porco puxa, mas sem muita força, e depois se vira, despreocupado, para voltar a espojar-se. A borda da clareira dá para O outro lado do pântano, onde pessoas trabalham, as primeiras que Lubbock vê desde que atravessou de canoa o Estreito de Torres. Uma área de cerca de meio quilômetro da floresta já foi aberta e está agora coberta por um mosaico de plantas diferentes. Os homens e mulheres, dez ou doze ao todo, cavam com pás de madeira. Têm a pele escura e estão nus, a não ser por curtas saias feitas de folhas e mato. Um monte comprido e baixo de barro cinzento assinala a trilha de seu trabalho, uma vala reta que atravessa a terra úmida dos pântanos na extremidade sul até um rio que corre na margem norte. Lubbock desce a encosta e caminha entre as plantas, descobrindo que muitas crescem em ilhas circulares entre uma rede de canais, eles próprios cheios de plantas folhudas. Bananeiras foram plantadas nas ilhas, junto com vários outros tipos de plantas de folhas verdes conhecidas por Lubbock de sua viagem por florestas. Entre estas há outra planta tipo árvore que ele também viu na floresta, mas nunca tão grande e saudável. Tem grosso talo, ou tronco nos espécimes maiores, do qual folhas brotaram e caíram em espiral, deixando uma aparência de saca-rolhas. Raízes brotam do próprio talo e parecem escorar as plantas; na verdade, em alguns dos espécimes maiores, a própria base do talo já se decompôs inteiramente. As plantas nas valas, crescendo em condições muito mais úmidas, são dominadas por um tipo que tem folhas grandes, em forma de coração, de cor verde-clara; muitas ainda não deixaram a ponta de compridos talos. Lubbock quebra um broto novo e rola-o entre os dedos, espremendo a seiva; tem um cheiro acre, que arde nas narinas e na pele. Uma vala de irrigação está sendo cavada; muito maior que as que definem as leiras elevadas, corre reta por várias centenas de metros e destina-se evidentemente a conduzir um fluxo contínuo de água. A escavação é trabalho árduo, pois a vala já fica à altura da cintura, o barro pesado para retirar e a umidade sufocante. O termo "pá" é uma descrição bondosa para os instrumentos usados, pois são pouco mais que varas achadas. Lubbock
logo está usando uma delas apenas para deslocar o barro, que depois retira com as mãos nuas. Enquanto a maioria das pessoas cava, outras transportam parte do barro a ilhas, para elevá-las mais alto que os canais em volta. Outras ainda capinam em tomo das plantas, retirando folhas doentes, matando alguns dos insetos que encontram e deixando outros. Uma mulher atravessa entre as plantas nos canais e colhe folhas novas. Faz isso com muito cuidado, para não prejudicar as plantas, e parece inteiramente indiferente à irritação que Lubbock sentiu quando tocou folhas semelhantes. Após algumas horas, decide-se que o trabalho do dia foi concluído. Lubbock segue atrás dos outros trabalhadores que se encaminham para o rio, para lavar a lama dos corpos e saciar a sede. E então todos seguem uma pequena trilha por entre as árvores até chegar a outra clareira. Esta tem pelo menos vinte cabanas, cada uma feita com galhos curvados em domos e cobertos de palha de bananeira. Cercas protegem um trecho de plantas cultivadas e um chiqueiro onde se mantém um porco. Uma fogueira, entre várias na aldeia, fumega, e crianças correm para receber o grupo que retorna. Os cestos de folhas colhidas no Pântano Kuk são passados a uma velha que se senta junto à fogueira e o grupo dispersa-se para descansar. Nessa noite, a fogueira está em chamas de novo e pelo menos trinta pessoas se reúnem para comer as folhas apanhadas no campo e preparadas pela velha. Foram trituradas, cobertas de suco de frutas, enroladas em folhas de bananeira e cozidas sobre pedras quentes. * As escavações de Golson no Pântano Kuk descobriram traços de antigas valas de drenagem, ocos e buracos de estacas no fundo e nos lados das modernas valas de drenagem da estação de pesquisa agrícola de Kuk. Trabalho posterior expôs outras dessas e mostrou que as mais velhas datavam de cerca de 8.200 a.C., com outro conjunto construído cerca de 3 mil anos depois. Esse segundo conjunto de valas, aquele em que Lubbock trabalhou, consistira de longos canais de irrigação, de até dois metros de profundidade, e uma rede de canais muito mais rasos, criando um labirinto de pequenas ilhas. Ainda mais tarde, por volta de 2.000 a.C., as valas se tornaram mais numerosas, distribuídas de forma mais sistemática e cobrindo uma área maior. Golson acredita que essas valas oferecem indícios da mais antiga atividade agrícola nas montanhas — os primeiros estágios no
desenvolvimento das sociedades de grandes homens que seriam encontradas no século XX. Não está claro, porém, exatamente que tipo de agricultura — se algum houve — foi tentado em 5.500 a.C., devido à ausência de restos de plantas, artefatos e vestígios de assentamento. Mas os solos são muito reveladores. Na base da mais funda das valas modernas há uma densa turfa, criada por muitos milênios de plantas decompostas na bacia. Alguns dos ocos e buracos de estaca foram feitos nela e depois enchidos com o barro cinzento que cobria toda a área. Essa argila pareceu formar-se rápido, 10 centímetros depositados a cada milênio entre 8.200 e 5.500 a.C. Golson acredita que o barro seja o resto de solo da área de terra seca em volta do pântano erodida na bacia depois que as primeiras clareiras desestabilizaram os solos. Ele sugere que os ocos embaixo e em cima do barro poderiam ser os chiqueiros de porcos, pois parecem exatamente os criados quando os animais são amarrados a estacas. Além de bananas nativas, traços microscópicos das quais restaram no solo, só se pode imaginar as plantas cultivadas no Pântano Kuk. A batatadoce, atualmente a safra mais importante na Nova Guiné, certamente não estava presente, pois só chegou à ilha há três séculos. O taro é o candidato mais provável - a planta dentro dos canais de drenagem que queimou as mãos de Lubbock. Não se encontraram restos de taro nas escavações de Golson, mas pode-se explicar isso com a má preservação. Julgava-se antes que foi uma planta introduzida, após ser cultivada primeiro na Indonésia. Mas agora parece mais provável que tenha sido nativa da Nova Guiné e independentemente domesticada na Ilha. É uma das mais disseminadas safras tropicais hoje, e era uma planta-chave cultivada pelos montanheses da Nova Guiné quando encontrados pela primeira vez na década de 1930. Suas folhas e talo subterrâneo, ou cormo, podem ser usados como legumes. Embora tolere altas altitudes, o taro precisa de muita água para vicejar, e assim talvez seja o melhor candidato para as plantas cultivadas no Pântano Kuk. Três outros candidatos prováveis são inhame, sagu e pandano — as plantas com talos em forma de saca-rolhas. Todas três foram usadas em formas selvagens pelos caçadores-coletores do norte da Austrália e como plantas cultivadas pelos montanheses da Nova Guiné. Capões de pandano, também conhecido como pinheiro parafuso, eram ciosamente guardados e mantidos em tempos recentes, pois proporcionavam substanciais
quantidades de frutos. Uma ampla gama de outras plantas de folhas verdes, incluindo cana-de-açúcar, poderia facilmente ter sido cultivada no Pântano Kuk — plantas outrora colhidas das florestas e pântanos e agora irrigadas, arrancadas e talvez transplantadas de outras partes. Exatamente como para a mata em torno de Ain Mallaha em 12.000 a.C. e o matagal em torno de Guilá Naquitz em 8.000 a.C., o termo "horta selvagem" é a mais apropriada descrição para o Pântano de Kuk em 5.500 a.C. O uso da palavra "agricultura" para as descobertas de Golson é provavelmente impróprio para o lugar e a época; as hortas selvagens do Pântano Kuk constituíam uma forma de coleta de planta sem radical rompimento com o passado de caça-e-coleta. Na verdade, a intervenção na floresta pode remontar ao tempo da primeira chegada humana à Nova Guiné. Apesar disso, há ainda a questão do que motivou as pessoas a empreenderem o cultivo nas terras úmidas em vez da simples coleta. Pode ter ocorrido que uma população crescente fosse incapaz de assegurar comida suficiente apenas da floresta em terra seca. É provável que as terras úmidas dessem produções muito maiores — mas só depois de substancial investimento inicial em trabalho para secar a terra. E, no entanto, como descobrimos quando pensamos na origem do cultivo de abóbora no Vale de Oaxaca, no México, não há indício de que sugira pressão populacional; na verdade, não temos indício algum sobre os níveis de população da Nova Guiné antes da década de 1930. Quando Kent Flannery enfrentou esse dilema, sugeriu que o povo de Guilá Naquitz, de Oaxaca, talvez estivesse tentando tornar a disponibilidade de alimentos vegetais mais confiável. Isso oferece a explicação mais eficaz para o investimento feito na derrubada de árvores e escavação de valas no Pântano Kuk, e supostamente em outras partes nas montanhas e baixadas da Nova Guiné nessa data. É provável que o resultado tenham sido localidades espalhadas por toda a ilha, onde grandes safras de alimentos vegetais podiam ser asseguradas em tempos específicos do ano. Essas localidades permitiriam a grupos normalmente dispersos reunir-se e passar tempo juntos. Portanto, a motivação para a drenagem dos pântanos pode ter sido tanto por causas sociais quanto nutricionais — exatamente como o cultivo de trigo selvagem nas vizinhanças de Göbekli Tepe no sudeste asiático em 9.500 a.C. A mudança de caçadores-coletores da Nova Guiné que também
cultivavam plantas para horticultores e coletavam alimentos selvagens pode ser atribuída aos porcos que Lubbock viu espojando-se no Pântano Kuk. Esse animal teve de ser introduzido na Nova Guiné da Indonésia, onde ou fora domesticado ou se espalhara já domesticado de uma fonte original na China. Embora os porcos sejam bons nadadores, a travessia mais curta para a Nova Guiné, no nível mais baixo do mar, teria sido de quase 100 quilômetros, e, portanto, eles tiveram de ser transportados de barco. Alguns arqueólogos têm certeza de que tais porcos se achavam presentes na Nova Guiné em 6.000 a.C., em vista de ossos deles encontrados cm depósitos de cavernas que se acredita terem pelo menos essa idade. Na verdade, em um caso se propôs uma data de 10 mil anos. Mas pelas poucas datas de radiocarbono disponíveis, a mais antiga presença do porco é de uns meros 500 anos atrás. Uma vez presentes na ilha, em 6.000 a.C. ou em tempos muito mais recentes, os porcos se tornaram um estorvo, senão uma séria praga, para os que cultivavam plantas. Selvagens ou domésticos, também gostavam de muitas das plantas nativas da floresta — e hortas selvagens. Todas, quer dizer, com exceção do taro, por causa de suas toxinas; mas os porcos, quando fuçavam nas valas, poderiam ter devorado mesmo essas plantas. E assim os cultivadores teriam tido necessidade de impor uma barreira entre os domínios da natureza e a cultura humana, cercando suas hortas. Essas barreiras físicas também podem ter criado uma barreira mental entre caçadores-coletores e horticultores, com as pessoas cercando-se num ou noutro domínio. Nos dias seguintes, Lubbock permanece no Pântano Kuk, ajudando a completar as valas de drenagem e capinando em torno do taro, bananeiras e pandano. Então decide que é hora de partir: com a passagem de 5.500 a.C., sua jornada pela pré-história australiana chegou ao fim. Não muito depois, os próprios aldeões dispersam-se pelas colinas e retomam sua caça e coleta de alimentos selvagens. Retornarão ao Pântano Kuk quando as bananas estiverem maduras e os cormos do taro prontos para desenterrar. No momento, estão aliviados por partir — viver num só lugar não está em sua natureza, e não estará por mais outros poucos milhares de anos. Num dia sem nuvens, Lubbock sobe as encostas do Monte Hagen, transpondo a linha de árvores para o prado montanhês. De um penhasco, olha para leste e vê o Oceano Pacífico. Há grandes ilhas próximas, as que serão
conhecidas como Arquipélago Bismarck, e espalhadas no horizonte, as futuras Ilhas Solomon. Há pessoas nessas ilhas, e muito provavelmente em barcos viajando entre elas, A travessia marítima para as Solomon foi feita primeiro num tempo tão distante quanto 30.000 a.C., embora viagens mais longas no Pacífico não fossem tentadas por mais vários milênios. As viagens entre as ilhas devem ter sido mais fáceis quando os níveis do mar baixaram no LGM. Durante esse tempo, um pequeno marsurpial que subia em árvores, conhecido como falánger, se tornara outro novo ocupante. Não está claro se foi levado intencionalmente para abastecer as ilhas com caça selvagem ou se chegou como "clandestino". Mas os arqueólogos encontraram seus ossos nas cavernas da Nova Irlanda, junto com artefatos de pedra dos caçadores da era do gelo. Lubbock sobe mais alto até que outro penhasco oferece uma vista do sul: mais ilhas, o Estreito de Torres, e depois a Austrália. Ele levou 12 mil anos para viajar os 6 mil quilômetros da Caverna Kutikina na Tasmânia até onde está agora. As lembranças da caça ao wallaby e um enterro ao luar, de desertos e manguezais, de combatentes, Serpentes do Arco-Íris e viagens de canoa por rios infestados de sanguessugas estão tão claras em sua mente quanto o céu é brilhante e azul. Deseja poder ter tempo de subir as montanhas do leste da Austrália, cruzar o deserto do oeste, demorar mais com os pintores da Terra de Arnhem e descobrir se o Diprodotonte andou de fato pastando nas matas do rio Murray. Após mais uma hora de caminhada, aproxima-se do cume e tem vista para norte c leste. Nessas direções estão não apenas a Indonésia, a China e o Japão, mas também o início de outra viagem pela história humana.
38 Solitário em Sundaland Caçadores-coletores nas florestas tropicais do sudeste asiático, 20.000 – 5.000 a.C. Em julho de 1971, Manuel Elizalde, membro do governo de Ferdinand Marcos responsável pelas minorias nacionais nas Filipinas, fez um anúncio incrível. Os "tasaday", um grupo de caçadores-coletores moradores em cavernas, que usavam instrumentos de pedra, fora descoberto vivendo em completo isolamento do mundo moderno na floresta de Cotabato, no sul do arquipélago. Logo seguiu-se um informe na revista National Geographic, intitulado "Primeiro Vislumbre de uma Tribo da Idade da Pedra", ilustrando o estilo de vida desse povo com brilhantes fotos de mulheres de seios nus e saias de folhas de orquídeas. Durante um ano e meio, os tasaday tornaram-se celebridades nos meios de comunicação. Comboios de jornalistas, fotógrafos, políticos e cientistas fizeram badaladas visitas às suas cavernas, tudo sob estrita supervisão de Elizalde. Os jornais estamparam suas histórias, escreveram-se livros e fizeram-se filmes sobre eles. Como os delicados e pacíficos tasaday, vivendo em completa harmonia com a natureza e uns com os outros, eram a antítese da vida em outras partes do sudeste asiático, tal bajulação não surpreendia. À distância de uma simples pedrada do outro lado do Mar da China, os Estados Unidos bombardeavam os vietnamitas. Uma voz questionou a autenticidade dos tasaday: a do antropólogo filipino Zeus Salazar. Sua contestação foi imediatamente eliminada e ele impedido de visitar o povo tasaday. Em 1972, o acesso a eles foi completamente proibido, quando o Presidente Marcos criou uma reserva florestal especial para sua proteção. Prometiam-se longas sentenças de prisão para qualquer um que se atrevesse a entrar. Talvez se possa desculpar o fato de que muitos arqueólogos tenham ficado tão fascinados quanto os jornalistas pela descoberta de pessoas da Idade da Pedra nas florestas do sudeste asiático. A arqueologia dessa região — a Península da Malásia e as ilhas da Indonésia — entre 20.000 a.C. e 5.000 a.C. consiste quase inteiramente de artefatos de pedra lascada. Como estão entre os menos impressionantes instrumentos feitos
por seres humanos modernos, os arqueólogos se referem polidamente a eles como "formas não padronizadas". Em vista da natureza não informativa desses instrumentos, os tasaday pareciam oferecer uma oportunidade imperdível de ver não apenas como tinham sido usados, mas toda a panóplia da própria Idade da Pedra. Os arqueólogos encontraram instrumentos de pedra dentro de cavernas, muitas vezes profundamente enterrados sob múltiplas camadas de estéreo de morcego, teto desabado e terra antiga. A grande maioria não passa de pedras das quais se retiraram lascas com a evidente intenção de dar uma forma. Algumas têm uma ou mais bordas alisadas; outras podem ter sido lascadas para criar uma "cintura" em torno da qual fibras as atavam a um cabo. Na península malaia, a maioria era feita de pedras completas, enquanto nas ilhas indonésias usou-se uma maior proporção de lascas. Todos esses instrumentos são muitas vezes agrupados e chamados de cultura hoabinhiana. Uma das maiores coleções veio da Caverna Niah, hoje localizada em Sarawak. É dentro dessa caverna que começa a viagem de John Lubbock pela pré-história do leste da Ásia, e que o levará dos trópicos equatoriais para as profundezas do Círculo Ártico. Lubbock acorda numa caverna que parece uma catedral e senta-se à sua entrada olhando uma aurora na floresta tropical. A garganta abaixo e as árvores adiante estão semi-obscurecidas por uma forte cerração matinal. Andorinhas entram e saem como dardos, sendo o teto da caverna coberto de seus ninhos. Os morcegos desaparecem por corredores nos inclinados recessos da gruta. Foi uma noite agitada, com o incômodo de insetos rastejantes igualado pelo fedor do estéreo no chão. Mas no frescor do alvorecer, antes de começarem os pavorosos calor e umidade, as camadas de nuvens que se levantam infundem em John Lubbock energia para o dia. Os saltos e guinchos ressonantes de uma macaca gibão sugerem que também ela deve estar sentindo a mesma coisa. A data é 18.000 a.C., e a boca da caverna é clara, fria e inteiramente seca. Lubbock pensa que daria um abrigo atraente para caçadores-coletores — certamente é melhor que muitas dentro das quais se acocorou durante sua viagem ao redor do mundo. Quando o sol conclui uma ascensão extraordinariamente rápida, Lubbock busca vestígios de atividade humana dentro da caverna. O próprio chão só é visível na área de entrada, onde insetos e o vento levaram o esterco. Os
únicos ossos que ele encontra são de pássaros que fizeram ninho ali dentro. Muitos fragmentos de pedra jazem sobre o esterco, ou em parte enterrados nele, mas Lubbock não pode concluir se foram lascados por mãos humanas ou quebrados pela natureza. Igualmente incerto é se foram "feitos" há poucos dias, anos, séculos ou mesmo milênios. Tom Harrison, curador do Museu de Sarawak, fez as primeiras escavações na Caverna Niah, trabalhando na boca oeste entre 1954 e 1967. Sua experiência é mais bem descrita pelo nome que ele deu à sua escavação — Inferno. Trabalhada em condições de calor sufocante, umidade de quase 100% e sol da tarde direto, a vala "Inferno" produziu um crânio humano provavelmente de 40 mil anos, um dos primeiros seres humanos a ter vivido no sudeste asiático. Harrison também recuperou grande número de artefatos de pedra e vários túmulos humanos nos depósitos superiores da caverna. O material de Niah na certa cobria toda a duração do assentamento humano no sudeste asiático, incluindo o período de 15 mil anos que interessa a esta história. Mas não podemos ter certeza. Tom Harrison tinha muitas qualidades notáveis — incluindo, dizem os rumores, um palang — mas a de escavar sedimentos em cavernas não estava entre elas. Embora o chão da caverna fosse fortemente ondulado, ele fatiou seus depósitos em camadas horizontais, com toda probabilidade misturando artefatos de idades bastante diferentes. Os ossos que submeteu ao radiocarbono com toda probabilidade vinham de animais que simplesmente tinham vivido e morrido na caverna, e não esquartejados por mãos humanas. Em sua defesa, pode-se dizer que trabalhava muito antes de os arqueólogos terem começado a entender a verdadeira complexidade da formação de depósitos e coleções de ossos. Felizmente, uma nova equipe de arqueólogos começou há pouco a trabalhar na caverna, aplicando as últimas técnicas de escavação. Chefiado por Graeme Barker, da Universidade de Leicester, iniciou-se um projeto quadrienal de escavação em 2.000 d.C., para desenredar a complexa história de sedimentação e registro de atividade humana de Niah. Quatro anos de trabalho de campo exigirão pelo menos a mesma quantidade de tempo gasto em estudo de laboratório para analisar as descobertas. Assim, serão muitos anos até descobrirmos o que a Caverna Niah pode revelar sobre a história humana quando o Pleistoceno chegou
ao fim. Embora Barker tenha trabalhado antes nas extenuantes condições dos desertos da Líbia e da Jordânia, descreve as de Niah como de longe as mais difíceis que já enfrentou. Felizmente, descobriu que Sarawak oferece generosa compensação por seus labores: A caverna fica a uma hora de caminhada e sobe pelo meio de uma floresta tropical... Todo o equipamento especializado tem de ser levado para a caverna de nosso acampamento à beira do rio todo dia, e depois trazido de volta com sacos de sedimentos. Acrescentem-se a isso as cobras na caverna, os crocodilos no rio e as venenosas samambaias e milípedes, junto com a arrasadora beleza da floresta tropical e a hospitalidade de sua gente, e ter-se-á uma inesquecível e estimulante experiência. Há duas características impressionantes nos artefatos hoabinhianos, a primeira das quais é a sua simplicidade. Isso com toda probabilidade reflete seu papel mínimo no dia-a-dia dos catadores de comida no sudeste asiático quando a era do gelo chegou ao fim. Com uma ampla gama de robusto material vegetal à disposição, notadamente bambu, pouca necessidade havia de pedra. A segunda característica é sua consistência pelo tempo afora - um notável contraste com a tecnologia em outras partes no mundo pós-LGM. Isso se deve ao fato de as florestas da região — e supostamente as pessoas que nelas viviam — também terem permanecido em grande parte imutadas, enquanto o resto do mundo seguia sua montanha-russa rumo ao aquecimento global. Mais precisamente, as florestas das massas de terra sobreviventes sofreram uma mudança mínima — o mar crescente inundou as que cobriam as extensas planícies baixas. Na época da visita de Lubbock, Bornéu, Sarawak, Java, Sumatra e a Península Malaia formavam uma contínua extensão de floresta tropical e manguezal, grande parte dos quais se acham agora sob o Mar do Sul da China. Conhecida pelos arqueólogos como Sundaland, essa antiga massa de terra também se espalha 30 quilômetros para oeste, além da linha costeira da península do atual Mar de Andaman. O resultado foram mais dois milhões de quilômetros quadrados de floresta — duas vezes a área que existe hoje e a maior extensão de floresta no mundo da era do gelo. O outro lado disso foi uma linha costeira de não mais da metade do comprimento da de hoje. Como fica evidente por esta história, os caçadores-coletores são freqüentemente atraídos para habitats costeiros, devido à abundância e diversidade de recursos que oferecem. Pode-se
explicar em grande parte a pobreza do registro arqueológico no sudeste asiático com este simples fato: os artefatos de pedra encontrados dentro das cavernas podem resultar de raras incursões ao interior de pessoas que viviam em assentamentos costeiros. Se tivessem sobrevivido, os arqueólogos poderiam também ter moradas, monturos e túmulos para escavar. Do passado relativamente recente, tais monturos de conchas sem dúvida existem, depois que se alcançaram os modernos níveis do mar por volta de 6.000 a.C. Ou pelo menos existiram até a exploração de pedreiras para tirar suas conchas — usadas para fazer cimento — que não deixaram mais que buracos cheios d'água no chão. A floresta em volta da Caverna Niah é sutilmente diferente da vista por Lubbock na Nova Guiné: ele está agora no lado oeste da "Linha Wallace" — a fronteira entre a flora e a fauna que tem uma descida australiana para seu leste e uma asiática para seu oeste. Mas embora Lubbock tenha cruzado essa fronteira, grande parte de sua experiência florestal é inteiramente conhecida. A umidade é extrema e as sanguessugas igualmente ávidas por sugarem o seu sangue. A floresta abunda em árvores gigantescas com troncos escorados ou sulcados. Algumas árvores parecem brotar em pleno ar, com uma sombrinha de raízes aéreas, e outras têm sua própria floresta de troncos. Palmeiras, trepadeiras, samambaias e epifitos enchem os espaços intermediários. As flores são escassas. Muitas das orquídeas têm flores inconspícuas decepcionantes; mas estas tornam tanto mais surpreendentes as ocasionais exibições extravagantes. A floresta está superlotada: sempre que Lubbock pára, borboletas vêm alimentar-se do seu suor; búceros alternadamente batem as asas e deslizam por rios com sua cauda de plumas; orangotangos espiam-no de topos de árvores; formigas atacam-no a partir do chão. E, no entanto, ele se sente só em meio a essa abundância de vida animal, pois não há gente entre as árvores nem sinal algum que indique sua presença. Tendo viajado da Caverna Niah para o leste, Lubbock agora senta-se dentro de outra caverna, conhecida dos arqueólogos como Gua Sireh. É muito menor que Niah e ainda mais distante do mar, agora a 500 quilômetros. O céu escurece e cai um silêncio. Imensos glóbulos de chuva começam a despencar; espadanam na entrada da caverna e o trovão ruge sobre as árvores. O clarão de um relâmpago ilumina por um instante cada folha, gavinha e flor da floresta por quilômetros em volta. A escuridão
retorna quando a chuva cai com extraordinária força. Lubbock recua para dentro da caverna e mais uma vez busca detritos de vida humana. Mas não encontra nem artefatos nem fogueiras, nem ossos esquartejados nem montes de lixo vegetal. O único sinal possível de presença humana recente é um punhado de conchas de moluscos parecidas com as que ele viu nos rios da floresta. Poderiam ter chegado à caverna apenas pela natureza — talvez trazidas por um pássaro ou uma enorme inundação? Lubbock acha que não. Mas como a pedra lascada na Caverna Niah, pouca coisa indica exatamente há quanto tempo as conchas jazem no chão. A viagem de Lubbock continua, agora para noroeste, cruzando um pântano coberto de floresta do qual emergem algumas ilhas isoladas. Após viajar 200 quilômetros de Gua Sireh, ele chega ao que se tornará a Península Malaia. O terreno é montanhoso, penhascos de granito levandoo a profundos vales interiores antes que íngremes cristas de calcário subam no oeste. Brancos precipícios nus faíscam ao sol em agudo contraste com a cor verdejante que veste a terra em toda parte. Após subir por entre frondes de samambaia e acima de ravinas com espumante água branca, Lubbock emerge da floresta fria e escura e é recebido por rododendros e vistas espetaculares. Para todos os lados a interminável floresta, dividida por reluzentes fitas serpeantes de água fluvial, cobre as colinas e vales. Em 17.000 a.C., Lubbock chega a outro sítio potencial de habitação humana: uma plataforma abaixo de uma imensa aba de calcário, conhecida hoje como Lang Rongrien. Para alcançá-la, ele sobe uma íngreme encosta de talude e passa pela estreita borda. Tendo esperado encontrar um chão de terra plano com pessoas reunidas em torno de uma fogueira e os habituais apetrechos domésticos, descobre um espaço completamente vazio, apenas rochas angulosas e pedregulhos soltos espalhados. Olhando para cima, vê que o teto da plataforma é bastante liso e limpo — sem a descoloração de séculos de intempéries, líquens morcegos pendurados e ninhos de pássaros. Parece ter desabado recentemente, sepultando todo traço de habitação humana que possa ter existido no chão de terra. Há apenas um desses sinais em meio aos detritos: uma pequena mancha de carvão e cinco pedras que poderiam ter sido lascadas por mãos humanas. Lubbock imagina que visitantes recentes acenderam uma
fogueira, talvez para cozinhar, fumar ou apenas sentar-se em silêncio junto às chamas. E depois podem ter partido em busca de um abrigo mais confortável para a noite. Lubbock faz o mesmo, voltando pela borda e desaparecendo mais uma vez na floresta escura e úmida. Gua Sireh e Lang Rongrien foram escavadas na década de 1980. A primeira, localizada no sudoeste de Sarawak, já fora em parte escavada — mas pouco compreendida — por Tom Harrison na década de 1950. Ipoi Datan, hoje subdiretor do Museu de Sarawak, reescavou a câmara principal em 1988, encontrando sucessivas camadas de cinza e terra que continham muitos artefatos, cacos de cerâmica, conchas de moluscos e uns poucos ossos de animais mal conservados. A maior parte desses detritos acumulara-se depois de 4.000 a.C., derivado de cultivadores de arroz que se espalharam do norte para o sudeste asiático. Mas uma das conchas foi datada de cerca de 20.000 a.C., de um molusco de água doce que ainda vive nas rápidas correntezas de águas claras dos rios próximos da caverna. Ipoi Datan julgou que só poderia haver entrado na caverna por mão humana, e se a data é exata, isso ainda reflete a mais breve das visitas à caverna — um único acampamento de pernoite no máximo. Douglas Anderson, da Universidade Brown, em Rhode Island, EUA, escavou Lang Rongrien em 1987 e encontrou traços de ocupação humana que datavam de 40.000 a.C. O substancial desabamento de um teto ocorrera entre 25.000 e 7.500 a.C. — as datas estabelecidas imediatamente acima e abaixo dos detritos. O carvão dentro dos detritos deu uma data de cerca de 40.000 a.C., levando Anderson a pensar que viera de depósitos dentro de uma fissura ou lenda no calcário que desaparecera inteiramente quando o teto desabara. Foi esse carvão que Lubbock viu, e assim, estava completamente errado — não tivera outros visitantes em Lang Rongrien em 17.000 a.C. A ausência de ocupação em Lang Rongrien no LGM, ou mesmo dentro de milênios antes ou depois, repete um padrão encontrado por toda a região. Só em Gua Sireh há um vestígio de presença humana nessa data: o único molusco de água doce datado de cerca de 20.000 a.C. Não surpreende, portanto, que Lubbock esteja achando a floresta solitária ao deixar Lang Rongrien — talvez simplesmente não haja ninguém por lá. Só se pode imaginar que as pessoas do sudeste asiático viviam todas no litoral. Após 17.000 a.C., encontram-se artefatos de pedra em muitas cavernas, mostrando que as pessoas agora viajavam regularmente para o interior,
mesmo que ainda preferissem a praia. As sucessivas camadas no chão em Lang Rongrien revelam muito sobre a crescente facilidade e freqüência da viagem entre a costa e áreas do interior. Quando a caverna ficava a aproximadamente 100 quilômetros do litoral, entre 30.000 e 25.000 a.C., não havia conchas marinhas entre os artefatos de pedra em seu chão. Estes aparecem pela primeira vez nas sucessivas camadas de chão após 10.000 a.C., e então se tornam cada vez mais numerosos à medida que o nível do mar sobe e a costa se aproxima da caverna, acabando a não mais de 18 quilômetros de distância. É improvável que as pessoas ficassem mais de alguns dias em cada visita a Lang Rongrien. Mas a falta de restos de plantas continua, e os ossos de animais tornam impossível identificar a estação e duração de tais visitas. Cerca de 75 quilômetros ao norte de Lang Rongrien, Lang Kamnan oferece alguns indícios melhores. Essa caverna foi usada periodicamente entre cerca de 30.000 e 5.000 a.C. — embora, como em outras partes, a presença de pessoas no LGM pareça duvidosa. Rasmi Shoocongdej, da Universidade de Silpakorn, Bancoc, escavou a caverna e interpretou os restos de animais e plantas lá encontrados, junto com instrumentos de pedra e conchas marinhas. Os ossos animais vinham de muitas espécies diferentes, incluindo esquilos, porcos-espinhos, tartarugas e gamos; os restos de caramujos e plantas sugeriam que a ocupação ocorrera na estação chuvosa. É quando os caçadores-coletores/horticultores de hoje nas florestas do sudeste asiático coletam uma ampla gama de alimentos vegetais como raízes e brotos de bambu; caçam os mesmos tipos de animais que Shoocongdej encontrou dentro de Lang Kamnan. Os restos em Lang Kamnan sugerem que pessoas podem ter vivido nas florestas tropicais do sudeste asiático desde 17.000 a.C., de uma forma semelhante às pessoas de tempos recentes, embora sem o cultivo do arroz e outras plantas e animais domesticados. Alguns antropólogos, porém, questionaram a capacidade de pessoas viverem ali apenas da caça e da coleta — exatamente como se duvidara da ocupação da Amazônia por caçadores-coletores até as descobertas em Pedra Pintada. Robert Balley, antropólogo da Universidade da Califórnia, afirmou que os recursos comestíveis nas florestas são tão poucos, variáveis e dispersos que populações viáveis de caçadores-coletores não podem sobreviver. Embora as florestas tropicais sejam os ecossistemas mais produtivos do planeta, suas várias reservas de energia estão presas dentro de tecidos não
comestíveis — os enormes troncos e brotos de árvores essenciais na competição para conseguir luz suficiente. Muito pouca energia vai para a produção de flores, frutos e sementes comestíveis; os que existem muitas vezes ficam em lugares inacessíveis no dossel. Bailey afirma que a restrição dietária chave é o carboidrato: para adquirir quantidades suficientes, os "caçadores-coletores" ou têm de dedicar-se eles próprios à horticultura ou comerciar com comunidades agrícolas. A cultura hoabinhiana mostra que essa opinião está inteiramente errada. A agricultura, na forma do cultivo de arroz, só se espalhou para o sudeste asiático em 2.500 a.C., após originar-se na China — como descobrirá Lubbock na próxima etapa de suas viagens. Além disso, a viabilidade da caça e coleta na floresta tropical é bastante evidente pelas comunidades existentes — muitas das quais se julga sejam descendentes diretas daquelas que fizeram os instrumentos hoabinhianos. Uma dessas comunidades é a batek da Península Malaia, com a qual os antropólogos Kirk e Karen Endicott, do Dartmouth College, New Hampshire, EUA, passaram nove meses entre 1975 e 1976. Eles caçavam macacos e pássaros com zarabatanas; pegavam tartarugas, cágados, rãs, peixes, ostras e caranguejos; arrancavam tubérculos selvagens do chão da floresta e colhiam uma imensa série de fetos, brotos, bagas, frutas e sementes. Embora os batek às vezes derrubassem a floresta para plantar arroz, milho e mandioca, e comerciassem regularmente com agricultores para obter farinha, açúcar e sal, os Endicotts não tinham dúvida de que poderiam ter sobrevivido apenas com alimentos selvagens, os tubérculos selvagens proporcionando uma fonte de carboidratos. Os penan de Bornéu também são caçadores-coletores efetivamente autosuficientes da floresta tropical. Peter Brosius, da Universidade da Geórgia, viveu com eles no platô de Apu entre 1984 e 1987. Trata-se de paisagem montanhosa e de floresta, a vários dias de caminhada das longas casas dos plantadores de arroz localizadas nos vales. Embora os penan se dedicassem ao comércio, não dependiam dos agricultores para sua comida. Como os batek, colhiam uma ampla série de plantas e caçavam muitos animais, com preferência pelo porco barbudo. Sua principal fonte de carboidrato vinha da palmeira-de-sagu, uma árvore que armazena amido dentro do tronco. Essas palmeiras crescem em grupos, muitos dos quais são de propriedade individual, e são plantadas com, suficiente cuidado para evitar qualquer esgotamento à longo prazo. Como tantos
outros dos caçadores-coletores encontrados nesta história, os penan administravam as plantas selvagens à sua volta. Brosius descreve os penan como "camareiros" da floresta. Explica como a rede de rios da floresta lhes fornece um reservatório de conhecimento e lembranças ecológicos. Muitos rios recebem o nome de um determinado tipo de árvore ou fruta que dá ou perto da boca do rio ou em abundância ao longo de seu percurso. Outros têm o nome de uma característica natural, como um tipo de pedra, ou algum acontecimento, como o abatimento de um rinoceronte, a perda de um cachorro favorito ou uma estação especialmente frutífera. Um grande número de rios tem nomes de indivíduos, talvez assinalando o nascimento ou morte de uma pessoa, ou seu gosto pela caça ao longo de suas margens. Como os penan não pronunciam os nomes dos mortos, muitas vezes usam em vez disso o nome do seu rio. Os batek e penan proporcionam intuições de como o povo hoabinhiano pode ter vivido entre 17.000 e 5.000 a.C. Mas isso nos deixa com um dilema ainda maior sobre a ausência efetiva de pessoas nas florestas durante o LGM. Embora Robert Bailey e antropólogos de igual pensamento estivessem errados ao afirmar que os caçadores-coletores não poderiam sobreviver sem produtos agrícolas dentro da floresta tropical, estavam inteiramente certos em acentuar a relativa dificuldade de fazerem isso. As florestas abertas, transitórias, mais predominantes no LGM, teriam fornecido uma paisagem muito mais produtiva para caçadores e coletores que as florestas de hoje. Os mamíferos, que então viviam em rebanhos e no chão, em vez de indivíduos espalhados entre as árvores, teriam sido mais abundantes e mais fáceis de caçar. Logo, por que os indícios arqueológicos só aparecem depois que a distribuição, densidade e umidade da floresta tropical atingiram o auge? Segundo Peter Bellwood, da Universidade Nacional da Austrália, e autor de obras enciclopédicas sobre a pré-história do sudeste asiático, isso pode ser simples conseqüência das pressões combinadas de crescimento populacional e crescente nível do mar, que obrigaram as pessoas a entrar nas florestas, depois de estarem bastante satisfeitas no litoral. Mas, sem a antiga linha costeira, parece improvável que algum dia saibamos. É 16.000 a.C., e a passagem pela floresta ficou mais fácil. A princípio, Lubbock pensa que a trilha que segue é apenas mais uma trilha de porcos que corre entre as árvores. Mas não precisa curvar-se para passar sob
galhos baixos e contorcer-se entre trepadeiras e árvores novas — as pontas dessas barreiras potenciais foram visivelmente cortadas, prova afinal de uma presença humana. São necessários mais vários dias de caminhada em meio à chuva torrencial e por uma rede de trilhas na floresta que ligam um vale fluvial ao seguinte antes de encontrar-se de fato qualquer pessoa. Elas se acham num acampamento na floresta — abrigos feitos de folhas de palmeiras apoiadas em estacas enterradas no chão. Algumas árvores pequenas foram derrubadas para o acampamento, que se centra em torno de uma única fogueira acesa — não mais que um feixe de gravetos e um punhado de folhas secas. Parado na borda do acampamento, Lubbock conta uma dúzia de pessoas — umas poucas agachadas em redor da fogueira, outras sentadas junto aos abrigos. São de baixa estatura, cabelos encaracolados e pele parda escura. As crianças estão nuas. Os adultos não usam mais que pequenos aventais de folhas; alguns têm o rosto pintado de vermelho e o nariz perfurado por espinhos de porco-espinho. Lubbock leva menos de cinco minutos para examinar todo o acampamento — dificilmente há mais alguma coisa a ver. Perto do fogo, alguns blocos de madeira foram evidentemente usados como tábuas de cortar. Pendurados dos abrigos, vêem-se sacos, e espalhadas pelo chão algumas pedras lascadas. Vários bastões polidos e machados de pedra estão encostados numa árvore. Facas com lâminas de bambu enfiadas em cintos completam o equipamento desse grupo familiar. Após passar a noite nesse acampamento, Lubbock levanta-se cedo, enquanto os anfitriões que não o vêem reúnem seus pertences. O grupo parte em fila única por outra minúscula trilha, com Lubbock fechando a retaguarda. Uma olhada aos frágeis abrigos de folha de palmeira atrás, e aos efêmeros detritos espalhados no chão, diz-lhe ser improvável que os arqueólogos algum dia descubram esse sítio. O dia é gasto caçando e coletando na floresta. Após uma hora, mais ou menos, as mulheres e crianças seguem para um lado e os homens para outro. Lubbock vacila, segue os homens e depois volta para alcançar as mulheres. Elas pararam no que parece ser um trecho bastante comum da floresta, para arrancar tubérculos. As varas entram fácil no chão mole e sem pedra; de cada buraco uma das mulheres puxa uma raiz nodosa inchada, enfia-a num saco e sai à procura de outra. Olhando de perto, Lubbock descobre que o sinal não passa de um fino talo, muito parecido a
qualquer dos outros que brotam do chão da floresta. Durante o resto do dia, o grupo viaja de trato de tubérculos para arbustos de bagas e touceiras de bambu. As mulheres e crianças comem enquanto trabalham, saboreando em particular os frescos brotos de bambu, e encontram o suficiente também para encher seus sacos. Embora pareçam seguir uma rota conhecida, estão sempre procurando alguma coisa nova: cogumelos, fetos, rãs e lagartos. O acampamento é feito na margem de um rio. Enquanto os abrigos de folha de palmeira são rapidamente erguidos, os homens chegam com uma história mentirosa de um macaco que escapou. Primeiro cortaram árvores novas com lascas de pedra e pontas farpadas; depois se dirigem para um fundo lago onde mergulham para arpoar os peixes, que são facilmente apanhados, e grande parte do dia é passado sentado sem fazer nada à beira do poço, fumando e comendo os peixes macios e cheios de espinhas. Após vários dias de caça e coleta, Lubbock começa a compreender que o grupo vive num mundo bastante diferente do seu próprio. O seu é simplesmente uma das úmidas e escuras florestas que ele às vezes ama e às vezes detesta — sobretudo quando atacado por sanguessugas, micuins e formigas. Seus companheiros também vivem na floresta, mas para eles é um mundo cheio de espíritos, almas e deuses. Isso se tornou visível por minúsculos e sutis atos que a princípio passaram inteiramente despercebidos. Algumas comidas, por exemplo, jamais eram cozidas na mesma fogueira; as trilhas de gamos e tapir eram ignoradas, como eram — o que pareceu a Lubbock — oportunidades muito fáceis de matar uma presa. Ele imaginou que havia proibições religiosas ao abate desses animais ou a comer certas comidas juntas. Numa ocasião viu um jovem ser advertido por um velho por uma comida que cozinhara; à noite, o transgressor cortou-se, misturou seu sangue com água e jogou a mistura para o céu — aparentemente como um meio de apaziguar uma divindade zangada. Lubbock toma consciência de que os cantos e falas dos membros do grupo são muitas vezes dirigidos à floresta, e não uns aos outros. Às vezes o canto ocorre em particular em plataformas de casca de árvore especialmente erguidas, sobre troncos perto de uma árvore frutífera da qual as pessoas esperam colher frutos mais tarde no ano. Quando as datas passam para 15.000 a.C., Lubbock tem de partir. A rotina diária de caça e coleta na floresta continuará imperturbada por muito mais milênios futuros, e é hora de ele dirigir-se para latitudes temperadas,
aquelas que o aquecimento global já começaram a modificar. E assim, num entroncamento, ele segue para um lado e os catadores de comida hoabinhianos para outro. O povo tasaday, citado no início deste capítulo, era uma farsa. Quando o regime de Marcos foi derrubado em 1986, suas cavernas atraíram um novo afluxo de observadores, desta vez sem a estrita supervisão de Manuel Elizalde. Todas as alegações de autenticidade como um grupo há muito isolado com uma tecnologia da Idade da Pedra logo se desfizeram — a desconfiança original de Zeus Salazar estava certa. Descobriu-se que a língua tasaday era um dialeto usado em todo o sul das Filipinas; suas cavernas não tinham os detritos que teriam resultado de gerações de ocupação; o conhecimento que eles tinham de coisas selvagens parecia inteiramente insuficiente para verdadeiros caçadores-coletores; jamais os viram usar instrumentos de pedra e, quando solicitados a fazer alguns, usaram, com pouca habilidade, materiais inteiramente inadequados. Os trajes de folha de orquídea tinham sido simplesmente usados para as câmeras. Como um deles admitiu: "Sempre que Elizalde e seus amigos iam aparecer, ele mandava uma mensagem para que tirássemos nossas roupas e fôssemos para as cavernas. Tínhamos de esperar lá até que todas as fotos fossem feitas. Quando Elizalde partia, tornávamos a vestir nossas roupas e voltávamos para nossas casas." Os próprios tasaday eram inocentes horticultores locais induzidos e subornados por Elizalde para encenar sua fantasia da Idade da Pedra. O caso foi apenas mais um exemplo de como as minorias filipinas eram vítimas do regime de Marcos. Proporciona a esta história mais uma ilustração de como a Idade da Pedra é politicamente forte, pronta para ser explorada por políticos para seus próprios fins. Lembram-se das contorções mentais de Vladislav Iosifovich Ravdonikas para encaixar Oleneostrovski Migilnik em seu esquema marxista da história humana, e as alegações dos americanos nativos de que os ossos do Homem de Kennewick lhes pertencia? E, claro, os textos do John Lubbock vitoriano que esposavam a superioridade mental dos europeus, convenientemente justificando o imperialismo de sua época. Não há tribos isoladas da Idade da Pedra no mundo hoje. Os penan e batek podem ser descendentes diretos do povo hoabinhiano, e podemos usar nossas observações de seu estilo de vida e propor cenários para a caça, coleta, pesca e religião da Idade da Pedra — como fiz acima. Mas
devemos, como sempre, ser cuidadosos com tais histórias. Os arqueólogos não devem ser tentados pelo presente; devem continuar voltando às análises de artefatos e às escavações. Não há atalhos para o passado préhistórico.
39 Yangtsé Abaixo A origem do cultivo do arroz, 11.500 – 6.500 a.C. Lubbock faz outra viagem de canoa, desta vez pelo rio Yangtsé abaixo. Sua longa jornada desde as florestas tropicais do sudeste asiático levou-o por platôs, amplas bacias e vales profundos das montanhas Wuling no sul da China, de onde ele seguiu os vales que cortam o planalto de Yunnan. Grande parte dessa viagem foi através de densas matas transitórias, abrigo de gamos e javalis, tapires e ursos panda. Quando as árvores deram lugar a mato baixo, ele viu animais maiores: rinoceronte, e numa ocasião estegodontes — criaturas parecidas com elefantes de presas retas, de aparência semelhante aos mastodontes da América do Norte. Encontrou muitos grupos de caçadores-coletores. Tocaiavam animais nas matas, coletavam uma variedade de nozes, bagas e raízes, catavam moluscos em rios e lagos. Em 14.000 a.C., Lubbock passou algum tempo com algumas famílias na Caverna Baiyanjiao, que hoje fica na província de Guizhou no sul da China. Sentado à beira de sua fogueira, viu-os tirarem lascas de nódulos de pedra com pouca preocupação visível pela forma e tamanho dos pedaços separados. Baiyanjiao foi apenas um dos vários sítios usados por esses caçadores-coletores em suas rondas sazonais, em que se moviam entre colinas e vales, matas e planícies. Pelo menos supomos que foi. Sítios arqueológicos datados do fim do Pleistoceno são extremamente raros no sul da China — mal conhecemos qualquer coisa sobre estilos de vida humana nessa região do mundo da era do gelo. Baiyanjiao foi escavada em 1979, e forneceu uma preciosa coleção de artefatos feitos de calcário, sílex, arenito e quartzo. Os ossos de animais escavados eram igualmente valiosos, representando muitas espécies, entre elas estegodonte, tapir, gamo e javali. Também estavam presentes ossos de urso, tigre e hiena. E assim, até que se faça um estudo das marcas de corte e dos padrões de dentadas, não podemos ter certeza de quantos dos ossos derivaram de atividade humana e quantos eram detritos de antros de carnívoros. Enquanto Lubbock viajava de Baiyanjiao para o norte, as matas tornaram-
se abertas e as árvores passaram de espécies de folhas largas para pinheiro e espruce. As temperaturas caíram, e frios ventos começaram a açoitar as colinas estéreis. Também os caçadores-coletores mudaram; tinham menos opções para encontrar comida e muitos agora dependiam de matanças anuais de cavalos e gamos migrantes, em grande parte como viu Lubbock na Europa da era do gelo. Roupas costuradas de couros e peles de animais tornaram-se essenciais, como o acesso a cavernas para abrigo nos meses frios de inverno. Quando Lubbock chegou à bacia de Sichuan, encontrou a vasta extensão do rio Yangtsé. À sua margem havia um grupo de caçadores, embalando seus pertences numa canoa a fim de rumar para leste, de volta às baixadas, após terem passado os meses de outono caçando cabras. Lubbock subiu a bordo, instalou-se entre fardos de couro de cabra e encontrou um remo sobrando para usar. A bacia de Sichuan assinala o limite de navegação para barcos no rio Yangtsé hoje. Chang Jiang — o "Rio Comprido", como é mais adequadamente conhecido — nasce nas neves e geleiras do planalto tibetano, a 5 mil metros de altura, e faz uma viagem de 6 mil 300 quilômetros até o Mar do Sul da China. Muito poucos sítios arqueológicos datando de entre 20.000 e 5.000 a.C. são conhecidos ao longo do seu curso, embora devamos imaginar que o rio foi tão importante para os caçadores-coletores pré-históricos quanto é para o povo chinês hoje. Infelizmente, é provável que jamais tenhamos certeza, pois acha-se em construção atualmente a Represa das Três Gargantas. Em 2009, abrigará o maior gerador hidrelétrico do mundo, exigindo a criação de um lago de 600 quilômetros de comprimento atrás da barragem. Um grande número de sítios arqueológicos conhecidos será inundado, e a possibilidade de novas descobertas inteiramente perdida. Mas a perda de sítios potencialmente equivalentes aos de Abu Hureyra, Jerf el Ahmar e Nevali Çori — inundados por represas no Eufrates — é o mínimo dos problemas que enfrenta o povo chinês. Mais de 150 aldeias c cidadezinhas serão inundadas pelo lago, deslocando até dois milhões de pessoas de suas casas. A data é 13.000 a.C. Lubbock tem os dedos dos pés e das mãos congelados; as juntas rígidas e os músculos cansados mal podem manejar o remo quando a canoa batalha contra ventos gélidos no rio Yangtsé. Felizmente, seus companheiros são indivíduos curtidos e conhecedores
dessa rota na aproximação do inverno. A canoa contorna uma ponta de terra rochosa e entra num escuro e estreito canal entre penhascos perpendiculares de calcário. Fantásticas torres de rocha curiosamente rachada e erodida espremeram o rio de muitos quilômetros para não mais de 50 metros de largura. É a Garganta de Ichang, um dos grandes espetáculos do rio Yangtsé ao deixar a acidentada região das montanhas Wushu e aproximar-se das terras úmidas da bacia de Hupei. O tempo anda rápido dentro dessa passagem tipo túnel. A cada remada, Lubbock vê passar uma década, e depois um século. Dentro de minutos, chegou a 12.000 a.C., e o mundo além das paredes de rocha nua se transforma. As temperaturas subiram, a chuva aumentou, e a densa mata espalhou-se pelo que eram colinas estéreis e encostas de montanhas além da garganta. Chegou o interestadial glacial tardio; no oeste da Ásia, floresce a cultura Natufiana, e as pessoas constroem moradas e tomam chá no Monte Verde, no sul do Chile. Ali na China, carvalho, olmos e salgueiros substituem os pinheiros e espruces esparsos, e um denso matagal de fetos se desenvolve entre as árvores. O rio sobe com a água derretida que despenca das geleiras nas montanhas. Regatos começam a cair pelos penhascos abaixo; fendas na rocha de repente se enchem de avencas e flores selvagens desabrocham em profusão nas estreitas plataformas. Os companheiros de Lubbock também mudam, as grossas peles substituídas por túnicas leves de couro. Enquanto antes tinham os rostos escondidos sob capuzes e barbas cobertos de gelo, agora brilham à luz do sol. Os fardos de couro de cabra foram substituídos por cestos de bambu contendo bolotas e bagas. O tempo segue adiante para 10.500 a.C. O sol desaparece por trás de uma nuvem e um vento gelado mais uma vez sopra na garganta, com a chegada de uma onda de frio. Mais umas poucas remadas, e o nível da água desce, deixando a margem do rio encalhada alta acima de seu curso. Brancas nuvens de neve rodopiam em torno dos picos, as cataratas congelam-se e as flores murcham diante dos olhos de Lubbock. Além dos penhascos, os pinheiros e espruces fazem um retorno, enquanto os carvalhos e fetos definham diante da seca e do frio. Na canoa, voltam as roupas de pele e a gordura de cabra. Logo depois de 10.000 a.C., ocorre o dramático surto de aquecimento global que inicia o Holoceno; os pinheiros e espruces ao longo do vale do
Yangtsé são substituídos por matas de folhas largas e coníferas, as ervas subjugadas pelos fetos. Lubbock deixa a garganta em 9.500 a.C., com os companheiros mais uma vez vestidos para a vida num mundo mais quente. Voltaram os cestos, aos quais se junta uma coisa inteiramente nova — vasos de cerâmica. O rio leva Lubbock a uma paisagem de colinas ondulantes de mata densa e exuberantes juncos de beira de rio. Começa a serpear, bifurcar-se e despejar-se pelas terras planas da bacia de Hupei. Ao longe ele vê uma pluma de fumaça subindo do meio da planície coberta de árvores. É a aldeia de Pengtoushan, cujos habitantes plantam e colhem um capim selvagem — conhecido hoje como Oryza rufipogen São pessoas importantes para Lubbock conhecer: com seus esforços, junto aos de outros habitantes pré-históricos do vale do Yangtsé, esse capim será transformado. Depois de alimentar alguns milhares de pessoas que viviam em espalhadas aldeias à beira de rios e lagos, hoje sustenta pelo menos 2 bilhões de pessoas em todo o mundo como o alimento mais importante no planeta Terra. O Oryza rufipogen tornou-se Oryza sativa, o selvagem tornou-se doméstico. John Lubbock está para observar o primeiro cultivo do arroz, uma virada na história do mundo. O arroz é o cereal mais importante no mundo hoje, e a China o maior produtor e consumidor. Quando a República Popular foi criada em 1949, colhiam-se 170 milhões de toneladas de arroz por ano. No meio do século seguinte, essa produção aumentou pelo menos quatro vezes, em parte devido ao sistema de propriedade coletiva e em parte por reprodução seletiva de novas cepas, dupla safra, uso de maquinaria, fertilizantes e pesticidas. A China é uma potência mundial por causa do seu arroz, a história da domesticação dele começa com as pessoas que primeiro cultivaram as plantas selvagens que davam nos pântanos do vale do Yangtsé. O arroz selvagem dá em pelo menos vinte variantes diferentes, todas as quais se pode chamar convenientemente de Oryza rufipogen. Algumas florescem como perenes em pântanos de umidade permanente; outras dão como anuais, em geral onde os pântanos ou valas secam durante parte do ano. As variedades domesticadas diferem dessas mais ou menos como o trigo e a quinoa diferem de seus ancestrais selvagens. Não apenas as espigas de grãos esperam pelo colhedor, em vez de explodir espontaneamente, mas as plantas também germinam dentro de poucos
dias uma das outras, de modo que toda a safra amadurece junto. O arroz selvagem, como o trigo selvagem, germina separadamente, muitas vezes em muitas semanas ou meses. Isso assegura que pelo menos alguns dos brotos encontrem condições benignas para crescer — coisa com que as variedades domesticadas podem contar, devido ao trabalho do agricultor. Outro contraste é simplesmente o tamanho — os grãos de arroz das plantas domésticas são significativamente maiores que os das selvagens. Quando o arqueólogo chinês Anping Pei, do Instituto de Arqueologia de Hunan, escavou Pengtoushan cm 1988, descobriu o que eram então os mais antigos vestígios de arroz domesticado, datando de pelo menos 7.500 a.C. Antes dessa descoberta, a maioria dos arqueólogos acreditava que o cultivo do arroz se originara na índia ou, o mais provável, no sudeste asiático continental, onde se encontram hoje substanciais touceiras de arroz selvagem. E assim, com a mesma lógica que levou os arqueólogos ao Crescente Fértil em busca da origem dos modernos trigo e cevada, buscaram a origem do cultivo do arroz em sítios muito ao sul do rio Yangtsé. Inicialmente, pareceram ter sucesso. Grãos de arroz que se acreditava datarem de pelo menos 6.000 a.C. foram encontrados na Caverna do Vale Banyan, nos planaltos da Tailândia, c no assentamento de Khok Phanom Di, na costa do Golfo de Sião. Mas quando datadas por radiocarbono, descobriu-se que essas amostras eram muito mais novas — não mais que 1.000 a.C. em Khok Phanom Di e algumas centenas de anos na Caverna de Banyan. Em 1984, descobriram-se pequenas touceiras de arroz selvagem no vale do rio Yangtsé. Logo se percebeu que sua raridade naquela região é explicada pelas práticas de cultivo intensivo que destruíram seus habitats naturais. Após a escavação de Pengtoushan, os trechos médios do rio Yangtsé foram confirmados como o provável local de origem do arroz cultivado. E assim teve início uma busca de sítios mais antigos que Pengtoushan, onde se pudesse encontrar a própria transição de trigo selvagem para doméstico — uma busca do equivalente chinês de Netiv Hagdud ou Guilá Naquitz. Richard MacNeish — cuja obra no México central já encontramos — e Yan Wenming, da Universidade de Beijing, trabalharam juntos na exploração de cavernas de calcário logo ao sul do Yungtsé, na hoje província de Jiangxi. Ao contrário das experiências de MacNeish nas
secas cavernas do México central, descobriram que as plantas já quase se haviam decomposto nos sítios chineses. Felizmente, alguns cruciais indícios microscópicos haviam sobrevivido dentro de sedimentos de caverna: fitólitos. Os fitólitos são minúsculos depósitos de silício que se formam dentro das células vegetais. O silício, originando-se da água do solo, pode às vezes encher completamente uma célula e assim manter sua forma depois que a planta se decompôs. Por serem inorgânicos, os fitólitos muitas vezes sobrevivem no solo muito depois que todos os demais vestígios das plantas desapareceram. Além disso, diferentes espécies de plantas — e na verdade diferentes partes de uma mesma planta — produzem diferentes tipos de fitólitos. Daí poderem ser usados para identificar plantas que um dia brotaram no solo, ou talvez foram postas ali como comida armazenada ou detrito jogado fora. Exatamente como algumas plantas produzem mais grãos de pólen que outras, algumas produzem mais pitolitos. Os capins são grandes produtores e, enquanto os grãos de pólen de diferentes espécies são quase idênticos, seus pitolitos são bastante diferentes. Deborah Pearsall, da Universidade do Missouri, foi pioneira no estudo dos de arroz, descobrindo que os mais distintivos são produzidos nas células da "gluma", a casca do grão, pois elas têm grandes pêlos ou picos cênicos. A presença desses pitolitos num solo fora isso vazio é um sinal definitivo de que pés de arroz um dia brotaram ali. O ponto crucial do trabalho de Deborah, porém, é que os fitólitos de gluma podem ser usados para identificar se as plantas há muito desaparecidas eram selvagens ou domesticadas — se brotaram num pântano ou foram cultivadas num campo de arroz. Os fitólitos das plantas domesticadas são simplesmente maiores que os das variedades selvagens, combinando com o aumento no tamanho do grão. Com essa descoberta, os sedimentos de caverna escavados por Richard MacNeish e Yan Wenming podem conter a chave para identificar quando e onde começou o cultivo do arroz. A Caverna Diaotonghuan fica no lado de uma pequena colina de calcário, dentro de uma região de pântanos conhecida como bacia de Dayuan, logo ao sul do rio Yangtsé — a não mais de 50 quilômetros das recémdescobertas touceiras de arroz selvagem. MacNeish e Wenming escavaram uma vala de cinco metros de profundidade no centro da
caverna e revelaram pelo menos 16 camadas de ocupação, bem ordenadas uma em cima da outra. As oito camadas de cima cobriam o período de 12.000 a 2.000 a.C.; a idade das camadas de baixo não foi determinada. Cada camada escavada continha ossos de animais e instrumentos de pedra; fragmentos de cerâmica estavam presentes nas que remontavam a 10.000 a.C. Embora restos de plantas estivessem inteiramente ausentes, os fitólitos de cada camada de ocupação mostravam que vários tipos de arroz teriam um dia sido colhidos. Os fitólitos de arroz são muito raros nas camadas inferiores da caverna; os poucos presentes podem ter chegado em folhas secas sopradas pelo vento, ou nos cascos ou fezes de animais que usaram a caverna como abrigo. Por volta de 12.000 a.C., porém, há um impressionante aumento no número de fitólitos de arroz, o que deve refletir o fato de que o grão era colhido e comido por ocupantes humanos da caverna. Os pitolitos são pequenos, indicando que vêm de plantas selvagens, muito provavelmente colhidas na borda de pântanos próximos. A data assinala as condições particularmente quentes e úmidas do interestadial glacial tardio, uma época em que touceiras de arroz selvagem podem ter começado a florescer na bacia do Yangtsé. Após 12.000 a.C., os fitólitos de arroz continuam abundantes na caverna, a não ser em camadas datando de entre 10.800 e 9.600 a.C. — período que coincide com o Jovem Dryas. Durante esse período de frio e seca, o arroz selvagem, planta subtropical dependente da água, tornara-se evidentemente, c não surpreendentemente, muito escasso. Após a volta de condições quentes e úmidas, o arroz foi mais uma vez usado como fonte importante de alimento. Sucessivas camadas dentro da Caverna Diaotonghuan mostram um gradual aumento na proporção de fitólitos grandes, refletindo o aparecimento das primeiras plantas domesticadas. Em 7.500 a.C., houve um igual uso de pés de arroz selvagem e domesticado; mil anos depois, todos os vestígios de arroz selvagem já haviam desaparecido completamente. Lubbock leva quase 3 mil anos para viajar os 250 quilômetros da boca da Garganta de Ichang a Pengtoushan, chegando em 6.800 a.C. Esse tempo foi gasto remando devagar pelo Yangtsé, a serpear pelas baixadas da bacia de Hupei. Seus companheiros ficaram em 9.600 a.C.; tendo ido colher nozes de um capão de árvores, não amarraram a canoa. Com Lubbock a bordo, ela foi levada pela corrente rio abaixo e mais adentro do
mundo do Holoceno. A cada ano o rio subiu um pouco mais e depois caiu um pouco mais, à medida que as estações chuvosas e secas se tornavam mais acentuadas. As chuvas começavam em fins de março e atingiam o pico em agosto. As águas subiam 10 metros ou mais, transformando grande parte das baixadas numa vastidão aparentemente interminável de água lamacenta pontilhada por pequenas ilhas que antes haviam sido baixas colinas. Quando as águas baixavam, deixavam na terra camadas úmidas de aluvião — fundações para o fértil solo agrícola que sustenta milhões de pessoas hoje. Em 6.800 a.C., essa paisagem aquática pulula de vida: cardumes de peixes, bandos de gaivotas, martins-pescadores e garças reais; gamos e tapires nas touceiras à beira d'água, cavalos e rinocerontes no terreno mais seco. E gente. Pessoas que vivem tanto em seus barcos quanto em terra e são mimadas por ilimitadas oportunidades de pescar e pegar aves, caçar e coletar. Seguindo numa canoa por um braço do Yangtsé, e depois por uma rede de pequenos ribeiros, Lubbock encontra O caminho para Pengtoushan; faz isso quando chegam as monções, que transformam a rede de ribeiros num único lago lodoso. Ao saltar em terra seca pela primeira vez em mais de seis mil anos, Lubbock ainda tem uma pequena caminhada a fazer para chegará aldeia. Segue um caminho bem trilhado que passa por densas samambaias e encontra Pengtoushan aninhada na encosta de um morrete, cercada de abetos e pinheiros. Quando se aproxima, não se vêem mais de duas moradas acima das samambaias: sólidas casas retangulares construídas com estacas de madeira, paredes de taipa e telhados de palha. Após mais alguns passos, vê mais uns cinco ou seis telhados de junco de moradas menores, cujos pisos devem ter afundado no chão. Lubbock entra na aldeia no momento em que o sol mergulha abaixo da linha das árvores e uma garça voa para seu poleiro. Vêem-se poucas pessoas: uma velha dormindo na soleira de uma porta, quando devia estar cuidando das crianças; dois homens descascando galhos com lâminas e pedra; uma moça amassando barro. O ar recende a fumaça de pinheiro, de fogueiras que ardem entre as cabanas. A oleira senta-se de pernas cruzadas num tapete de bambu. Não usa mais que um avental de couro em torno da cintura esguia, um colar de contas no pescoço e uma ponta de osso que pende entre seus seios. Tem os
cabelos negros e cortados curtos; os pômulos altos, nariz chato e olhos estreitos do povo chinês hoje; a pele brilha aos raios do sol poente. Ela espreme, rola e amassa o barro sobre uma prancha de madeira; canta baixinho, dando de vez em quando uns bufidos ao aplicar seu pequeno peso sobre o barro em que trabalha. Lubbock senta-se junto dela, com o cuidado de não cortar a última luz do sol que a moça visivelmente desfruta. A seu lado há um monte de barro seco esboroante, tirado, é evidente, da beira do rio há algum tempo. Ela vai aos poucos acrescentando-o à massa úmida que está sendo modelada, junto com água despejada de uma gamela. De vez em quando, curva-se para a frente, pega um cesto e tira um punhado do seu conteúdo para misturar com o barro. Lubbock consegue inclinar o cesto para olhar dentro — pedaços picados de talos e cascas de plantas, e grãos de arroz. Enquanto ela amassa o barro, pessoas voltam à aldeia de seu dia na mata e na água. Uma mãe que chega com uma fieira de peixes em torno do pescoço encontra os filhos pequenos brigando entre os fetos. Caçadores chegam com uma braçada de patos, mas sem o gamo que foram matar. Fogueiras fumegantes são reavivadas; os que talham madeira acabam o trabalho e sentam-se com outros ao redor das chamas. A oleira agora prepara rolos de barro e começa a tornear, grudar e alisar as junções. O barro torna-se um alguidar de cerca de 20 centímetros de altura, boca larga e base estreita. Usando a ponta de osso, ela grava um desenho ondulado na matéria mole; depois se ergue com as mãos nas cadeiras para admirar sua obra. Leva o novo vaso para sua cabana e o põe junto de vários outros prontos para serem cozidos no dia seguinte — jarras de gargalo comprido, pratos rasos, bandejas e tigelas, todos marcados com as mesmas linhas onduladas. Lubbock muda-se para sentar-se mais perto das chamas que estalam e saltam de uma fogueira próxima; também outros são atraídos para a luz e calor, agora que escureceu. Muita coisa em Pengtoushan lhe parece familiar — os barulhos e cheiros, a disposição das cabanas e fogueiras comunais, a maneira como couros e peles são enrolados em torno de ombros à medida que baixa a frieza do anoitecer. Quando olha em volta, as moradas semi-subterrâneas lembram outra aldeia onde as pessoas também tinham vivido à beira da agricultura: Abu Hureyra, nas margens do Eufrates, em 11.500 a.C. Mas falta alguma coisa ali. Por um instante, sua mente se debate, e então se torna óbvio: não há pedras de moer,
almofarizes, mãos de pilão e pilões. Havia tantos desses nas aldeias do Crescente Fértil, antes e depois do início do cultivo do trigo. E, no entanto, não há nenhum em Pengtoushan. A oleira tomou banho e volta usando um xale para sentar-se, sem o ver, ao lado de Lubbock e no meio de sua família, que agora se reuniu para comer. Quando as chamas começam a morrer, os patos são assados num espeto; acabados, os peixes, enrolados em folhas e temperados com ervas, são postos dentro das brasas. Finalmente, enfia-se um alguidar de barro sobre as pedras quentes e tições em brasa. Enquanto os patos e peixes são divididos e as histórias contadas, a água começa a ferver. Logo Lubbock, a oleira e sua família estarão comendo arroz cozido em Pengtoushan, como farão todas as gerações posteriores no vale do Yangtsé. O fato de Anping Pei ter podido identificar o cultivo de arroz em Pengtoushan deveu-se apenas à presença de casas, talos e grãos de arroz queimados dentro dos muitos fragmentos de cerâmica que ele recuperou do sítio. A quantidade de detritos de plantas presos dentro do barro queimado sugere que não chegaram ali por acidente. Foi usado como tempera — um acréscimo para impedir os vasos de se racharem quando cozidos. Embora seja bastante comum os oleiros acrescentarem areia ou conchas moídas ao barro, o uso de material vegetal é muitíssimo incomum e na certa inteiramente ineficaz — oleiros posteriores no vale do Yangtsé logo adotaram a areia. E assim, em Pengtoushan, Lubbock pode ter visto algumas das experiências e erros que tiveram de ser suportados quando as pessoas aprendiam a arte e ciência da tecnologia da cerâmica. Outra experiência é visível na Caverna Diaotonghuan, onde os primeiros fragmentos de cerâmica foram temperados com pedra triturada grossa. Várias formas de vaso foram feitas em Pengtoushan. A maioria era negra do lado de fora, porque a tempera de arroz se queimara durante o cozimento. Muitas eram enfeitadas, furadas ou riscadas com pontas agudas, ou gravadas com barbantes torcidos. O torneamento não era a única técnica empregada; alguns vasos foram feitos simplesmente grudando-se o barro ou colando-se placas umas às outras. Essa técnica da placa fora usada pela primeira vez em Diaotonghuan por volta de 10.000 a.C. para produzir a mais antiga cerâmica conhecida na China. Não é provável que a quase simultaneidade da invenção da cerâmica e do primeiro cultivo do arroz tenha sido coincidência — o mais provável é que os vasos fossem usados para cozinhar o grão. O indício direto vem de
uma aldeia ligeiramente posterior conhecida como Hemudu, localizada no delta do Yangtsé, onde se encontrou arroz cozido dentro de uma panela. Portanto o desejo de coletar e depois cultivar arroz parece ter sido relacionado com a fabricação de cerâmica, enquanto os vasos assim produzidos ofereciam novas oportunidades de armazenar e cozinhar arroz, encorajando com isso mais cultivo. É provável que a cerâmica fosse tão essencial para o desenvolvimento da agricultura do arroz quanto o foram as pedras de moer do Crescente Fértil para a do trigo e cevada. E não poderia haver melhor símbolo dessa íntima relação que os fragmentos de cerâmica temperada com arroz escavados por Pei em Pengtoushan. É setembro de 6.800 a.C., e as águas da enchente começam a recuar. Lubbock passou o verão em Pengtoushan, aprendendo a fazer e cozer vasos de barro, numa fogueira aberta ou dentro de um poço cavado no chão. Agora há uma nova tarefa a ser empreendida, avidamente esperada à medida que todo dia as pessoas vêem a lama da beira do rio expandir-se com a baixa da água. Todos os aldeões ajudam nesse acontecimento: o plantio das sementes. Pegam cestos de arroz de seus depósitos e transmitem a notícia do aluvião recém-exposto, sem preparação do solo nem valas de irrigação ou margens de lama para reter a água em retirada. Lubbock junta-se a eles — enterrado até os tornozelos em lama e fazendo grandes arcos com o braço para espalhar as sementes, ajudando a iniciar uma revolução agrícola chinesa. Dentro de poucas semanas, o chão pantanoso se tornou verde com os brotos - um verde variegado com trechos marrom, pois algumas sementes levam mais tempo para germinar que outras, ou não germinam de modo algum. As plantas crescem devagar durante o inverno; muitas das que ficam em terreno mais alto - os primeiros a secar — murcham e morrem. Mas as dos mais baixos e permanentemente alagados tornaram-se luxuriantes na primavera, exatamente quando as chuvas retornam. Em maio, o mato alto é retirado da plantação; em junho, o arroz floresce, e em início de agosto Lubbock está metido até os joelhos dentro d'água colhendo as plantas, com as águas rastejando para a aldeia. Quando cada planta é arrancada do chão, alguns grãos caem e se perdem no lamaçal. Ninguém se incomoda, pois restarão muitos para a debulha. É trabalho exaustivo — não apenas curvar-se e puxar, mas o peso dos cestos que têm de ser carregados ladeira acima e esvaziados num monte sempre crescente de pés de arroz dentro da aldeia.
Uma vez secas, as plantas são debulhadas malhando-se as espigas de grãos; guardam-se os talos para uso como telhados e tapetes, e para misturar com barro quando se fizerem vasos. Depois de ajudar com o grão, Lubbock em seguida ajuda a descascar — retirar as duras cascas externas esfregando-as com placas de madeira. E então vem a peneira para deixar só os grãos — alguns serão comidos imediatamente, alguns armazenados para comer no inverno, alguns guardados para uso como semente quando as águas da enchente recuarem mais uma vez. Se as pessoas de Pengtoushan semeavam e colhiam ou não seu arroz desse modo, é uma conjectura. Lançar sementes em terra naturalmente e delicadamente aguada por enchentes anuais é o método mais simples de cultivo de arroz, que se sabe ter sido usado por muitos povos tradicionais do sudeste asiático. Não há indícios da escavação de Pei que sugiram o uso de valas irrigação ou bancos de lama; ele não encontrou nem pás para cavar, enxadas para preparar o solo nem facas para cortar as espigas de grãos. Mas todos esses instrumentos podem ter sido usados antes em Pengtoushan — podem ter-se decomposto sem deixar traço, sido levados pelas águas ou afundado muito no solo para Pei descobrir. O método de "agricultura" por água de enchente descrito acima poderia facilmente ter proporcionado as condições necessárias para que as cepas de arroz domésticas evoluíssem. Como na transformação de trigo selvagem no oeste da Ásia, teve de haver alguma seleção pelo homem dos raros pés de arroz mutantes com espigas não quebradiças — as que "esperam pelo colhedor". Esses mutantes genéticos não teriam sobrevivido muito tempo no agreste, sendo incapazes de se semear por si mesmos. Mas eram plantas ideais para os primeiros agricultores que não queriam ver o grão maduro afundar na lama assim que começassem a colheita. O simples fato de que grande parte dos grãos de arroz de espigas quebradiças se teriam perdido dessa forma significava que muitos cestos de plantas colhidas continham uma proporção relativamente alta de raras variantes não quebradiças. A chave para assegurar o maior aumento dessa quantidade era não apenas usar parte do grão como semente, mas plantar onde não houvesse plantas selvagens. Só plantada numa área livre de arroz selvagem a nova colheita poderia refletir a proporção relativamente alta de sementes do arroz de espiga não quebradiça que fora semeada; essa proporção teria sido mais estimulada
quando colhida. No fim, após muitos ciclos de plantio e colheita, talvez até as duzentas colheitas que Gordon Hillman estimara para a domesticação do trigo, a safra seria dominada por arroz de grande grão não quebradiço e que amadurecia ao mesmo tempo — o Oryza sativa. Entregue a si mesmo, logo teria desaparecido, incapaz de semear-se por si e sobreviver; mas a essa altura, claro, já estava sendo cultivado por agricultores.
O povo de Pengtoushan em 6.800 a.C. podia já se ter tornado esses agricultores. Parte do arroz preservado dentro de sua cerâmica era sem dúvida grande o bastante para ter vindo de plantas plenamente domesticadas. Infelizmente, não foi possível um estudo detalhado dos grãos, pois se achavam muito prejudicados quando retirados de seu invólucro de cerâmica. Mas quaisquer dúvidas de que o arroz doméstico surgiu em 6.800 a.C. foram afastadas em 1997, quando Pei escavou outro assentamento localizado não mais de 20 quilômetros ao norte. É o sítio de Bashidang, que floresceu entre 7.000 e 5.000 a.C. Ali, Pei encontrou os vestígios de muitas moradas, incluindo algumas construídas sobre estacas. Ele escavou cerca de cem túmulos e recuperou uma notável coleção de artefatos de solo alagado, entre eles parte de um arado de madeira, uma pá de madeira, tapetes de junco, cestos de bambu e cordas de junco. Dentro do leito de um rio próximo, descobriu uma abundante quantidade de restos de plantas, incluindo 15 mil grãos de arroz. Estudos desses grãos não deixaram dúvida de que as pessoas de Bashidang eram agricultores usando uma cepa de arroz inteiramente domesticada. No rio Yangtzé o tempo volta a passar devagar. São necessários uns meros cem anos para Lubbock completar a viagem de 1 mil quilômetros até o delta, checando à planície costeira em 6.700 a.C. Encontra uma vasta colcha de retalhos de pântanos e lagos, matas espalhadas e pântano salgado, todos cruzados por rios e riachos. O nível do mar ainda vai subir alguns metros, antes de estabilizar-se na altura atual; a inundação final aumentará os estuários, criará novas baías e ainda mais ilhas para franjar a costa. A paisagem aquática de 6.700 a.C. é um paraíso para caçadores-coletores; alguns tocaiam gamos, outros pescam ou catam mariscos. Mas os maiores assentamentos que Lubbock encontra não passam de grupos de moradas feitas de junco em ilhas de terra seca, nenhum dos quais se aproxima em tamanho de Pengtoushan ou Bashidang. Os habitantes não fazem mais que colher arroz selvagem, não cultivado. A idéia de semear na planície aluvial e depois cuidar dos brotos ainda não chegou de rio acima. Quando chegar, os resultados serão impressionantes, pois as terras úmidas da costa oferecem o cenário perfeito para que a cultura do arroz deite raízes e prospere. Tivesse Lubbock vindo depois, e não antes, da chegada da agricultura, só alcançando o delta em 5.000 a.C., teria encontrado um tipo de aldeia
bastante diferente. Poderia ter visitado Hemudu, na margem sul da Baía de Hang-Chou, cujos restos foram escavados na década de 1970. Ali, poderia sentar-se dentro de casas com mais de 20 metros de comprimento, construídas com pranchas de madeira em encaixe e espiga e elevadas sobre mourões pelo menos um metro acima das águas rasas abaixo. Poderia ter ajudado a preparar campos de arroz para plantio usando pás feitas das omoplatas de búfalos fixadas a cabos de madeira, ou mesmo cuidado dos próprios búfalos domesticados. Ou talvez jogado lavagem para os porcos. A quantidade de arroz escavada em Hemudu sugere que Lubbock poderia ter passado o início do verão transplantando mudas de viveiros para os campos de arroz principais — um dos trabalhos mais laboriosos para os camponeses chineses do século XX. Ou então poderia ter-se juntado aos grupos que vão pescar e pegar aves, caçar e coletar nos pântanos e matas do delta do Yangtsé, ou ainda desenvolver suas habilidades de oleiro para ajudar a produzir os ornados vasos escavados em Hemudu. Mas Hemudu não passa de um simples acampamento de caçadorescoletores quando ele se acha na boca do rio Yangtsé, observando garças reais ao pôr-do-sol, num dia qualquer de 6.700 a.C. É a maré baixa, e reluzentes trechos de lama estendem-se longe para o leste. São cortados por serpeantes fitas prateadas de água corrente, e é para urna dessas que ele impele a mesma canoa que o trouxe da bacia de Sichuan. Agora tem de transportá-lo por 2 mil quilômetros do Mar Amarelo, para que suas viagens possam continuar nas terras que hoje chamamos Japão.
40 Com o Jomon Complexos caçadores-coletores no Japão e a mais antiga cerâmica, 14.500 – 6.000 a.C. Todos param, erguem o olhar e fitam em silêncio. Por um breve instante, o sentimento de "alteridade" de John Lubbock em relação a seus novos anfitriões, que não o vêem, se perde. Os vulcões que roncam e fumegam têm esse efeito — surgem reações emocionais que superam as diferenças culturais. Mas, num instante, já passou. As pessoas de Uenohara mais uma vez olham e ouvem o distante vulcão através de seu próprio filtro cultural — sua mitologia e crenças ideológicas, sobre as quais Lubbock nada sabe. Quando as vozes e ruídos do trabalho recomeçam, ele retoma seu status mais de observador que de participante na vida da ilha de Kyushu, no Japão, em 9.200 a.C. Chegou o Uenohara 2 mil 500 anos antes de deixar o Yangtsé em 6.700 a.C. Uenohara é uma aldeia na costa sul de Kyushu, na ponta do que é hoje conhecido como Baía de Kagoshima. Seus ocupantes são caçadorescoletores — as idéias e as sementes para o cultivo de arroz que se espalhará de Pengtoushan para o leste ao longo do Yangtsé só chegarão ao Japão, o mais cedo, em 5.000 a.C. Para alcançar a aldeia, Lubbock atravessou as densas matas das colinas da ilha, após desembarcar em seu lado oeste. Um labirinto de minúsculas trilhas levou-o por entre carvalhos e nogueiras; o ar recendia a outono, os galhos pesados com a carga sazonal. Logo descobriu companheiros invisíveis nas matas, reconhecendo rastros de gamo na lama, pêlos de javali em arbustos e tocos de árvore com marcas de machado. As trilhas levaram-no a uma clareira com um conjunto de treze cabanas cônicas. Era no meio da tarde; os adultos ocupavam-se cuidando de fogueiras e fabricando instrumentos, e as crianças da aldeia perseguiam-se umas às outras em torno das moradas. Um grupo de pessoas de Uenohara também acabara de surgir da mata, trazendo feixes de junco e sacos estufados de produtos agrícolas da floresta. Lubbock imaginou que os juncos eram para uma nova cabana cujo esqueleto de estacas de madeira já fora montado em forma de tenda em
torno de uma depressão circular. Cinco homens derrubavam árvores com machados de pedra para aumentar a clareira. O trabalho deles abria uma vista para o mar, revelando uma distante montanha com o cume envolto em nuvens — ou assim pensou Lubbock até sair um novo penacho de fumaça carregada de cinza. As pessoas de Uenohara pareciam em boa forma física, saudáveis e felizes. Usavam poucas roupas. As crianças e alguns adultos andavam nus. A maioria não tinha mais que um avental de couro em torno da cintura; uns poucos usavam túnicas. Todos, com exceção dos mais velhos, tinham pele amarelo-parda vibrante, os cabelos negríssimos amarrados em trancas ou jogados para trás sob faixas. Alguns usavam colares de dentes de gamo e presas de javali; uns poucos homens tinham espirais de tinta vermelha no peito. Como em Pengtoushan, Lubbock foi atraído a sentar-se junto a uma oleira — desta vez uma velha de pele enrugada e sem dentes. Ela concluía um vaso muito mais elegante que qualquer outro que Lubbock vira em suas viagens ao redor do mundo — de forma quase esférica, com um estreito gargalo e borda curvada, era mais ou menos do tamanho de uma bola de rúgbi. Os dedos nodosos rolavam uma fina vareta envolta em barbante pela superfície do pote, criando um intricado desenho geométrico. Depois movia a cavilha e tornava a rolar, cobrindo aos poucos toda a superfície com seu traço. Quando ia riscar os traços finais, o vulcão entrou em erupção e ela perdeu o ritmo, imobilizando-se um momento, com a cavilha envolta em barbante pairando alguns centímetros acima do barro. A hesitação foi breve, porque ela já vira aquele vulcão antes — muitas vezes. Ele jamais ficara quieto durante toda a longa vida da oleira à sua sombra. Uenohara é apenas um entre um grande número de sítios arqueológicos conhecidos por todo o Japão situados na cultura Jomon, muitos dos quais parecem ter sido ocupados durante o ano todo. O nome deriva da palavra japonesa para a técnica usada para decorar cerâmica — jomon significa "marcas de barbante". Edward S. Morse, biólogo e antiquado americano, descobriu os primeiros sinais dessa cultura em 1877 — 12 anos mais tarde para o Tempos préhistóricos do John Lubbock vitoriano. Ele escavou um monturo de conchas em Omori, perto da moderna cidade de Tóquio, e formou estudantes japoneses na técnica da arqueologia. Logo eles estavam
escavando outros sítios e começando a encontrar a cerâmica, moradas e artefatos que foram designados como cultura Jomon. Encontraram-se muitos desenhos de cerâmica diferentes, levando a numerosas subdivisões culturais, continuamente revisadas por todo o século XX, à medida que se faziam novas descobertas e se adquiriam datas de radiocarbono. Hoje reconhecem-se seis fases culturais, que vão do Jomon Incipiente, começando com a primeira cerâmica, ao Jomon Final, que termina em 500 a.C. Após esta data, o cultivo do arroz aparece em escala substancial no Japão, provavelmente trazido por imigrantes da China e da Coréia. Uenohara encaixa-se no Jomon Inicial, durante o qual aparecem as primeiras aldeias sedentárias. A passagem dos estilos de vida móveis tradicionais dos caçadores-coletores ocorreu por volta de 9.500 a.C. e parece ter sido uma resposta a temperaturas mais quentes e aumento de chuvas do Holoceno — como aconteceu com a fundação de Jerico. Mas as pessoas do Jomon diferiram das do vale do Jordão por permanecerem inteiramente dependentes de alimentos selvagens, tendo abundantes matas e recursos costeiros para explorar. Também fizeram extenso uso de cerâmica. A cerâmica Jomon é, na verdade, a primeira do mundo. Oferece apenas um exemplo da precocidade dos caçadores-coletores japoneses quando a última era do gelo chegou ao fim. A Caverna de Fukui, no oeste de Kyushu, forneceu alguns dos mais antigos fragmentos conhecidos quando escavada em 1.960-1.962. Essa pequena gruta, encontrada na base de um afloramento de calcário, e bem iluminada e oferece uma excelente vista sobre um rio próximo, resultando em mais de cinco metros de depósitos ricos em artefatos que começaram a acumular-se antes do LGM. As primeiras lascas de cerâmica aparecem em níveis que datam de 13.000 a.C. Essa descoberta causou generalizada descrença. Em 1.962, dois famosos Professores, Suago Yamanouchi e Hiroyuki Sato, publicaram um infame artigo intitulado "A Era da Cerâmica Jomon", concluindo que ou as datas ou o método de escavação empregado em Fukui estavam errados, pois sua cerâmica não podia ser mais antiga que 3.000 a.C. Julgaram inconcebível que a cerâmica tivesse surgido no Japão pelo menos seis mil anos antes que no oeste da Ásia e na Europa. A atitude deles parece espantosa hoje, quando os arqueólogos são muitas vezes demasiado apressados em afirmar que suas regiões foram a origem de alguma inovação cultural. À
medida que mais datas de radiocarbono e descobertas de cerâmicas se acumulavam, e aumentava a confiança em novo método de datação, Yamanouchi e Sato tiveram de retratar-se: o Japão tinha de fato a mais antiga cerâmica do mundo. A precocidade cultural não era visível apenas na cerâmica. Caçadorescoletores da era do gelo no Japão alisavam as bordas de seus machados de pedra para fazer melhores instrumentos vários milhares de anos antes de essa técnica ser adotada no Ocidente. As pessoas do Jomon também inventaram o uso da laça, feita de seiva do urushi, um tipo de sumagro, que é preciso colher, aquecer e filtrar para ser trabalhosamente aplicado à superfície de um objeto. Recentes escavações em Kakinoshima e Hokkaido encontraram o objeto laqueado mais antigo de qualquer parte do mundo: um pente laqueado de vermelho colocado dentro de um túmulo em 7.000 a.C. Por que seria o povo de Jomon tão inventivo? Por que estavam fazendo cerâmica tão antes de qualquer outra parte do mundo? Só a cerâmica da China chega remotamente perto dela em data, e nisso é explicada pelas exigências do cultivo do arroz. Melvin Aitkins, da Universidade do Oregon, uma autoridade no período Jomon, acredita que a cerâmica japonesa foi inventada para cozinhar e armazenar o produto da mata de folhas largas que já cobria Kyushu em 13.000 a.C. Afirma que a relação é evidente, pela disseminação simultânea da mata de folhas largas e cerâmica nas ilhas do norte do Japão, que apareceram na ilha mais ao norte, Hokkaido, por volta de 7.000 a.C. Há, porém, dois problemas nessa idéia. Primeiro, não há necessidade de caçadores-coletores terem cerâmica quando vivem em ambientes de mata — os habitantes de Ain Mallaha, no oeste da Ásia em 12.500 a.C., e de Star Carr, no norte da Europa em 9.500 a.C., prosperaram dependendo inteiramente de vasos feitos de vime, casca de árvore, couros, madeira e pedra. A cerâmica sem dúvida tornava a vida mais fácil para aqueles que cozinhavam nas matas de Kyushu, e sabemos por resíduos de comida que vasos de cerâmica foram de fato usados para fazer cozidos de vegetais, carne e peixe. Mas as pessoas poderiam ter sobrevivido facilmente sem esses vasos. Um segundo problema na teoria de Aitkins surgiu em 1999, quando se descobriu uma nova amostra de cerâmica no sítio de Odaiyamamoto, em Honshu, no norte. Datas de radiocarbono dos resíduos grudados no
interior da panela eram de 14.500 a.C., empurrando para trás a origem da cerâmica em pelo menos mais mil anos. Nessa data, Honshu não teria mais que uma esparsa cobertura de pinheiros e bétulas. E assim, a teoria de que a cerâmica japonesa foi inventada para armazenar e cozinhar bolotas e outros produtos vegetais das matas de folhas largas não pode estar correta. Brian Hayden, da Universidade Simon Fraser, propôs uma explicação alternativa. Fornece outro exemplo de sua crença na competição social como a força propulsora da mudança cultural que encontramos pela primeira vez quando examinamos sua teoria para a origem do cultivo de abóbora no México. Hayden sugere que os vasos de cerâmica têm várias qualidades importantes, que os tornam objetos prestigiosos de posse e suportes ideais para servir comida aos convidados. No início, a arte do oleiro teria sido difícil de dominar; o barro tinha de ser cuidadosamente escolhido, ligas preparadas, fabricação e técnicas de cozimento exploradas, praticadas e refinadas. Os vizinhos e visitantes de mais longe teriam ficado impressionados com o volume de trabalho e habilidade necessários para produzir um vaso de cerâmica. A exibição de novas formas com decorações vistosas teria impressionado ainda mais. O mais impressionante de tudo poderia ter sido a sensacional quebra de vasos durante banquetes, como ostentosa demonstração de riqueza. A quebra teatral de vasos pode ter ocorrido no período Jomon posterior, pois se encontraram imensos "monturos de cerâmica". E como são em formas surpreendentemente elaboradas, não pode haver dúvida de que muitos vasos Jomon posteriores eram basicamente para exibição. Feitos segundo um desenho básico de vaso de flor, têm bordas espetaculares, modeladas como labaredas ou serpentes enroscando-se em torno do vaso, com cabeças esculpidas a projetar-se para fora. Às vezes a decoração tem a parte de cima tão pesada que os vasos dificilmente ficam em pé. Os objetos laqueados devem ter sido muito impressionantes, como na verdade são até hoje. Mas devemos ter cuidado na aplicação de tais interpretações aos primeiros, e francamente um tanto pobres, espécimes de cerâmica da Caverna de Fukui e outras. Sabemos atualmente muito pouco sobre os primeiros oleiros do Japão para decidir se estavam mais preocupados em impressionar os visitantes ou criar um meio de cozinhar vegetais. Sabemos, porém, que em 9.500 a.C. muitos viviam vidas
sedentárias em assentamentos permanentes como Uenohara. Embora a cerâmica já tivesse sido inventada, o estilo de vida sedentário deve ter sido crucial para possibilitar o florescimento da tecnologia da cerâmica. Enquanto Lubbock vagueia entre moradas, parando para olhar por cima de ombros e provar guloseimas, a sensação de permanência logo lembra-o de suas visitas a outros assentamentos de caçadores-coletores, sobretudo Ain Mallaha no oeste da Ásia e Koster na América do Norte. Um número substancial de árvores foi derrubado e as moradas parecem construídas para durar. As pedras de moer e os vasos de cerâmica certamente não são destinados a transporte entre um acampamento e outro. O conteúdo das panelas e montes de lixo mostra que as pessoas de Uenohara têm uma imensa gama de abastecimento de comida à disposição; evidentemente, a tiram das matas, dos rios de água doce, da costa e do próprio mar. Exatamente como as pessoas de Ain Mallaha e Koster, usaram as abundantes colheitas naturais para evitar o estilo de vida móvel dos caçadores-coletores tradicionais, e gostam da assentada vida de aldeia. Mas como todas as outras aldeias, Uenohara tem uma atmosfera única e uma legião de particularidades culturais. Lubbock olha outros oleiros trabalhando, alguns usando conchas marinhas em vez de barbantes com nós para enfeitar seus vasos. Juntas de porco são defumadas acima de engenhosos poços de cozinhar, com duas aberturas ligadas por um curto túnel. As juntas são penduradas de galhos em cima de uma das bocas, um fogo arde na outra, e a fumaça passa pelo túnel e sobre a carne. As pontas de flecha que estão sendo feitas têm lados com profundas serrilhas e são inteiramente diferentes de qualquer uma que Lubbock viu em outras partes. Os ornamentos corporais também são diferentes: os desenhos pintados são impressionantes, e muita gente usa grossos badulaques de barro cozido como brincos, com incisões de círculos e espirais. Apesar de elaborados, tais enfeites corporais não parecem denotar status. Uenohara parece não ter nem líderes nomeados nem diferenças em riqueza. Todas as moradas são semelhantes em tamanho e construção; cada uma das fogueiras cozinha o mesmo tipo de comida; não parece ter restrição quanto a quem se senta onde e fala com quem. Enquanto o dia vai chegando ao fim, Lubbock examina os sacos carregados pelos que vinham da mata quando ele chegou. Os sacos foram jogados junto a uma série de poços revestidos de barro, o conteúdo derramando-se no chão. Bolotas. Duas mulheres trabalham, pondo
camadas de pedra triturada e depois juncos picados no fundo de cada poço. As bolotas são despejadas dentro e socadas numa camada firme. Acrescentam-se mais camadas de junco e pedra triturada até chegar quase ao nível do chão. Finalmente, as mulheres cobrem cada poço com barro, para lacrá-lo hermeticamente. Assim, as nozes estarão armazenadas em segurança contra roedores e a umidade para os tempos magros que chegam todo inverno; quando comidas, terão perdido o gosto amargo. Quando acaba o trabalho e o sol se põe, Lubbock é atraído para uma fogueira e senta-se com um grupo que se formou perto da cabana em parte construída. Uma pilha de juncos espera para ser amarrada às estacas de madeira — não parece ter pressa para concluir o trabalho. Óleo vaza e chia de pacotes de folhas contendo peixe sobre pedras quentes. Alguns adultos e crianças já se deitam em tapetes de fibra para dormir; outros conversam em voz baixa ou cantam suavemente para os pequenos. Quando Lubbock se junta a eles, o céu da noite faz uma surpreendente exibição de vermelhos e laranjas sempre mutantes, e depois é inundado de profundos roxos e malvas. Há um fraco sabor sulfuroso no ar, com ciscos de cinza vulcânica que caem com um brilho fosforescente na escuridão que se desdobra delicadamente como uma leve rajada de neve pirotécnica. Quando Koichi Shinto, do Centro Arqueológico de Kagoshima, escavou Uenohara entre 1986 e 1997, encontrou seus restos arqueológicos ensanduichados entre camadas de cinza vulcânica. O Sakura-jima, o vulcão em atividade quando Lubbock chegou, entrou em erupção em 9.100 a.C. e enterrou o assentamento sob pedra pome e cinzas. Não se sabe se as pessoas de Uenohara já haviam partido, fugido aterrorizadas, ou foram sepultadas vivas, porque a cinza ácida destruiu todo material orgânico do sítio, incluindo ossos humanos e animais. Mesmo assim, descobriu-se um grande número de pisos de antigas cabanas, poços de cozinhar e fogueiras. Junto com isso, Koichi Shinto encontrou uma série de artefatos que incluíam brincos de cerâmica, panelas, estatuetas de barro e pontas de flecha serrilhadas. Muitas tinham estado enterradas várias décadas, talvez séculos, após a erupção de 9.100 a.C. Sem moradas para acompanhá-las, parece que Uenohara se tornara um local de depósito ritualístico. Não foi o Sakura-jima, porém, o vulcão que selou os últimos restos materiais de Uenohara e o destino último de seu povo. Isso se deu um dia por volta de 5.000 a.C., com a erupção do vulcão Kikai, localizado 100
quilômetros ao largo da costa sul de Kyushu. Foi uma das maiores erupções do mundo do Holoceno. Rios piroclásticos viajaram pelo mar até Kyushu, devastando suas florestas do sul e do centro, e tudo o que elas continham; as cinzas do Kikai chegaram até a ilha de Hokkaido, no norte. Uenohara — que podia já estar deserta — foi enterrada sob um metro de cinza. Grande parte do sul de Kyushu permaneceu desabitada por vários séculos, e as pessoas jamais voltaram para reconstruir a aldeia. Hoje, Uenohara foi posta em exposição pública e é visitada todo ano por milhares de pessoas, que vêem onde os caçadores-coletores do Jomon um dia construíram suas casas e defumaram sua carne de porco. Nesta fase mais recente de sua vida, Uenohara tornou-se inteiramente diferente dos outros assentamentos de caçadores-coletores da pré-história com os quais foi outrora tão facilmente comparada. Os restos escavados de Star Carr, Ain Mallaha e muitos outros jazem ignorados, desconhecidos por completo e inacessíveis ao público, ao qual se nega o conhecimento de seu passado caçador-coletor. É 9.100 a.C. Após cochilar até o amanhecer, Lubbock deixa Uenohara e inicia uma viagem para o norte pelas ilhas do Japão. Viaja primeiro a pé, por trilhas de gamo e rotas batidas de colheita de plantas, até a costa de Kyushu. Ali, chega aos rochedos que dominam o Canal Bungo, 50 quilômetros de mar pontilhado de ilhas além das quais fica Shikoku, a próxima do arquipélago do Japão. Sua costa distante se perde numa névoa salgada lançada pelas ondas que se quebram abaixo. Ele não tem escolha senão seguir o topo do rochedo, descendo em baías e tornando a subir nas pontas de terra até chegar mais ao norte de Kyushu. Os acampamentos do Jomon se aninham em enseadas protegidas, algumas com canoas arrastadas para a praia. Tomando uma emprestada, Lubbock atravessa o curto estreito até a ponta sudoeste da ilha de Honshu. Dali, segue a retorcida costa sul, sempre à sombra de altas montanhas interiores, com picos cinza-pedra e roxos. Os invernos chegam e cobrem de neve os cumes e encostas cobertos de florestas; os verões são quentes e úmidos, sua chegada anunciada por ventos e chuvas torrenciais soprados do Pacífico. Logo 9.100 a.C. se torna 8.000 e 7.000 a.C. Quando a costa vira para o sul, Lubbock penetra no interior; vales íngremes, cobertos de árvores, levam a passagens entre picos de montanhas. Dali, ele olha para o leste, além do Pacífico esmeralda, na direção da América do Norte. Quando chega 6.500 a.C., Lubbock sabe
que os caçadores nas Grandes Planícies estão lutando com o impacto da seca, na busca aos decrescentes rebanhos de bisões. Em outra incursão na ilha, partindo da costa, Lubbock chega às margens pantanosas de um enorme lago interior — conhecido como Lago Biwa. As matas são particularmente ricas, e o lago oferece moluscos e muitas plantas aquáticas comestíveis. Não surpreendentemente, há vários acampamentos do Jomon: os habitantes jogam fora os detritos da sua coleta de plantas no terreno pantanoso — conchas, peles impalatáveis, sementes e talos. Ali, serão preservados em sedimento molhado, até serem escavados como o sítio de Awazu e oferecerem um dos poucos restos de plantas do Jomon. Após haver coberto cerca de 850 quilômetros em linha reta desde a ponta sudoeste de Honshu, e pelo menos quatro ou cinco vezes essa distância em torno das complexidades das costas e vales, Lubbock vê-se descansando nas suaves Colinas Tama, acima da Baía de Tóquio de hoje. Ele passou há pouco pelo Monte Fuji, cujo pico perfeitamente simétrico e coberto de neve dominava uma paisagem de lagos e cachoeiras, cerejeiras em flor e azaléias bravas. Mas a vista à sua frente agora é mais prosaica: uma vara de javalis passa fungando e fuçando pelo mato baixo no lado oposto de um vale raso. Um único macho, de presas curvas e aparência letal, domina o grupo; com ele vão três fêmeas e uma legião de bacorinhos listrados. Uma das porcas de repente desaparece em meio a uma aguda gritaria; as outras fogem, os pequenos tentam desesperados acompanhar os adultos que se enfiam entre as árvores, deixando atrás galhos quebrados e arbustos pisoteados. A gritaria continua precisamente no lugar onde tinham estado os javalis, um guincho de pânico e dor misturado com grunhidos de desespero que ecoam pelo vale. E, no entanto, não se vê javali algum. A crise leva vários minutos para cessar, substituída por respiração forte e ruídos de briga. Lentamente, cautelosamente, Lubbock se aproxima e fica sabendo que a porca caiu pela cobertura de mato de um poço, tentada por uma isca de nozes. Está entalada: as pernas pendem desvalidas numa vala, os flancos presos e firmados pelos seus próprios esforços frenéticos para escapar. Durante as próximas horas Lubbock espera junto à esparrela, e a porca de vez em quando guincha e revira a cabeça, desesperada. Quando um grupo de caçadores do Jomon sai da mata e confere a armadilha, ela está exausta
e calada. Quando eles usam uma faca de sílex para cortar a inchada artéria, não há mais que uma murmurante aceitação da morte. Os caçadores bebem um pouco do seu sangue numa pequena tigela de barro e esperam o resto escoar-se. Começa então o trabalho para retirar a carcaça. Eles sobem nas costas dela e fazem o esquartejamento com machados e facas de pedra, pondo a carcaça partida em estacas de madeira. Depois retornam à mata levando pernis atravessados nos ombros e a cabeça do animal numa estaca. Ficam atrás instrumentos de pedra cegos e gordurosos e um único vaso de cerâmica sujo de sangue. Quando Keiji Imamura, hoje na Universidade de Tóquio, fez escavações anteriores à construção de um conjunto habitacional na área de Kirigaoka da cidade de Yokoama em 1970, não descobriu poços do Jomon em nenhuma das sete localidades examinadas. Mas encontrou muitos poços ovais, a maioria com cerca de 1,5 metro de extensão e mais de um metro de profundidade. Pequenos demais para casas e com muito poucos artefatos, Imamura julgou ter encontrado esparrelas para javalis. Para investigar essa idéia, deixou de lado os instrumentos arqueológicos habituais, colheres de pedreiro e espátulas, em favor de tratores. Retirou a terra da superfície de uma vasta área de Kirigaoka, de encostas de colinas, cristas, terraços e fundos de pequenos vales. Toda a área revelou estar salpicada dos poços ovais, muitos perto do que Imamura julgou poderem ter sido um dia trilhas de animais. Os poços eram numa gama de desenhos diferentes. Um tipo tivera antes estacas erguidas na base. Podiam ser estacas para matar o animal ou talvez apenas esteios para manter os pés dos porcos pendurados acima do solo. Outro tipo parecia o que Lubbock viu — um oval alongado com paredes que se estreitavam para prender firme o javali depois que caíra. Uns poucos continham fragmentos de cerâmica, supõe-se que levados pela chuva, de vasos quebrados deixados em torno da esparrela, junto com terra e outros detritos. O estilo e decoração dos vasos sugeriam que alguns poços datavam do Jomon Inicial, contemporâneos do assentamento em Ueno-hara, enquanto outros eram do Começo do Jomon. Outros ainda eram muito recentes, usados para caça de javali em tempos históricos, segundo registrado no folclore japonês. Durante o boom econômico do Japão nas décadas de 1970 e 1980, fizeram-se milhares de escavações todos os anos, antes de construções, e descobriram-se muitos poços semelhantes por todo o país. A maioria das
esparrelas datava do período do Começo do Jomon, e às vezes encontradas em números substanciais. Uma das descobertas mais espetaculares foi feita na região das Colinas Tama, nos subúrbios sul de Tóquio, onde 30 quilômetros quadrados de terra foram examinados antes da construção de um conjunto habitacional. Descobriram-se espantosos 10 mil poços. Os do Jomon Tardio eram dispostos em fila, sugerindo que os javalis ou gamos tinham sido afugentados para eles, talvez com o uso de cercas para canalizar os animais rumo à morte. Mas as pessoas do Começo do Jomon parecem ter sido mais descuidadas com a caça — simplesmente deixavam a isca e a sorte desempenharem seu papel quando os javalis fuçavam e os gamos mordiscavam na mata de aparência inocente. Das Colinas Tama, Lubbock encaminha-se para a Baía de Tóquio, agora sempre atento a punhados de nozes suspeitos. Na chegada, a linha da costa parece deserta, embora haja muitos sinais de presença humana em torno da baía: velhas fogueiras, cabanas de galhos desabadas, canoas arrastadas para a areia. Enquanto Lubbock fica sentado imaginando aonde ir, uma fina espiral de fumaça eleva-se acima das árvores numa pequena ilha dentro da baía. A água parece quente e rasa, e assim ele começa a vadear rumo à praia da ilha. Na verdade é fria e funda, exigindo que ele dê uma desagradável e cansativa nadada. Encontra algumas famílias vivendo na ilha; suas moradas simples de galhos erguem-se junto a um difuso monte de conchas, incluindo ostras, mexilhões e almeijoas. Ossos de animais, alguns ainda com fiapos de couro e tendões, instrumentos e vasos quebrados também foram jogados no monte fedorento. Uma fogueira arde junto à borda do monturo; mulheres moem nozes para fazer pasta, e crianças brincam no lixo. Lançam ossos velhos umas para as outras e despedaçam vasos jogados fora em minúsculos fragmentos. Cachorros deitam-se perto das mulheres e roem ossos. Os homens sentam-se olhando o mar, imaginando se a maré próxima chegará à altura, ou talvez mesmo ultrapassará, a da noite anterior. Lubbock chegou ao que se tornará o sítio arqueológico de Natsushima. Precisando de um pouco de calor após a nadada, senta-se junto à fogueira, o fedor do monturo lembrando-lhe os dias que passou em Ertebole e Namu. Mas embora familiarizado com sítios de monturo, dedicou antes pouco tempo a aprender as artes da coleta costeira. Assim, decide ficar em
Natsushima pelo menos algumas semanas — observando e praticando mais esse aspecto da vida no Jomon. As aulas começam na maré baixa na manhã seguinte, quando ele acompanha as mulheres na coleta de mariscos. Muitas das crianças pequenas também vão, carregadas nos ombros ou correndo a brincar na água próxima. Os moluscos nas pedras são fáceis de encontrar, mas difíceis de desgrudar; Lubbock tem de aprender a bater forte neles com uma pedra pontuda, mas demasiadas vezes rala os dedos na rocha. As mulheres também procuram mexilhões debaixo da areia, atentas a pequenas depressões onde as conchas se enterraram, e testam o seu potencial passando os dedos ou uma vara de cavar na areia. Se sentem conchas suficientes, algumas mulheres se sentam e começam a encher os cestos; se não, a busca continua — cabeças e ombros curvados para ter uma visão melhor do chão. Quando encontram um trecho particularmente denso de conchas, todas as mulheres se reúnem num círculo e puxam enormes mexilhões da areia. A aula de culinária de mariscos prossegue no acampamento. Encontra-se um trecho de areia limpa junto à fogueira e empilham-se as conchas cuidadosamente umas contra as outras, a boca na areia. Colocam-se gravetos e capim seco sobre elas; uma vez acesos, o vento rapidamente espalha as chamas sobre o leito de conchas. Em poucos minutos, começam o chiar e espocar, quando as conchas se abrem e os sumos começam a escapar. Cozidas, o fogo é desfeito e as conchas abertas postas em folhas verdes para esfriar. Embora o peixe marinho e alimentos costeiros dominem a dieta de Natsushima, Lubbock também se junta aos grupos de caça que partem regularmente para as colinas e florestas no interior. Eles conferem esparrelas e montam armadilhas para capturar lebres — uma habilidade que Lubbock já aprendeu muito tempo atrás em Creswell Crags. Rastros frescos de gamos são seguidos, mas com pouco êxito; os cachorros espantam aves de caça; lançam-se redes sobre patos incautos. Dentro de poucas semanas, Lubbock já aprendeu muito sobre como seus anfitriões, que não o vêem, adquirem comida, mas pouco descobriu sobre a vida e crenças religiosas deles. A única morte que ocorreu foi a de um cachorro, o cadáver sepultado sem cerimônia no monturo. Assim, continua incerto o que acontece com os mortos humanos. Houve as conhecidas histórias e cantos em torno das fogueiras à noite, mas nenhum
ritual, costume ou dança memoráveis. Sosuke Sugihara e seus colegas escavaram o monturo de conchas de Natsushima em 1.955 O sítio desempenhou um papel-chave no estabelecimento da antigüidade e caráter da cultura Jomon, fornecendo as primeiríssimas datas de radiocarbono relacionadas com a pré-história japonesa. As camadas inferiores continham minúsculos fragmentos de cerâmica e carvão que foram datados de 9.000 a.C.; como na Caverna de Fukui, escavada poucos anos depois, essa combinação de cerâmica e carvão datado por radiocarbono causou certa descrença inicial. A escavação encontrou traços de muitas atividades costeiras: anzóis, agulhas, pesos, machados, mós e os ossos de uma imensa variedade de mariscos, animais, aves e peixes. Como no monturo de Ertebole na Dinamarca, não se encontraram vestígios de moradas, talvez porque foram construídas logo depois da área escavada, ou porque eram demasiado efêmeras para deixar traços. Deve-se imaginar a presença de canoas marítimas pelos ossos de atum, pesca do mar e golfinho encontrados dentro do monturo. Mas canoas do Jomon foram encontradas em outras partes, notadamente em Kamo, outro monturo de conchas na costa do Pacífico. O fato de Lubbock não recolher informação sobre os costumes funerários e atividades rituais dos que viviam em Natsushima em 6.500 a.C. foi conseqüência da curta duração de sua visita — apenas um verão. Ele não ficou sabendo se as famílias permaneceriam junto ao monturo o ano todo ou se se mudariam para outro assentamento, talvez juntando-se a outras famílias numa aldeia de inverno na mata. Essa pode ter sido a época das cerimônias e rituais, do vestir-se bem e dançar, uma época em que se forjavam os casamentos e se faziam os ritos de passagem. Mas Lubbock teve de deixar Natsushima com essas perguntas sem resposta — exatamente como continuam sem resposta para os arqueólogos hoje. A cultura Jomon continuou a florescer muito depois de as viagens de Lubbock chegarem ao fim. O apogeu foi logo depois de 3.000 a.C., quando a cerâmica Jomon se tornou efetivamente escultura ornada, e se produziram bastões de pedra e estatuetas femininas de elaborada arte. À luz do impressionante aumento no número de sítios arqueológicos, a população humana evidentemente subira às alturas em número. As matas foram intensamente exploradas, as pessoas do Jomon tornando-se hortelãos selvagens, cultivadores e administradores de sua floresta. Os
monturos de conchas cresceram de pequenos montes de lixo espalhado, como em Natsushima, para grandes montes em forma de ferradura, contendo muitos milhões de conchas e ossos. O salmão migratório proporcionou suprimento previsível de comida, possivelmente dando a mesma contribuição cultural que do outro lado do Pacífico, na costa noroeste da América do Norte. Quando o cultivo em grande escala do arroz chegou ao Japão, por volta de 500 a.C., o estilo de vida de caça-coleta-cultivo foi substituído por uma economia de agricultura rural que fez uso de instrumentos de ferro e continuou até os tempos modernos. Pessoas que chegavam da China e da Coréia levaram essa nova economia para o Japão. É dessa gente que descendem quase todos os japoneses modernos. Como não se podia cultivar arroz nos ambientes mais frios de Honshu e Hokkaido, a cultura Jomon sobreviveu um pouco mais no norte. Hoje, o povo Ainu, que mantém um estilo de vida de caça e coleta, habita essas regiões. Muitos acreditam que os Ainu são não apenas os herdeiros culturais da forma de vida Jomon, mas os descendentes biológicos daquele povo.
41 Verão no Ártico A estepe dos mamutes e a colonização do Alto Ártico, 19.000 – 6.500 a.C. Após dividir uma caverna da Tasmânia com as pessoas mais ao sul do mundo na era do gelo, Lubbock dirige-se agora para o extremo oposto do planeta Terra. Seu destino é Jokhov, uma península no oceano Ártico que marcará o fim de sua jornada pelo leste da Ásia — simplesmente não haverá mais parte alguma para ir. Hoje Jokhov é uma minúscula ilha, separada do continente siberiano por um aumento no nível do mar e com não mais de 11 quilômetros de norte a sul e 9 quilômetros de leste a oeste. Sua espinha de baixas colinas é bordejada por baixadas inteiramente planas pontilhada de buracos cheios d'água. Uma pobre tundra de pântanos, brejos, liquens e capim cobre o leito de rocha, a não ser onde o basalto foi varrido pelas tempestades árticas. Constantemente atacada por um violento vento norte, sofre o intenso frio e escuridão do longo inverno ártico. Poucos contestariam que a ilha de Jokhov c um dos lugares mais inóspitos da Terra; era pouco diferente em 6.400 a.C. Mas foi o lar de uma comunidade da Idade da Pedra — o primeiro povo que se sabe ter vivido no Alto Ártico. Para chegar a Jokhov, Lubbock tem de enfrentar uma jornada de cerca de 3 mil 500 quilômetros, partindo de Natsushima; começa com uma viagem de canoa desde a extremidade norte do Japão. Ao chegar ao Extremo Oriente russo, atravessa a pé uma paisagem de densas florestas de carvalho, álamo e vidoeiro que oferecem um perfeito habitat para ursos, raposas e javalis. À medida que avança para o norte, essas matas de largas folhas muda para uma escura floresta de coníferas, espruce, lariço e bétula, em que ele se sente só, embora sinais sugiram que não. Passa por fogueiras recentes em margens de rios onde se fizeram instrumentos de pedra, depenaram-se pássaros e trataram-se salmões. Penachos de fumaça espiralam acima de árvores distantes; estranhos barulhos não naturais parecem anunciar presença humana. Mas tais ecos são raros acréscimos aos barulhos da floresta siberiana — de árvores rangendo ao vento e do farfalhar do mato produzido por vários animais, alce ou talvez lince. E
acima de tudo há os guinchos, grasnados e bater de asas dos gansos; também eles se dirigem para o norte, em busca do verão ártico. A meio caminho de sua jornada para o norte, uma caverna oferece abrigo e um lugar para esperar a chegada de outros. Fica dentro de um pequeno rochedo de calcário e perto da confluência de dois rios, o maior dos quais um dia se chamará Aldan e cortará a República Sakha da Federação Russa. Lubbock atravessa um capão em sua margem íngreme para chegar à entrada; a caverna é bem pequena dentro — não mais de 12 metros até o fundo e com a altura apenas suficiente para ele manter-se de pé. A vista é intimidante: ondas de colinas cobertas de florestas que sobem e descem em ritmo antes de se esfumarem suavemente no céu. A caverna é quente e seca; se há pessoas nas vizinhanças, certamente virão usá-la. E assim Lubbock espera, como fez em outras partes do mundo — em Kulpi Mara no Deserto Central australiano, em 13.000 a.C., e na Sandal Cavern, Arizona, em 7.500 a.C. Mais uma vez, espera em vão. O solitário lugar de espera de Lubbock é a Caverna Dyuktai, mas sua chegada foi mal calculada para encontrar ocupantes. Após ser usada em 17.000 a.C., passou por um longo período de abandono, até ser reocupada em tempos históricos. Assim, em 6..400 a.C. — data da chegada de Lubbock — os detritos de instrumentos de pedra e comida dos ocupantes de Dyuktai na era do gelo estavam lacrados dentro dos depósitos no chão: uma mistura de aluvião soprado pelo vento, fragmentos de calcário e areia deixados pelo rio quando inundado. Os instrumentos continuaram enterrados dentro desses sedimentos até fins da década de 1.960, quando foram escavados pelo arqueólogo russo Yuri Mochanov. Ele fez suas escavações como parte da Expedição Arqueológica Prilensk, estabelecida em 1.964 pela Academia de Ciências da URSS. O vale do rio Aldan foi escolhido na esperança de encontrar assentamentos de pessoas que haviam migrado para o nordeste da Sibéria, e cujos descendentes colonizaram as Américas. Isso, claro, foi muito antes da descoberta de Monte Verde, e quando o povo Clovis ainda era reverenciado como os primeiros americanos. A caverna continha vários metros de depósitos no chão, dos quais se recuperou um grande número de artefatos de pedras e ossos de animais. Estes vinham de muitas espécies diferentes — tanto animais grandes, incluindo rena, cavalo e bisão, quanto menores, como lêmingue, lebre e
raposa. Sugeriam uma paisagem bastante diferente das colinas cobertas de florestas pelas quais viajara Lubbock, uma paisagem de tundra e estepe na qual, conclui Mochanov, as pessoas caçavam não apenas bisão e rena, mas o peludo mamute cujos ossos foram também encontrados dentro da caverna. Os instrumentos de pedra revelaram ser bastante diferentes de qualquer coisa antes encontrada no nordeste da Ásia. Alguns eram facas de pedra e pontas de projéteis feitas pela repetida retirada de aparas das faces alternadas de uma grande lasca de pedra. Era o mesmo método "bifacial" que o povo Clovis da América do Norte usava para fazer suas pontas de projéteis pelo menos um milhão de anos após a ocupação pré-histórica final da Caverna Dyuktai. Outros instrumentos eram feitos de pequenas e finas lâminas de sílex retiradas de núcleos em "forma de cunha", e galhadas e ossos tinham sido usados para fazer uma variedade de outros implementos, incluindo sovelas e martelos. À medida que a Expedição Arqueológica Prilensk descobria mais sítios, escavaram-se coleções semelhantes, muitas vezes associadas à mesma gama de mamíferos, E assim definiu-se uma nova cultura, que recebeu o nome da caverna onde esses instrumentos foram encontrados pela primeira vez: a cultura Dyuk-tai, logo reconhecida como tendo existido em toda a Sibéria — ou oeste da Beringia, como devemos chamá-la — durante os milênios finais do Pleistoceno. Sabe-se agora que as origens da cultura Dyuktai remontam a apenas mais ou menos um milênio após as mais severas condições do LGM. Entre 1986 e 1990, Mikbail Konstantinov, do Instituto Pedagógico Chita, escavou um notável assentamento aberto nas antigas margens do rio Chikoi, perto do Lago Baikal, no leste da Rússia, aproximadamente 2 mil quilômetros a sudoeste da Caverna Dyuktai. Conhecido como Studenhoe, esse sítio revelou que caçadores-coletores acampavam regularmente na planície aluvial do rio, sendo os detritos inundados e depois sepultados em finos sedimentos imediatamente após cada ocupação. A conseqüência foi uma tremenda seqüência de depósitos nos quais fogueiras e cabanas individuais eram separadas por finas camadas de aluvião. Uma das moradas era assinalada por um círculo de setenta pedras com os restos de cinco fogueiras em fila. As fogueiras eram cercadas por pedras, contendo carvão, e os pisos das cabanas forneceram milhares de artefatos de pedra típicos da cultura Dyuktai.
Em 1996, uma equipe americana colaborou com os russos para conseguir amostras de carvão das fogueiras e datá-las por radiocarbono. Os resultados mostraram que os primeiros sítios à beira do rio haviam ocorrido em 19.000 a.C., data em que já se haviam adotado os instrumentos tipo Dyuktai. Tornou-se evidente que Studenhoe e a tecnologia tipo Dyuktai proporcionaram a base da colonização do extremo nordeste. Embora o povo Studenhoe e seus descendentes elevam ter suportado temperaturas congelantes, ventos violentos e uma constante busca de lenha e abrigo, parece que foram levados a colonizar o gelado norte. Em 15.000 a.C., estavam vivendo em Berelekh, um assentamento mil quilômetros ao norte da Caverna Dyuktai e 500 quilômetros dentro do Círculo Ártico. E, como sabemos por sítios como as Cavernas do Peixe Azul no Alasca, pessoas com tecnologia Dyuktai cruzaram a ponte de terra de Bering em 11.000 a.C., tornando-se alguns dos primeiros americanos. Em 6.400 a.C., haviam colonizado o Alto Ártico, estabelecendo o assentamento de Jokhov. Antes de deixar Dyuktai e retomar sua jornada para o norte, Lubbock lê um trecho de Tempos pré-históricos sobre os "esquimós". Escrevendo em 1865, seu xará sabia que pessoas viviam nas margens do oceano Ártico, da Sibéria à Groenlândia. O John Lubbock vitoriano usara os diários de muitas expedições árticas, sobretudo os da viagem do Capitão Parry de 1.821-1.823, e era mais lisonjeiro com os esquimós do que com qualquer de seus outros selvagens modernos. As descrições que faz das moradas, instrumentos, roupas, barcos, caça, pesca e práticas fúnebres estão cheias de observações sobre engenhosidade e habilidade. Quando o John Lubbock vitoriano descobria suas fontes sendo críticas ou desdenhosas, apressava-se a defender os esquimós. Assim, quando se citavam várias "histórias repugnantes" de comidas, junto com o hábito dos esquimós de comer carne crua, ele comentava que várias das expedições árticas européias também comiam carne crua, o que levava a uma boa saúde em altas latitudes. Da mesma forma, quando descrevia que os esquimós eram "demasiado sujos", acentuava que eles sofriam de escassez de água doce e que o extremo frio, "impedindo a putrefação, retira uma das principais induções à limpeza". Após ter citado que "os esquimós são "grandes ladrões", o Lubbock vitoriano enfatizava que se deviam dar margens às tentações oferecidas pelas despensas dos navios a pessoas sujeitas a uma extrema escassez de comida. E continuava descrevendo os
esquimós como "estritamente honestos entre si, bondosos, generosos e dignos de confiança". Algumas das mulheres eram "bonitas e inteligentes". Deixando a Caverna Dyuktai em 6.400 a.C., Lubbock continua a viajar para o norte, cruzando colinas e vadeando rios. Muitas vezes é escuro sob as árvores; o chão da floresta elástico com o grosso tapete de agulhas de pinheiro. A cada passo, a raridade de animais torna-se mais visível. Vêem-se alces de vez em quando nos pequenos prados entre as árvores ou pastando em capões de salgueiro. Lubbock avista um urso, empanturrando-se de bagas. Mas fora isso a mata de espruce parece inteiramente vazia, nada mais que uns poucos pássaros entre as árvores e aves silvestres em torno dos pântanos. Só os insetos parecem abundantes — picando, furando e varando a pele de Lubbock a cada oportunidade. Quando segue o curso de um vale, ele nota uma coisa branca, lisa e curva projetando-se de uma vala. Após raspar um pouco de terra, revela ser uma presa de mamute, exposta após o desabamento de um sedimento no chão do vale. Com uma grossa vara e uma pedra chata como pá, ele começa a cavar. A presa vai-se mostrando mais, e com ela parte de um crânio. Logo surge um volume de couro de mamute. Após horas cavando, Lubbock desiste da tarefa a que ele mesmo se impôs — seria necessário mais que paus e pedras para expor a poderosa fera. Os animais congelados da Sibéria são as lembranças mais evocativas do mundo do gelo no norte. A mais antiga descoberta registrada é um mamute de Berezovka, localizada no extremo nordeste da Sibéria. Em 1.900, um negociante de marfim comprou presas de um tribal que vivia às margens do rio Kolyma e soube que tinham sido cortadas de um animal com o couro intacto. Após meses de comunicados e telegramas, uma expedição partiu da Academia Imperial de Ciências em Petrogrado para investigar a descoberta. Chefiada por Otto F. Herz, a missão partiu em maio de 1.901 e levou todo o verão para encontrar o mamute. Quando chegou, as geadas e neves de outono haviam cimentado mais uma vez o mamute na terra congelada. E assim, teve-se de erguer uma construção de toros e lona sobre a carcaça, acender fogões e degelar o chão para que a escavação pudesse começar. Embora estivesse faltando grande parte da cabeça e outras partes se tinham decomposto, a preservação do mamute de Berezovka era admirável. Grandes áreas do couro haviam sobrevivido com alguns
órgãos internos, a língua, cauda e pênis. A última refeição do mamute continuava em seus dentes — ranúnculos e outras flores. Muitos dos ossos estavam quebrados, e havia grandes coágulos de sangue. A morte parecia ter sido quase instantânea, talvez pela queda numa vala. Nos cinqüenta anos seguintes fizeram-se várias descobertas surpreendentes, não apenas de mamutes congelados, mas de cavalos, bisões e rinocerontes peludos, todos de antes da era do gelo chegar ao fim. Vários tinham capim, junco c flores não digeridos no estômago — indício crítico para os cientistas na busca para reconstituir como parecia a paisagem antiga antes da chegada das florestas. Dale Guthrie, zoólogo da Universidade do Alasca e um dos mais famosos desses cientistas, cunhou o termo "estepe de mamute" para as paisagens da era do gelo do norte da Ásia. As árvores estavam inteiramente ausentes de uma paisagem de capins, ervas e arbustos que sustentavam rebanhos de caça grande. Como a estepe que Gordon Hillman, arqueobotânico do University College de Londres, procurou reconstituir para o oeste da Ásia, essa estepe nortista mal existe hoje, mas foi um componente vital do mundo da era do gelo. Adquiriu-se uma intuição dos habitantes animais da estepe de mamute com escavações num vasto acúmulo natural de ossos em Berelekh, que ficou conhecido como "cemitério de mamutes". Após ser comunicado pela primeira vez na literatura científica em 1.957, a Academia de Ciências da URSS lançou uma expedição em 1.970. N. K. Vereshchagin usou um canhão d'água para remover os sedimentos que o envolviam, revelando os restos de talvez duzentos mamutes, junto com outros de bisões, cavalos e renas. Ao fazer isso, encontrou quatro artefatos de sílex entre ossos espalhados a curta distância do depósito principal. Yuri Mochanov identificou-os como pertencentes à cultura Dyuktai. E assim a Expedição Arqueológica Prilensk escavou o assentamento humano em Berelekh entre 1.971-1.973, e de novo em 1.981. O trabalho deles descobriu muitos instrumentos feitos de pedra, osso e marfim jogados fora por volta de 15.000 a.C. Associados a estes havia ossos de mamute, bisão e rena; mas os de lebre ártica e perdiz eram muito mais numerosos. Assim, como Lubbock descobriu em Creswell Crags, os caçadores de Berelekh parecem ter preferido pegar caça pequena com armadilhas a enfrentar feras poderosas. O mais provável é que as presas de mamute usadas para fazer facas e lanças tenham sido catadas no
"cemitério" — como as pessoas de Pushkari haviam recolhido de um acúmulo semelhante para construir suas moradas no LGM. Mochanov pensa que uma casa de osso de mamute pode ter sido construída um dia em Berelekh, mas após milênios de ação da geada e perturbação, para não falar no impacto da bomba d'água de Vereshchagin, não se discerne nenhum padrão entre os ossos. * Logo depois de 13.000 a.C., as árvores começaram a espalhar-se pela estepe de mamute. Guthrie acredita que foram estimuladas a fazê-lo não tanto por temperaturas mais elevadas, mas pela maior precipitação pluvial — a chave da estepe de mamute fora a sua aridez. A maior parte das novas chuvas caiu como persistentes garoa e neblina, como acontece hoje. Jamais teria sido substancial; o Alasca moderno recebe a mesma precipitação anual que o Deserto de Kalahari. Mas como a evaporação era, c é, muito baixa, os solos da estepe de mamute logo se tornaram bastante úmidos, à medida que uma rede aquática de pântanos, rios e lagos nascia gota a gota. As coníferas que formaram as novas florestas tinham bastante água, mas lutavam para conseguir nutrientes do solo congelado. O mesmo se aplica hoje, e o crescimento é visivelmente lento: Guthrie diz que os pés de espruce podem ter cem anos de idade, mas não mais de 20 centímetros de um lado a outro. Essas árvores arriscam perder qualquer novo broto para herbívoros famintos, e por isso carregam as folhas e agulhas com compostos tóxicos para torná-las inteiramente não comestíveis. Quando derrubadas, têm uma decomposição extremamente longa, resultando num grosso tapete húmico no chão da floresta. Isso isola o solo, criando o permifrost e reduzindo mais ainda a existência de nutrientes para as árvores. Assim, o crescimento é ainda mais inibido e impõe-se uma pressão ainda maior às árvores para fazerem-se desagradáveis como comida. Essas árvores também precisam de extensos sistemas de raízes para sobreviver, e isso mantém quase toda a sua biomassa sob o solo, a segura distância dos herbívoros. Os capins, ervas e arbustos da estepe de mamute eram bastante diferentes — cresciam rápido, adaptavam-se a curtos surtos sazonais de chuvas e renasciam. Como tais, podiam deixar-se comer; algumas até se beneficiavam com isso, por terem os tecidos mortos devorados, para que a luz do sol as alcançasse e aquecesse o próprio solo.
As florestas, pântanos e lagos espalhados tocaram os rebanhos animais para o extremo norte, onde a estepe de mamute sobrevivia. Mas mesmo ali eles foram postos sob pressão pela crescente capa de neve que enterrava os capins e arbustos e pela inundação das terras costeiras pelo mar crescente. Essa combinação de fatores foi suficiente para levar o mamute siberiano à extinção — não se pode culpar o povo Dyuktai, pois não se encontraram sítios de abate que se comparem com os do Clovis na América do Norte. Sabe-se de apenas uma população de mamutes que sobreviveu à explosão de aquecimento global em 9.600 a.C. — a que ficou presa na ilha Wrangel depois que a planície siberiana foi inundada pelo mar. Foram os últimos mamutes peludos a andar no planeta Terra. Quando Lubbock prossegue em sua viagem em 6.400 a.C., as árvores se tornam esparsas e a idéia de que ocorreu um aquecimento global parece um mito. Quando o ar está parado, nuvens de mosquitos assentam-se nos olhos, lábios e narinas, e ele deseja que sopre o vento gelado. Chega o meado do verão e os céus ganham um tom pastel, muitas vezes parecendo a madrepérola de dentro de uma concha. Estranhos halos e auréolas aparecem freqüentemente em torno do céu e da lua. A aurora boreal oferece uma tapeçaria celeste distante, de verdes e vermelhos murmurantes. Lubbock acaba por ver-se numa extensa planície costeira. As poucas árvores crescem sobre uma variegada colcha de retalhos de musgo, urze, liquens e cogumelos; são enfezados e surrados pelo vento. Lubbock tropeça em sólidos montículos de capim e escorrega em poças de lama; mas o musgo de aparência úmida é surpreendentemente seco sob os pés. O céu é cinzento e muitas vezes desencadeia um vento carregado de granizo que cruza a tundra. Ao longe, vê-se a tênue silhueta das colinas cobertas de neve entre as quais se aninha a aldeia de Jokhov. Um barulho indefinido paralisou os passos de Lubbock; era um que lembrava a chegada de outros — aqueles de Ain Mallha, Skateholm e Koster. O latido de um cão. Girando, ele vê um trenó puxado por quatro cães se aproximando, conduzido por um homem vestido em um manto grosso e peles. Ele sacudiu lentamente ao longo da tundra, com uma cesta de pequenas frutas, um fardo de gravetos e carregando nas costas uma presa de mamute. Aproveitando a chance, Lubbock saltou a bordo assim que o trenó passou, ganhando uma carona para os últimos quilômetros para Joklov.
Em 1.989, uma expedição conjunta do Instituto de Arqueologia de Leningrado e do Instituto de Pesquisa no Ártico e Antártico descobriu um assentamento humano na minúscula ilha de Jokhov. Inicialmente, parecia não ser mais que uma série de rasos poços redondos, um punhado de ossos de animais e madeira trazida pela maré, dentro de um pequeno vale no sudoeste da ilha, perto do pé de uma colina isolada. Escavações foram feitas por Vladimir Pitul’ko, que descobriu que os poços tinham sido outrora moradas, e que a preservação da madeira e ossos era excelente devido a condições do permifrost. O assentamento revelou ser o mais antigo indício de presença humana no Alto Ártico. Durante as escavações, Pitul’ko encontrou indícios de trenós e cachorros e calculou que os dois poderiam estar juntos, empurrando a história da tração canina no Ártico para trás em vários milhares de anos. Os do trenó eram um fragmento de madeira, provavelmente lariço, que fora modelado e usado como patim. Tinha pouco mais de um metro de comprimento, com estrias e verniz na parte de baixo. Com o uso, ficara chanfrado, indicando ligação do lado esquerdo do trenó. Um soquete furado no patim segurara outrora parte da estrutura — o trenó fora, evidentemente, uma construção substancial. Embora se recuperassem outros fragmentos do trenó, nenhum forneceu indício direto de que fora puxado por cachorros. Mas escavaram-se ossos desses animais, identificados como tais por serem maiores que os da raposa ártica e menores que os de um lobo. Outros indícios de domesticação canina vieram de grande quantidade de "pequenos depósitos redondos" — fezes de cachorro — escavados do permifrost. Quando separados, descobriu-se que continham pêlo, fragmentos de osso e casco de rena. Tendo sido encontradas em discretas concentrações, as fezes indicavam onde os cachorros tinham sido amarrados em estacas separadas. Os cachorros também podem ter sido usados para a caça. Os ossos de animais recuperados por Pitul’ko indicavam que, embora o povo de Jokhov caçasse rena, gansos e cisnes, e uma ou outra foca, sua fonte de alimento básica era o urso polar. Essa foi uma descoberta única — nenhum outro assentamento em que os ursos polares fossem mais que um pequeno complemento à dieta fora jamais encontrado por arqueólogos ou visitados por antropólogos. Isso não surpreende, porque os ursos polares são animais extremamente fortes e perigosos. Os ossos de animais de Jokhov
também contradiziam a opinião generalizada entre os arqueólogos de que a colonização do Alto Ártico fora feita por comunidades especializadas na caça de mamíferos marinhos. Todas as culturas árticas historicamente conhecidas tiveram o urso polar na mais alta estima, muitas vezes atribuindo-lhe um papel-chave em seu mundo mitológico. Uma crença generalizada entre os inuit do Ártico canadense é que houve uma época em que ursos e homens podiam transformar-se facilmente uns nos outros. Isso pode ter surgido das semelhanças entre os ursos polares e os seres humanos: ambos são capazes de ficar em pé e viajar em terra e mar; ambos são habilidosos na caça e na construção de moradas de inverno, no caso do urso para dar à luz. Mas o respeito nunca impediu que os matassem; afinal, os ursos polares têm muita coisa a oferecer: boa carne, peles quentes, gordura para uso em lampiões; ossos, garras e dentes para fazer instrumentos. Quando o povo inuit matava um urso macho, a bexiga, o pênis, baço e língua eram pendurados num iglu com o arpão e outras armas usadas na caça. Se o animal era fêmea, a bexiga e o baço eram pendurados com os instrumentos das mulheres — agulhas e facas — para que a alma da ursa se sentisse em casa. Ensinava-se as mulheres a temer o urso desde tenra idade, com histórias sobre ursos famintos que apareciam no acampamento quando os homens estavam fora caçando. A primeira caça ao urso de um menino inuit dava-lhe status de adulto, e depois ele recebia um chicote de cachorro com o cabo feito do osso do pênis do urso. Aleksey Kasparov, do Instituto de Arqueologia de Leningrado, fez um estudo meticuloso dos ossos de urso polar que Vladimir Pitul’ko escavou em Jokhov. Identificou como o esquartejamento inicial ocorria no lugar da morte, onde a parte inferior das pernas e as patas eram jogadas fora. Também conseguiu reconstituir como as carcaças eram esquartejadas em juntas de carne e a cabeça cortada para permitir a retirada das presas e do cérebro. O tamanho dos ossos sugeria que o povo de Jokhov caçava, sobretudo, fêmeas, mais provavelmente enquanto os machos buscavam lugares para fazer seus covis. Encontrou-se uma variedade de equipamento de caça, embora permaneça incerto quais exatamente eram usados para ursos polares e quais para renas e gansos. Havia pontas de projéteis de osso em forma de agulha, algumas das quais podem ter sido pregadas a cabos de seta, cujos fragmentos também foram encontrados. As pontas de ossos grandes
tinham fendas nas quais se tinham inserido lâminas de sílex. Outros pedaços de osso haviam sido talhados em pontas farpadas, muito provavelmente para a pesca. Usavam-se marfim e galhadas para fazer picaretas, e uma variedade de tipos de pedra fora trabalhada — sílex, arenito, calcedônia e obsidiana. Algumas foram colhidas na praia local; outras, como a obsidiana, trazidas de grande distância e usadas com parcimônia. O povo Jokhov não mais usava a técnica bifacial para fazer seus instrumentos de pedra, como preferiam os de Studenhoe, da Caverna Dyuktai e de Berelekh. Tampouco produziram eles os núcleos "em forma de cunha" típicos, preferindo transformar os nódulos de pedra em formas cônicas ou prismáticas antes de tirar as lascas e lâminas. Muitas eram retiradas e usadas como lâminas de faca, sovelas e instrumentos de gravação; os pedaços de pedra maiores eram alisados para fazer machados. Na época da ocupação de Jokhov, as pessoas em toda a Sibéria vinham usando essa nova tecnologia há vários anos, abandonando a da cultura Dyuktai à medida que a paisagem se cobria de árvores. Embora Lubbock não encontrasse pessoa alguma em sua viagem para o norte, caçadorescoletores sem dúvida viviam nas florestas siberianas em 6.400 a.C., pois se encontraram numerosos sítios. Sabemos muito pouco sobre o estilo de vida deles, uma vez que a maioria dos sítios não apresenta mais que um punhado de artefatos de pedra. Por isso a descoberta e escavação de Pitul’ko são tão notáveis — os restos de moradas, cachorros e trenós, pertencendo a uma comunidade de caçadores de urso polar da Idade da Pedra que viviam não menos de mil quilômetros Círculo Ártico adentro. O trenó chega à aldeia quando Lubbock tira dos dentes sementes de bagas. Gostou da viagem, embora se sinta decepcionado pelo fato de os patins terem sido leitos de madeira, em vez de queixada de baleia ou peixes congelados, como se descreve em Tempos pré-históricos. O entardecer também chega a Jokhov, o início de um demorado crepúsculo que se desbotará de uma forma sutil, em vez de escurecer, repintando a paisagem em azuis claros e roxos nebulosos. Há pelo menos uma dúzia de moradas circulares, a sotavento de uma colina e perto de um pequeno riacho dentro de um capão de salgueiros. Cada uma tem madeiras rachadas como paredes e um telhado em forma de cone coberto de turfa e musgo. Várias crianças esperavam o trenó; ajudam o condutor a
amarrar os cachorros, trazendo-lhes água em tigelas de madeira e ossos para roer. A carga de madeira é empilhada ao lado de uma morada, a presa posta de pé contra uma parede. O homem toma água e depois divide as bagas com alguns da sua família e amigos, todos homens — sentados em volta de uma fogueira acesa. Lubbock entra numa morada, afastando pesadas cortinas e descendo para um aposento de forma cônica. Está escuro e quente lá dentro; o ar pungente, com uma mistura de odores de peixe, couro e óleo de baleia. O chão, como as paredes, é feito de madeira velha rachada e coberto com tapetes de raízes de urzes trançadas. No meio há uma lareira — um punhado de cinzas cercado por blocos de pedras. De cócoras, ele examina um conjunto de artefatos: uma pedra oca contendo gordura animal, uma sovela de osso e lâminas de obsidiana. Em volta disso há fiapos de couro cortado, pedaços de linha, couros e plumas. Tigelas de madeira em prateleiras; uma variedade de implementos pendurados — facas com lâminas de pedra, colheres de pau, arpões, peças de roupas, cestos trançados. Um monte de couros e peles sugere um lugar de dormir. Numa segunda morada, Lubbock encontra algumas das mulheres e crianças de Jokhov — uma dúzia de pessoas socadas num espaço minúsculo. Sentam-se aliviados das grossas roupas necessárias para uso quando estão do lado de fora. Duas amamentam, as outras têm bebês adormecidos nos braços. O ar é ainda mais denso que antes, tendo agora o buquê de corpos seminus e carne humana em grande parte não lavada. Sentam-se caladas, satisfeitas em ouvir uma das mães trautear para o filho. Lubbock senta-se num monte de peles atrás delas; além do suave canto, ouve o vento, o barulho das vozes dos homens e o que o seguiu por todo o mundo pré-histórico: o bater de uma pedra contra outra. Com essa melodia da vida na aldeia ártica, adormece. Sabendo que suas viagens finais serão em baixas latitudes — sul da Ásia e depois África — Lubbock tem consciência de que essa visita a Jokhov é a última oportunidade para ficar sabendo sobre a vida numa paisagem congelada. Após aprender a pegar lebres com armadilhas em Creswell Crags, tocaiar renas no Vale de Ahrensburg e esquartejar a caça em Verberie, sabe que continua havendo uma lacuna em sua educação: como fazer roupa adequada para a sobrevivência num mundo da era do gelo. Sabe um pouco pelo trecho sobre os esquimós em Tempos pré-históricos, mas precisa aprender por experiência própria.
As pessoas de Jokhov usam roupas feitas com pele de rena e gastam muito tempo na sua feitura e cuidado. E assim, durante todos os dias seguintes na aldeia, Lubbock aproveita cada oportunidade para observar a fabricação de roupas, e sempre que possível dá uma mãozinha invisível. A maior parte desse hábil e laborioso trabalho é feita pelas mulheres, e ele se lembra que os caçadores da era do gelo de Gönnersdorf celebravam corretamente as suas mulheres descrevendo-as em pedra. A primeira tarefa que elas fazem é limpar os couros de rena — retirando toda a gordura e tendões que ficam após o esquartejamento. Para fazer isso, os couros são raspados com lascas de pedra encaixadas em cabos de osso. É trabalho duro, e exige mão hábil para não cortar o próprio couro. Os couros são lavados com água e postos a encharcar-se em urina, para retirar os últimos vestígios de sangue e gordura. Enquanto isso, as mulheres preparam linha com os tendões da rena; estes são encharcados em água do mar, pendurados para secar e depois divididos em fios finos e fortes. Elas os passam repelidas vezes entre os dentes, até ficarem macios e flexíveis; Lubbock tenta fazer o mesmo, mas sem os rigores de uma infância ártica seus dentes são demasiado afiados para servir. Após uns dois dias, os couros são retirados da urina e enxaguados. Em seguida são presos com cavilhas e esticados; depois dobrados, esfregados e esticados mais um pouco, até também ficarem completamente macios. Usam-se lâminas de obsidiana, afiadas como navalhas, para cortar os couros em pedaços. Os casacos externos à altura das coxas exigem oito peças diferentes — frente, costas, dois pedaços para o capuz, mais dois para os ombros e um para cada braço. Cortam-se os couros em ângulos, para que os pêlos da rena acabem por cobrir as costuras, e cada peça é cuidadosamente moldada para permitir calor e movimento dentro da roupa final. Fazem-se buracos nas bordas usando-se uma sovela de osso e as peças são costuradas firmemente com o fio de tendão e agulhas de osso; grossos pedaços de couro servem como dedais. Exatamente como disse o John Lubbock vitoriano dos esquimós do século XIX, com esses simples instrumentos "costuram muito forte e bem". Acrescentam-se rufos de pele — tanto pela moda quanto pelo calor. A pele de lobo também é particularmente boa para desfazer os cristais de gelo formados pela respiração no ar gelado. As calças, que chegam às panturrilhas, são feitas de forma semelhante, e também usadas com pele de caribu do lado de fora; as perneiras, em contraste, são feitas com pêlos dentro e fora.
Mais dois artigos de vestuário são essenciais: o colete interno e as botas. A primeira é a de mais interesse para Lubbock, pois em todas as suas viagens ele jamais soube o que se usava sob as roupas externas dos caçadores da era do gelo. No caso do povo de Jokhov, são peles de pássaros costuradas — como o Lubbock vitoriano descreveu em relação aos povos mais recentes do Ártico. Esses coletes internos são feitos segundo o mesmo padrão das externas e com evidente conhecimento dos efeitos isolantes específicos dos diferentes tipos de penas. Ele reconhece o uso do papo de ganso em algumas partes, e peles inteiras de patos em outros. Peles de pássaros costuradas e viradas pelo avesso também são usadas para chinelos usados dentro das botas. As próprias botas são feitas de couro de rena ou de urso polar; as solas, dobradas para cima em torno dos lados dos pés e costuradas a peças nos tornozelos, ligadas com correias numa única costura central. Lubbock nota que as botas com solas de urso polar são usadas principalmente para tocaiar ursos, quando é essencial ser o mais silencioso possível na neve. Ele tem a felicidade de ver tais roupas sendo feitas. Nós não temos nenhum indício de como se vestiam as pessoas de Jokhov, mas sabemos o suficiente sobre a vida ali para ter alguma certeza de que roupa desse tipo era essencial. Para caçar ursos polares e renas no Ártico, precisa-se de isolamento contra o frio, sobretudo quando de pé ou sentado inteiramente imóvel à espera da caça; a roupa também deve permitir movimentos súbitos, enérgicos e precisos quando a presa chega ao alcance. Nem todo o tempo de Lubbock é passado dentro da aldeia. Ele muitas vezes se junta aos grupos que partem todo dia para cruzar a tundra em diferentes tarefas. É preciso pegar água doce em bexigas numa fonte a cerca de dois quilômetros de distância. Coleta-se madeira trazida pelo mar na praia para usar em consertos das casas, e para implementos e combustível. Durante essas andanças, o povo de Jokhov está sempre alerta para ossos de animais, presas, galhadas e quaisquer outros potencialmente úteis. Todos são recolhidos, muitas vezes sem objetivo específico em mente. A aldeia está juncada de pilhas desse material, as moradas atravancadas com o bricabraque que a natureza oferece. Além de acompanhar tais viagens, Lubbock vai à caça com os homens e meninos. O verão chega ao fim, e com ele o assentamento em Jokhov. Os aldeões vieram na primavera, seguindo os rebanhos de renas e os imensos
bandos de pássaros que vêm fazer ninhos na margem do Ártico. Enquanto o verão começou com uma súbita explosão de vida ártica, o inverno agora se aproxima com uma morte lenta e silenciosa. As noites encompridam-se e as pessoas sabem que logo virá uma escuridão permanente. Os gansos já se foram e as poucas renas que restam logo estarão se retirando para o sul, fugindo do inverno Ártico. O povo de Jokhov irá atrás, tão intimamente ligado aos ritmos da natureza quanto os próprios animais. Mas não exatamente ainda. Montes de neve se acumularam com as novas nevadas e as fêmeas de urso buscam lugares para fazer seus covis de inverno. É tempo de caçar o urso polar. As ursas são bem conhecidas; o povo de Jokhov parece capaz de identificar cada uma, sabendo a idade, onde ela fez covil antes, quantos filhotes produziu, e até mesmo sua personalidade. Após uma escassez de comida por um período de sete anos, toma-se a decisão de caçar uma determinada ursa que retornou recentemente. É conhecida de todos, e a caça começa com lembranças de sua vida — tempos em que ela andou tocaiando focas em pequenos icebergs e colhendo punhados de bagas. Os caçadores lembram que a viram na primavera passada, quando ela se sentava com os filhotes tomando sol, após meses em seu covil de inverno. Eles partem da aldeia a pé e cruzam as colinas até as rachadas camadas de gelo da costa norte. Avistam-na na água — uma cabeça branca como marfim cortando o vítreo negror. Lubbock deita-se de barriga inteiramente imóvel com os caçadores quando a ursa ergue sem esforço seu grande volume para o iceberg. Dá dois passos e sacode-se; água do mar rodopia em camadas planas em meio a uma fonte de espuma. Ela ergue a cabeça e olha diretamente para os caçadores, com olhinhos pequenos e negros interrogadores. Mas qualquer fato ou movimento que tenha percebido foi soprado pelo vento. A grande ursa branca começa a andar em voltas, despreocupada, pelo gelo. Lubbock jamais viu um animal tão bonito. Queda-se perdido em admiração quando os caçadores iniciam a tocaia, partindo em silêncio com arcos e flechas. Ele os deixa ir, feliz em perder essa determinada aula de vida na era do gelo. A carcaça parcialmente esquartejada é trazida para a aldeia, onde Lubbock observa o seu desmembramento até que jogam a cabeça para os cachorros à espera. Com isso, ele deixa o povo de Jokhov entregue a qualquer trabalho e banquete que se sigam. Eles logo deixarão a aldeia,
apenas para retornarem na primavera seguinte, como têm feito desde que alguém se lembra. Tais visitas só terminarão quando a península por fendida pelo mar e as colinas de Jokhov se tornarem uma das muitas ilhas do oceano Ártico. A aldeia será esquecida até o ano de 1989, quando Vladimir Pitul’ko chegar para cavar nesse improbabilíssimo lugar de habitação humana.
SUL DA ÁSIA
42 Passagem pela Índia Arte rupestre indiana e aldeias na planície do Ganges, 200.000 - 85.000 a.C. John Lubbock inicia sua viagem pela pré-história do sul da Ásia de pé no fundo da Muchchatla Chintamanu Gavi, uma das Cavernas de Kurnool, na Índia central. A brilhante mancha de luz solar que assinala a entrada o ofusca. A data é 17.000 a.C. Ao se aproximar da luz, ele ouve vozes e por um breve instante vê várias silhuetas ondulantes. Mas antes de chegar a elas, os caçadores já juntaram seus poucos pertences e partiram, desaparecendo na mata que cerca a caverna. Lubbock olha o que eles deixaram atrás: algumas pedras em torno de cinzas ainda quentes, um punhado de lascas de sílex espalhadas e as partes rejeitadas de um pequeno gamo esquartejado, a cabeça e os cascos. Um monte de entranhas jaz do lado de fora da caverna, junto a um pedaço de chão ensangüentado. Enquanto Lubbock se pergunta por que os caçadores teriam partido, baixa um denso nevoeiro; ele desiste da esperança de segui-los e senta-se no chão da Muchchatla Gavi. Pegando Tempos pré-históricos no saco, procura em vão algum trecho sobre arqueologia indiana, encontrando apenas uma descrição dos "modernos selvagens" do Ceilão (Sri Lanka) — os Vedas. Há uma breve descrição de suas cabanas feitas de casca de árvore e suas habilidades na tocaia à caça; cita-se um certo Sr. Bailey, que "pensa que seria impossível conceber uma raça mais bárbara". Como para distanciar-se de tais opiniões, logo na frase seguinte o Lubbock vitoriano descreve os Vedas como um povo afetuoso. O moderno Lubbock ergue os olhos do livro; o nevoeiro adensou-se e ele decide permanecer dentro da caverna até começar a clarear. Vislumbres passageiros de pessoas envoltas em nevoeiro transmitem o senso de nosso limitado conhecimento sobre assentamentos da era do gelo no subcontinente indiano, sobretudo o que vem após o último máximo glacial de 20.000 a.C. Punhados de artefatos de pedras, que se presume datados de entre o LGM e o surto de aquecimento global de 9.600 a.C., são generalizados, oferecendo um vislumbre arqueológico da vida das
pessoas. Mas há poucas datas de radiocarbono, nenhum vestígio de moradas e túmulos. De todo o subcontinente, há uma única fogueira do Pleistoceno, e muito poucas coleções de ossos esquartejados.
* Com exceção de uma extensa planície costeira a oeste, a topografia da Índia em 20.000 a.C. era em grande parte a mesma de hoje. No extremo norte, erguia-se a cadeia de montanhas do Himalaia, coberta de pesadas geleiras. Seus grandes sistemas fluviais desembocavam no Indu e no Ganges, que atravessavam vastas planícies aluviais. Estas se fundiam ao noroeste para formar o deserto de Thar, onde fortes ventos e extrema aridez criavam imensas camadas de areia e dunas. As avestruzes floresciam nessas condições, mas muitos outros animais tiveram de partir quando as condições da era do gelo se tornaram severas. As paisagens continuaram secas muito além da zona do próprio deserto. Os níveis dos rios eram baixos e cortavam profundos canais; com poucas árvores e plantas para segurar o solo no lugar, a erosão era séria. As colinas que atravessam em grande arco a Índia central eram cobertas de maio baixo, com bolsões de pântanos e florestas nos vales. As encostas sul que levavam ao platô de Deccan e as colinas dos dois lados do sul da Índia — as Gargantas Orientais e Ocidentais — eram cobertas de matas, provavelmente muito pouco diferentes das de hoje. Sabemos sobre alguns dos animais que viviam dentro desses variados habitats porque seus fósseis foram recuperados de depósitos fluviais: gado selvagem e gamo, rinoceronte e javali, uma variedade de macacos, cobras e pequenos mamíferos. As colinas do extremo sul tinham densas florestas, como as de Sri Lanka, que poderiam ser ligadas ao continente no LGM. A distribuição de sítios mostra que pessoas viviam em muitos cenários ambientais em todo o continente durante os turbulentos dez milênios de mudança de clima que levaram ao fim a era do gelo. Elas acampavam nas dunas no noroeste, às vezes transformando conchas de ovos de avestruz em contas enfeitadas; eram atraídas para as margens de quaisquer rios que continuassem a correr e lagos que retivessem sua água. Cavernas no centro e no sul da índia ofereciam abrigo, e os acampamentos eram feitos dentro das matas baixas, bosques e florestas. Os instrumentos deixados para trás são típicos de caçadores da era do gelo: nódulos de jaspe negro,
jaspe e quartzito transformados em lascas e lâminas, raspadores e pontas de flecha. No Sri Lanka, porém, os caçadores da era do gelo já haviam adotado os microlitos como o uso mais eficaz da pedra, mesmo antes da época do LGM. Grande parte de seus estilos de vida está oculta para nós, de modo que temos, na ausência dos próprios indícios, de supor que esses caçadores asiáticos da era do gelo também tinham instrumentos, roupas e moradas feitos de osso, casca de árvore, fibra, couros, plumas e outros materiais que não deixaram vestígios. Como em outras partes do mundo onde a arqueologia é esparsa, somos tentados a olhar para caçadores-coletores mais recentes a fim de acrescentar maior substância ao quadro fora isso vago da vida pré-histórica — como fez o John Lubbock vitoriano quando escreveu Tempos pré-históricos. A tentação é especialmente forte na Índia, onde tantas pessoas viveram da caça e coleta até os tempos recentes. Daí arqueólogos indianos como V. N. Misra, do Deccan College, em Poona, tentarem suspender o nevoeiro da era do gelo usando histórias de povos como os kanjars, caçadores-coletores do vale de Ganga em Uttar Pradesh, para interpretar os restos arqueológicos. Em vez de apenas descrever o tamanho e forma das lâminas de pedra, Misra especula sobre o uso de redes de caça e cestos de vime, couros de animais transformados em tambores e de lagartos em sapatos. O risco, claro, é que não se levante o nevoeiro para revelar o passado, mas simplesmente o presente imposto a uma época à qual ele não pertence. O estudo arqueológico nas Cavernas de Kurnool, encontradas nos rochedos de calcário das Gargantas Orientais no estado de Andhra Pradesh, começaram em 1884, quando Robert Bruce Foote escavou o chamado Matadouro. Empregado da Pesquisa Geológica da Índia, ele fez trabalho arqueológico pioneiro, sobretudo no sul do país, onde encontrou os primeiros implementos de pedra do Pleistoceno. Introduziu os termos "paleolítico" e "neolítico" na arqueologia indiana; deve-se supor, assim, que lera Tempos pré-históricos, de John Lubbock, onde foram cunhados. O trabalho de Foote foi seguido pelo de seu filho, que escavou mais duas cavernas, intrigantemente conhecidas como "Purgatório" e "Catedral". Os sedimentos em todas três tinham mais de dez metros de profundidade; embora só se encontrasse um artefato de pedra, abundavam os ossos de animais. Foote acreditava que mãos humanas haviam trabalhado um grande
número dos ossos. Descreve a descoberta de arpões farpados, pontas de flecha, sovelas e facas de desenho elegante semelhantes aos descobertos por Lartet e Christy nas cavernas da era do gelo na França. Tinha pouca idéia da idade que poderiam ter esses instrumentos; sugeriu que os ocupantes das Cavernas de Kurnool se achavam num "baixo estágio de civilização". M. L. Krishna Murty, do Deccan College, iniciou novas escavações nas cavernas na década de 1970. Atacou a Muchchalla Chintamanu Gavi e encontrou depósitos de ossos semelhantes, junto com grandes quantidades de artefatos de pedra. Com a melhor compreensão da fauna animal que surgira desde a época de Foote, era agora evidente que muitos dos ossos vinham de animais presentes em Andhra Pradesh apenas antes de chegar ao fim a era do gelo. Murty acreditou que os ossos, vindo de uma variedade de carnívoros, herbívoros e caça pequena, haviam chegado todos à caverna por mãos humanas, supostamente envoltos em carne e gordura. Como Foote, também pensou que muitos tinham sido moldados em instrumentos. As conclusões dos dois estão abertas a dúvidas. Nenhum dos "artefatos" de pedra ilustrados no comunicado de Murty tem forma claramente imposta — certamente nada que se compare com os ótimos arpões e talhas da França da era do gelo. E como as coleções de Foote se perderam, suas afirmações não podem ser avaliadas. Fraturas causadas por dentes de carnívoros, pisoteamento e simples decomposição podem facilmente ter feito os ossos parecerem trabalhados por mãos humanas. Isso deixa as lâminas de pedra, uma fogueira feita com blocos de calcário datada de entre 17.000 e 14.000 a.C., e alguns ossos queimados, como o único indício definitivo de atividade humana perto do LGM. Assim, mesmo na Muchchatla Chintamanu, obtemos pouco mais que uma sugestão do que era a vida na Índia da era do gelo." Só em 9.600 a.C. a neblina levantou-se o suficiente para Lubbock julgar que vale a pena deixar a caverna. Isso coincide com o rápido aquecimento global que levou ao fim a era do gelo e acelerou o ritmo da mudança ambiental que começara logo após o LGM. Infelizmente, os arqueólogos ainda têm poucos detalhes do padrão exato da mudança ocorrida na Índia, sendo incapazes de ir além de generalidades sobre um aumento geral nas chuvas e o estabelecimento de uma vegetação pouco diferente da de hoje — ou melhor, da que existia antes do extenso desmatamento da Índia.
Lubbock viaja para o norte por trilhas de animais e margens de rios. Passa por muitos tipos de árvores inteiramente novas para ele — algumas pejadas de frutos cscarlates, outras com troncos enormes e raízes pendentes dos galhos, criando colunas e pilares semelhantes a mosteiros. Há emplumadas mimosas e acácias. Dentro da floresta, ele vê muitos gamos, alguns de pêlo malhado e outros com chifres pontudos, javalis, macacos e rinocerontes. Todos parecem prosperar no mundo quente c úmido do Holoceno, como também os grilos e cigarras, cujo constante canto enche o ar abafado — ar que se torna mais quente à medida que o ano passa da primavera para o verão. O moderno padrão rítmico da monção indiana estabeleceu-se assim que começou o Holoceno: um início de ano relativamente frio e seco, temperaturas crescentes que atingem o pico em junho, e depois a chegada das chuvas no fim do verão. Lubbock cruza o planalto de Deccan quando sente sua primeira monção indiana. Durante dias, o céu esteve lúgubre, com densas nuvens pejadas de chuva. Quando começam a despejar torrentes de chuva, ele se abriga numa caverna e vê o leito seco embaixo transformar-se num grande mar corrente de água turva. Árvores são arrancadas pelas raízes, toneladas de terra deslocadas, infelizes animais levados pela enchente. As trovoadas rolam no céu rasgadas por raios. Os arqueólogos devem supor que muitas outras pessoas também buscaram abrigo das monções do princípio do Holoceno, pois os sítios arqueológicos após 9.600 a.C. são relativamente abundantes em comparação com os da era do gelo. Embora isso reflita em parte melhor apresentação e facilidade de descoberta, é provável que a população humana tenha aumentado substancialmente uma vez acabadas as secas da era do gelo. As pessoas continuaram a habitar os mesmos ambientes variados que seus ancestrais da era do gelo, mas também puderam assentar-se em novas margens de rios e lagos disponíveis, e dentro de matagal que antes era deserto. Sua presença, porém, é ainda indicada por pouco mais que punhados de pedra trabalhada. Como em tantas outras regiões do mundo, os microlitos tornaram-se predominantes, com toda probabilidade refletindo uma dieta mais variada e um suprimento de pedra local. Só em muito raras ocasiões são os punhados de artefatos acompanhados por coleções de ossos de animais, vestígios de moradas ou túmulos humanos. Como na Europa, os arqueólogos referem-se aos que criaram esses sítios como caçadores-coletores mesolíticos.
Num quente e poeirento dia de verão de 9.000 a.C., Lubbock sobe as colinas hoje conhecidas como Vindhyas Ocidentais. De um baixo cume, vê outra encimada por uma fila de rochas parecidas com torreões que se erguem acima das árvores. Essa impressionante colina é conhecida como Bhimbetka; Lubbock descobre suas encostas cobertas por uma mata densa e espinhosa, na qual há muitas trilhas. Algumas foram feitas por javalis e gamos, e só se pode rastejar por elas; outras foram abertas acima da altura da cabeça humana, os galhos cortados certinho com lâminas de pedra. As trilhas seguem entre pequenas grutas que pontilham a encosta da colina, vazadas em seu macio calcário por milênios de vento e areia. Outras se encontram abaixo de pedras caídas que se equilibram precariamente sobre afloramentos de rocha. Outras trilhas seguem para capões de árvores frutíferas ou poças lamacentas cercadas por rastros de animais e pegadas humanas. Após seguir uma trilha, Lubbock descobre-se numa caverna onde trabalha um artista — o primeiro que ele vê desde que deixou o norte da Austrália. A parede oferece uma superfície áspera, de poucos metros de largura e inteiramente aberta à luz do dia — bem diferente das paredes da funda caverna subterrânea pintadas na França no LGM. Uma cena de caça se desenrola, mas se é mito, lembrança ou desejo, não está nada claro. Oito figuras tipo varas e aparentemente nuas já se acham a postos; duas têm braçadeiras com borlas; uma ou usa um adereço de cabeça ou tem longas trancas soltas. A maioria parece masculina e umas poucas o são evidentemente; outras têm cadeiras mais largas e nádegas maiores. Todas as figuras estão ocupadas; três delas em fila, a, primeira tocaiando a presa com arco e flecha, a segunda carregando caça pequena numa vara sobre o ombro, e a terceira, uma mulher, com cestos. Próximo aos três, outro grupo se curva, agacha e se contorce, talvez dançando num círculo. Outras figuras espalham-se em volta, segurando varas e sacos; uma jaz no chão. O artista pega o pincel e começa a pintar um gamo imediatamente próximo ao caçador com o arco. Umas poucas pinceladas hábeis, e o gamo já está correndo pela superfície da rocha com o corpo inchado, e então a minúscula figura de seu feto é pintada dentro. Lubbock chega mais perto e olha o vaso de tinta: cabaças secas e ocas, uma contendo tinta vermelha escura, outra negra e uma terceira branca. Perto há nódulos de pedras coloridas que foram raspadas na cabeça, o pigmento misturado
com seiva de árvore oleosa para lazer uma tinta viscosa. Há no chão algumas varetas e lascas de pedra, junto com vários pincéis. Sob os olhos de Lubbock, o pintor pega um, mergulha suas finas felpas num pote de vermelho e inicia uma nova linha na parede. Mas a linha sai fina e fraca demais para seu gosto, o pincel demasiado macio. E assim o artista pega uma vareta, mói uma das pontas com um martelo de pedra e raspa a casca, para deixar um leque de fibras duras. Com isso e uma tinta mais grossa, completa a linha — a figura em traço forte de um búfalo duas vezes maior que a fêmea de gamo prenha. Bhimbetka tem a maior concentração de arte rupestre de toda a Índia, nada menos que 133 abrigos pintados e pelo menos mais cem das quais as pinturas podem ter-se erodido. Essa colina, com suas colunas de pedra características, é uma das sete das Vindhyas Ocidentais nas quais se encontraram mais de quatrocentas superfícies de rocha pintadas. A data em que as pinturas foram feitas está aberta a debate — como acontece com tanta freqüência com a arte rupestre em indo o mundo. O povo local as atribui a maus espíritos — mais ou menos como os aborígines de Arnhem acreditam que suas "Figuras Dinâmicas" foram pintadas pelo mítico povo mimi — e, portanto, as superfícies de rocha de Bhimbelka sem dúvida foram pintadas antes da memória viva. Infelizmente, não se fez qualquer tentativa de datar as pinturas de lá tirando carbono do próprio pigmento, como se fez como sucesso na Europa da era do gelo. Mas indícios circunstanciais sugerem que muitas foram feitas no início do Holoceno, pelo menos em 8.000 a.C. Os indícios mais convincentes vêm das escavações. Na década de 1970, várias cavernas foram escavadas e revelaram uma predominância de detritos mesolíticos — artefatos de pedra, lixo doméstico e alguns corpos enterrados. Escavações de V. N. Misra, do Deccan College, numa caverna conhecida como IIIF-23 revelaram que ela foi ocupada pela primeira vez no Pleistoceno Tardio por pessoas que deixaram atrás uma coleção de instrumentos de quartzito. Os ocupantes mesolíticos usavam uma gama de instrumentos, incluindo microlitos e almofarizes, refletindo estes últimos a recém-descoberta importância de alimentos vegetais na mata do Holoceno. Eles pavimentaram o chão, ergueram uma parede dentro da caverna e, como se encontraram nódulos de ocre vermelho e amarelo dentro do lixo, a maioria pintou as paredes. Esses pigmentos foram achados em vários depósitos mesolíticos em Bhimbetka e deixam pouca
dúvida de que o povo mesolítico criou muitas das pinturas de caverna. Povos neolíticos e posteriores mal parecem sequer havê-la usado. Uma segunda linha de indícios vem das próprias pinturas. Yashodhar Mathpal, do Deccan College, descreveu-as com minuciosos detalhes e identificou dois temas. O primeiro e mais destacado é a caça e coleta — pinturas de caças ao gamo e ao javali, de pessoas coletando mel, dançando, tocando tambores, e uma larga variedade de animais pulando, correndo e saltando. Os animais são típicos da floresta em torno — javali, búfalo, macacos e uma variedade de caça menor; vários estão pintados com os fetos dentro. O segundo tema difere em assuntos e estilo: homens cavalgando ou controlando cavalos e elefantes, muitas vezes armados com espadas e escudos de metal. Alguns fazem guerra, outros formam desfiles reais. Essas pinturas não têm a vivacidade das dos caçadorescoletores e animais selvagens. Nenhuma das cenas se relaciona com a agricultura ou pastoreio — imagens logo vistas em outras partes na Índia, com a descrição do característico zebu, o gado de corcova. Mathpal conclui, razoavelmente, que o primeiro tema foi obra de caçadores do início do Holoceno que viviam nas colinas durante todo o ano ou parte dele. O segundo tema pode também ter sido de caçadorescoletores, mas que viveram em tempos relativamente recentes e viram soldados e a realeza dentro de pequenas e grandes cidades nas planícies. Mathpal tentou descobrir a motivação por trás do trabalho dos artistas. Em contraste com as da Europa da era do gelo, as pinturas de Bhimbetka foram feitas em lugares logo vistos por todos — uma arte pública, não privada. Os animais e pessoas parecem ser mais do mundo material que do sobrenatural. Para Mathpal, as pinturas oferecem "um registro da variada vida animal que partilhava o ambiente da floresta com o povo préhistórico, e das várias facetas — econômicas e sociais — da vida dessas pessoas". Ele sugere que não há motivos para explicações esotéricas para a arte de Bhimbetka. Ao nascer do dia, Lubbock está no cume de Bhimbetka. Sobe nas colunas de rocha tão artisticamente esculpidas pela mão da natureza e vê um largo e plano vale para os lados do norte. É coberto por uma densa e vibrante mata, com brilhantes trechos de vermelho e laranja de árvores floridas que parecem ter capturado o crepúsculo da noite anterior. Ele desce para o vale e mais uma vez viaja por uma floresta exótica, encontrando sombra embaixo de imensas figueiras que parecem e soam como aviários. Os
assobios curtos e agudos de dourados papafigos e os guinchos de igualmente vibrantes canários indianos varam as misturadas melodias de insetos e pássaros. Lubbock continua sua viagem para o norte, agora nas planícies aluviais do rio Ganges. Algumas árvores são imensas, tanto as de madeira dura, como ébano e teca, quanto as carregadas de frutas; atravessa imensos capões de bambu e cristas de rocha que se erguem de repente da planície. Os sinais de vida humana são abundantes: restos de fogueiras que sugerem acampamentos de pernoite de caça e grupos de pedras em beiras de rio que parecem arrumados demais para resultar apenas da natureza. Lubbock encontra a carcaça ainda quente de um gamo, a perna presa numa armadilha, a morte parecendo ter encerrado uma luta longa e exaustiva. Outros sinais também estão presentes: rastros frescos de um tigre, estéreo de elefante e rinoceronte. Pessoas começam a aparecer — grupos de mulheres arrastando tubérculos, homens examinando rastros de gamo e conferindo armadilhas. Lubbock viaja com eles, pegando caronas em suas canoas para atravessar o Ganges e outros rios, até aproximar-se de seu destino seguinte. Uma trilha bem batida leva-o a uma aldeia de caçadores-coletores em 8.500 a.C. Ele encontra uma dúzia de cabanas em forma de tenda erguidas em terreno elevado na confluência de dois pequenos rios. As coberturas são feitas de galhos grossos e mato; cada uma tem um poço circular revestido de barro, contendo cinzas ou ossos queimados. Sentando-se junto à cabana mais próxima, Lubbock examina a aldeia e a descobre semelhante a muitas outras que viu em suas viagens globais. Os pisos das cabanas são bem varridos, mas em outras partes o chão está juncado com o material da vida do caçador-coletor: pilhas de lenha, mós, couros esticados. Uma coisa, porém, está faltando: as grandes pilhas de lascas de pedra jogadas fora tantas vezes vistas em acampamentos de caçadores-coletores de outras partes. O assentamento parece deserto, a não ser por um cachorro escanifrado que fareja o terreno e um bando de corvos que beliscam um monte de ossos. Mas dentro de uma morada Lubbock encontra um rapaz, de talvez dezoito ou vinte anos, deitado no chão e parecendo sentir dores. Tem um dos braços deformado e sua muito, embora a tarde esteja fria e seca. Usa apenas uma tanga e um pingente branco no pescoço. Crianças que entram correndo no acampamento espantam os corvos e
anunciam a chegada de pessoas da floresta. Os adultos que vêm atrás são fisicamente grandes, e parecem fortes e saudáveis. Alguns trazem feixes de lenha, outros têm cestos com vegetais cavados do chão da floresta. Um dos homens traz um gamo atravessado nos ombros, outro carrega um osso enorme e gasto. Ao voltar à sua cabana, uma das mulheres — supõe-se que a mãe — cuida do rapaz no chão, enxugando seu suor com folhas macias e ajudando-o a ir para perto da fogueira que uma mocinha — irmã dele — acende com lenha seca. Sentindo-se como um intruso no sofrimento da mãe, Lubbock torna a sair, e encontra as outras mulheres a moer sementes, e o gamo já sendo esfolado. Uma aljava de flechas está agora encostada na parede de uma das cabanas. Têm pontas de microlito quase idênticas às que ele viu em Azraq, Star Carr, Jokhov e tantos outros lugares do mundo pré-histórico. Mas essas são particularmente pequenas; ele entende por que ao examinar os minúsculos seixos usados como núcleos. A pedra é evidentemente preciosa nessa aldeia — o que explica a ausência de detritos de lascas. As pontas grandes têm de ser feitas de osso, como o retirado de uma carcaça de elefante que Lubbock viu sendo trazido para a aldeia. Ele segue duas das crianças maiores que se dirigem para o rio. Elas verificam linhas e redes e precisam da ajuda dele para puxar uma tartaruga capturada para a margem. Juntos, eles a arrastam viva até o acampamento e mostram-lhes como cortar-lhe a garganta. Quando chega o crepúsculo, Lubbock junta-se à família do rapaz doente que partilha a comida. Quando dividida entre todos, a parte deles do gamo assado dá um simples bocado para cada um; tudo o que Lubbock consegue tirar é um pouco de tutano de um osso partido. Ele espera a chegada de alguma carne de tartaruga, mas nenhuma aparece. Comem, sobretudo, plantas grosseiras — moídas, assadas e misturadas a uma papa em tigelas de madeira. O acréscimo de mel torna-a palatável, mas mastigar é trabalho duro e todos acabam palitando os dentes com lascas de osso. * Damdama, como é conhecido hoje esse sítio mesolítico no Ganges, foi descoberto em 1978 junto à aldeia de Warikalan, e escavado até 1982 por J. N. Pal e seus colegas da Universidade de Allahabad. Junto com Mahadaha e Sarai-Nahar Rai, escavados no início da década de 1970, é um dos três assentamentos mesolíticos relativamente bem preservados na planície, hoje inteiramente desmatada de sua antiga floresta. Quando
ossos humanos e de animais se erodiram no solo, esses sítios se tornaram parte da mitologia local — acreditava-se que Damdama e Mahadaha eram onde antigos guerreiros tinham sido enterrados. A palavra Damdama, porém, tem uma origem mais prosaica: significa o barulho que vinha do chão quando golpeado. Isso pode ter-se devido a riqueza dos restos arqueológicos abaixo da superfície. Descobriu-se que Damdama tem 1,5 metro de depósitos de ocupação, contendo grandes quantidades de microlitos e outros instrumentos de pedra, mós e martelos de pedra, restos calcinados de plantas e ossos de animais. Pequenos poços e buracos assinalavam onde antes se tinham enterrado estacas para sustentar paredes e telhados; encontraram-se pisos compactados, junto com fogueiras e muitos poços revestidos de barro. As moradas podem ter sido semelhantes a tendas e cobertas de palha — como as usadas pelos recentes kanjars do vale do Ganges — ou talvez simples construções de folhas e capim como as do povo pandaram do sul da Índia. Os depósitos nos sítios próximos de Mahadaha e Sarai-Nahar Rai, localizados nas margens de lagos em forma de ferradura, eram quase igualmente ricos, contrastando de forma impressionante com sítios do Holoceno Inicial em outras partes. Com matas cheias de caça e plantas comestíveis, e lagos transbordando de peixes e tartarugas, era evidentemente uma localidade favorecida. Pois embora se acreditasse originalmente que os caçadores-coletores do Holoceno passavam a maior parte do ano nas rochosas Vindhyas, visitando a planície do Ganges apenas para pegar comida e água nos meses de verão, hoje parece que optaram por um estilo de vida assentado e sedentário. Estudos dos ossos de animais escavados mostraram uma gama diferente de espécies, e que javalis, gamos e talvez outras caças foram mortas durante o ano todo. Além disso, encontraram-se ossos do ratão da Índia em Mahadaha e Damdama. Trata-se de um animal comensal — não pode viver sem um constante suprimento de lixo humano para alimentar-se — e, portanto, sua presença foi usada para defender a presença humana permanente, da mesma forma que a de camundongos e pardais nos sítios natufianos do oeste da Ásia. O sedentarismo é indicado ainda pelos oitenta túmulos encontrados nos três sítios — muitos outros permanecem não escavados. A maioria continha um único indivíduo, quase sempre estendido de costas com a
cabeça virada para um lado. As covas tinham sido cavadas, sobretudo, perto dos poços de fogueira ao lado das cabanas, sugerindo que as famílias mantinham seus mortos dentro de casa. Os restos de esqueletos oferecem uma útil intuição sobre a vida social, saúde e dieta. Mais ou menos o mesmo número de homens e mulheres fora enterrado, com uma possível tendência para os homens. A maioria era bastante jovem, sugerindo que poucas pessoas sobreviviam além dos trinta e cinco anos. Crianças eram raras. J. N. Pal — o escavador de Damdama — sugeriu que os muitos jovens eram enterrados fora da aldeia. O mesmo pode ter acontecido com os adultos que morriam de doença infecciosa, traços das quais eram raros nos enterrados entre as fogueiras e casas. Os dentes eram muito gastos, indicando uma dieta dominada por material vegetal grosseiro, e muitas vezes tinham minúsculos sulcos verticais, refletindo palitamento habitual. Muitos dentes tinham hipoplasias: linhas verticais no esmalte, mostrando períodos de tensão nutricional quando jovem. Mas como quase todas as pessoas enterradas tinham alcançado substancial estatura, isso não parece ter inibido o crescimento. Bens nos túmulos são escassos. Embora uns poucos contivessem pontas de flecha, pingentes e contas, ninguém em Damdama, Sarai-Nahar Rai ou Mahadaha parece ter sido particularmente rico ou recebido um enterro mais impressionante que os outros. A impressão geral é de uma população saudável, com poucas, se as havia, distinções sociais. Mas exatamente como Lubbock viu em outras partes, tensões sociais tendem a surgir entre caçadores-coletores sedentários. Isso poderia explicar os três esqueletos de Sarai Nahar Rai com pontas de flecha incrustadas nas costelas, quadril e ossos do braço. Lubbock fica em Damdama durante os meses de outono e inverno. Quando chega a monção, os rios transbordam e o lugar torna-se uma ilha dentro de um extenso lago raso. Assim que as águas baixam, ele junta-se a um grupo que viaja a pé cem quilômetros até as Vindhyas ao sul, em busca de nódulos de pedra. Na volta, o rapaz de braço deformado morreu, o corpo está na caverna já drenado de sangue. Cava-se uma cova ao lado da fogueira onde ele definhara lentamente. Lubbock observa o ritual fúnebre pouco entendendo: acendem uma fogueira dentro da própria cova e deixam-na extinguir-se por si mesma, antes de depositar o corpo desidratado sobre a cinza quente, junto com duas pontas de flecha e o
pingente de marfim dele. É coberto e deixado, para ser exposto apenas quando J. N. Pal escavar o que chamará de Cova VIII em 1974 d.C., registrando que "o úmero esquerdo apresentava uma deformidade patológica". Após partir na primavera, Lubbock inicia uma viagem para oeste, dirigindo-se para o vale do Indus, onde, pela primeira vez desde suas viagens à Europa, entrará no mundo da agricultura. Em 8.500 a.C., plantas e animais domesticados eram inteiramente desconhecidos do povo de Damdama; eles tinham abundantes suprimentos de alimentos selvagens e continuaram a viver como caçadores-coletores já bem adentrado o Holoceno. Lubbock achou-os semelhantes a vários outros grupos que visitara em suas viagens — os de Uenohara no Japão, de Koster na América do Norte e Skateholm na Suécia. Todos se tornavam sedentários pelo menos parte do ano, quando cercados por recursos abundantes e diversos, e todos usaram seus mortos para dignificar a posse da terra. Mas o que Lubbock não podia ter previsto é que os ocupantes da planície do Ganges sobreviveriam como caçadorescoletores muito depois de os do Japão e América do Norte terem adotado um estilo de vida agrícola.
43 Uma Caminhada Pelo Hindu Kush Agricultura inicial no sul e centro da Ásia; a domesticação do algodão, 7.500 – 5.000 a.C. Cinco adultos, quatro crianças, três cachorros e um rebanho de cabras saem das colinas cobertas de mata que assinalam o que hoje é o fim da Passagem Bolan, no oeste do Paquistão. É 7.500 a.C., e enquanto Lubbock observa do lugar onde descansa junto a um rio, o grupo de viajantes busca uma área plana na qual largar os muitos sacos e camas de enrolar que traz. Uma mulher põe no chão, com toda delicadeza, o bebê que viajou fortemente amarrado ao seu corpo. O crepúsculo já chega, e essa família parece exausta após a viagem desde o oeste. De onde vem, exatamente, Lubbock jamais descobrirá; mas as cabras e o saco que se rompe e despeja sementes de cevada anunciam-nos como os primeiros agricultores nas planícies do Indus. Enquanto pessoas e animais igualmente matam a sede, a região entra em novo curso histórico. Dentro de 5 mil anos, as cidades de Harapa e Mohenjo-Daro estarão florescendo como centros da civilização do Indus. Lubbock continua sentado e observa a gradual transformação do sítio de acampamento deles numa aldeia agrícola. Uma segunda família de migrantes econômicos chega do Passo Bolan, e depois outra. A mata é derrubada e a cevada semeada em solos férteis anualmente reabastecidos de aluvião da inundação de inverno do rio Bolan. A margem do rio proporciona barro para os adobes de casas retangulares e salas de armazenamento; bebês nascem e os velhos morrem; as colheitas são boas e mais terras postas em cultivo. Lubbock deixa o lugar onde se sentava em 7.000 a.C., rompendo o denso tapete de capim c arbustos que o pregou no chão. Vadeia as geladas e rápidas águas para dar uma olhada mais de perto no grupo de construções que agora se erguem no lugar onde vinte gerações atrás os primeiros a chegar largaram seus sacos. É Mehrgarh, uma aldeia agrícola com mais de cem habitantes e o primeiro assentamento de seu tipo conhecido no sul da
Ásia. Hoje, os restos arqueológicos de Mehrgarh espalham-se por vários sítios perto do rio Bolan e da planície de Kachi no Baluquistão — uma paisagem crestada na província mais a oeste do Paquistão, com as mais altas temperaturas no verão em todo o sul da Ásia. Os sítios acumularamse num período de mais de 4 mil anos, à medida que novos assentamentos eram estabelecidos após o abandono completo ou parcial de anteriores. Durante todo esse tempo, o rio Bolan continuou mudando de curso; moradas desertas foram enterradas sob sedimentos e depois expostas outra vez quando uma nova mudança de curso cortava seus depósitos de aluvião e areia. Foi uma dessas mudanças do rio que revelou os mais antigos assentamentos de Mehrgarh; 10 metros de paredes de adobe superpostas. Os arqueólogos descobriram o sítio no inicio da década de 1970, desde quando a Missão Arqueológica francesa no Paquistão e o Departamento de Arqueologia do Paquistão fizeram escavação, Jean-François Jarrige é a figura principal, já havendo escavado em Mehrgarh e sítios vizinhos por quase trinta anos. A data do assentamento original continua incerta, mas em 7.000 a.C. várias casas de adobe retangulares e com vários aposentos foram identificadas na beira do rio. Eram separadas umas das outras por pátios onde se fazia a maior parte do trabalho doméstico, e sob os quais se enterravam os mortos. Descobertas iniciais de mós e lâminas de sílex com o brilho característico que resulta do prolongado corte de cereais sugeriram um assentamento agrícola; logo se obteve a confirmação disso de uma fonte semelhante à que primeiro identificara o cultivo do arroz no vale do Yangtzé. As primeiras pessoas de Mehrgarh misturavam barro com palha — os restos jogados fora da debulha — quando laziam adobe. Embora as paredes que ergueram depois desmoronassem, ficassem enterradas sob novas paredes e depois aluvião, fossem crodidas pela água do rio e finalmente escavadas pelos arqueólogos, os adobes ainda continham marcas de plantas — tendo a própria palha quase inteiramente se decomposto. Foram examinadas por Lorenzo Constantini, do Museu Nacional de Arte Oriental em Roma, um especialista em antigos restos de plantas que trabalha com Larrige. Ele identificou diversas variedades de trigo domesticado e — em quantidades muito maiores — cevada. Alimentos de plantas selvagens também foram recolhidos de Mehrgarh;
junto com os cereais, Constantini identificou as sementes da fruta jujuba, semelhante à ameixa, e de tâmara. Essas frutas sugerem que a planície de Kachi foi consideravelmente mais úmida do que é hoje. Os únicos restos arqueológicos conhecidos nessa região antes de Mehrgarh são punhados de microlitos. Foram deixados por caçadorescoletores que não parecem nem ter cultivado plantas selvagens nem vivido em assentamentos permanentes. E assim a história arqueológica do Baluquistão contrasta agudamente com a do oeste da Ásia, onde os primeiros agricultores foram precedidos por caçadores-coletores que viviam em aldeias e cultivavam cereais selvagens. Devemos concluir que a agricultura chegou à planície do Indus como um pacote pronto de trigo, cevada, cabra e arquitetura de adobe, trazida por migrantes vindos do oeste. O Passo Bolan parece o ponto de chegada mais provável, pois foi uma rota de comerciantes e viajantes durante todos os tempos históricos. As migrações do oeste da Ásia para as planícies do Indus a leste são mais difíceis de explicar que as para a Europa a oeste, pois envolviam cruzar o imenso planalto iraniano em busca de solos férteis. Mas não deve surpreender o fato de que as pessoas estavam dispostas a fazer essas jornadas — a história já contou as extraordinárias viagens de caçadores da era do gelo pelas Américas, Austrália e o Ártico para chegar aos mais remotos cantos da Terra. Os agricultores migrantes do Neolítico simplesmente seguiam uma longa tradição do Homo sapiens: eram incorrigivelmente curiosos sobre novas terras, e economicamente ousados. Quando Lubbock se aproxima das construções de Mehrgarh em 7.000 a.C., nota outros animais em currais além das cabras — sobretudo bezerros novos de zebu, o gado selvagem local de corcova, diferente do oeste da Ásia. Está havendo um enterro, e um dos pátios acha-se cheio de gente que cerca um fosso cavado no chão. Lubbock consegue espremer-se até a frente e vê o corpo de um rapaz com os joelhos dobrados contra o peito numa cova rasa. O morto usa um sudário vermelho e um fio de conchas marinhas no pescoço. Após ter visto tantos enterros em todo o mundo préhistórico, Lubbock está mais interessado em olhar as pessoas à sua volta. Muitas também usam conchas e ele reconhece algumas como dentálio — as conchas tubulares que viu igualmente em Gönnersdorf, na Europa da era do gelo. Também os dentes chamam a atenção, por serem manchados
de um desagradável marrom-amarelado. Uma figura que parece um sacerdote balança a cabeça para um auxiliar, que se adianta puxando cinco relutantes cabras novas numa correia. Uma a uma elas são suspensas; cortam-lhes as cabeças e drenam-lhes o sangue em cestos impermeabilizados com betume. As carcaças são postas aos pés do morto. Põem um dos cestos transbordantes de sangue dentro da cova. E então o homem e as cabras são enterrados, e o lugar coberto com barro. Enterros em casas e pátios não são mais novidade para Lubbock. Muitas outras características de Mchrgahr também parecem conhecidas. Ao explorar a cidadezinha, ele encontra a mesma gama de atividades e ritmos diários, os mesmos barulhos e cheiro, como nas cidadezinhas do oeste da Ásia também dependentes de cereais e cabras. Como em Jericó e Ain Ghazal, uma variedade de gamelas, vasos de pedra e cestos toma o lugar da cerâmica. Mas os artefatos de pedra — pontas de flecha, lâminas de faca, instrumentos para raspar couro — estão mais próximos dos usados pelos caçadores-coletores que ainda vivem nas planícies do Indus em 7.000 a.C. Como os dois povos dependem de nódulos de quartzo do leito do rio como matéria-prima, e saem em busca de caça local, isso dificilmente surpreende. A população de caçadores-coletores, porém, já sentiu o impacto dos agricultores que chegam, pois muitas de suas adolescentes foram tomadas como esposas. As moças mostraram-se inteiramente dispostas a abandonar a vida de caça-coleta pelo que vêem como a segurança econômica da agricultura. Lubbock tem a atenção atraída de repente para vozes acaloradas que vêm de dentro de uma casa próxima. Entra e acocora-se atrás de dois homens que se sentam de pernas cruzadas no chão do único aposento. Um veste um manto e um lenço pretos de lã inteiramente diferentes das roupas brancas e marrons usadas em Mchrgarh. Tem um monte de contas azuisbrilhantes e é evidentemente um mercador em visita. O outro corre os dedos pelas conchas marinhas que traz escondidas dentro de uma bolsa de couro. O aposento é imundo e o ar fétido. Um fumarento fogão de barro arde num canto, parte de um gamo esquartejado pendurada acima. Cestos, tigelas de pedra e uma variedade de enxadas, paus de cavar e outras coisas empilham-se contra a parede. Uma mulher senta-se num monte de couros e tapetes de palha, amamentando o filho e observando a negociação. O negócio leva várias horas para ser concluído. É freqüentemente interrompido por chás de ervas servidos, feitos jogando-se pedras quentes
do fogão em tigelas d'água e folhas secas. Chega-se finalmente a um acordo muito depois do cair da noite. Servem-se pão e carne de veado, seguidos de leite bebido em canecos de madeira. O homem, a esposa e o filho, o mercador e Lubbock dormem dentro do único aposento, tomando inteiramente o chão. Quando o mercador se levanta ao amanhecer, e parte para subir o Passo Bolan, Lubbock se sente impelido a segui-lo, feliz em escapar à criança que chorou a noite toda. A visita de Lubbock a Mchrgarh foi demasiado breve para ele poder avaliar suas artes e ofícios; tampouco teve tempo para testemunhar seu crescimento econômico. Não viu, por exemplo, as estatuetas estilizadas de pessoas sentadas e animais encontradas dentro de algumas casas; embora visse os zebus no curral, não pôde apreciar seu significado para a futura economia da cidade. Quando Jean-François Larrige e seus colegas examinaram os ossos de animais em sucessivas camadas do depósito arqueológico que encontraram, os de boi e carneiro foram-se tornando progressivamente menores, enquanto os de gamo e gazela permaneciam em grande parte inalterados. Isso indicava que o carneiro selvagem local c o gado de corcova tenham sido lentamente domesticados, enquanto a gazela continuou selvagem durante toda a história da cidade — embora o número delas caísse, pois seus ossos se tornavam cada vez mais escassos. A mudança gradual da dependência da caça selvagem para animais domesticados, sobretudo o gado, também se reflete no número muito menor de microlitos — e, portanto, de armas de caça — encontrados nos depósitos posteriores da cidade. Há muitos túmulos em Mehrgarh. A maioria foi encontrada sob os pátios e continha uma variedade de bens fúnebres — inteiramente diferentes dos caçadores-coletores de Damdama. Machados de pedra polida, elegantes lâminas de sílex, vasos de pedra, nódulos de ocre e contas de pedra polida eram colocados junto com os mortos. Várias contas eram feitas de turquesa e algumas de lápis lazúli, com toda probabilidade vindas do norte distante do Afeganistão de hoje. Ao contrário, as conchas marinhas de Mehrgarh tinham vindo das margens árabes, 500 quilômetros ao sul. Alguns dos ossos escavados eram pintados de vermelho, sugerindo que os corpos haviam sido cobertos com sudários tingidos. À medida que a cidade se expandia, criou-se um cemitério formal, contendo pelo menos 150 túmulos. Muitas covas eram agora construídas
como túmulos subterrâneos, os corpos colocados em câmaras embaixo da terra divididas por baixas paredes de adobe. Essas paredes eram periodicamente derrubadas, exigindo que se afastassem os ossos existentes. Depois, reconstruíam-nas mais uma vez. A aparência desses túmulos deve refletir a crescente importância dos laços de família, mas com quais conseqüências para a vida diária, é difícil saber. Até hoje, extraiu-se dos ossos pouca informação sobre saúde e dieta. Um estudo dental descobriu que os dentes do povo de Mehrgarh eram semelhantes aos dos povos mesolíticos indígenas do sul da Ásia, visivelmente grandes. Isso parece desafiar a idéia de que seus ancestrais eram agricultores imigrantes do oeste, e não um povo local que simplesmente adotara a idéia e os costumes da agricultura. Na maioria, os camponeses neolíticos tinham má saúde dental, devido em parte a uma dieta de alimentos de plantas grosseiras invariavelmente misturadas com areia do processo de moagem, e em parte à grande quantidade de carboidratos que consumiam e causavam decomposição. Mas as cáries estavam praticamente ausentes entre o povo de Mehrgarh, de dentes saudáveis como os dos caçadores-coletores. Isso parece ter sido devido ao flúor naturalmente presente na água do rio; reduzia a decomposição, embora manchasse os dentes de marrom. Uma das câmaras funerárias, datadas de cerca de 5.500 a.C., continha um homem adulto deitado de lado, com as pernas dobradas para trás, e uma criança, de aproximadamente um ou dois anos, a seus pés. Junto ao pulso esquerdo da criança havia oito contas de cobre que antes formavam um bracelete. Como só se encontraram tais contas de metal num único outro sítio neolítico, o homem devia ser uma pessoa extraordinariamente rica e importante. A análise microscópica mostrou que cada conta fora feita malhando-se e esquentando-se o núcleo de cobre até torná-lo uma fina lâmina, enrolada então em torno de um fino bastão. A substancial corrosão impediu um estudo tecnológico detalhado das contas; mas isso revelou-se uma bênção, pois a corrosão levara à preservação de uma coisa muito extraordinária dentro de uma das contas — um pedaço de algodão. Foram Christophe Moulherat e seus colegas do Centre de Recherche et de Restauration des Musées de France que fizeram essa espantosa descoberta. Quando se cortou uma das contas pela metade, descobriramse fibras vegetais — os restos do cordão que antes unia as contas. Tinham sobrevivido porque os compostos orgânicos foram substituídos por sais
metálicos oriundos da corrosão do cobre. Um pedaço de fibra de 5 milímetros quadrados foi isolado e coberto com uma fina camada de ouro, para permitir uma varredura eletrônica e revelar sua estrutura. Para fazer outras observações microscópicas, as fibras tiveram de ser envoltas em resina e polidas com uma pasta de diamante. Após outros estudos microscópicos, as fibras foram inquestionavelmente identificadas como algodão; na verdade, um feixe de fibras verdes e maduras enroladas juntas para fazer o cordão, diferenciadas as duas pela grossura das paredes das células. Como tal, essa conta de cobre continha o mais antigo uso conhecido do algodão no mundo por pelo menos mil anos. O segundo mais antigo foi encontrado em Mehrgarh: uma coleção de sementes de algodão descobertas entre grãos de trigo e cevada calcinados diante de um de seus aposentos de adobe. Moulherat não conseguiu determinar se as fibras de algodão cm Mehrgarh vinham de plantas selvagens ou domesticadas, mas tem fortes suspeitas da última hipótese. Constantini pensa o mesmo, em vista das sementes de algodão encontradas com cereais domesticados no que provavelmente era uma área de armazenagem. Parece que os camponeses de Mehrgarh vinham cultivando o algodão não apenas pelas suas fibras, mas também pelas sementes ricas em óleo. O algodão é hoje a mais importante safra de fibra do mundo, cultivado em mais de quarenta países. Conhecem-se mais de cinqüenta espécies, todas classificadas como membros do gênero Gossypium. Só quatro destas são cultivadas, cada uma das quais parece ter evoluído de forma inteiramente independente, numa diferente parte do mundo. O Gossypium hirsutum é a espécie mais largamente cultivada, e julga-se que se originou de progenitores selvagens na Meso-América; um segundo algodão do Novo Mundo, o G. barbadense, surgiu na América do Sul. O mais disseminado algodão africano é o G. herbaceum, na certa, originado na África do Sul, pois se descobriu que um provável ancestral dá como elemento nativo em suas matas e florestas abertas. Julga-se que a quarta espécie, o G. arboreum, se originou em alguma parte entre a Índia e o leste da África. Até as descobertas de Mehrgarh, supunha-se que a domesticação do G. arboreum ocorrera durante a época da civilização do Indus, não antes de 2.500 a.C. Mas não devemos nos surpreender se os camponeses dessa região já estivessem cultivando algodão em 5.500 a.C.; sabemos que os do vale do Jordão, que tinham economia e tecnologia semelhantes aos de
Mehrgarh, vinham fabricando tecidos pelo menos desde 8.000 a.C. O indício disso veio de uma fonte improvável — a minúscula caverna Nahal Hemar, localizada longe de qualquer assentamento conhecido. Mas mesmo essa hoje parece uma descoberta banal, comparada com o uso de folha de ouro e pasta de diamante para revelar traços de algodão dentro de uma conta de cobre corroída. Em 5.500 a.C. as construções ocupadas de Mehrgarh situavam-se a 200 metros de seu sítio original. O gado tornara-se o animal dominante, talvez usado para aradura, transporte e pelo leite, além da carne. Outros fatos incluíram a produção de cerâmica. Esta aparece pela primeira vez em forma de vasos mais ou menos finos — jarros em forma de pêra, pintados de vermelho e com bordas viradas para fora. Vasos de pedra e cestos impermeabilizados com betume ainda serviam para as necessidades diárias: a nova cerâmica parece mais adequada para exibir e impressionar os visitantes. Talvez fosse usada para tomar leite. Mchrgahr continuou a expandir-se durante vários milhares de anos, mudando repetidas vezes de posição na planície de Kachi e deitando a base da civilização do Indus. As escavações de Jarrige revelaram uma notável seqüência de desenvolvimento. Em 4.000 a.C., introduziu-se uma cerâmica grosseira para as necessidades diárias, que passou a ser fabricada em torno para produção em massa; as brocas de arco agora tinham ponta de jaspe verde, para transformar uma variedade de pedras em contas. Em 3.500 a.C., as estilizadas estatuetas de barro já tinham sido substituídas pelas de aspecto mais naturalista, que, junto com a cerâmica, logo seriam produzidas em massa. Usavam-se barro e osso para fazer timbres, que atestam não apenas a crescente importância do comércio, mas também uma nova cultura de propriedade privada, segredo e riqueza. O comércio pode ter sido o estímulo para criar o trabalho em cobre, evidente pela descoberta de cadinhos usados para fundição. Nessa data, descobrem-se cidades agrícolas semelhantes por todo o leste do Irã e oeste do Paquistão. Delas acabariam por surgir as cidades de Harappa e Mohenjo-Daro — culminação de um processo posto em andamento pela origem da agricultura no Oeste da Ásia, e depois pelos migrantes econômicos que encontrariam solo fértil nas planícies do Indus em 7.500 a.C. Enquanto essas cidadezinhas agrícolas floresciam, a agricultura espalhava-se para o leste da Índia. Mas os "pacotes" oeste-asiáticos de
cevada, trigo e cabra tinham chegado a seus limites ambientais. Além da extensão para leste das planícies do Indus, o clima mudou de verões secos e invernos úmidos para o exato oposto, devido à monção indiana. E assim, em vez de continuar a espalhar-se, elementos escolhidos do pacote neolítico foram adotados aos pedaços — exatamente como aconteceu no sul da Europa. Os caçadores-coletores indígenas do sul da Ásia logo começaram a cultivar suas próprias plantas locais como feijão, mungo e painço. O sítio de Bagor no Rajastão ilustra o tipo de economia híbrida que surgiu. Localizado numa duna dentro de um ambiente tipo savana, o sítio dá para o rio Kotari, que só retém água hoje durante a monção. Parece ter sido um sítio de acampamento a curto prazo, com toda probabilidade usado numa base anual por volta de 6.000 a.C. O chão foi pavimentado com lajes de xisto, e alinhamentos circulares de pedra sugerem quebraventos ou frágeis cabanas. Havia um túmulo — uma jovem de 18 anos deitada de costas, com o braço esquerdo repousando atravessado no corpo. Os artefatos eram todos mesolíticos: grande quantidade de microlitos feitos de quartzo e jaspe negro, junto com fragmentos de mós e pilões de pedra. Os ossos de animais escavados vinham, sobretudo, de gado selvagem, gamos, lagartos, tartarugas e peixes. Mas também incluem os de carneiros e cabras domesticados. Estes últimos podem ter sido de animais bravos que escaparam de rebanhos mais a oeste, ou abatidos por incursões de caçadores-coletores em assentamentos agrícolas. Alternativamente, os próprios caçadores-coletores podem ter começado a administrar seus próprios rebanhos pequenos. A Índia Central tornou-se um cadinho agrícola, sobretudo a partir de 5.000 a.C. em diante, quando o arroz domesticado começou a chegar do sul da China. Esse, pelo menos, é o cenário mais provável para explicar como o arroz veio a ser recuperado do sítio de Chopani Mando, na planície aluvial do rio Belan, abaixo da parte norte das colinas Vindhya. A domesticação indígena de arroz selvagem é outra possibilidade. A disseminação da agricultura para o sul da índia só ocorreu em 3.000 a.C., e tomou principalmente a forma de pastoreio de gado. Conhecem-se muitos assentamentos do Neolítico pelos topos de afloramentos de granito em todo o planalto de Deccan, mas solos ácidos destruíram os restos de plantas c tornaram os ossos de animais muito escassos. Complementando esses sítios, há numerosos "montes de cinzas", às vezes localizados perto
de um assentamento, mas freqüentemente isolados dentro do que teriam sido densas florestas. Foram formados pela queima periódica de estrume de gado dentro de cercados de palmeira, antes usados para proteger o gado de animais selvagens e atacantes. A prova direta dos currais de gado vem de rastros de patas preservados nos depósitos de estrume queimado no sítio de Utnur. Esse cercado em particular foi queimado e reconstruído várias vezes. Na Índia moderna, a queima de cercados semelhantes está ligada a festividades no início ou no fim das migrações sazonais do gado para pastos na floresta. Esses incêndios também têm um papel prático: o gado é tangido a atravessar o calor para matar os parasitas, impedindo a disseminação de doenças. Em 6.500 a.C., a viagem de verão de Lubbock segue o mercador de Mehrgarh, atravessando as montanhas do Aleganislão. Ele tem de trepar em rochas de granito e passar por estreitas gargantas, onde rios trovejantes sugam e puxam os rochedos e o barulho reverbera entre as paredes dos desfiladeiros como dentro de um túmulo. Essas gargantas dão em vales de mata ladeados por margens de seixos que oferecem vislumbres ocasionais de picos acidentados cobertos de neve. Os vales altos são limitados por penhascos que assinalam até onde chegaram as geleiras antes que o aquecimento global tornasse essa terra habitável para a humanidade. O mercador visita vários assentamentos, cada um com um trato de verde brilhante com cereais e cabras pastando numa encosta de colina vizinha. Alguns ficam em torno de grandes cavernas, muitas vezes com palhoças feitas dentro; outros têm pequenas moradas ovais de adobe cobertas com folhas do gigantesco ruibarbo selvagem que dá em abundância no fundo dos vales. Eles passam vários dias em cada assentamento, enquanto o mercador troca algumas de suas conchas marinhas por pedra colorida e renova as amizades. Trocam-se comida e água por notícias e mexericos de Mehrgarh e outras aldeias pelas quais ele passou. Quando se dirigem para o centro do Afeganistão, Lubbock separa-se do mercador a fim de visitar um assentamento no norte, onde as altas montanhas e estreitos passos dão lugar a colinas e penhascos de calcário impressionantes, mas ainda acidentados. Chega à entrada de uma grande caverna. Duas famílias vivem dentro dela, junto com suas cabras c cachorros; é escura e bolorenta, o chão juncado de lixo da preparação de comida, feitura de instrumentos e roupas. A data é 6.250 a.C., mas não há
sinais de vasos de cerâmica, pois ainda se usam gamelas e cestos de vime. Em bolsões de solo próximos, cultivam-se cereais. Os moradores da caverna sentam-se ociosos ao sol, tomando chá de ervas e refletindo sobre a beleza de sua paisagem. Lubbock junta-se a eles; admira o tapete de prímulas que se espalha em torno da caverna, sente o cheiro de rosas selvagens e os barulhos do rio que corre entre amoreiras e nogueiras. Ali no coração da Ásia Central — alguns diriam no coração do mundo — só os besouros estão em ação, carregando estrume de cabra para seu depósito particular. Essa caverna, conhecida localmente como Ghar-i-Asp (Caverna do Cavalo) e situada em Aq Kupruk (Ponte Branca), no terraço do rio Balkh, faz parte de um pequeno número das que foram examinadas arqueologicamente no Afeganistão. Foi escavada com a próxima Ghar-iMar (Caverna da Serpente) por Louis Dupree em 1962 e 1965, para o Museu Americano de História Natural do Afeganistão. As duas têm profundos depósitos, que mostram uma ocupação quase contínua do solo desde logo depois do LGM em 20.000 a.C. até início dos tempos históricos, contendo os níveis de cima vidro islâmico do século XII d.C. Os ocupantes da era do gelo usaram a caverna para caçar íbis, cabras selvagens e gamos: foram seguidos por pessoas com cabras domesticadas e depois artefatos de ferro: muitas peças variadas, junto com lâminas de faca, pontas-de-lança, braceletes de bronze e fragmentos de uma moeda chinesa. Dupree situou o tempo em que os caçadores de Aq Kupruk começaram a tornar-se pastores na data impressionantemente antiga de cerca de 10.000 a.C. Baseou-se, porém, em algumas identificações bastante questionáveis de ossos de cabra como pertencentes a animais domesticados, e não selvagens, junto com algumas datas de radiocarbono do mesmo caráter duvidoso. Se ele estiver certo, seria a mais antiga domesticação de cabras atualmente conhecida, mas devemos ser cautelosos. É necessário um novo estudo das Cavernas de Aq Kupruk para que se possa extrair quaisquer conclusões. O que está claro, no entanto, é que em 6.250 a.C. comunidades espalhadas viviam por todos os altos vales do centro do Afeganistão, pastoreando cabras e cuidando de pequenos tratos de trigo e cevada. Após visitar Aq Kupruk, Lubbock continua a rumar para o noroeste, até chegar à borda do planalto montanhoso que hoje chamamos de Kopet Dag
(Montanha Seca), no Irã moderno. Uma aguda descida leva a enormes leques de sedimentos, primeiro muito íngreme e depois diminuindo até uma mata coberta de pistacho. Lubbock posta-se na beira do precipício e olha para o nordeste, entrecerrando os olhos contra o vento gelado. Além da mata, uma savana cinzenta pontilhada de colinas e manchas vermelhas, prateadas e verdes estende-se até longe, fundindo-se no amarelo de um deserto aparentemente infinito. Lubbock segue a borda da escarpa por mais 200 quilômetros, até chegar a um ponto no qual tem de descer para visitar o próximo assentamento em suas viagens: a aldeia agrícola de Jeitun. Escolhe um vale profundo e desce para a mata, onde árvores frutíferas estão carregadas de romãs, maçãs e pêras maduras o suficiente para serem comidas. Um rio que serpeia entre os pés de colinas e dunas cobertos de papoulas à beira do deserto leva Lubbock ajeitun. Cerca de vinte casas de adobe se agrupam numa pequena colina, envoltas em fumaça densa e acre do estéreo queimado como combustível. Muita coisa aí lembra-lhe Mehrgarh e as cidadezinhas agrícolas do oeste da Ásia, embora Jeitun seja muito menor. As casas têm um aposento retangular e estão dispostas em torno de pátios com latrinas externas e prateleiras de armazenagem para o grão. Lubbock percorre a aldeia, vê duas cabras sendo esquartejadas num pátio e a feitura de cestos em outro. Mós jazem abandonada, mas cercadas por uma densa colcha de retalhos de cascas e palha coloridas. Afastando uma cortina para entrar numa casa, Lubbock acha o interior quente, fumacento e malcheiroso. Uma grande fogueira retangular queima estrume num canto, com pão meio assado no quente chão de barro em volta. No canto oposto, há um monte de couros, peles e tapetes empilhados sobre uma plataforma, supostamente usada para dormir. Num terceiro, um poço revestido de barro é usado para armazenar grãos. Foices de lâminas reluzentes e cabos de osso pendem da parede; um cesto contém uma variedade de outros instrumentos com lâmina de pedra. Várias tigelas empilham-se no chão; Lubbock pega uma — um vaso de cerâmica pintado com linhas vermelhas onduladas. Entra uma mulher, vestindo grossas camadas de couros e lãs; usa um colar de conchas marinhas, muito parecidas com as vistas em Mehrgarh, e tem a cabeça envolta num lenço. Quando ela vira o pão, Lubbock nota duas estatuetas de barro perto do fogo, uma cabra e um ser humano. Mas antes que possa dar uma olhada mais de perto, três crianças passam rindo aos
trambolhões pela entrada cortinada; esperam pacientes até que a mulher põe um pedaço de pão meio assado em suas mãozinhas imundas. E então saem correndo. Lubbock visita várias outras casas, descobrindo-as de desenho quase idêntico, embora a maioria tenha pisos de reboco. Como as pessoas de Jeitun se acham trabalhando nos pátios e nos campos em volta, a maioria dos ocupantes ou é muito velha ou muito nova. Lubbock vê um grupo de homens e mulheres à beira do rio, que termina logo depois da aldeia num pântano, e vai investigar. Eles fazem adobes, avidamente ajudados por crianças, que, claro, estão cobertas de lama. Alguns cavam na margem do rio, outros misturam o barro com palha e molda-os em tijolos, cada um do tamanho do antebraço de Lubbock, mas um pouco mais grosso. A palha é cortada num campo próximo, já havendo as espigas de milho sido colhidas varias semanas antes. Nessa noite Lubbock senta-se dentro de um pátio, quando a lua cheia sobe acima das casas de adobe de Jeitun. É 6.000 a.C., e ele imagina o que se passa em outras partes do mundo nessa data na história humana. Lembra os que vivem em Damdama e caçam ursos polares em Jokhov, no Ártico; pensa que canoas devem estar cruzando o Estreito de Torres e chegando a Skateholm no sul da Suécia; que patos são apanhados em armadilhas em Koster; e finalmente, nos que vivem cara a cara com touros em Çatalhöyük. América, Europa, Austrália, norte, sul, leste, oeste da Ásia — ele os visitou todos. Só resta um vazio a preencher, um continente habitável no mundo que ainda precisa visitar: a África. Jeitun é um de vários sítios arqueológicos na zona de sopé da base do Kopet Dag, no moderno Turcomenistão, que atestam o cultivo de cereais e pastoreio de cabras em 6.000 a.C. As semelhanças que Lubbock sentiu entre Jeitun, Mehrgarh e as cidadezinhas agrícolas do Oeste da Ásia são reais e não surpreendem — todas têm a mesma economia, em cenários ambientais semelhantes na borda do planalto iraniano. E exatamente como o assentamento em Mehrgarh, Jeitun suscita o problema de saber se os primeiros camponeses do Turcomenistão eram imigrantes do oeste, caçadores-coletores indígenas que conseguiram semente e animais pelo comércio, ou tiveram origem nas colinas abaixo do Kopet Dag, onde trigo e cevada já eram cultivados algum tempo antes de 6.000 a.C. Jeitun e os sítios vizinhos existem como montes chamados pelos locais de Kurgans. A primeira escavação foi feita na virada do século XIX para o
XX e demonstrou que eram os restos acumulados, desabados e erodidos de casas de adobe. Na década de 1950, houve as primeiras escavações em Jeitun, feitas notadamente pelo arqueólogo soviético V. M. Masson. Esse pequeno monte situava-se além do sopé e entre as dunas do vasto deserto de Kara Kum. Masson revelou um assentamento de pelo menos trinta moradas pequenas, retangulares e de um aposento na parte de cima do monte, junto com lareiras, áreas de armazenamento e pátios. Embora nenhum resto de planta fosse recuperado, encontraram-se os mesmos sinais de agricultura que em Mehrgarh: foices de sílex com o brilho característico da colheita e marcas de cevada e trigo dentro de adobes. Novas escavações em Jeitun foram feitas em 1987 pelo arqueólogo turcomeno Kakamurad Kurbansakhatov. Em 1989, V. M. Masson convidou David Harris, do Instituto de Arqueologia de Londres, para aplicar as últimas técnicas de extração de restos de plantas nos depósitos arqueológicos e recriar a paisagem em que vivera o povo de Jeitun. Trabalhando com seu colega Gordon Hillman, Harris recuperou grãos de trigo e cevada, junto com os de muitas plantas selvagens, confirmando que Jeitun se tornara uma aldeia agrícola estabelecida em 6.000 a.C. O envolvimento britânico continuou entre 1990 e 1994, quando uma equipe de escavadores se juntou aos da Rússia e do Turcomenistão. Esse novo trabalho resultou numa mudança das descrições da arquitetura e artefatos de pedra para outras da economia pré-histórica de Jeitun e ecologia local. Mas Harris e seus colegas enfrentavam uma tarefa intimidante. Poucas pistas existiam sobre a vegetação pré-histórica, pois as plantas escavadas eram raras, não havia pólen e a vegetação indígena fora quase inteiramente destruída por milênios de cabras pastando. Do mesmo modo, sistemas modernos de irrigação alteraram radicalmente o curso do Kara Su — o rio que Lubbock seguiu — de modo que o tempo, a quantidade e localização da água para o povo de Jeitun permanecem incertos. Mesmo assim, fizeram-se alguns progressos. Supôs-se que as árvores e arbustos que ainda cresciam dentro dos úmidos vales do Kopet Dag, como as maçãs e ameixas que Lubbock apreciou, eram antes mais disseminados. Julga-se que a mata dominada pelo pistacho cobria as colinas inferiores, devido à sobrevivência de plantas trepadeiras em geral exclusivamente associadas a esse tipo de árvore. Como é provável que o regime de chuvas em 6.000 a.C. fosse semelhante ao de hoje, com uma efetiva seca de verão, o trigo só poderia ter dado em
solos que tinham água suficiente no chão para mantê-los nos meses de verão. As destrutivas inundações de primavera causadas por excesso de chuva e gelo derretido do Kopet Dag eram outro problema que enfrentavam os agricultores de Jeitun. David Harris concluiu que os únicos campos viáveis deviam ter sido nos solos relativamente altos, planos e salgados entre as dunas, perto dos canais ativos, mas protegidos, do Kara Su. Isso foi confirmado quando Gordon Hillman encontrou sementes de junco marinho entre os restos de cereal — uma erva daninha que infesta o trigo quando cultivado nesses solos e que não tolera situações de beira de rio. O estudo das mandíbulas de cabra escavadas por Tony Legge — cujo trabalho com os ossos de animais de Abu Hureyra e Star Carr já encontramos — mostrou que estavam presentes todos os estágios de crescimento e desgaste. Isso sugere que os animais foram mortos durante o ano todo, implicando que algumas pessoas, pelo menos, eram moradoras permanentes de Jeitun. Além de cuidar de seus rebanhos, o povo de Jeitun caçava cabras selvagens nos sopés das colinas de Kopet Dag, junto com javalis, lebres e raposas. Mas a gazela era a presa favorita. Antes da construção da ferrovia que cruza hoje o Turcomenistão, grandes rebanhos desses animais migravam sazonalmente das montanhas e altos sopés para passar o inverno dentro do Kara Kum, antes de retornarem na primavera. Se faziam a mesma coisa em 6.000 a.C., Jeitun teria estado em posição quase perfeita para interceptar os rebanhos migrantes. As recentes escavações emjeitun não encontraram traço algum de assentamentos pré-agricultura em que os próprios caçadores-coletores poderiam ter começado a cultivar cereais selvagens. Na verdade, é improvável que os ancestrais selvagens do trigo cultivado em Jeitun estivessem presentes nessa parte da Ásia Central. E assim, parece que, como no Baluquistão, agricultores plenos tinham chegado aos sopés e estepe que bordejavam o Kara Kum. Para fazer isso, devem ter descido do Kopet Dag, ao qual eles, ou seus ancestrais, haviam subido do oeste da Ásia. Mais uma vez, de pé na borda do Kopet Dag, Lubbock olha a estepe e o deserto a leste. Espirais de fumaça sobem de Jeitun e assentamentos vizinhos aninhados nos sopés de colinas e dunas muito abaixo. Ele agora sabe que as pequenas manchas verdes são campos de trigo, e suas bordas brilhantes os pântanos de sal reluzindo ao sol. Durante o ano que passou em Jeitun, ajudou a construir novas casas usando adobes, participou da
colheita e debulha de trigo, juntou-se à caça à gazela e à colheita de amêndoas, nozes e pistacho. Passaram grande parte do verão em acampamentos nas colinas, aonde levaram as cabras à procura de pastos, deixando pouca gente na própria aldeia. Mas agora é hora de ele dar as costas a Jeitun e o leste; está ávido por chegar à África e concluir suas viagens globais. Mas primeiro precisa voltar ao oeste da Ásia, não ao vale do Jordão onde começaram suas viagens, mas aos sopés das montanhas Zagros e às planícies da Mesopotâmia. A data é 6.000 a.C. e as aldeias agrícolas que um dia margeavam o Tigre e o Eufrates há muito foram substituídas por cidades substanciais — as maiores agregações de pessoas que já existiram até então no planeta Terra.
44 Abutres das Zagros As raízes da civilização mesopotâmia, 11.000 – 9.000 a.C. A primeira civilização da história humana surgiu na Mesopotâmia. Este era o nome de uma província romana que ficava entre os rios Eufrates e Tigre, e que hoje se chama Iraque. Com "civilização", quero dizer uma escala de sociedade humana inteiramente nova em relação a qualquer outra que veio antes: arquitetura monumental, centros urbanos, extenso comércio, produção industrial, autoridade centralizada e tendências expansionistas. As cidades mesopotâmias apareceram por volta de 3.500 a.C., junto com a invenção da escrita. Embora tais fatos fiquem fora do quadro de tempo desta história, suas raízes foram deitadas muito antes. A partir de 11.000 a.C., surge na Mesopotâmia uma sucessão de extraordinários assentamentos de caçadores-coletores, aldeias agrícolas e cidades, associados a redes de comércio em expansão, tecnologia inovadora e novas idéias religiosas. Em 6.000 a.C., a Mesopotâmia abrigou florescentes comunidades agrícolas determinadas a criar um novo tipo de experiência humana: a vida urbana. Embora as primeiras cidades surgissem nas planícies centrais da Mesopotâmia, na vizinhança da atual Bagdá, o trabalho de base cultural se fez no norte — uma variada paisagem de planícies, serras de calcário, fundos wadis e colinas imponentes, mais notadamente as hoje conhecidas como Jebel Sinjar. Ao sul imediato delas fica uma extensa área de solos férteis, e foi nessa chamada planície de Sinjar que surgiram as primeiras aldeias e cidades mesopotâmias. Estas, por sua vez, se desenvolveram a partir de assentamentos de caçadores-coletores encontrados 300 quilômetros mais a leste, nos sopés das montanhas Zagros em 11.000 a.C. Esta é a data em que John Lubbock deve iniciar suas viagens mesopotâmicas. E assim, quando deixa Jeitun em 6.000 a.C., para cruzar o planalto iraniano a oeste, o tempo começa a passar para trás. Em 7.500 a.C., chega a uma recém-construída aldeia numa pequena planície aluvial conhecida por nós hoje como Sang-i-Chakmak. Quando desce nos flancos oeste das Zagros e se aproxima de um assentamento de caçadores-
coletores hoje conhecido como Zawi Chemi Shanidar, localizado no Vale do Grande Rio Zab, já chegou 11.000 a.C. Quinhentos quilômetros a oeste, a aldeia de caçadores-coletores de Abu Hureyra floresce à margem do Eufrates; a mais outros 400 quilômetros, o povo de Ain Mallaha corta trigo selvagem e caça gazelas nas matas mediterrâneas. Nem Mehrgarh nem Jeitun existem, tampouco Jericó e Göbekli Tepe: toda a Ásia, todo o mundo, é mais uma vez domínio absoluto dos caçadores-coletores. Zawi Chemi Shanidar consiste de um punhado de choupanas de palha, detritos domésticos, lugares para sentar, comer e conversar, e uma única estrutura circular de pedra. Esse acampamento fica na margem de um rio e perto de uma fonte; aninha-se entre íngremes paredões de vale e sob um pano de fundo de impressionantes picos de montanha. Até Lubbock, que tanto já viu do mundo, acha o lugar um cenário espetacular. Mas ele e seus anfitriões que não o vêem olham com temor as águias e abutres que circulam acima. Apesar da especial beleza que o cerca, Lubbock acha que a vida em Zawi Chemi Shanidar pouco difere da de muitos outros assentamentos de caçadores-coletores no mundo pré-histórico. Além do próprio vale, a paisagem em volta parece a que ele viu mais a oeste — mata de estepe com carvalho e pistacho. Lubbock passa vários dias colhendo sementes e cavando raízes, moendo-as e pilando-as para fazer farinha e pasta com almofarizes de pedra semelhantes aos de Ain Mallaha. Ajuda a caçar cabras e javalis; acompanha algumas das pessoas de Zawi Chemi Shanidar em longas jornadas a pé. Uma delas é para 150 quilômetros ao sul, deixando os sopés das Zagros e cruzando o deserto para encontrar uma fonte de betume borbulhando no chão. Seus companheiros trazem pesados sacos para o acampamento, para revestir cestos e prender lâminas de laças em cabos. Outra viagem de igual distância é feita para o norte, montanhas adentro, ao encontro de um grupo que vem do oeste com obsidiana para trocar. Na volta a Zawi Chemi Shanidar, Lubbock descobre preparativos em andamento para uma dança. Quando chega o crepúsculo, vê homens e mulheres vestindo fantasias; alguns pregam grandes asas nos braços, evidentemente cortadas de abutres e águias recém-abatidos; outros se cobrem com couros de cabra. Acende-se uma fogueira, e quando cai a escuridão toda a comunidade se reúne para vê-los apresentar-se.
Inicialmente, há apenas as chamas, um lento rufar de tambores e uma cabra é posta na grama. Uma águia mergulha da escuridão com as garras abertas; enquanto voa e revoa, a cabra foge noite adentro com ela a persegui-la. Chega então um rebanho de cabras e pasta em silêncio à luz da fogueira. Depois de comerem, brincam em torno das chamas — dão marradas, copulam, mães correm com os filhotes. O tambor torna a rufar, desta vez mais rápido e mais alto. A águia retorna seguida por enormes abutres que cercam as cabras. O rufar acelera-se, as aves voam mais rápido e as cabras começam a entrar em pânico; tentam saltar por cima do que já se tornou uma parede rodopiante de penas, com garras e bicos curvos para dilacerá-las. O rufar do tambor é agora frenético, e com uma batida final tumultuosa a águia ataca. Em meio a guinchos agudos, mata uma cabra e os abutres caem sobre as outras. E então vem o silêncio — a não ser pelo estalar das chamas e os arquejos de corpos humanos fantasiados caídos exaustos no chão. Zawi Chemi Shanidar quer dizer "campo perto de Shanidar" — sendo Shanidar o nome tanto de uma pequena aldeia curda quanto de uma grande caverna a 4 quilômetros de distância. A idéia de que seu povo se fantasiava para imitar abutres, águias e cabras, baseia-se numa intrigante descoberta nesse sítio. Quando Ralph Solecki, da Universidade de Columbia, Nova York, fez suas escavações na década de 1950, descobriu uma densa massa de ossos de animais dentro de um depósito de terra avermelhada, junto à estrutura de pedra. Supôs-se inicialmente que era um monturo de lixo doméstico, mas revelou conter apenas crânios de cabra e ossos de pássaros. Os últimos vinham da grande abertada, junto com várias espécies de águias e abutres, e se restringiam quase inteiramente a ossos de asas. Finas marcas de cortes indicavam que as asas tinham sido delicadamente separadas das aves; algumas haviam acabado sendo jogadas fora ainda intactas. Vários ossos vinham de pássaros imensos, como os abutres barbudos, cuja envergadura das asas chega a 3 metros, e águias marinhas de cauda branca. Exatamente como tais aves foram capturadas, e o que faziam suas asas dentro de um depósito com pelo menos 15 crânios de cabra, não foram perguntas fáceis para Ralph Solecki e Rose, sua colega e esposa, responderem. Embora os abutres possam de vez em quando ser domesticados em torno de assentamentos, e, portanto, capturados usando-se iscas, as águias são um desafio maior — exigindo talvez o roubo de filhotes dos ninhos e a criação na mão.
Parece provável uma interpretação ritualística, não apenas por causa do conteúdo particular, mas em vista de descobertas em outras partes. Quando escrevia em 1977, Solecki pôde citar as pinturas e esculturas encontradas por James Mellaart em Çatalhöyük, no sul da Turquia, que associavam crânios de animais com aves de rapina. Desde então, descobriram-se os sítios de Nevali Çori e Göbekli Tepe, com mais descrições de águias e abutres, e garras são comumente encontradas em sítios do Começo do Paleolítico (PPNA na sigla inglesa) no oeste da Ásia. Os ossos de pássaros de minhas próprias escavações em Wadi Faynan, por exemplo, são dominados pelos de bútios, abutres e águias. E assim, pouca dúvida pode haver de que as aves de rapina eram tidas em grande estima por todo o Crescente Fértil, muito provavelmente com profundo significado simbólico e religioso. Rose Solecki suspeitou disso em 1977, quando sugeriu que as asas desses pássaros tinham sido usadas como fantasias numa dança ritualística em Zawi Chemi Shanidar. Lubbock acorda ao lado de cinzas fumegantes. As fantasias foram deixadas num poço raso próximo — crânios e couros de cabra, asas e garras de aves esculpidas em madeira. Estão avermelhadas com ocre que se soltou dos corpos suados, e que agora colore o chão em torno dos ossos. Não se vê ninguém. O barulho de pilão nas choupanas próximas sugere que os dançarinos e espectadores voltaram ao trabalho — moendo bolotas e caçando nas colinas. Não que tenham deixado para trás seu mundo sagrado; depois de viajar pela pré-história, Lubbock sabe que não há distinção entre o sagrado e o profano — além da inventada apenas para o mundo moderno. Durante suas viagens de caça e coleta de plantas em torno da aldeia, Lubbock notou uma caverna nos penhascos 4 quilômetros ao norte. Sabe que o povo de Zawi Chemi Shanidar ainda a usa como abrigo, mas ele próprio nunca esteve dentro dela. Nas poucas horas que leva para a difícil subida até a entrada, passam-se dois séculos de tempo pré-histórico, e abutres deslizam entre os agudos picos da montanha. A Caverna Shanidar, como é conhecida hoje, tem uma grande câmara e mós, cestos, couros e uma variedade de instrumentos no chão. Há trechos de pavimentação e uns poucos montes de pedras, que parecem demarcar áreas especiais ou indicar alguma coisa enterrada embaixo. O interior é malcheiroso — uma mistura de morcego, couros de animais úmidos e os restos rançosos de fumaça de fogueira.
De pé na entrada para admirar a vista e desfrutar o ar fresco, Lubbock vê uma procissão subindo para a caverna, e calcula que vem de Zawi Chemi Shanidar. A fila de pessoas se aproxima devagar, encabeçada por um homem com uma criança pequena nos braços. Usam contas particularmente elaboradas feitas de ossos, dentes e pedras, e têm os corpos pintados de vermelho. Um casal cambaleia, um deles com a ajuda de um cajado. Lubbock senta-se numa pedra dentro da caverna para vêlos chegar. O homem põe o corpo do menino no chão, envolto em fios de contas de ossos que quase escondem inteiramente sua forma inchada e roxa. Lubbock olha de rosto em rosto e detecta sinais de mal-estar e doença. Um tem um chumaço de folhas coberto de material glutinoso amarrado sobre uma orelha; outro, a mandíbula inchada, e parece sofrer de uma forte dor de dente. Faz-se uma fogueira no chão da caverna. Lubbock ouve as preces e vê estranhos movimentos poéticos em torno do corpo, talvez imitação de animais e nevascas. O homem que o trouxe, supostamente o pai, cava um poço que revela lenha queimada de fogueiras anteriores na caverna. O corpo, ainda vestido de contas, é depositado sobre um punhado de cinzas e enterrado. Um momento de silêncio. E então as pessoas se vão, sendo o pai do menino o último a deixar a caverna. Quando Ralph Solecki escavou a Caverna Shanidar na década de 1950, descobriu não apenas um cemitério de seres humanos modernos, mas também os ossos de neandertais de 50 mil anos, pelos quais a caverna é mais conhecida. Embora os restos de neandertais estivessem enterrados fundo sob sedimentos soprados pelo vento e desabamentos do teto, encontrou-se o cemitério logo abaixo da superfície, um conjunto de 26 covas, junto com artefatos domésticos e detritos semelhantes aos escavados em Zawi Chemi Shanidar. Essas semelhanças e uma data de 10.800 a.C. sugerem que a caverna e o acampamento à beira do rio foram usados pelas mesmas pessoas. Muitas das covas continham adultos relativamente jovens e crianças. Vários foram sepultados com contas — uma criança tinha 1 mil 500 consigo, sugerindo que pertencia a uma família de grande status. Descobriu-se outra cova, isolada do resto e contendo uma mulher num poço em forma de caixa, com ocre-vermelho e uma mó. Agelonakis Anagnostis analisou os ossos humanos como parte de uma tese de doutorado na Universidade de Columbia. Descobriu que muitos
dos adultos tinham hipoplasia nos dentes — sinais de desnutrição quando jovens. Os vestígios de infecções nos ouvidos e inflamações dentais eram freqüentes, assim como ossos rachados ou partidos, e sinais de doenças degenerativas como a artrite. Os ossos como um todo tinham vindo de uma população visivelmente doente — era evidente que os que sobreviveram à infância lutaram para chegar ao que hoje chamamos de meia-idade. Isso é bem diferente das populações do Natufiano Inicial do vale do Jordão, que parecem ter gozado bom estado de saúde. Outro contraste é a natureza do assentamento. Embora a presença do cemitério indique que Shanidar e o Grande Rio Zab eram visitados regularmente, a ausência de moradas de pedra substanciais perto de cavernas ou na beira do rio sugere uma ocupação apenas temporária, muito provavelmente sazonal. Nesse aspecto as pessoas de Zawi Chemi Shanidar, junto com as que ocuparam os sítios próximos e contemporâneos de Karim Shahir e M'lefaat, era bem diferente dos natufianos que viviam em aldeias permanentes. Para encontrar alguma coisa comparável na Mesopotâmia, Lubbock tem de deixar a Caverna Shanidar e viajar para os sopés de Jebel Sinjar e a enigmática aldeia de Qermez Dere, 200 quilômetros a leste. Essa jornada exige que Lubbock cruze o rio Tigre e siga a pé para as colinas Sinjar. Ele atravessa um agreste seco coberto de magros arbustos, tufos de capim e árvores espalhadas. No matagal escondem-se vários tipos de caça: rebanhos de gazelas surgem do mato baixo e atravessam a planície a correr, lebres as seguem, e bútios de plumagem surpreendentemente pintalgada e rufos de longas penas erguem-se com guinchos do meio do capim. Manadas de asnos selvagens — onagro — pastam ao longe. A viagem de Lubbock leva quase um milênio para concluir-se, e nesse tempo as temperaturas caem e as chuvas se tornam menos freqüentes, pois chega o Jovem Dryas. Mas seu impacto é muito menos severo que nas terras do vale do Jordão e do Mediterrâneo, onde secas recorrentes obrigam ao abandono de aldeias, com o povo do Natufiano retornando a uma vida em movimento. Qermez Dere surge quando Lubbock chega ao cume de uma baixa colina e tem uma extensa visão da planície. Parado ali, ele vê um grupo de choupanas junto à boca de um vale raso. De longe, os telhados de palha parecem muito baixos, e ao chegar ele constata que cobrem quatro moradas subterrâneas a que se chega de cima por escadas. É o fim da
tarde; o trabalho do dia evidentemente acabou, e as pessoas sentam-se ociosas em grupos espalhados, algumas bebendo em canecos de madeira, outras parecendo dormir. Em volta delas, o lixo conhecido da vida de caçador-coletor: mós, montes aparas de pedras, fragmentos de ossos esquartejados e chão manchado onde o sangue se infiltrou. Lubbock senta-se entre eles, sentindo empatia com o prazer que evidentemente desfrutam com a paisagem — da planície para o sul e ao longo dos flancos das ondulantes colinas de Sinjar a oeste. Os únicos barulhos são um suave balbucio de vozes e água correndo num regato próximo. A data é 10.000 a.C., e embora o Jovem Dryas esteja no auge no oeste da Ásia e na Europa, o povo de Qermez Dere é saudável e bem alimentado. Eles encontraram um lugar ideal para viver, entre as colinas e a planície, cada uma proporcionando seu conjunto de animais para caçar e plantas para coletar. Pela quantidade de cascas, talos e folhas amontoados em torno das mós, Lubbock desconfia que há "hortas selvagens" por perto; capões de cereais e lentilhas selvagens que são aguados, capinados e mantidos sem doenças. Sabendo que a luz logo começará a desaparecer e as moradas subterrâneas ficarão escuras como breu por dentro, Lubbock deixa o assento e desce uma escada até um único aposento de paredes e piso rebocados. É uma forma curiosa, nem circular nem quadrada, e dominada por quatro pilares em fila cortando o centro. Lubbock lembra-se imediatamente dos pilares que viu em Nevali Çori quando viajava para Çatalhöyük — uma aldeia que, junto com muitas outras do Crescente Fértil, ainda não foi construída. Os de Qermez Dere chegam quase à altura do peito; Lubbock examina-os de perto, e descobre que são feitos de barro e cobertos de reboco. Cada um se ergue suavemente do chão, e parecem representar ombros humanos com braços aplicados sem muito jeito. As superfícies não têm decoração, mas parecem fosforescentes na penumbra crescente. Lubbock anda entre eles, alisando o reboco liso e imaginando o propósito de suas formas meio sensuais. Tapetes feitos de fibras torcidas e luxuriantes peles de animais cobrem o chão. Um lado tem uma lareira — várias lajes de pedra em torno de um poço cortado no reboco e contendo cinzas. As paredes são nuas, mas evidentemente cuidadas, pois o reboco foi densamente aplicado, polido e remendado. Lubbock pergunta-se o que acontece dentro desse e de outros
aposentos subterrâneos de Qermez Dere. Dificilmente poderiam ser mais diferentes dos aposentos amontoados, sujos e malcheirosos que com tanta freqüência encontrou em assentamentos de caçadores-coletores e incipiente agricultura em todo o mundo. Decide esperar para ver. E assim pega duas peles e instala-se em conforto contra uma parede, postando-se diretamente de frente para a escada de entrada. Nos dias seguintes — ou talvez sejam meses, ou mesmo séculos — muitas pessoas entram no aposento, às vezes sozinhas ou em pequenos grupos: crianças, adultos e velhos. Lubbock logo começa a notar visitantes freqüentes e semelhanças físicas. Nota atitudes e padrões de ficar em pé, tocar e conversar que sugerem parentescos — pai e filho, marido e mulher, irmãos, amantes. Calcula que todos que entram são membros de uma grande família à qual pertence a morada. Quando faz frio, vários entram e dormem no chão, muitas vezes fazendo um fogo no poço; quando calor, buscam a sombra sob seu teto. É um lugar onde as pessoas vêm sentar-se em silêncio e sós ou com outras, cantar e talvez rezar. Às vezes é usado para sexo; bebês são trazidos pela escada para serem alimentados; os doentes entram para descansar. De vez em quando, o aposento fica lotado para uma festa familiar, ou quando se recebem visitas. Esses usos variados continuam até uma manhã de primavera, quando duas mulheres descem a escada e começam a enrolar os tapetes e peles. Passam-nos para outros do lado de fora, e começam a varrer o chão, limpar as paredes e polir o piso, usando escovas e trapos de couro. Só quando o aposento está meticulosamente limpo, passam à tarefa seguinte: sua deliberada destruição. Atacam primeiro o teto, e as madeiras e palhas levantam uma grande nuvem de poeira e terra ao desabarem no chão. Uma vez feito isso, a família começa a encher de terra o aposento, usando pás de macieira e cestos — a terra cavada a certa distância, para evitar o lixo doméstico. Após uns dez minutos de trabalho, depois de cobertas as madeiras e palhas derrubadas, um dos homens mais velhos — que Lubbock supõe ser o chefe da família — pára o trabalho. Desembrulha um pacote e ergue cada um dos artigos para todos verem, antes de jogá-los na casa meio enterrada. Primeiro uma grande junta de carne — o mais provável é que seja de vaca selvagem, animal raramente visto nas vizinhas de Qermez Dere. Em seguida, um punhado de trigo selvagem, e depois um manto de
couro de fina confecção. Segue-se um colar de contas de pedra, e por fim um conjunto de alfinetes e agulhas de osso. Quando recomeça o trabalho, as crianças ajudam jogando pedras e punhados de terra no buraco. E isso continua até o aposento ser completamente enterrado, o aterro ainda um pouco amontoado acima do chão em volta. E assim, como um ato final, todos se põem a pular em cima para compactar o solo — no começo com muitas risadas e depois com decrescente energia e crescente fadiga. Nos dias seguintes, Lubbock vê as outras moradas subterrâneas serem destruídas de forma semelhante, até que tudo que resta de Qermez Dere são os grupos de almofarizes, cestos e instrumentos, lixo doméstico, restos de fogueiras e várias coleções de peles e tapetes espalhados. Alguns trechos do terreno foram limpos de pedras e mantidos livres de lixo e artefatos para as pessoas se sentarem, e erguem-se às pressas uns poucos abrigos de palha e quebra-ventos, como proteção contra o vento e o frio. E então a vida em Qermez Dere continua quase como antes — a não ser que se perdeu qualquer chance de intimidade. Assim, Lubbock acompanha viagens de coleta de plantas e caça; ajuda a limpar couros e mói sementes, junta-se aos cantos e danças; dorme com os outros sob as estrelas. Com o passar das semanas, Lubbock nota que uma pilha de lenha se acumula aos poucos junto a uma grande quantidade de nódulos de pedra; são de gesso e acabarão por ser triturados e misturados com água para fazer reboco. Quando chega o outono, derrubam-se árvores novas e tiramse os galhos, que são guardados como madeira. Cortam o capim, mais pelos talos que pelas tementes; amarram-nos em feixes e empilham-nos junto com a madeira e a pedra. Dentro de poucas semanas as pilhas de lenha, gesso e novo material de telhado são julgadas suficientes. E assim começa o trabalho num novo conjunto de moradas. Para surpresa de Lubbock, cada uma é erguida praticamente no mesmo lugar de antes, embora haja bastante terreno intocado nas vizinhanças. Marca-se um círculo aproximado e começa a escavação, removendo muito da terra tão laboriosamente jogada apenas alguns meses atrás. As linhas marcadas são seguidas meticulosamente; quando encontram velhas paredes de reboco, simplesmente as derrubam. Quaisquer madeira e palha antigas são jogadas fora — assim como os objetos que outrora pareciam tão valiosos. Enquanto se cava o novo poço, os fornos ardem, usando rapidamente a
madeira armazenada e reduzindo a pó os nódulos de gesso. Colunas são moldadas de barro, erguidas dentro do novo aposento subterrâneo e rebocadas, junto Com o piso e as paredes, já preparados com uma mão de barro vermelho-pardo. O telhado é feito com novas madeiras e palha. Em poucos dias a morada está completa — e parece quase idêntica à sua antecessora. A família reúne-se dentro, satisfeita com o seu trabalho; Lubbock fica a imaginar por que se deram todo esse trabalho. Mais uma vez, entende a barreira cultural que tantas vezes intervém entre ele e aqueles aos quais visita em suas viagens, inibindo sua compreensão do passado. Por que essas pessoas de Qermez Dere viviam aterrando suas antigas moradas e reconstruindo-as segundo o mesmo plano, exatamente no mesmo lugar? Trevor Watkins, da Universidade de Edimburgo, que escavou o aposento onde ficou Lubbock imaginando sua função, fez essa pergunta. Descobriu que foi reconstruído pelo menos em duas ocasiões. Da última vez que foi aterrado, supõe-se que pouco antes de a aldeia ser abandonada, puseram-se seis crânios humanos em seu piso. As escavações de Watkins foram feitas em 1986-1987, antes da completa destruição do sítio para construção de estrada e extração de pedra. Para ele, Qermez Dere pareceu no início um baixo monturo próximo a um profundo wadi. O punhado de equipamentos de moer, instrumentos de pedra e ossos esquartejados não ofereceu surpresa; mas as casas subterrâneas, com seu fino reboco, colunas e enterro deliberado, eram diferentes de qualquer coisa encontrada antes. Mais de duas décadas depois que Watkins concluiu seu trabalho, Klaus Schmidt escavou Göbekli Tepe, localizado 300 quilômetros a noroeste e alguns séculos mais recente no tempo. As semelhanças com Qermez Dere eram impressionantes: os dois sítios tinham moradas subterrâneas com colunas, mas sem sinais de atividade doméstica; dos dois lados, as estruturas tinham sido deliberadamente aterradas. Embora as de Göbekli Tepe fossem em escala muito maior que as de Qermez Dere, com uma grandeza que igualava suas enormes colunas e cenário dramático, há uma inquestionável ligação cultural entre os dois sítios, uma ligação que leva a Nevali Çori. Alguma coisa profundamente misteriosa está por trás desses sítios e das sociedades que os fizeram, uma coisa que deve conter a chave do mundo neolítico. O terceiro e último dos assentamentos mesopolâmios de caçadores-
coletores que Lubbock visita também fica nos sopés das montanhas Zagros e é conhecido hoje como Nemrik. Stefan Kozlowski, da Universidade de Varsóvia, escavou-o em conjunto com a Organização de Antigüidades e Herança do Iraque, como projeto de resgate antes da construção da "Represa Saddam". O trabalho foi feito durante os mesmos anos em que Trevor Watkins escavava em Qermez Dere, a meros 60 quilômetros do outro lado do rio Tigre. A ocupação pré-histórica de Nemrik e Qermez Dere se sobrepusera no tempo, embora as datas mais antigas para Nemrik a situem pouco depois de 9.600 a.C. Pessoas ainda viviam lá quase dois mil anos depois; a essa altura, tinham deixado atrás seu passado de caçadores-coletores para tornar-se agricultores. Lubbock deixou Qermez Dere em 9.400 a.C., após a chegada da chuva e calor do Holoceno. Esse sítio ia permanecer ocupado por outros mil anos, até seus moradores se juntarem a um dos novos assentamentos agrícolas que se tinham desenvolvido na planície de Sinjar em 8.000 a.C., ou talvez criarem um. Mas esses fatos ainda estão por acontecer quando Lubbock atravessa a pé, rumo ao nordeste, uma estepe agora pontilhada de capões de freixo e nogueira, tamariz e pistacho. Ao longe, as encostas das montanhas Zagros foram enverdecidas por florestas de carvalho e tornaram-se lar de gamos, javalis e gado selvagem. Nemrik espalha-se pelo fim de um cume que dá numa planície; rios correm entre barrancos de cada lado, fazendo todo o percurso até o próprio rio Tigre. Lubbock chega ao amanhecer. Algumas pessoas já partiram para a caça nas colinas, outras continuam a dormir dentro de suas moradas circulares — não subterrâneas, como em Qermez Dere, mas com paredes em pé. Há oito delas, localizadas em dois grupos e cercadas por pátios pavimentados. Estes são evidentemente as áreas de trabalho, pois Lubbock vê a conhecida gama de mós, pilões e restos de sílex espalhados por suas lajes. Fogueiras e cuias de pedra enegrecidas sugerem que os pátios também são usados para cozinhar. Parecem ser partilhados entre as casas, como é um poço de lixo grande e fedorento. Lubbock olha de perto os adobes secados ao sol com os quais são feitas as moradas — pouco diferentes dos que viu em Jerico e Jeitun. A entrada é tapada com grossos couros; afastando-os, ele entra num recinto escuro. É dividido por quatro colunas, dispostas num quadrado e sustentando caibros de madeira — as paredes de adobe jamais poderiam ter suportado tal peso. O próprio telhado é feito de galhos em treliça, entremeados com
palha e rebocado com barro. Plataformas erguidas feitas de madeira e barro foram construídas contra a parede. São leitos, e cada um suporta um corpo adormecido coberto com couro. Defronte há um conjunto de artigos domésticos e lixo em volta de uma mó embutida. Entre os que dormem e as áreas de trabalho da casa há plataformas mais altas e mais estreitas que parecem bancadas. A maior parte do chão está coberta de tapetes e couros; o resto é terra pisada, sobretudo em torno de uma laje de pedra que cobre em parte um poço. Lubbock olha dentro do buraco e vê um crânio olhando-o de volta. A detalhada informação sobre a estrutura e desenho dessa morada resulta de sua excelente preservação e da qualidade de sua escavação. Koslowski, que a chamou de "Casa 1A", encontrou torrões calcinados de barro do teto desabado com marcas de trabalho em treliça e palha. Havia buracos dentro dos restos de paredes onde ficavam colunas. Ele também encontrou o poço de sepultamento, uma área onde se concentravam artefatos, e as plataformas que julgou serem leitos e bancadas. Casas desse tipo foram construídas em Nemrik por volta de 9.000 a.C., quando seus habitantes viviam da caça e da coleta. As escavações de Koslowski recuperaram os ossos de animais selvagens e pássaros, junto com as patas de pitu apanhado nos rios vizinhos. Embora os restos de plantas fossem escassos, encontraram-se traços de cereais, ervilha, lentilha e ervilhaca— todas, supõe-se, de plantas selvagens. Só por volta do fim da extensa ocupação de Nemrik — numa data por volta de 8.000 a.C. — cultivaram-se variedades domesticadas em torno da aldeia. Nessa época as casas tinham tomado uma forma mais retangular, mas praticamente todos os outros aspectos da vida permaneciam os mesmos. Koslowski também fez algumas descobertas mais complexas — uma das quais faz Lubbock lembrar o início de suas viagens na Mcsopotâmia. Ele continua dentro da casa, intrigado por uma série de pequenas esculturas de barro e pedras colocadas em pequenos nichos nas paredes. Algumas são difíceis de identificar — uma parece a cabeça de um javali, outra poderia ser uma cabra, e uma terceira uma cabeça humana. Lubbock gasta pouco tempo com elas, preferindo uma talha em pedra muito mais impressionante. Segura-a na palma da mão; gosta do seu peso e sensação ao passar os dedos pelo pescoço liso, em torno das orbitas e num agudo fio que forma um bico. É a cabeça de um abutre — apenas uma de várias esculturas exibidas com destaque em Nemrik dois mil anos depois que seu
povo usou asas de águia e abutre e mergulhou para matar em Zawi Chemi Shanidar, no vale do Grande Zab.
45 Surge a Civilização na Mesopotâmia O desenvolvimento das cidades e do comércio, 8.500 – 6.000 a.C. Ao deixar Nemrik, Lubbock passou mil anos em viagens no norte da Mesopotâmia, observando o desenvolvimento de aldeias agrícolas. Logo depois de 8.000 a.C., também viu grupos de família subindo os sopés das Zagros em busca de novas terras de pasto e aráveis no planalto iraniano, primeiros passos na disseminação da agricultura no sul e centro da Ásia, que levariam a Mehrgarh e Jeitun. Mas a maioria das pessoas continuou na planície de Sinjar, cultivando a terra e construindo mais moradas, e deitando, sem o saber, as fundações de um novo tipo de mundo urbano. Lubbock começou por fazer a volta, cruzando o Tigre e depois seguindo um pequeno rio tributário que serpeava por baixas colinas cobertas de carvalho nos flancos das colinas Sinjar. O vale do rio era exótico, com lados de vez em quando íngremes, em forma de desfiladeiro. Foi logo depois de uma dessas gargantas que Lubbock encontrou a aldeia hoje conhecida por nós como Maghzaliyah — 10 casas retangulares e com muitos aposentos, em parte cercadas pelo que parecia um muro defensivo. Não estava a mais de doze quilômetros do agora abandonado sítio de Qermez Dere, cujos detritos há muito tinham sido levados pela chuva e enterrados no chão. Lubbock chegou a Maghzaliyah na primavera de 8.000 a.C., exatamente quando o trigo era colhido em pequenos bolsões de solo adequado em torno da aldeia — cada um espremido entre afloramentos de rocha. Era cortado com foices feitas com lâminas de obsidiana e o grão armazenado em vasos de barro em forma de barril. Ele descobriu que a obsidiana era o principal tipo de pedra em uso, não mais adquirida em longas viagens longe de casa, como em Zawi Chemi Shanidar, mas de mercadores que chegavam do norte a Maghzaliya. O barro era extensamente usado na construção, modelação de estatuetas e fornos, embora não ocorresse nenhum cozimento para fazer vasos de cerâmica. Lubbock duvidava que isso fosse por ignorância da técnica; parecia mais provável que os pratos, tigelas e jarros feitos de pedra, madeira e vime fossem mais que
suficientes para as necessidades das pessoas. Maghzaliya foi descoberta pelo arqueólogo russo Nikolai Ottovich Bader na primavera de 1977: um monturo cônico agudo, em parte cortado na borda norte por uma estrada e destruído na direita pelo rio Abra. Tirando isso, o sítio não fora perturbado. As escavações de Bader revelaram que as moradas tinham paredes de barro sobre fundações de pedra, com telhado de palha e piso pavimentados, revestidos os dois com reboco cujos fragmentos continham as marcas de tapetes de junco. Durante a história de quinhentos anos da aldeia, tinham existido entre oito e dez casas em qualquer época, sugerindo uma população de cerca de cem pessoas. Mas como cada casa não permanecera de pé por mais de cinqüenta anos, e fora reconstruída no mesmo lugar, o sítio era densamente carregado de características arqueológicas. Os ossos de animais e restos de plantas que Bader escavou indicavam que os habitantes de Maghzaliyah tinham sido igualmente dependentes de alimentos selvagens e domésticos; caçavam onagros na estepe, cuidavam de rebanhos de carneiros e cultivavam campos de trigo. Maghzaliyah foi cercada por uma muralha de enormes lajes de pedra durante a maior parte de sua existência, possivelmente como defesa contra animais selvagens, grupos atacantes ou assaltos organizados por pessoas de outras aldeias — embora não se encontrassem traços de violência nos ossos dos mortos. Adultos e crianças eram enterrados juntos, em túmulos revestidos de pedra reunidos numa discreta área do assentamento; sugerem mais grupos de família que covas de guerreiros. Talvez o muro não fosse para defesa em absoluto, mas um meio de delimitar o mundo da cultura humana do da natureza, ou mesmo distinguir os ocupantes como camponeses dos caçadores-coletores que viviam do lado de fora. A origem de Maghzaliyah corre paralela em grande parte à das primeiras aldeias agrícolas e cidadezinhas no vale do Jordão e ao lado do Eufrates, como Beidha, Ain Ghazal e Bouqras. Os descendentes de caçadorescoletores que viviam em Zawi Chemi Shanidar, Qermez Dere e Nemrik parecem ter adotado o cultivo de cereais assim que as sementes se tornaram disponíveis. Ainda não está claro, por não ter importância, se os cereais domesticados tiveram origem no norte — talvez em Çayönü ou arredores — ou no oeste — talvez em Jericó. Uma vez presente, a semente se espalhara por todo o norte da Mesopotâmia com a mesma rapidez que no vale do Jordão, antes de ser levada para a Europa no oeste
e para o centro e sul da Ásia a leste. Maghzaliyah foi apenas uma entre várias aldeias agrícolas que se desenvolveram nas terras em torno do Tigre e nos sopés das Zagros assim que as sementes se tornaram disponíveis. Uma das primeiras a serem descobertas é conhecida como Jarmo, escavada pelo arqueólogo americano Robert Braidwood na década de 1950. Localizada 300 quilômetros a sudeste de Maghzaliyah, tinha cerca de trinta casas em seu auge, a maioria construída com fundações de pedra e grossas paredes de barro. Algumas delas tinham uma impressionante semelhança com as casas construídas em Çayönü, 600 quilômetros a noroeste. Outras aldeias agrícolas desenvolveram-se por todos os sopés das Zagros. Duas são conhecidas ao sul de Jarmo: Ganj Dareh, no vale de Kermanshah, e Ali Kosh, nas planícies de Deh Luran, no moderno Irã. Disse-se que as duas tiveram cabras domesticadas particularmente cedo. Essa proliferação e rápido crescimento de assentamentos agrícolas no norte da Mesopotâmia equiparam-se de perto aos do vale do Jordão até cerca de 6.500 a.C. Mas depois dessa data as duas regiões têm histórias inteiramente diferentes. Como descobriu Lubbock em Ain Ghazal, uma combinação de degradação ambiental causada pela agricultura e novas secas expulsaram alguns dos seus habitantes para um estilo de vida nômade e outros de volta a minúsculas aldeias espalhadas pela estepe. A cidade foi abandonada e deixada para decair. Enquanto a mesma história de colapso cultural ocorria por todo o vale do Jordão, o exato oposto se dava nas terras entre o Eufrates e o Tigre. Os solos, topografia e clima da Mesopotâmia eram muito mais favoráveis ao cultivo intensivo. Em vez do florescimento e fracasso econômicos do vale do Jordão, seus assentamentos agrícolas proliferaram em tamanho e número. Houve crescimento econômico sustentado, levando à nova escala de sociedade humana que chamamos "civilização". Umm Dabaghiyah, um assentamento ao sul imediato da planície de Sinjar, foi um dos resultados desse crescimento econômico. É ali que Lubbock chega em 7.500 a.C. Para isso, atravessou a fértil planície e encontrou as casas de adobe de Umm Dabaghiyah cercadas por uma estepe seca, sem sinais de cultivo de safras. Enquanto todos os outros assentamentos do Neolítico foram coisas casuais atabalhoadas, toda Umm Dabaghiyah parece ter sido planejada e construída de uma vez. Cheira tão mal, senão pior, que qualquer outro assentamento visitado por Lubbock
— um fedor forte de sebo, gordura, carne e entranhas de animal que fica em torno de seu povo e impregnou as paredes de barro e pisos de reboco. Explorando o assentamento, Lubbock encontra áreas distintas para viver, trabalhar e armazenar. A entrada em qualquer dos aposentos retangulares é por uma escada externa até o telhado, c depois por outra interna, semelhantes às que ele encontrou em Çatalhöyük. Há pinturas nas paredes — mas felizmente nenhuma reprodução de touros, decapitações ou esculturas de seios femininos cortados ao meio. Em vez disso, as pinturas ilustram cenas de onagros sendo tangidos para redes. Embora só uma das casas tenha essas pinturas, todas têm a mesma planta: um único e pequeno aposento com paredes e piso de reboco. Mesmo seguindo um mesmo plano, muitas parecem construídas às pressas por mãos inexperientes, pois estão em andamento muitos consertos nas paredes de barro que desmoronam e tetos que desabam. Cada aposento tem uma lareira contra a parede, cercada por um meio fio; partilham chaminés com grandes fogões grudados às paredes externas. Os pisos são cobertos por tapetes de junco; há tigelas de pedra, cestos de vime e grosseiros vasos de cerâmica desarrumados em torno dos fogos. No geral, as casas não têm um ar "doméstico"; são básicas e funcionais, e parecem mais alojamentos de operários que moradas familiares. Dois blocos de depósitos formam a peça central do assentamento. São divididos em muitas câmaras pequenas, construídas com materiais e técnicas muito melhores que as moradas, tendo grossas paredes de barro com pegões internos e rodapés de reboco. A maioria é inteiramente fechada, sem portas e com telhados feitos de couro e varas. Quando caminha entre os telhados — as grossas paredes oferecem um caminho — Lubbock alarga pequenas fendas no material para ver dentro desses depósitos, protegidos contra roedores e o tempo. Numa, vê um monte de couros dobrados, em outro uma pilha de carne salgada, numa terceira, fardos de pêlos da cauda de onagros, e numa quarta, cascos e chifres de gazela amontoados nos cantos. Outra tem cestos de grão, raízes e tubérculos. As câmaras que contêm produtos animais estão sendo evidentemente abastecidas durante a temporada de caça, enquanto os de vegetais se esgotam pouco a pouco. No pátio, um grupo de caçadores-coletores chegou com várias carcaças de onagro. Foram apanhados exatamente da maneira ilustrada nas paredes — fazendo estourar um pequeno rebanho rumo a redes subitamente erguidas
do chão para bloquear sua fuga. Lubbock vê os onagros serem esfolados; os couros têm a gordura e os tendões raspados e depois são postos dentro de bacias revestidas de barro cheias de água salgada. Os de uma caçada anterior já foram encharcados e estão enrolados sobre uma série de muros de barro baixos, que formam os estendedores. As novas carcaças são esquartejadas com lâminas de sílex e machados de basalto. A maioria das juntas será esfregada com sal, e deixadas a secar, antes de tornarem a ser salgadas e armazenadas; o resto será assado à noite e comido com um pouco do decrescente suprimento de vegetais. Umm Dabaghiyah foi descoberta e escavada no início da década de 1970 por Diana Kirkbride, quando era diretora da Escola de Arqueologia Britânica no Iraque. Nessa época, ela já escavara Beidha, no sul do Jordão; isso a levou a esperar que Umm Dabaghiyah fosse um tipo de aldeia semelhante. Como o sítio era um pequeno tell, Diana decidiu tentar uma "escavação total". Embora não se conseguisse isso, muitas construções foram expostas, várias das quais tinham sido reconstruídas em quatro ocasiões separadas, durante quinhentos anos de ocupação. Após três temporadas de escavação, Diana Kirkbride começou a questionar a idéia de aldeia agrícola. Suas dúvidas foram motivadas pelas próprias descobertas — os armazéns, bacias revestidas de reboco e muros baixos sem valor estrutural — junto com o que ela não descobriu: vestígios substanciais de atividade agrícola. O meio ambiente quase deserto em que Umm Dabaghiyah se situava também lhe parecia agora "singularmente não convidativo do ponto de vista de assentamento da Idade da Pedra". A região era quase desprovida de água; a que havia num pântano próximo estaria saturada de sal, devido a jazidas subterrâneas de gesso. Essas jazidas inibiam o crescimento de árvores, tornando muitíssimo escassa, senão inteiramente ausente, a madeira para combustível e instrumentos. O sílex local tinha um grão grosso e muitos defeitos. Parecia que aos habitantes de Umm Dabaghiyah eram negados quase todos os recursos chave-da-vida na Idade da Pedra. Todos, menos um: animais para caçar. Quando Diana escavou o sítio, a fauna do norte da Mesopotâmia era relativamente pobre, consistindo de raposas, lebres, ratos do deserto e gerbos. Em 7.500 a.C., porém, onagros e gazelas tinham pastado nas planícies, e javalis e cabras catavam sua comida nas distantes colinas Sinjar. Os ossos de onagro dominavam os escavados em Umm
Dabaghiyah, e fragmentos de pinturas de parede representavam a caça — animais cercados pelo que Diana julgara fossem forquilhas para segurar redes. Diante dos indícios arqueológicos e a sobriedade da paisagem contemporânea do sítio, Diana mudou de opinião sobre Umm Dabaghiyah. Em vez de uma pequena aldeia agrícola, tornou-se um "posto avançado de comércio", especializado em onagro e gazela — um pequeno satélite, ela julgava, de alguma "magnífica cidade tipo Çatalhöyük" próxima e ainda não descoberta. Diana sugeriu que Umm Dabaghiyah era um assentamento de "intermediários". Imaginou caçadores-coletores do deserto trazendo carcaças de animais e recebendo obsidiana, grão de cereal e outras mercadorias em troca; estas, em sua suposição, já tinham sido adquiridas pelos intermediários de Umm Dabaghiyah, trocando carne, couro, pêlo e chifre na cidade ainda não descoberta. A interpretação de Diana Kirkbride não foi sustentada por trabalhos de campo posteriores. Pesquisas arqueológicas — mais notadamente a de uma expedição de 1969-1980 — não descobriram a tal cidade, encontrando em seu lugar um punhado de pequenos assentamentos agrícolas, um deles Maghza-liyah. Algumas dessas aldeias se desenvolveram de fato no tipo de cidade substancial que Diana imaginava, mas só depois que Umm Dabaghiyah já entrara em decomposição. Conseqüentememte, meu cenário para a visita de Lubbock era um pouco diferente do de Diana Kirkbride: Umm Dabahiyah como residência sazonal de caçadores especialistas de um ou mais assentamentos agrícolas, que chegavam com suprimentos de pedra, vegetais e cereais, e que matavam e tratavam eles próprios os animais. Imagino-os retomando no fim da temporada de caça com sua produção, talvez em parte carregada por asnos selvagens domesticados. Os pêlos, couros, cascos, carne e gordura seriam trocados por grão e pedra, em parte com outros habitantes locais, em parte com mercadores visitantes. Qualquer que seja o cenário correto, a natureza especializada de Umm Dabaghiyah indica uma escala de organização maior que a encontrada em qualquer sociedade neolítica anterior. Ilustra o papel-chave que o comércio e a troca desempenhavam em 7.500 a.C. na gradual transição de aldeias agrícolas para as cidades que precipitaram os centros urbanos da
primeira civilização. A Expedição Arqueológica Soviética fora convidada a empreender um programa de pesquisa e escavação pelo governo iraquiano, e deu uma admirável contribuição à nossa compreensão da pré-história mesopotâmia. Antes de seu começo, em 1969, nosso conhecimento era restrito ao assentamento de Jarmo, nos sopés das Zagros, datando de 8.000 a.C., e à cidade de Hassuna, na planície Sinjar, que datava de 6.000 a.C. Escavada em 1945 pelo arqueólogo britânico Seton Lloyd, Hassuna produzira casas complexas, de muitos aposentos, cerâmica pintada sofisticada e uma escala de agricultura, atividade artesanal e comércio completamente diferente da de Jarmo. Os dois assentamentos pareciam separados por mundos em cultura e economia. Muitos arqueólogos suspeitaram de que não tinham qualquer relação, e o povo de Hassuna se espalhara na região, vindo de fora, com sua cultura já formada. A descoberta e a escavação de Diana Kirkbride em Umm Dabaghiyah entre 1970 e 1973 situaram cronologicamente o assentamento entre Jarmo e Hassuna, mas inteiramente anômalo em relação aos dois, com sua arquitetura de armazéns e suas pinturas de caças ao onagro. O extenso programa de pesquisa c escavação da Expedição soviética na planície de Sinjar descobriu outros assentamentos, alguns contemporâneos de Umm Dabaghiyah, outros anteriores e outros posteriores. Quando as descobertas soviéticas foram combinadas por Trevor Watkins com as escavações de Qermez Dere e de Nemrik por Stefan Kozlowski em fins da década de 1980, estabeleceu-se uma seqüência completa de desenvolvimento econômico. As cidades de Hassuna nem tinham chegado formadas à planície nem derivavam das aldeias tipo Jarmo dos sopés das Zagros. Desenvolveram-se a partir de aldeias agrícolas e de caçadores-coletores na própria planície de Sinjar. A Expedição soviética não teve dificuldade para encontrar sítios e escavar — na verdade havia abundância de monturos no norte da Mesopotâmia. Eram conhecidos desde que Austen Henry Layard, diplomata e arqueólogo britânico, viajara pela Mesopotâmia na década de 1840 e levara sua arqueologia à atenção do público com seu livro Nineveh and its Remains [Nínive e seus restos] — estranhamente não mencionado no Tempos pré-históricos do John Lubbock vitoriano de 1865. Ele contava que pernoitara em 1843 na borda da planície de Sinjar, olhando o cair da noite e contando "mais de cem monturos, que lançavam suas sombras
negras e crescentes sobre a planície". Três anos depois, revisou a estimativa e dobrou esse número. Quando Seton Lloyd, trabalhando para a Universidade de Liverpool, fez quase um século depois a primeira pesquisa arqueológica sistemática da planície de Sinjar, os duzentos monturos foram reconhecidos como "apenas uma pequena parte de um grande número espalhado sobre essa outrora fértil planície". Um dos monturos escavados pela Expedição soviética ficava 50 quilômetros ao norte de Umm Dabaghiyah e erguia-se a não mais que 2,5 metros da planície em volta. Foi designado de Tell Sotto e escavado por Nikolai Bader entre 1971 e 1974. Ele encontrou uma sucessão de casas de um e de vários aposentos, mostrando o crescimento e depois abandono de uma aldeia agrícola, que jamais teve mais de três ou quatro casas em qualquer tempo. Como se encontrou uma série de poços de tamanho suficiente para ser restos de moradas subterrâneas sob as fundações de casas posteriores, o assentamento original em Tell Sotto pode ter sido uma aldeia muito parecida à de Qermez Dere. As casas dos primeiros agricultores de Sotto eram retangulares; a maioria linha um só aposento, mas pelo menos uma tinha vários, aos quais se chegava por um corredor. Enquanto as paredes das casas de Maghzaliyah eram feitas com torrões amorfos de barro, as de Sotto eram de adobe. Alguns aposentos tinham sido evidentemente usados para tarefas domésticas, pois continham mós, lareiras, ossos de animais, cerâmica, fogões e prateleiras para secar grãos. Em outros aposentos, Bader encontrou grandes vasos de cerâmica, muitas vezes no chão e usados para guardar grãos. Vasos semelhantes eram usados para outro tipo de armazenamento — de crianças mortas, cujos pequenos corpos tinham sido espremidos lá dentro, deixando os ossos para Bader encontrar. Apesar de pequeno, Sotto parece ter sido um próspero assentamento, a julgar pelos artefatos feitos por seus habitantes ou adquiridos por troca: braceletes de pedra, contas, machados polidos e estatuetas de barro. Muitos dos mortos eram enterrados sob os pisos e em geral sem artigos nas covas. Um túmulo, porém, pertencera claramente a uma pessoa muito rica; continha um pequeno alguidar com os restos de uma refeição, um colar de exóticas contas de pedra, incluindo mármore e lápis-lazúli, e uma pequena lâmina de cobre dobrada num tubo. O tubo é um dos primeiros sinais de trabalho em cobre no mundo, só igualado por uma pequena sovela de Maghzaliyah — sendo os dois um milênio mais antigos que as
contas de pedra de Mehrgarh. Embora a população de Sotto jamais passasse de trinta ou quarenta pessoas, é provável que o assentamento tenha crescido rapidamente e dado origem a várias das novas aldeias que começaram a pontilhar a planície mediterrânea após 8.000 a.C. Alguns de seus habitantes podem ter passado o inverno em Umm Dabaghiyah, aquecidos pelas grandes lareiras e fogões. Outros podem ter deixado Sotto para juntar-se a uma aldeia que surgiu apenas a dois quilômetros e conhecida hoje por nós como Yarim Tepe, que continuou a florescer muito depois do abandono de Sotto, com uma arquitetura e uma cerâmica muitíssimo elaboradas, por 12 níveis de construção. O resultado foi um monturo de 6 metros de depósitos arqueológicos descoberto por Seton Lloyd na década de 1930, e depois escavado por Nikolai Yakovlevich Merpert e Rauf Magornedovich Munchaev, dois dos colegas de Bader na Expedição soviética. A viagem de Lubbock de Umm Dabaghiyah para o norte não era de mais de 40 quilômetros, mas foi preciso quase um milênio para completá-la — período em que Maghzaliyah foi inteiramente abandonada e a população de Sotto declinou. Durante sua curta jornada, ele viu as distantes colinas de Sinjar, sulcadas por incontáveis ravinas, cada uma, marcada por sombras roxas escuras que se derretiam na névoa da noite. Enquanto andava para o norte, a árida estepe foi substituída por capim tenro com punhados de tulipas escarlate — a primeira das flores de primavera que logo iriam enfeitar a planície. Pássaros levantavam vôo freqüentemente, e Lubbock encontrou vários grupos de ovos sarapintados, postos simplesmente no chão, sem nenhum ninho em redor. Pegou alguns para comer e sentou-se para descansar entre as tulipas, lembrando as outras vezes em que se sentara entre flores na estepe, uma delas perto de Ohalo e outra diante de Abu Hureyra, durante suas viagens no oeste da Ásia. Lubbock agora senta-se num lugar inteiramente diferente e sente-se desconsolado; está dentro de um pequeno pátio em meio ao labirinto de muros e becos de adobe que constituem Yarim Tepe. A data é 6.400 a.C., aproximadamente na metade da história da cidade, e embora ele só tenha chegado alguns dias atrás, já está ávido por ir embora. A cidade pulula com adultos cuidando de tarefas domésticas; crianças correm de um lado para outro em bandos, cachorros futucam o lixo e cabras extraviadas entram e saem das casas. Oleiros, artesãos de pedra e tecelões trabalham;
bem perto dele, um morador de Yarim Tepe discute com um mercador itinerante o valor relativo da lã de cabra e lâminas de obsidiana. O barulho, a fumaça e o fedor de detritos humanos que tudo impregna fazem Lubbock desejar estar em outra parte nessa data na história humana. Lembra-se de Jokhov, no Ártico siberiano, onde poderia estar cercado por uma vastidão da natureza em vez da claustrofobia cultural de Yarim Tepe. Quem, pensa, preferiria ser agricultor morando em cidade em vez de caçador-coletor? Após ter viajado por todos os continentes do mundo, com exceção de um, sabe a resposta: quase todos no mundo préhistórico. E, no entanto, reflete, há uma certa excitação na cidade. É o que alguns arqueólogos descrevem como a civilização mediterrânea nascendo. Quando Lubbock anda por Yarim Tepe, os vasos de cerâmica sendo feitos e usados são impressionantes. Têm grande variedade de formas e tamanhos — grandes potes de armazenamento, jarras, tigelas, pratos, canecos e bandejas. Alguns foram decorados com figuras ou formas moldadas, mais ou menos como em Tell Solto; outros, pintados com simples motivos geométricos, bem diferentes dos complexos desenhos curvos vistos nos vasos de Umm Dabaghiyah e Sotto. Mas embora a cerâmica seja impressionante, é o trabalho em cobre que o impressiona mais. Vê apenas um anel no dedo de alguém e um pingente de cobre pendurado num pescoço; não descobre se o minério foi de fato fundido na cidade ou simplesmente martelado para ganhar forma. Yarim Tepe tem fácil o dobro do tamanho de Sotto, e continua a expandir-se. Campos de trigo e cevada cercam suas casas; grandes rebanhos de carneiros e cabras são levados todos os dias a pastar nas colinas próximas. Uma tal atividade agrícola proporciona excedentes para comerciar e sustentar os muitos artesãos da cidade. Durante sua excursão, Lubbock descobre que se cavaram estreitas valas para as fundações de uma nova casa de paredes de adobe. Ajuda a recolher vasos de cerâmica quebrados em volta da cidade e espalha seus fragmentos entre as recémerguidas paredes como base para o piso de reboco. Na maioria, as casas de Yarim Tepe são estruturas retangulares com vários aposentos, às vezes agrupadas para formar distintos complexos dentro da cidade. Algumas, porém, mostram-se bastante diferentes. Estas são redondas e com poucos metros de largura, paredes de barro e telhados em domo feitos de treliça de galhos e palha. Várias pontilham toda a cidade, seja dentro de outra construção ou no canto de um pátio. Lubbock
fica sabendo a função de pelo menos uma dessas estruturas quando a vê cercada por pessoas ávidas para observar partes desmembradas do corpo de uma moça serem passadas por uma fenda em seu telhado e postas no chão. Em seguida vem uma variedade de objetos que presumivelmente pertenceram à jovem: uma cesta de vime, fios de contas, ótimos vasos de pedra e cerâmica, buquês de flores, o corpo de um filhote de cabra. Olhando isso, Lubbock lembra-se do homem em Qermez Derc que jogara uma coleção de objetos semelhantes numa morada semi-aterrada durante sua destruição, e do homem enterrado com cabras em Mehrgarh. Uma vez que as partes do corpo e as posses são postas dentro desse túmulo, lacrase o telhado e a moça é deixada sozinha com os pais e avós, talvez à espera dos filhos dela. Mas para juntar-se à mãe eles terão de chegar à idade adulta, pois só então serão dignos desse desmembramento. Merpert e Munchaev descobriram os esqueletos de crianças novas enfiados em todo tipo de lugar — sob pisos, entre paredes, em recessos e fendas das casas. Alguns tinham sido enterrados com vasos de cerâmica e chifres de animais, mas a maioria foi simplesmente deixada, com pouca cerimônia. Raramente se escavaram esqueletos de adultos; os encontrados eram quase sempre partes desmembradas dentro de estruturas circulares, ou "tholoi", como os escavadores as descreveram. Eram em número demasiado pequeno para representar toda a população adulta, e assim parece provável um cemitério fora da cidade. Os que morriam crianças não tinham direito nem ao (hipotético) cemitério nem ao tholoi e eram mantidos eternamente dentro de casa — ou pelo menos até que os arqueólogos chegassem e os pusessem em caixas e museus. O tipo de arquitetura, economia, artefatos e sociedade de Yarim Tepe — sua cultura — era o mesmo que o encontrado em Tell Hassuna quando escavado por Seton Lloyd na década de 1940. O período Hassuna, aproximadamente 6.800-5.600 a.C., assinala o ponto decisivo da préhistória da Mesopotâmia. Deixa para trás o mundo de pequenas aldeias de caçadores-coletores e antecipa a expansão de cidades e comércio. A partir de 6.000 a.C., surgem assentamentos no centro e no sul da Mesopotâmia, com toda probabilidade criados por pessoas que se espalhavam de super-povoadas cidades do norte para uma paisagem esparsamente povoadas por caçadores-coletores. Embora semelhantes às de Hassuna, as cidades do sul adotaram seus estilos de cerâmica e arquitetura e são chamadas de comunidades de Samarra. Algumas são
bastante espetaculares, como Tell es-Sawwan — um assentamento no topo de um penhasco que dá para o rio Tigre, 110 quilômetros ao norte da Bagdá de hoje. Em 5.000 a.C., encontram-se cidades substanciais por todo o Crescente Fértil, a não ser no extremo sudoeste, onde as do vale do Jordão há muito tinham sido abandonadas. Nas terras que cercam o Tigre e o Eufrates, surgira uma nova cultura, combinando as culturas Hassuna e Samarra. Conhecido como período Halaf, dura todo um milênio, sustentado pelas mesmas safras que tinham sustentado agricultores pré-históricos desde os dias dejericó e Maghzaliyah: trigo e cevada, ervilha e lentilha. Mas ocorreu um fato-chave: o uso da irrigação artificial. Fora isso que possibilitara às pessoas explorar plenamente as ricas planícies aluviais do sul da Mesopotâmia. Embora os carneiros e cabras predominassem em Sawwan, o gado era importante, seu significado refletido em estatuetas de barro e cerâmica pintada com motivo de cabeça de touro. Como o acréscimo de ricas gorduras do leite a dietas humanas aumenta a taxa de nascimentos, o pastoreio de gado foi um dos fatores por trás do que parece ter sido uma explosão de população. Muitos novos assentamentos foram fundados durante o período Halaf, enquanto as cidades existentes se expandiam, muitas alcançando cinco vezes o tamanho de Yarim Tepe no seu auge. As cidades do Halaf partilhavam uma arquitetura e um estilo de cerâmica pintada característicos, alguns assentamentos abastecendo áreas vizinhas com seus produtos. Estatuetas femininas de barro pintadas, pingentes e timbres de pedra eram também partilhados. Os últimos, muitas vezes furados e com desenhos lineares, eram usados para fechar cestos e potes, sugerindo o movimento e armazenamento de artigos valiosos. Esses e materiais mais banais como comidas, cerâmica e pedra eram extensamente comerciados entre as cidades — o comércio era a raiz da prosperidade, inovação tecnológica e unidade cultural. A cultura Halaf assinala o fim da pré-história da Mesopotâmia. No período Uruk que se seguiu, encontram-se os primeiros traços da escrita. Dentro de mais mil anos, começam a aparecer as cidades da civilização mesopotâmica. Mas estas e as próprias cidades do Halaf não serão vistas por Lubbock — seu tempo na Mesopotâmia chega ao fim em Yarim Tepe em 6.400 a.C. Sentado em meio ao burburinho da cidade, John Lubbock pensa onde
mais ele esteve nessa data na história humana: não apenas em Jokhov, mas também no monturo de Natsushima, no cemitério de Oleneostrovski Mogilnik, na aldeia de Koster e dentro dos manguezais da Terra de Arnhem. Lembra agora sua espantosa jornada pelo sul da Ásia — de Muchchatla Chintamanu Gavi no LGM a Jeitun em 6.000 a.C., antes de viajar pela pré-história mesopotâmica. Foi de contínua descida física. Começou nas montanhas em 11.000 a.C. com os caçadores-coletores de Zawi Chemi Shanidar e continuou em sopés ondulantes com visitas às aldeias sedentárias de Qermez Dere e Nemrik; destas, descera mais ainda para as baixadas, para visitar o pequeno assentamento agrícola de Maghza-liyah e o sítio de caça especializado de Umm Dabaghiyah, que abastecia de carne as novas cidades. Finalmente chegou a Yarim Tepe, com seus especialistas em artesanato e constante fluxo de mercadores visitantes. Não mais de 5 mil anos se passaram entre as pessoas que caçavam gazelas e coletavam bolotas nas montanhas Zagros e aquelas à sua volta agora, com suas casas de vários aposentos e túmulos tholoi, sua cerâmica c trabalho em metal, campos de trigo e rebanhos de carneiros. Lubbock pergunta-se por que a Mesopotâmia foi cenário de tão rápido crescimento econômico e transformação cultural. Os fatores climáticos e ambientais são evidentemente chave — a presença de cereais selvagens, cabras e carneiros, um Jovem Dryas relativamente brando (se houve afinal), aquecimento global em 9.600 a.C., férteis solos aluviais em torno do Tigre e do Eufrates. E, no entanto, esses fatores só se tornaram importantes no "surgimento da civilização" devido a atos e escolhas particulares feitos por pessoas que tratavam de suas vidas diárias. Os habitantes de Zawi Chemi Shanidar, Qermez Dere e Nemrik tinham sido tão responsáveis por deitar suas fundações quanto foram as que viveram em Maghzaliyah, Tell Sotto e Yarim Tepe. E nenhuma delas tinha qualquer conhecimento prévio do que estava para vir. A história, pensa Lubbock, é um extraordinário emaranhado de causas e conseqüências, de engenhosidade humana e completo acaso, de mudança ambiental e resposta humana. A compreensão exige o conhecimento de fatos locais e do mundo mais vasto cm que ocorrem esses fatos. Ninguém em 9.600 a.C. poderia ter sabido para onde ia a história quando chegou o surto final de aquecimento global e começou o mundo do Neolítico.
ÁFRICA
46 Peixe Assado à Margem do Nilo Caçadores-coletores do norte da África e do vale do Nilo, 20.000 – 11.000 a.C. Uma menina pequena nua engatinha no chão de areia. Cai, rasteja e torna a levantar-se insegura sob os aplausos dos adultos sentados à sua volta. John Lubbock está entre eles, também gostando das risadas e passos incertos dela. É novembro num ano perto do LGM, e ele visita um grupo de famílias em seu acampamento em Wadi Kubbaniya, um vale tributário do Nilo. As choupanas de palha, mós, tapetes de palha e lareiras ficam numa duna abaixo de um penhasco de calcário. Adiante estende-se o deserto do Saara para oeste — muito mais extenso e árido que hoje. O acampamento dá para um punhado de árvores em meio a um mosaico de arbustos, juncos, poças e os canais trançados do rio Nilo. O ar cheira a fumaça de lenha, camomila e peixe assando. A menina vem parar diante de Lubbock e parece fitá-lo nos olhos. Tem os cabelos pretíssimos e a pele marrom-chocolate; salpicos de areia cobrem seus lábios e nariz de onde ela caiu. Ele sorri e o rosto dela torna-se um sorriso de covinhas — estranho, porque a menina não pode, claro, vê-lo. Quando ela se rira e corre para a mãe, um pedaço de fezes marrom-claro cai de suas nádegas, aterrissando bem entre os pés dele. Um homem curva-se e dá um piparote no tolete com o dedo, mandando-o a girar pelo ar para dentro do fogo. O detrito chia e logo fica negro — um crucial indício arqueológico em formação. A última viagem continental de Lubbock começou algumas centenas de anos antes, dentro de uma caverna na costa norte-africana. Em 20.000 a.C., ele despertara e rira uma larga planície costeira, coberta de densa mata que se tornara mato baixo e depois pântano, antes de encontrar o mar Mediterrâneo. Um punhado de armas de caça, alguns couros e os restos de uma lareira ainda quente cercavam-no no chão, todos atrás de uma pedra que atuava como um vital quebra-vento. Ele subiu os rochedos acima da caverna; olhando para o sul, em direção ao Saara, viu um trecho de montanhas baixas e acidentadas; ao norte, um grupo de caçadorescoletores que acabavam de sair de entre as árvores embaixo da caverna.
Carregavam a carcaça de um carneiro selvagem, de chifres em curvas extravagantes e pêlo marrom-escuro. Lubbock ficou os meses seguintes com as três famílias que passavam o inverno nessa caverna. Na maior parte dos dias, saía com os homens para caçar carneiro selvagem, um tipo hoje conhecido como carneiro berbere, ou mouflon à manchettes. De vez em quando cavavam gazelas no mato baixo; tocaiavam gado selvagem sempre que encontravam seus rastros entre as árvores. Quando não caçava, Lubbock acompanhava as mulheres até o rio próximo, e em raras ocasiões à praia distante para catar mariscos e algas marinhas. Restos de todas essas atividades foram deixados dentro da caverna, junto com instrumentos abandonados e detritos de fabricação e conserto. Os ossos, cestos, conchas, tapetes, cinzas e lascas de pedra foram cobertos pelo lixo deixado por ocupantes posteriores, areia trazida pelo vento e corpos decompostos, material de ninho e restos de comida de pássaros e animais que também se abrigaram entre suas paredes. O desmoronamento do teto acrescentou-se ao depósito acumulado. Uma vez enterrado, o material deixado pelos anfitriões inconscientes de Lubbock em 20.000 a.C. apodreceram, decompuseram-se e foram misturados com detritos anteriores e posteriores por animais cavadores. O que sobreviveu acabou vindo à luz em 1973 d.C., quando se fizeram escavações no que se tornara conhecido como Caverna de Tamar Hat na Argélia de hoje. Vinte anos antes, uma caverna norte-africana muito maior fora escavada pelo arqueólogo de Cambridge Charles McBurney nas encostas de Gebel el-Akhdar — "Montanha Verde" — no nordeste da Líbia. Em sua primeira visita em 1948, McBurney descrevera a enorme abertura como "visivelmente intimidante", o imenso teto abobadado da caverna minimizando o acampamento dentro dela. Lubbock teve uma reação semelhante em 20.000 a.C. quando, após viajar de Tamar Hat para o leste, olhou as encostas de Gebel el-Akhdar da planície costeira e viu a conspícua entrada escura na rocha. O mato baixo verde na encosta não tinha a luxuriância que McBurney encontraria e o deserto ao sul era ainda mais inóspito que o da Líbia hoje. Mas a caverna era igualmente grande e, como o nível do mar no LGM estava no ponto baixo do LGM, dava para uma extensa planície costeira. Não surpreende que a caverna em Haua Fleah fosse tão atraente para os caçadores-coletores na pré-história quanto foi para McBurney como sítio de escavação.
Como em Tamar Hat, Lubbock ficou com os ocupantes de Haua Fteah tempo suficiente para descobrir como eles viviam. Isso não exigiu mais que uma breve estada, pois o estilo de vida deles pouco diferia daquele de toda a costa norte-africana, na dependência do carneiro berbere para carne, gordura e couro. Após deixar Haua Fteah, Lubbock continuou sua viagem para leste até alcançar o delta do Nilo — um vasto espaço de lagoas, pântanos e mato baixo, dividido por uma teia de riachos. Espirais de fumaça no ar vespertino disseram-lhe que caçadores-coletores se espalhavam pelas muitas ilhas minúsculas do delta. Tomando emprestada uma canoa que estava à deriva nos baixios, começou a remar rio acima. Em 20.000 a.C., o rio Nilo era muito diferente do que hoje conhecemos. Em vez de um único canal largo e sinuoso, Lubbock descobriu que se ramificava em vários pequenos riachos que serpeavam lentamente por uma planície aluvial. Muitas vezes mal parecia sequer água a correr. Os pequenos canais juntavam-se quando o rio passava por gargantas de penhascos a pique ou enormes dunas, e depois tornavam a dividir-se. Alguns sumiam completamente; outros terminavam em poços bloqueados por montes de aluvião e areia. Gado selvagem e alcéfalos pastavam entre os juncos, arbustos e árvores espinhosas que davam à beira do rio. Uma vez Lubbock passou por crocodilos que descansavam num banco de areia; lavandeiras e narcejas examinavam os baixios, e bandos de codornizes e garças passavam voando. Mas a natureza, em geral, era bastante pobre em comparação com a que Lubbock vira nas viagens fluviais em outras partes do mundo préhistórico. Além disso, acabava abruptamente onde começava o desolado deserto, de cada lado do estreito corredor da planície aluvial. Lubbock passou por muitos acampamentos pequenos de caçadorescoletores e parou para vê-los pescando em canoas e caçando aves no meio dos juncos à beira do rio. Viajara 500 quilômetros desde o delta quando fez uma visita prolongada a um acampamento; ficava na junção do Nilo com seu tributário oeste de Wadi Kubbaniya. Já era julho e o rio começara sua enchente anual, as águas inchadas pela chuva nas montanhas muito ao sul. Várias famílias achavam-se em meio ao trabalho de restabelecer seu acampamento sazonal numa duna aninhada entre os rochedos de calcário do wadi. Algumas trabalhavam dando os últimos toques no pequeno abrigo de palha construído no cume da duna; outras
varriam o lixo do ano anterior deixado no acampamento. As mós ovais deixadas atrás estavam quase inteiramente sepultadas pela areia soprada pelo vento. Lubbock ajudou um jovem a desenterrá-las. Os que faziam o acampamento tinham todos a pele escura e boa constituição física, com roupas direitas feitas de couro. Dois dos homens tinham deficiências físicas, um capengando de uma perna quebrada e o outro com o braço duro cheio de sérias cicatrizes. Nenhum indivíduo parecia assumir o papel de chefe, e nenhuma família parecia ter uma choupana maior ou mais posses que qualquer outra. Uns poucos usavam colares feitos de contas talhadas de casca de ovo de avestruz; outros tinham espalhado tinta vermelha na testa e bochechas. Esses enfeites, porém, eram por vaidade, não para denotar status. Lubbock logo descobriu por que o acampamento se situava na própria duna. Poucos dias depois de sua chegada, a enchente anual do Nilo já quase chegara ao cume; com um imenso volume de água, o rio rompera as margens, formando uma rede de poços interligados entre as dunas. Foi o sinal para grande atividade no acampamento: era preciso colher plantas antes que ficassem inteiramente submersas; acumularam-se pilhas de lenha; fizeram-se grades com grossos juncos; cestos de palha trançada. Enquanto isso, as crianças continuavam em suas correrias, indo e vindo dos poços, evidentemente atentas a algum acontecimento muito esperado. Lubbock sentou-se sob um tamariz, observando a meninada excitada e os adultos a trabalhar. Mais uma vez, faziam-se microlitos no mundo pré-histórico. As lâminas de pedra eram lascadas numa ou nas duas bordas e depois encaixadas em cabos para fazer facas; algumas eram usadas como pontas de flecha feitas de junco, e como farpas em lanças de madeira — mais uma ocorrência da tecnologia de encaixe, embora uma das primeiras que Lubbock vira. Também se usava o sílex, mas evidentemente era muito valioso, porque não encontrado nas vizinhanças imediatas do wadi. Os únicos nódulos disponíveis eram trazidos para a duna em bolsas de couro e trabalhados com imenso cuidado, para não desperdiçar nenhuma lasca. Quando se cansou de observar as rajadas de areia pelo wadi, Lubbock leu seu exemplar de Tempos pré-históricos. Embora o sítio de Wadi Kubbaniya não fosse conhecido em 1865, seu xará vitoriano escrevera sobre a inundação anual do Nilo e o significado para os arqueólogos da profundidade do aluvião depositado cada ano. Muito antes da invenção da
datação por radiocarbono, a taxa de sedimentação parecia um meio ideal de avaliar a idade de artefatos enterrados no chão. O autor citava uma pesquisa de um certo Sr. Homer, que usara a profundidade da sedimentação acumulada em comparação com antigos monumentos egípcios, como o obelisco em Heliópolis, que então se acreditava datar de 2.300 a.C., para avaliar que 3,5 polegadas [8,89 cm] se acumulavam a cada século. O Sr. Homer cavara poços então e descobrira fragmentos de cerâmica 39 pés [11,89 m] abaixo da superfície, o que, calculou, indicava uma idade de 13.000 a.C. O moderno John Lubbock não se surpreendeu com o fato de seu xará vitoriano apresentar em seguida "vários motivos que tornam os cálculos muito duvidosos". Estavam de fato inteiramente errados em relação à cerâmica, que hoje se sabe só apareceu no Nilo após 5.000 a.C. Um espadanar na água acordou Lubbock de um cochilo vespertino à beira d’água. Ele olhou para baixo e viu um cardume de cascudos debatendo-se nos baixios. Fechavam-se em nós e usavam as caudas para estapear a cara uns dos outros — sua maneira de parecer sexy e atrair companheira. Eram os primeiros do grande número de cascudos que chegavam aos poços de Wadi Kubbaniya lodo ano para reproduzir-se. Com os adultos e crianças observando, continuou o acasalamento até cada centímetro de alga e grande parte da areia ficarem cobertos de ova reluzente. A essa altura, os peixes estavam exaustos, pendendo bambos na água. Era hora de começar a pesca. Lubbock já pescara bastante em suas viagens — usando veneno no Amazonas em 10.500 a.C., lanceando salmão em Namu em 6.500 a.C. e ao luar perto de Tybrind Vig em 4.400 a.C. Essa nova experiência ictiológica era tão produtiva quanto qualquer das outras, mas muito menos exigente em esforço e habilidade. O povo de Wadi Kubbaniya simplesmente vadeava com água pelos tornozelos, pegava os peixes com cestos e jogava-os na margem — os cestos protegendo as mãos das espinhas. As crianças esperavam com avidez pelos peixes, que muitas vezes tinham mais de 1 metro de comprimento: cada um era morto a pauladas. Ao anoitecer, quando todos os peixes não apanhados já haviam voltado para águas mais profundas e seguras, Lubbock sentou-se na margem e ajudou no estripamento da presa. As grades de junco logo estavam carregadas de peixe; eram colocadas sobre fogueiras para defumar, e;
portanto, preservar, a maior parte. Nessa noite ele juntou-se à primeira "festa do peixe" da temporada, comido com bolos parecendo pão, cozidos sobre pedras quentes em torno da fogueira do acampamento. Quando a lua surgiu e tiveram inícios os cantos e danças, deitou-se para dormir e pensou nos prazeres da vida no vale do Nilo no LGM. Lubbock voltou aos poços com os anfitriões no dia seguinte e no outro, quando chegaram uma segunda e uma terceira onda de peixes para reproduzir-se. A essa altura, porém, a novidade de pegar, dar cacetadas e estripar já passara para as crianças, que foram brincar em outra parte. A ajuda delas não fazia falta — o número de peixes diminuíra substancialmente, pois a curta explosão de reprodução já quase terminara. Com o passar das semanas, os cascudos foram substituídos por enguias que vinham banquetear-se com a ova e os peixinhos assim que chocavam. O povo de Wadi Kubbaniya tentava pegá-las, talvez interessados em preservar seu futuro abastecimento de peixe. Enquanto as enguias escorregavam pelos dedos de Lubbock, homens e mulheres do acampamento enrolavam em palha peixe defumado e secado ao sol, para guardá-lo em cestos e comê-los nos dias magros futuros. Embora o acampamento estivesse a salvo mesmo dos mais altos níveis da enchente, estava exposto ao quase constante vento que soprava do deserto ocidental; todos e tudo viviam freqüentemente cobertos por uma fina camada de areia. Quando o vento era forte, Lubbock sentava-se atrás de um frágil abrigo na duna e via a areia acumular-se em torno dos tamarizes e acácias que se espalhavam pelos lados do wadi; outros faziam o mesmo, quebrando pequenos seixos de jaspe negro. No fim do verão, os fortes ventos tinham amainado e as águas da enchente começado a baixar. Lubbock decidiu favorecer seu interesse pela cozinha em Wadi Kubbaniya, trabalhando com as mulheres para descobrir que plantas eram coletadas e como eram transformadas em comida. Como preparação, pegou algumas lascas de pedra rejeitadas no chão de um acampamento para transformar um galho seco num pau de cavar, levemente semelhante aos usados pelas mulheres aonde quer que fossem. Na maioria dos dias, elas partiam com cestos vazios e bebês amarrados às costas para o recém-aparecido terreno pantanoso que agora bordejava os leitos de juncos e a restante água dos poços. Lubbock teve muitas aulas em coleta de plantas e preparação de comida: em algumas ocasiões, meteu-se nos poços para colher botões de flor de lírio d'água; em outras,
ajudou a arrancar raízes de taboa e papiro e depois colher sementes de camomila. Vários tipos de arbusto à altura dos joelhos forneciam folhas, ou sementes, ou raízes comestíveis. Uma planta, contudo, dominava a época da colheita. Tinha apenas alguns centímetros de altura, e flores tão roxas que formavam um tapete no chão. Conhecida hoje como capim-nogueira roxo selvagem, fora descrita como "a pior erva daninha do mundo", devido à sua capacidade de invadir e proliferar em campos irrigados. Mas para o povo de Wadi Kubbaniya no LGM, era a planta comestível mais valiosa de todas. Em seu primeiro encontro com essa planta, Lubbock ajoelhou-se com as mulheres e copiou as ações delas quando enfiavam os paus de cavar no chão para revolver o solo lamacento. Logo abaixo da superfície, havia um denso tapete de raízes inchadas interligadas, cada tubérculo não tinha mais de alguns centímetros de comprimento. Alguns eram negros e duros; estes eram desenterrados e jogados fora; o resto era marrom-claro, arrancado do chão e jogado dentro das cestas. As mulheres cavavam continuamente durante várias horas, passando aos poucos de um trato de capim-nogueira para o seguinte. Os tubérculos eram tão densos que muitos ficavam no chão, o futuro deles melhorado pela retirada de tubérculos velhos que tinham obstruído o solo. Uma vez cheios os cestos, as mulheres sentavam-se à beira do poço e lavavam a lama dos corpos e dos tubérculos antes de voltarem ao acampamento. Lubbock testemunhou então o laborioso processo de transformar nodoso capim-nogueira em bolos de chapa — testando a mão em cada uma das etapas. Primeiro, os tubérculos eram postos sobre pedras quentes entre as brasas da fogueira. Após alguns minutos de cozimento, a pele começava a soltar-se e podia ser arrancada com a mão. Em seguida, os tubérculos já quebradiços eram moídos e reduzidos a farinha, embora muitos pedaços da pele e fios de fibra dura permanecessem. Estes eram retirados com peneiras feitas de junco em fina trama, e a farinha pura recolhida em sacos de couro embaixo. Ainda não estava pronta para cozinhar; o povo de Wadi Kubbaniya sabia que teria gosto acre e perturbaria o estômago. E assim Lubbock teve de seguir as mulheres à uma certa distância até a água corrente, onde a farinha foi repetidas vezes lavada, enchendo-se os sacos, mexendo o conteúdo, deixando descansar e depois despejando com cuidado a água fora. Isso retirava as toxinas contidas na farinha. Finalmente, as mulheres
voltavam para o acampamento e espremiam punhados da papa restante em pequenos bolos redondos, que eram postos para cozinhar sobre as pedras quentes. A papa não era toda cozida desse jeito. Guardava-se um pouco para as crianças pequenas, sobretudo uma bebezinha que só há pouco deixara de ser amamentada no seio da mãe As mós estavam agora em uso constante para preparar sementes. Uma quebrou-se. Para obter uma substituição, dois homens foram ao penhasco de calcário atrás da duna e passaram um dia lascando grandes lajes em formas ovais, observadas de perto por Lubbock. Também cataram seixos para usá-las como pedras de esfregar e triturar. Cada laje era furada e alisada para torná-la mais fácil de segurar, embora a maioria ficasse com a forma bastante irregular. Com exceção de uma, todas as mós semipreparadas foram deixadas no penhasco para uso futuro; a levada para o acampamento foi ainda mais aparada na forma especificada pelas mulheres que a tinham pedido. Lubbock também foi caçar com os homens. A principal presa deles eram os gansos e patos que chegavam nos meses de inverno. Eram tocaiados dos juncos e abatidos com arco e flecha. Às vezes os caçadores deixavam o acampamento ao crepúsculo e esperavam emboscados num poço distante o gado selvagem e os alcéfalos, e os acertavam com lanças de ponta de pedra. Não se podia caçar as gazelas desse jeito; elas tiram toda a umidade que precisam apenas da vegetação, e assim tinham de ser perseguidas em meio ao mato baixo da planície aluvial e até a borda do próprio deserto. Os abates, porém, eram raros, e essas duas ou três viagens de caça pareceram ser mais para ganhar alguma liberdade em relação às mulheres do que para contribuir com o estoque de comida. A essa altura — novembro — as águas do Nilo já quase tinham retornado ao seu nível mais baixo. Os poços não mais se ligavam e eram meras poças rasas. Isso oferecia outra oportunidade de presa fácil, pois muitos peixes ficavam encalhados e podiam mais uma vez ser apanhados com as mãos enquanto nadavam desvalidos em círculos. Uns poucos ainda conseguiam escapar para o rio Nilo. Em algumas ocasiões, Lubbock deixava o acampamento e via os cascudos que se debatiam no seco indo de poço em poço até chegar ao rio — são um dos poucos peixes que tiram oxigênio do ar. Em poucos dias, os poços desapareceram inteiramente; os ocos entre as dunas então secavam, rachavam-se e eram cobertos de areia, até o Nilo
voltar a inundar suas margens. Sentado no acampamento de Wadi Kubbaniya, vendo assarem peixes recheados de camomila sobre as pedras quentes da fogueira, e a menininha a engatinhar de pessoa em pessoa, às vezes deixando atrás suas fezes para serem jogadas nas brasas, Lubbock sabia que chegara a hora de continuar sua jornada pré-histórica. Gordon Hillman, do Instituto de Arqueologia de Londres e deão de acqueobotânica, identificou as fezes de bebê quando estudou os restos de plantas escavados em Wadi Kubbaniya. Para ele, pareciam minúsculos fragmentos, negros por fora e marrom por dentro. Alguns tinham textura muito fina, semelhante ao barro, que, para seu olho de experto, tinham evidentemente sido um dia uma "papa de planta finamente triturada. Ele teve de decidir se aqueles torrões queimados vinham de uma planta acidentalmente jogada numa fogueira durante a preparação, de vômito ou fezes de um cachorro domesticado ou de um ser humano. Escolheu o último porque um pedaço tinha as marcas da superfície interna de um cólon. A fina textura da antiga comida também sugeria que o doador não fora canino. Hillman sabia que muitas histórias de caçadores-coletores recentes contam que as crianças defecam no lugar onde estão sempre que surge a necessidade, as fezes freqüentemente lançadas nas fogueiras do acampamento. Também encontrou areia dentro das fezes, como seria de esperar de bebês que passam o tempo arrastando-se no chão. A jornada daquele pequeno torrão marrom de uma fogueira em Wadi Kub-baniya em 20.000 a.C. a uma lâmina sob o microscópio de Hillman deveu-se ao admirável trabalho da Expedição Pré-histórica Combinada no vale do Nilo. Chefiada por Fred Wendorf e Angela Close, da Universidade Metodista do Sul, Texas, e Romuald Schild, da Academia de Ciências da Polônia, fez uma notável campanha de pesquisa e escavação, que transformou nosso conhecimento da pré-história norteafricana. Começou em 1960, quando o governo egípcio decidiu construir uma nova represa em Assuã que inundasse uma extensa área ao sul. A Expedição Pré-histórica Combinada, trabalhando com a Pesquisa Geológica do Egito, foi um dos vários esforços internacionais para explorar a arqueologia da região ameaçada. Em 1967, voltou suas atenções para o vale do Nilo ao norte de Assuã, e quase imediatamente descobriu densos conjuntos de pedra lascada e mós em antigas dunas na junção de Wadi Kubbaniya com o Nilo. Mas com a eclosão da Guerra Árabe-Israelense e
a continuação do turbilhão político, só em 1978 Wendorf e seus colegas tiveram a oportunidade de escavar esses sítios. Fizeram-no até 1984, descobrindo que alguns tinham provavelmente mais de meio milhão de anos, e outros datavam do LGM. Os sítios do LGM eram os mais numerosos, e de longe os mais bem preservados. Localizavam-se principalmente nas próprias dunas, com uns poucos encontrados em solos de aluvião da planície aluvial. A maioria continha dezenas de milhares de artefatos de pedra lascada, evidentemente acumulados de muitas visitas aos valiosos sítios de acampamento num período estimado de 2 mil anos. Com meticulosa escavação e peneiramento de vastas quantidades de areia, muitos restos de plantas, espinhas de peixes, ossos de animais, cascas de ovos de avestruz e mós foram recuperados. Vários anos de estudo de muitos especialistas levaram à identificação de espécies particulares de plantas e peixes, e à reconstituição das práticas específicas de caça, pesca e coleta que Lubbock desfrutara. Os arqueólogos não apenas fizeram suas meticulosas análises dos próprios restos, mas procuraram modernos estudos do, digamos, comportamento de reprodução dos cascudos, do uso de tubérculos por caçadores-coletores vivos e do regime de enchentes do Nilo. Foi tal a extensão do trabalho que a publicação só se deu em 1989 — mais de vinte anos após a descoberta inicial desses sítios, que proporcionam um quadro tão detalhado da vida no LGM. Embora as dunas de Wadi Kubbaniya fossem abandonadas como acampamentos anuais após 19.000 a.C., quase certamente porque a areia soprada pelo vento bloqueara a entrada do wadi, um estilo de vida semelhante continuou por todo o vale do Nilo até o fim do período pleistocênico. A Expedição Pré-histórica Combinada descobriu muitos grupos de instrumentos de pedra nas dunas e na planície aluvial do Nilo. Quase todos os instrumentos tinham sido feitos em pequenas lâminas, como os de Wadi Kubbaniya. Mas as técnicas específicas de leitura e os microlitos variavam segundo os lugares e datas. Isso sugeria que existiram no vale várias tradições culturais localizadas — famílias, e grupos de famílias, tinham criado suas próprias formas de fazer instrumentos e passaram-nas de geração em geração. Muitos dos sítios tinham mós, vários tinham ossos de animais e restos de plantas, uns poucos tinham túmulos. Sempre que se podia estabelecer os padrões dietários, pareciam semelhantes aos de Wadi Kubbaniya, com ênfase na pesca em águas de enchente, na caça a
alcéfalos e na coleta de uma ampla gama de plantas. Em conseqüência, essa economia, tão adequada ao regime do rio, parece ter permanecido imutada muito depois do LGM — continuando, na verdade, até 12.500 a.C., quando se sentiram pela primeira vez os dramáticos efeitos do interestadial glacial tardio. Desde 20.000 a.C., o rio manteve sua aparência entrançada, porque transportava muito menos água que hoje — talvez não mais que 10 ou 20% do fluxo atual. O Nilo moderno é alimentado por dois rios principais: o Nilo Branco e o Nilo Azul. O primeiro nasce no moderno Burundi e entra no lago Vitória, principal reservatório do próprio Nilo. Entre 20.000 e 12.500 a.C., foi bloqueado por dunas no sul do Sudão e não contribuiu com água alguma para o rio principal. A estação entre 20.000 e 12.500 a.C. era muito mais curta que na de hoje, e assim havia muito menos água para o rio Nilo transportar. Temperaturas mais frias, junto com a presença mais de matagais que de árvores e arbustos nas montanhas, levaram a muito mais sedimentos do que ocorre hoje. Esses sedimentos se depositavam no leito do rio, de modo que a inundação do Nilo foi aos poucos subindo em altura, chegando até 30 metros acima do que é no presente. Sem o fluxo constante do Nilo Branco, é provável que a subida e descida anuais do rio tenham sido ainda maiores que hoje, pois o seu nível dependia inteiramente da chuva muitíssimo sazonal nas montanhas do leste africano. Entre 12.700 e 10.800 a.C., porém, tudo mudou, pois o interestadial glacial tardio trouxe um súbito aumento de temperatura e chuva. As montanhas do leste africano cobriram-se de mata e, portanto, a erosão existente e a carga de sedimentos levada pelo rio foram acentuadamente reduzidas. Ao mesmo tempo, a quantidade das águas aumentou muito, em parte devido às novas chuvas e em parte porque o Nilo Branco rompeu sua barreira de dunas. Em vez de continuar a aumentar sua planície aluvial, o Nilo começou a fazer o contrário: cortar pelo meio de seus próprios sedimentos, os que vinha depositando desde o LGM. Isso teve conseqüências desastrosas para os habitantes do vale. O excesso de enchentes de 12.000 a.C. depositou aluvião em elevações muito mais altas que antes, e teve início um período de turbilhão, durante o qual o rio foi descrito como o "Nilo Louco". Uma vasta quantidade de pântanos, com suas plantas comestíveis e matas de planície aluvial em que o alcéfalo e o gado tinham pastado, se perdeu completamente. E
assim continuou, à medida que o rio se tornava um único canal de águas rápidas, com uma planície aluvial muito mais estreita que antes. Parte dos habitantes do vale, senão todos, aparentemente preferiu lutar pelos locais de acampamento restantes e os terrenos de pesca, coleta e caça que sobreviveram. No início dos anos 1960, Wendorf e seus colegas escavaram um cemitério conhecido como Jebel Sahaba, localizado 300 quilômetros ao sul de Wadi Kubbaniya. Data do período do Nilo Louco, entre 13.000 e 11.000 a.C. De 59 pessoas enterradas ali, 24 tinham visivelmente sofrido morte violenta, devido à presença de pontas de flecha e severas marcas de corte encontrados nos crânios e ossos. Homens, mulheres e crianças tinham sido mortos. Como atos violentos muitas vezes não deixam vestígios no esqueleto, é provável que muitos outros tenham tido um fim brutal. Continua incerto se esse cemitério resultou do catastrófico massacre de um grupo por outro ou foi uma acumulação gradual de corpos durante um período de violência endêmica. Mas os habitantes do vale do Nilo parecem jamais ter estado inteiramente em paz. Quando escavava Wadi Kubbaniya, Wendorf descobriu um túmulo datado de cerca de 21.000 a.C. — um rapaz, de vinte a vinte e cinco anos, que tinha uma constituição física esguia e musculosa. Morrera evidentemente de flechas enterradas no abdome, porque se encontraram duas lâminas pontudas dentro da pélvis. Tivera o braço direito fraturado mais ou menos aos 15 anos, muito provavelmente defendendo-se de um ataque, e o esquerdo tinha um ferimento parcialmente curado. A vida em Wadi Kubbaniya não podia, portanto, ter sido exatamente tão idílica quanto pensara Lubbock: seu povo tinha de usar a força para obter acesso às dunas e poços que pululavam de peixes em reprodução. Entre 12.000 e 7.000 a.C., os sítios arqueológicos se tornam extremamente raros em todo o vale do Nilo. Ocorreu um quase completo despovoamento — quase certamente porque a mortalidade ultrapassava as taxas de natalidade, devido ao fato de os Desertos Oriental e Ocidental continuarem completamente secos e inóspitos. Os poucos sítios conhecidos sugerem que grupos viúvos se tornaram dependentes apenas da caça de alcéfalos e gado selvagem, pois não há restos de mós e poucos traços de aves de inverno ou peixes. Angela Close, que estudou centenas de sítios do vale do Nilo e muitos milhares de instrumentos de pedra, usou apenas três palavras para resumir o impacto do aquecimento global sobre
os habitantes do vale do Nilo: "Uma rematada tragédia." Lubbock deixou o Wadi Kubbaniya logo após o LGM. Continuou a viajar de canoa rio acima, inteiramente inocente da catástrofe por vir. Quando ocorreram as enchentes de 12.500 a.C. e a chacina de Jebel Sahaba, estava longe nos extremos sul do continente. Ao retornar ao vale do Nilo em 5.000 a.C., vai achá-lo densamente povoado, com as pessoas mais uma vez dependendo do cultivo de plantas em suas planícies aluviais. Serão os agricultores que deitarão as bases da civilização egípcia.
47 Na Colina Lukenya O desenvolvimento das paisagens e faunas do leste africano após 20.000 a.C. Visto nos trópicos, o gelo assume uma beleza absoluta quando aparece flutuando acima da savana, em desafio às leis da natureza. É o Kilimanjaro no LGM, exatamente como o Kilimanjaro hoje. Lubbock não esperara ficar tão fascinado quando subia ao topo da Colina Lukenya, que hoje fica no sul do Quênia. Mas o céu do início da manhã tem uma rara claridade, e um vago pico distante — inteiramente indiferente à sua latitude — emerge das nuvens que se dissolvem em torno da sua base. O Monte Kilimanjaro tem dois picos, conhecidos como Kibo e Mawenzi. Em 20.000 a.C., os dois estavam cobertos de gelo, que chegava mil metros abaixo do que chega hoje — seu passado assinalado por monturos de pedra e sedimentos deixados atrás quando as geleiras recuaram para o diminuto tamanho atual. Agora, apenas o pico de Kibo é coberto de gelo; se nosso aquecimento global continuar, esse gelo também terá desaparecido nos próximos vinte anos. Devido a essa perda próxima, o que se chamou de "segredo do Kilimanjaro" foi extraído de seu gelo bem a tempo — um registro de mudança climática tropical entre 10.000 a.C. e os dias de hoje. Isso foi deduzido exatamente pelos mesmos métodos que os cientistas usam para a análise de núcleos da Groenlândia e do Ártico: calculando as taxas de mudança de isótopos de oxigênio, que são um "substituto" da mudança de temperatura c precipitação pluvial. Uma equipe chefiada por Lonnie Thompson, da Universidade do Estado de Ohio, perfurou seis núcleos do cume do Kilimanjaro em fevereiro de 2.000 e publicou seus resultados em outubro de 2002. A descoberta de importância-chave para esta história é que, entre 10.000 e 5.000 a.C., o clima africano era muito mais úmido e quente do que hoje. Isso confirmou os indícios de outras fontes e é explicado pela redução na intensidade da monção africana; esta, por sua vez, resultou de uma leve mudança na órbita da Terra em torno do Sol. Lonnie e seus colegas também confirmaram indícios de uma acentuada seca ocorrida em 6.300
a.C., que durou algumas décadas, junto com duas outras em tempos mais recentes, porém ainda pré-históricos. Uma delas ocorreu por volta de 2.000 a.C. e foi relacionada a grandes perturbações nas civilizações mesopotâmia e do vale do Indus. Embora se desconfiasse antes de tais estiagens, o núcleo de gelo do Kilimanjaro ofereceu um novo nível de detalhes da mudança de climas nos trópicos — foi o primeiro, e muito provavelmenle o último, registro de clima em núcleo de gelo da África. Infelizmente, não remonta a 20.000 a.C., data em que começa este capítulo com Lubbock de pé na Colina Lukenya. A Colina Lukenya fica 200 quilômetros a noroeste do Kilimanjaro. Dois rapazes estão de pé ao lado de Lubbock, momentaneamente paralisados pela visão de gelo flutuante, e esquecem sua tarefa de procurar caça. Altos e magros, usam tangas que combinam em cor com o mato pardo. Um traz uma lança com ponta de obsidiana. Voltando-se para a planície em volta, dá uma cotovelada no companheiro e aponta um rebanho de pequenos antílopes que se aproxima. Com Lubbock atrás, os dois se viram e começam a atravessar as rochas e o espinhoso mato baixo, voltando ao seu acampamento — uma gruta embaixo de um enorme rochedo empoleirado em cima de outro na base da colina. Um galho retorcido arde no meio do piso da gruta, em torno da qual dez caçadores-coletores se acocoram, sentam e deitam, alguns usando pequenos tapetes de capim. As crianças usam apenas fios de contas no pescoço e na cintura; os adultos, pouco mais. Embora fortes e saudáveis, os de meia-idade parecem velhos, os corpos devastados pelos rigores da vida no leste africano no LGM. Cabaças e aljavas de flechas pendem de tarugos enfiados em fendas na parede da gruta. Após ter visitado muitas cavernas de caçadores-coletores antes, Lubbock esperava que o ar fosse rançoso e fumacento — mas cheira a gostoso jasmim, pois algumas folhas acabaram de ser trituradas numa pequena gamela. A notícia dada pelos homens é recebida com excitação. Verificam-se as lanças, um homem apara duas minúsculas lascas de uma ponta de pedra, e outro aplaina um ilusório calombo da haste de madeira da sua lança, que poderia sem isso desviar o seu vôo. Facas feitas com cabos de madeira e microlitos são enfiadas na cinta; novas linhas vermelhas pintadas nas faces por dedos passados numa paleta de tinta ocre. Feito isso, os caçadores dispersam-se para espalhar-se pela borda da colina Lukenya e as encostas do seu oeste imediato. Os animais que se aproximam terão de
passar por essa armadilha natural e os caçadores têm certeza de sucesso. Lubbock fica com um deles, que se coloca entre um capão de árvores. À sua volta, o chão está juncado de lascas de pedra e alguns fragmentos de osso esbranquiçados — a encosta foi evidentemente usada para emboscada e esquartejamento muitas vezes antes. Os inocentes animais entram no passo. Farejam os seres humanos, param e espalham-se em pânico quando um homem se ergue para atirar sua lança. Três animais correm diretamente na trilha dos caçadores à espera; dois tombam mortos, um é ferido e escapa. As carcaças são arrastadas para o lugar de onde Lubbock observou a ação. São estripadas e depois jogadas nos ombros dos caçadores, pequenas o suficiente para serem carregadas inteiras. Lubbock examina-as de perto, mas não identifica a espécie. Na verdade, mesmo que pudesse diferenciar entre gnus e alcéfalos, entre gazela Thompson, dik-dik, oribi, steinbok e duiker, ainda não conseguiria fazê-lo, pois os animais agora transportados não têm nome moderno algum. A Colina Kukenya, um monte de pedras de aproximadamente oito por dois quilômetros, terra e mato baixo sobre uma massa de granito, ergue-se 200 metros acima das planícies de Athi-Kapiti, no Quênia. Escavações têm sido feitas esporadicamente desde o início da década de 1970; os muitos sítios arqueológicos descobertos em suas grutas, abaixo das plataformas e em espaços abertos na base, proporcionaram o melhor quadro que temos da vida no leste da África no LGM e seu resultado posterior. O trabalho mais recente foi feito por Sibel Barut Kusimba, do Departamento de Antropologia da Universidade Lawrence, Wisconsin, EUA. Ela escavou dentro de uma gruta conhecida como Gvjm62 — sendo as quatro primeiras letras o código para localizar o sítio na grade nacional do Quênia. A datação por radiocarbono situou a ocupação deste e quatro outros sírios, Gvjm46, 16, 19 e 22, logo após o LGM — embora a própria Sibed sugerisse que alguns na verdade podem ser muito mais antigos. Muitos dos ossos muitíssimo fragmentados recuperados da Colina Lukenya foram estudados por Curtis Marean, da Universidade de Stone Brook, Nova York. O Gvjm46 era o que tinha o maior número, mas muito poucos ultrapassavam os dois centímetros de comprimento, e conseqüentemente tinham pouco valor para identificação de espécies. Em vez disso, Marean contou inteiramente apenas com o tamanho e forma
dos dentes, pelos quais identificou numerosas espécies que continuam a pastar hoje nas planícies africanas, junto com animais como leões, porcos da terra, babuínos e lebres. A maioria, porém, vinha de um animal sem correspondente no mundo moderno. Esses dentes pertenciam a um tipo de antílope pequeno que evoluíra para pastar talos curtos e duros de capim. O sério desgaste nos dentes restantes sugeria que ele consumia esse capim com copiosas quantidades de areia do chão poeirento. Como essa espécie estava ausente das coleções de ossos com data do Holoceno, parece provável que foi extinta quando o aquecimento global alterou a paisagem, oferecendo o tipo de capim úmido que favorece elã, impala e gazela. Quando escrevia em 1997, seis anos após anunciar sua descoberta de uma nova espécie na revista Nature, Marean julgou "prematuro" dar a esse pequeno animal extinto um nome de espécie; talvez fosse, mas 20 mil anos não parecem um tempo extraordinário para esperar. Sua presença nas coleções de ossos anteriores, mas não nas posteriores, da Colina Lukenya é apenas um sinal de que as paisagens do leste africano entre 20.000 e 12.500 a.C. eram muito mais secas que as de hoje. Três outros animais representados nos ossos da Colina Lukenya são também muito reveladores. Tanto o órix quanto a zebra de Grevy ainda existem, mas apenas em paisagens muito mais áridas que a que hoje cerca a Colina Lukenya — o órix é na verdade um antílope adaptado ao deserto. Junto com estes, o búfalo gigante também pastou no capim seco e alto perto da Colina Lukenya no LGM, como fizera em grande parte da África. Como o antílope anônimo, essa espécie não pôde sobreviver à mudança no clima, extinguindo-se no sul e no leste em 12.500 a.C., embora sobrevivendo no norte por mais alguns milhares de anos. Cada um desses animais — o antílope anônimo, a zebra de Grevy, o órix e o bisão gigante — foi excluído das vizinhanças da Colina Lukenya pela mudança para matagais mais úmidos. Lubbock descobrira a natureza mais fria e seca do clima da África Oriental no LGM muito antes de chegar à Colina Lukenya. Após concluir sua viagem de canoa Nilo acima, cruzara as poeirentas montanhas etíopes, que não tinham nas encostas inferiores as florestas que vemos hoje. Seguira então a margem oeste do lago Turkana, de nível seriamente reduzido pela falta de chuva. Mesmo assim, as águas azul-marinho e o matagal em volta eram um abrigo de flamingos, pelicanos e muitas outras
aves aquáticas. À noite, uma legião de alcéfalos, zebras e antílopes vinha beber, e outros animais caçar. Lubbock deixou o lago e dirigiu-se para oeste por 800 quilômetros, rumo ao centro do continente, onde os áridos matagais mudavam para as ralas savanas e se tornavam a floresta tropical na Bacia do Congo. Essa viagem à África Central levou-o ao maciço calcário do Monte Hoyo, onde passou o inverno partilhando uma de suas quarenta cavernas com um grupo de caçadores-coletores. A que ele escolheu chama-se hoje Caverna Matupi; era espaçosa, com um baixo muro de pedra separando a área de cozinha na frente de um corredor que levava ao escuro interior. Fogueiras, mós, paus de cavar, lanças e arcos juncavam o espaço, o lixo era simplesmente jogado no chão e de vez em quando afastado para o lado. As pessoas usavam contas feitas de ovos de avestruz e enfeitavamse com tinta de ocre. Durante sua visita, Lubbock saiu com os caçadores para tocaiar antílopes na savana e acompanhou um grupo à floresta que começava 20 quilômetros a oeste. O grupo retornou triunfante, trazendo um porco-espinho e um gigantesco porco da floresta, para imenso prazer das crianças que tinham ficado atrás. Às vezes cavava tubérculos com as mulheres, cujos paus de cavar tinham o peso aumentado com pedras perfuradas e enfeitadas. Quando os moradores da Caverna Matupi partiram para estabelecer um acampamento de pesca num lago próximo, no sítio que seria conhecido como Ishango, Lubbock completou sua viagem à Colina Lukenya. Isso o levou a terras mais secas do leste da África e às margens de outro lago muito reduzido, que conhecemos hoje como lago Vitória. Ali, viu garças reais futucarem a mesma lama que um dia daria núcleos a cientistas que estudam a história do lago. Os caçadores coletores da Caverna Matupi acabaram por perder, ou deixar, os paus de cavar dentro da caverna; esses instrumentos juntaramse ao acúmulo de lascas de pedra, microlitos, mós e restos de comidas. Em 3.000 a.C., essa coleção foi inteiramente sepultada sob o lixo de novos ocupantes, pessoas que usavam ferro para seus instrumentos. Francis van Noten, da Universidade de Leiden, fez escavações em 1974. As camadas inferiores tinham os ossos de animais da savana — antílopes, porcos da terra e avestruzes — junto com uns poucos de porco-espinho e porco da floresta. Entre esses ossos e os muitos pedaços de pedra lascada, van Noten encontrou fragmentos de pedra enfeitada que supôs ter sido um
dia usada como peso nos paus de cavar. Os ossos das camadas superiores da Idade do Ferro vinham de tipos inteiramente diferentes de animais — os que ocupam a floresta densa, como porcos-espinhos, mangustos e morcegos gigantes. A coleção de ossos da Caverna Matupi é um dos vários indícios diretos de como as florestas tropicais da África Central mudaram em extensão durante o último máximo glacial e suas conseqüências imediatas. Embora as florestas tropicais da América do Sul e sudeste asiático permanecessem em grande parte intactas durante o LGM, as da África foram acentuadamente reduzidas em tamanho, grandes áreas sendo substituídas por savanas e semideserto. Essa mudança na vegetação é também visível pelos grãos de pólen lacrados dentro de sedimentos de cavernas e lagos, que mostram que regiões atualmente florestais foram um dia cobertas apenas por capim; se se cava abaixo do solo da floresta, muitas vezes se encontra areia da antiga savana, senão do próprio deserto. Contudo, a floresta na bacia central do Congo sobreviveu intacta por todo o período de mais severa aridez. Essa floresta resistente proporcionou um refúgio para as espécies adaptadas à floresta, que ainda se refletem em sua imensa riqueza de flora e fauna hoje. Quando as chuvas voltaram no início do Holoceno, algumas de suas plantas e animais espalharam-se para leste e oeste, para recuperar o que se tornara savana e semideserto no LGM. Localidades como a Caverna Matupi foram cercadas pela floresta, levando à mudança na fauna dentro de seus depósitos. Essa floresta do Holoceno Inicial a princípio cobriu uma região muito maior do que cobre hoje, de novo reduzida quando as chuvas declinaram após 5.000 a.C. e os seres humanos começaram a moldar eles próprios o mundo africano. Várias semanas passaram-se desde que Lubbock viu a emboscada ao antílope anônimo na Colina Lukenya. Nesse novo dia em suas viagens africanas, ele parte da caverna uma hora antes do sol nascer, acompanhando três caçadores em busca de caça. Andam devagar e em silêncio no matagal da savana. Sempre em alerta para sinais de animais — folhas e talos que parecem ter sido mordiscados, rastros e fezes, lugares onde eles dormiram e ruídos no mato — mesmo assim os homens são freqüentemente distraídos da tarefa de caçar. Um pé de baobá com abelhas voejando num buraco causa uma prolongada parada. Procuram e quebram grandes pedras de quartzo, que dão afiadas lascas e criam faíscas, com as quais se acende uma fogueira para afastar as abelhas
enquanto se alarga o buraco. Descobrem-se avidamente mel, colméia e larvas; Lubbock come o suficiente e os caçadores se empanturram. Saciados com o mel, os homens cochilam e ele observa lavandeiras migratórias sobre a planície, pássaros que logo retornarão para as tundras do norte que ele próprio visitou. Mais tarde, nesse dia, faz-se outra parada num raso olho d'água para beber e banhar-se. Segue-se mais uma hora de caminhada, antes que o grupo pare para comer bagas que encontraram por acaso. Desta vez Lubbock vai observar os cupins, lembrando que se diz que o passado africano está na barriga deles. E depois, no meio da tarde, acompanha os caçadores em seu lento serpear de volta ao acampamento. É o tipo de dia vivido pelos modernos hadza do leste da África, pertencentes a um dos poucos grupos de caçadores-coletores sobreviventes no mundo. Desconfio que pouco difere dos dias passados pelos caçadores que ocuparam as cavernas da Colina Lukenya em 20.000 a.C. Os hadza têm sido estudados desde a década de 1960, e apesar dos óbvios problemas envolvidos na imposição de um estilo de vida moderno ao passado, oferecem uma visão absorvente de como pode ter sido a vida no LGM. É provável que a paisagem pré-histórica em volta de Lubbock tenha sido semelhante à savana seca, infestada de moscas tsé-tsé e dominada por mato espinhoso e pés de acácia que os hadza habitam hoje — embora, como a estepe de mamute no norte, não exista nenhum análogo moderno das paisagens africanas no LGM. Isso se deve ao fato de o extenso mato baixo da África moderna ser tão produto de atividade humana quanto de mudança climática; foi regular e deliberadamente queimado, uma prática que pode ter sido exercitada por pastores durante milhares de anos. O incêndio regular limpa o capim maduro, fibroso e impalatável para as cabras e gado, produzindo os tipos mais curtos que sustentam mais animais; a forte pastagem inibe ainda mais o crescimento de capim alto, árvores e arbustos. A queima também ajuda a reduzir a mosca tsé-tsé, que espalha a doença do sono nos seres humanos e no gado. Sempre que se param esses incêndios e pastagens, os arbustos e árvores retornam imediatamente, junto com o mato alto e duro que cresce à sua sombra. Os incêndios naturais, como sem dúvida ocorreram por volta do LGM, são demasiado infreqüentes para ter o mesmo impacto sobre a vegetação. E assim, é provável que a paisagem em torno da Colina Lukenya tenha tido
capões de mato duro, muito mais arbustos e talvez mais árvores que hoje. Por toda essa paisagem sutilmente diferente, uma gama e distribuição de alimentos vegetais e animais semelhante à de hoje estaria disponível o ano todo. Isso não quer dizer que o povo da Colina Lukenya vivesse necessariamente de maneira semelhante à dos hadza de hoje, mas é provável que o povo que vivia em 20.000 a.C. e depois fizesse escolhas semelhantes sobre que animais caçar e que plantas coletar. É provável que a emboscada de rebanhos, segundo Marean, se tenha restringido a estações específicas, talvez quando a chuva era particularmente esparsa e os mamíferos migravam em busca de água. Em outras ocasiões, a caça teria sido feita basicamente pela procura de rastros e trilhas e depois a tocaia a animais individuais, ou talvez — como entre os hadza de hoje — aproveitando os restos de presas de carnívoros sob a capa da escuridão. Lubbock tentou os dois métodos, preferindo passar seu tempo na caça, em vez de coletar raízes, tubérculos, bulbos, bagas e folhas com as mulheres, embora o grupo da Colina Lukenya dependesse desses alimentos vegetais para a sua dieta, todos ansiavam por carne. Quando nos arbustos e capinzais, Lubbock viu seus companheiros sempre alertas para abutres circulando e o barulho de hienas frenéticas, que provocavam uma busca de nova carcaça. Numa ocasião, Lubbock e os companheiros encontraram leões que comiam uma zebra recém-morta. Os leões permaneceram impávidos diante dos gritos e pedras atiradas, mas fugiram depois que se dispararam flechas, deixando a presa para trás. Para a caça noturna, Lubbock deixou a caverna na Colina Lukenya com um grupo de caçadores no fim da tarde. No caminho, teias de aranha no meio do mato eram iluminadas pelo sol poente, que aparecia por um momento numa faixa estreita entre nuvens e montanhas distantes. Após duas horas, chegaram a uma espécie de círculo de rochas que cercava uma área de cerca de 3 metros de largura e formava um esconderijo ao lado de uma trilha de gamos para um olho d'água próximo. O lugar era evidentemente muito usado, em vista das muitas pegadas na areia. Acendeu-se uma fogueira, que ficou a arder dentro do esconderijo; mais tarde, suas brasas de vez quando soltavam chamas sopradas pela brisa noturna. Os caçadores comeram algumas bagas no caminho e depois se instalaram para descansar, as setas encostadas no muro de pedra. Quando a lua nasceu, Lubbock acocorou-se do lado de fora e ficou à espreita da caça, mas não ouviu o fraco barulho de cascos que alertou os caçadores
dentro do esconderijo, apesar do barulho constante das cigarras. Dentro de poucos minutos, três impalas já tinham sido alvejados com flechas; um foi atingido no flanco, os outros dois fugiram incólumes. Os caçadores voltaram a cochilar, esperando o amanhecer para procurar a presa ferida. Fizeram isso por várias horas, seguindo a trilha de sangue, galhos quebrados e rastros de casos, até que tudo cessou num trecho de mato achatado e ensangüentado. O impala semimorto fora pego por um leopardo e não se o via em parte alguma. Quando voltavam para a Colina Lukenya, os caçadores coletaram alguns nódulos de quartzo, não querendo voltar mais uma vez de mãos vazias.
O quartzo, encontrado durante as viagens de caça ou coleta de plantas, era o tipo de pedra com mais freqüência usado na Colina Lukenya. Também se usavam jaspe negro e obsidiana, mas Sibel Barut Kusimba os encontrou em quantidades muito pequenas quando estudou as coleções escavadas de artefatos de pedra. Embora o jaspe negro e a obsidiana tenham melhores qualidades como lasca que o quartzo, eram mais difíceis de encontrar. A fonte mais próxima de jaspe negro da Colina Lukenya era um leito de rio a 5 quilômetros de distância; também proporcionava pequenos pedaços de obsidiana, mas qualquer nódulo maior tinha de ser adquirido no Vale Rift Central, 150 quilômetros a noroeste, ou numa escarpa 65 quilômetros a oeste. Como cada afloramento tinha a assinatura química específica que traz cada nódulo, Sibel pôde determinar que a maior parte das lascas de obsidiana viera dessas fontes distantes, e não do leito do rio local. Os nódulos de quartzo, jaspe negro e obsidiana eram usados para fazer uma variedade de instrumentos, sendo os microlitos, mais uma vez, o tipo mais freqüente. Grandes lascas eram aparadas em torno de uma aresta para tornar-se o que os arqueólogos chamam "raspadores", muito provavelmente encaixados em instrumentos de cabos curto para limpar couros. Também se faziam instrumentos de gume em forma de cinzel, conhecidos como buris. Com eles, o povo da Colina Lukenya fabricava a mesma gama de instrumentos que tantos outros no mundo entre 20.000 e 10.000 a.C., embora tivesse suas próprias formas idiossincráticas, como um raspador "em forma de leque". Lubbock já viajou 250 quilômetros para sudoeste da Colina Lukenya e está sentado no que resta de um riacho sazonal. O tempo avançou mil anos, passando para 19.000 a.C., mas as paisagens africanas continuam bastante áridas. Esse rio corre sempre que chegam as chuvas de verão; na verdade, muitas vezes transborda e deixa camadas de aluvião no chão do vale, que ficam ensanduichadas entre poeira de areia e cinza soprada pelo vento. A chuva caiu pela última vez um mês atrás, e o riacho se tornou uma linha irregular de poços estagnados, contendo mais urina de rinoceronte que água de beber. Logo serão manchas de lama e depois desaparecerão por completo. Lubbock está dentro da Garganta Olduvai, explorada e tornada famosa pela família Leakey em sua busca das origens da humanidade. O aluvião e areia deixados pelo riacho, junto com a fina cinza vulcânica soprada pelo vento, vão-se misturar para criar a última das camadas geológicas que os
Leakeys exploraram, a conhecida como Leitos de Naisiusiu, que formam toda a garganta e a planície de Serengeti além, de uma capa para os 2 milhões de anos de estratos geológicos embaixo. Sentado numa pedra, Lubbock vê dois homens esquartejarem um antílope que emboscaram de madrugada, quando o animal veio beber água, lançando-lhe flechas com pontas de microlito. Várias outras pessoas sentam-se perto, algumas descansando sem fazer nada ao sol matinal, outras lascando nódulos de quartzo para fabricar novas lâminas e instrumentos de esquartejar. Um dos homens pragueja, pois sua gordurosa lasca de pedra escorrega e fura-lhe a coxa; o sangue esguicha, e continua a esguichar quando ele põe a mão numa fútil tentativa de estancar o fluxo. É obrigado a deitar-se, e uma jovem corre a buscar uma planta curativa local. Ela volta em alguns minutos trazendo um punhado de suculentas folhas que são torcidas acima da ferida. Um líquido claro pinga no corte e tem efeito imediato, pois cessa o sangramento. O homem é levado para descansar numa sombra, as pernas ensangüentadas lavadas com água do poço. Terminado o esquartejamento, o grupo parte, o ferido sendo ajudado a caminhar, outros carregando as postas de carne. Lubbock olha o chão à sua frente — lascas de pedra, microlitos jogados fora, tripas, pés e cabeça de antílope, e manchas de sangue de homem e animal. Os microlitos, lascas de pedra e ossos quebrados foram descobertos e em parte escavados por Louis Leakey em 1931, e mais completamente por sua esposa Mary em 1969. Muitos outros artefatos estavam presentes, porque aquele lugar sombreado fora muitas vezes usado para esquartejamento. Os Leakeys encontraram várias centenas de instrumentos e ossos de numerosas espécies, todos quebrados em minúsculos fragmentos, como os da Colina Lukenya. Imagina-se que, após cada animal abatido, hienas viessem roer os ossos jogados fora. Águas de inundações teriam levado alguns artefatos e enterrado outros sob seus depósitos de aluvião. Quaisquer artefatos de madeira, cestos trançados e sacos de couro deixados ou esquecidos apodreceram. Os escassos restos que os Leakeys recuperaram pouco mais nos dizem além de que esse mesmo povo esteve na Garganta Olduvai por volta de 19.000 a.C. e esquartejou sua presa. Também podemos supor ser improvável que tenham ficado ali muito tempo, porque a obsidiana que usavam vinha de uma fonte a 200 quilômetros de distância, e, portanto, eles deviam ter
viajado muito. Contudo, não temos idéia sobre se usavam plantas medicinais. Meu palpite é que usavam, sobretudo, a conhecida como sanseviéria, uma erva suculenta que dá em muitas partes do Vale Rift. Seu nome local, Olduvai, foi dado à própria garganta. Richard Leakey ficou entusiasmado com as propriedades curativas da planta, descrevendo seu uso pelos povos nômades do vale e a própria família Leakey, sempre que ocorriam acidentes durante o trabalho de campo. O sumo atua como antisséptico e como bandagem natural, fechando o ferimento. Richard Leakey acredita que a sanseviéria é muito melhor que qualquer coisa oferecida pela farmacêutica moderna, e questionou se os mais antigos ancestrais do homem que viveram em Olduvai 2 milhões de anos atrás sabiam de suas propriedades. Isso jamais vamos saber, mas não devemos duvidar de que eram conhecidas pelos seres humanos modernos que caçavam dentro da Garganta Olduvai logo depois do LGM.
48 Patas de Rã e Ovos de Avestruz Caçadores-coletores no deserto de Kalahari, 12.500 a.C. Uma teia de aranha. Não pendurada no ar entre talos de capim ou juncos, mas densamente tecida dentro de um túnel na areia poeirenta. Duas mulheres acocoram-se ao lado de sua descoberta: John Lubbock está com elas, imaginando por que parecem tão contentes. Presumia que procuravam finos talos de tubérculos embaixo ou outros mais grossos e ocos com vermes comestíveis ali dentro. Mas as duas coisas tinham sido ignoradas quando as mulheres afastaram os arbustos em busca de terreno remexido em torno das raízes. Um pau de cavar é enfiado no buraco e girado para enrolar a teia na ponta. Limpado o pau, elas começam a cavar, enquanto a aranha foge. Assim que a areia se torna um pouco úmida, enfia-se uma mão no buraco e a próxima refeição das mulheres é puxada por uma das patas, depois rapidamente golpeada com o pau de cavar antes de ter oportunidade de morder. Uma rã enorme. A data é 12.500 a.C., e Lubbock está no Vale de Gewihaba, no deserto de Kalahari, Botsuana. Chegou cedo essa manhã, seguindo as mulheres que desciam a trilha batida de seu acampamento. Haviam acompanhado o leito seco do rio até um capão de arbustos e iniciado a busca, sabendo que cada buraco coberto por teia de aranha podia levar a uma rã hibernando embaixo do chão. As aranhas do Kalahari gostam de aproveitar-se do trabalho das rãs tecendo suas teias em buracos já prontos. Lubbock olha as mulheres iniciarem a busca de outra teia, olhando em torno de um capão próximo. Têm cabelos curtos e negros, muito cacheados, e pômulos altos; a pele e as coxas cor de chocolate foram deliberadamente arranhadas para ficar com lanhos vermelho-vivo. Além dos fios de contas brancas que enfeitam os pescoços e pulsos, não usam nada além de capas de couro e pequenos aventais de borlas. Ao meio-dia já têm sete rãs grandes no cesto e retornam ao acampamento diante do que chamamos hoje Caverna de Drotsky. O resto do grupo senta-se e trabalha ao ar livre; dois homens limpam couros com lascas de quartzo encaixadas em cabos de osso, velhas conversam torcendo fibras
de plantas em barbantes, crianças brincam com paus. Dentro da própria caverna um velho atiça a fogueira. Todos param quando as mulheres chegam, reunindo-se em volta para ver o que encontraram. Em poucos minutos, as rãs são estendidas sobre pedras quentes no fogo para cozinhar; as menores são torradas, para serem moídas num pilão de madeira e comidas como papa; as maiores, simplesmente esquartejadas e divididas entre os presentes. A maioria dos adultos ganha pata de rã, os ossos moles mastigados junto com a carne. Só as cabeças são jogadas fora — nas cinzas, depois de comerem-se a pele e os olhos. Lubbock consegue furtar uma pata de rã, e acha-a gostosa e satisfatória. Mastigando os ossos, pensa no que mais comeu e bebeu no mundo todo nessa data de 12.500 a.C.: pão de trigo selvagem em Ain Mallaha, lebre ártica em Creswell Crags, chá de folha de boldo em Monte Verde, lagarto com figos na Caverna Kulpi Mara. Também se lembra de sua viagem à Garganta Olduvai, que deixou em 19.000 a.C. Pouco há, porém, a lembrar da história humana quando a terra continuou árida e em grande parte desabitada durante a viagem pelo que hoje são a Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. Se existiam pessoas nessa região, pensou, o mais provável era que estivessem na costa ou vivendo em matagais produtivos em torno de lagos sobreviventes. Mesmo quando passou pelo que lhe pareceu ser um lugar atraente para viver, o máximo que encontrou loram homens fazendo acampamentos transitórios a caminho de locais de caça mais favorecidos. Houve, por exemplo, um impressionante conjunto de colinas que continham numerosas grutas e cavernas que hoje chamamos Matebeleland, no oeste de Zimbábue. Lubbock explorou muitas das cavernas e encontrou artefatos de pedra espalhados no chão de algumas. Mas estavam meio enterrados, e pareciam muito diferentes dos que ele vira no Wadi Kubbaniya e na Colina Lukenya. As colinas, porém, não estavam inteiramente desertas; ele encontrou dois caçadores pernoitando dentro da caverna mais impressionante. Tinha um teto em forma de abóbada e dava para um pequeno vale cujo leito de rio estava seco. Lubbock sentou-se à beira da fogueira deles, sentindo tanta fome quanto os próprios caçadores, pois sua busca de caça fora infrutífera. Quando acordou na manhã seguinte, os caçadores tinham partido, deixando atrás apenas um punhado de cinzas e algumas lascas de pedra. Esse conjunto de colinas e cavernas eram o cenário de muitos acampamentos de caçadores-coletores muito antes do LGM, e voltaria a
sê-lo assim que começou o Holoceno. Conhecido como Matopos, anos de escavação recuperaram traços de ocupação que remontam há 100 mil anos, a um tempo quando os instrumentos grandes eram feitos de lascas grandes, em vez das pequenas lâminas que Lubbock veio a conhecer tão bem. O mais recente estudo do Matopos foi feito por Nicholas Walker, da Universidade de Uppsala, Suécia, que se concentrou em seu uso do LGM até hoje. Descobriu que, embora várias cavernas tivessem abundantes restos dos caçadores-coletores do Holoceno, apenas uma — a Caverna Pomongwe, com seu impressionante teto abobadado — tinha sinais de ocupação entre 20.000 e 10.000 a.C. As poucas lascas de pedra que Walker encontrou só puderam ser provisoriamente datadas antes de 13.000 a.C. É provável que a história de ocupação de Matopos reflita a da África subsaariana como um todo. Que vastas áreas eram completamente desprovidas de presença humana e depois, é sem dúvida a impressão de que extraímos do esparso número de sítios arqueológicos conhecidos. Se tinha pessoas, deviam estar vivendo em grupos pequenos e muitíssimo móveis, e não como os boxímanos adaptados ao Deserto do Saara de tempos recentes. Por estarem sempre em movimento, elas raramente deixaram detritos suficientes para sobreviver à devastação o tempo. Meu palpite é que grande parte do continente era de fato um deserto humano — as condições frias e áridas devem ter tido um impacto debilitante nos números populacionais, aumentando a chance de mortalidade prematura e reduzindo a fertilidade feminina. Dez esferas brancas cremosas juntas numa rasa depressão na areia. Uma maravilhosa e inesperada descoberta para os três companheiros de Lubbock numa viagem de caça nas baixas colinas com afloramentos rochosos que cercam o vale de Gewihaba. Até agora, tiveram pouco êxito. Rastros de lebre haviam-nos levado a uma toca onde calcularam que o animal noturno estaria dormindo. Vasculharam o mato baixo em busca de um galho reto de pelo menos 2 metros. Um dos caçadores enfiou-o na toca até sentir a lebre; então, empurrou-o para a frente com toda a força, para manter o animal imóvel, enquanto seu companheiro começava a cavar. Aos poucos foi surgindo o áspero pêlo pardo, a lebre imobilizada e inteiramente incapaz de mexer-se. Mas quando se ergueu uma pedra para desferir o golpe fatal, o galho partiu-se e a lebre escapou, a fuga observada com consternação e alegria em igual medida — a perda da
comida mas um animal digno de admiração correndo pela areia. A descoberta casual de um ninho de avestruz pouco depois no mesmo dia proporcionou ampla compensação. Cada ovo é batido delicada, mas firmemente no chão. Isso agita o conteúdo, matando o embrião dentro. Os caçadores podem levar três ovos cada e concordam em mandar alguém buscar o último. Os ovos são pesados. Vários restos são levados na caminhada de volta à Caverna Drotsky, durante a qual se pega estrume novo onde quer que esteja. Ao chegarem, todos estão ávidos para ver e tocar os ovos, e há pouca demora para cozinhar a comida. Dois ovos são cuidadosamente quebrados ao meio para fazer quatro panelas, e o conteúdo posto numa gamela. A base das panelas recém-feitas é revestida com uma densa camada de estéreo, e elas são colocadas sobre pedras quentes. Furam-se cuidadosamente buracos nas extremidades dos ovos restantes, e despejase seu conteúdo para cozinhar. O omelete de ovos de avestruz, forte e com mais murrinha que o de coxa de galinha, é partilhado por todos — embora Lubbock tenha de contentar-se com as rapas das tigelas. Nos dias seguintes ele observa como se usam as cascas dos ovos de avestruz. As panelas ficaram queimadas e deixaram-nas fragmentar-se dentro da fogueira. Era uma prática comum com restos de comida e outros detritos na Caverna de Drotsky; de poucos em poucos dias, limpavam-se as lareiras e jogavam-se as cinzas, ossos queimados, conchas e torrões de carvão bem no fundo da caverna. Dos ovos de avestruz que ficaram inteiros, todos menos três foram lavados com água e temperados com ervas aromáticas para tirar o odor de ovo podre. O acréscimo de tarugos de capim transformou as cascas em vasos d'água. As três cascas restantes foram usadas para fazer contas. Uma velha — mãe do homem que primeiro avistou o ninho — quebrouos em fragmentos irregulares e depois fez um buraco em cada uma, girando uma vareta com ponta de microlito entre as palmas. Uma vez furadas, as contas foram enfiadas firme num barbante e depois esfregadas numa pedra para torná-las lisas e iguais. A mulher usou ela própria muitas das contas, dando outras às filhas e às filhas delas no acampamento. Música, canto e dança eram essenciais para o povo da Caverna de Drotsky, como Lubbock com tanta freqüência descobriu em todo o mundo pré-histórico. E também os jogos, ali mais praticados pelas mulheres e crianças entre oito e doze anos. Ele gostava de ver esses jogos, mas como
muitas vezes ficava absolutamente confuso sobre o que se passava, resistiu à tentação de juntar-se. Não sabemos, claro, se se disputavam jogos diante da Caverna de Drotsky, no Deserto de Kalahari, em 12.500 a.C. Mas disputava-se, definitivamente, a poucos quilômetros dali, em Nyae Nyae, em 1952 d.C.: os boxímanos !Kung o faziam, como foram observados pela antropóloga Lorna Marshall. Embora não tendo educação formal como antropóloga, ela fez um estudo seminal sobre os !Kung de Nyae Nyae no início da década de 1950. Por toda a duração de um dos jogos, as crianças !Kung coaxavam numa imitação quase perfeita das grandes rãs que se reuniam para reproduzir-se no vale quando chegavam as chuvas. Quando Lorna viu o jogo em 1952, começava com os jogadores sentados num círculo de frente para o centro; uma menina era escolhida para ser mãe e começava a tocar cada um dos outros com uma varinha no tornozelo. Uma vez tocado, eles coaxavam e deitavam-se estendidos de costas, como se dormissem. Quando todos estavam deitados, ela arrancava alguns fios de cabelo da cabeça e punha-os numa fogueira imaginária no centro do círculo — representavam as rãs que ia cozinhar para a refeição. Quando já haviam cozinhado tempo suficiente, os filhos eram tocados de novo e formavam um círculo em torno da mãe. Cada um era solicitado a ir buscar o pilão para que ela moesse as rãs torradas, mas todos se recusavam a ir; e assim, mostrando-se adequadamente aborrecida, ela mesma ia. Assim que a mãe deixava o círculo, os filhos roubavam os cabelos — as rãs — e corriam a esconder-se. A mãe voltava, carrancuda, emitindo ruídos de ameaça e procurando os filhos. Quando descobertos, eles coaxavam, guinchavam e lutavam antes de ser tocados na cabeça com o indicador dela e fingirem chorar. Nesse ponto, perdia-se qualquer aparência de ordem; todas as crianças corriam caoticamente de um lado para outro, gritando e rindo em desenfreada excitação. À luz das visíveis semelhanças em estilos de vida entre os habitantes da Caverna de Drotsky e os !Kung observados por Lorna Marshall, somos tentados a acreditar que também se faziam tais jogos em 12.500 a.C. A caverna ganhou o nome de Martinus Drotsky, um dos primeiros europeus a viajar largamente pelo Kalahari. As primeiras escavações foram feitas em 1969 pelo antropólogo americano John Yellen, que abriu uma vala perto de onde Drotsky pintara seu nome na parede. Dos sedimentos de areia da caverna, Yellen extraiu artefatos de pedra, fragmentos de cascas
de ovos de avestruz, ossos de animais e carvão datado de 12.500 a.C. — o primeiro traço descoberto de assentamento pré-Holoceno no Deserto de Kalahari. Novas escavações foram feitas em 1991 por Lawrence Robbins, da Universidade do Estado de Michigan, e seus colegas. Eles escavaram mais fundo que Yellen e descobriram uma camada de 30 centímetros de espessura de carvão e cinza, começando 50 centímetros abaixo da superfície. Continha muitos outros artefatos e ossos que os sedimentos de areia acima e abaixo, e teve a formação datada entre 12.800 e 11.200 a.C. Essa camada de carvão e cinzas resultava de muitas fogueiras dentro da caverna, sugerindo um intenso uso para habitação. Continha muitos ossos queimados de rã grande; basicamente pedaços de crânio, que têm crista, são robustos e portando resistentes à decomposição. Os ossos de pata eram acentuadamente escassos, o que levou Robbins a supor que eram comidos junto com a carne. Quando Lorna Marshall vivia com os !Kung na década de 1950, soube que se comiam rãs gigantes, embora jamais visse isso; mas em 1859 o missionário David Livingstone contou que os boxímanos encontravam tais rãs procurando teias de aranha, exatamente como Lubbock os viu fazer. Os !Kung de Nyae Nyae valorizavam os ovos de avestruz como vasos d'água e como material para fazer contas, que as moças gostavam particularmente de usar. Como Robbins escavou muitos fragmentos de casca de ovo de avestruz da camada de carvão na Caverna de Drotsky, os dois usos parecem prováveis em 12.500 a.C. Alguns eram perfurados para usar como contas, embora a camada não contivesse nenhum detrito do processo de fabricação. Outros fragmentos estavam muito queimados. Os coletores de 12.500 a.C. não tinham vasos para pôr sobre o fogo. E assim os ovos poderiam ter sido colocados diretamente nas brasas, talvez sendo antes revestidos em estéreo. Esse é o método que o próprio Robbins vira ser usado para cozinhar ovos de galinha pelos !Kung modernos em Tsodilo, 50 quilômetros ao sul da Caverna de Drotsky. Ossos das lebres de Kalahari e vários pequenos antílopes também foram escavados da camada de carvão e cinza. Esses animais eram regularmente caçados pelos recentes !Kung. Richard Lee, antropólogo que estudou outro grupo de !Kung no início da década de 1960, testemunhou o uso de longos ganchos para pegar lebres em suas tocas diurnas, da mesma maneira que Lubbock viu o uso de um galho.
As histórias de Lorna e Lee podem ajudar-nos a imaginar mais prontamente a vida diária daqueles que jogaram fora os ossos de rãs gigantes e cascas de ovo na Caverna de Drotsky. Mas temos de depender apenas de indícios arqueológicos para obter informação sobre a história ambiental do Kalahari e o impacto da mudança nas condições climáticas sobre o povo da região. Um dos indícios mais reveladores é menor que os artefatos de pedra e ossos de animais, menor mesmo que fragmentos de crânios de rãs e casca de ovo. É a própria areia, mais especificamente as partículas de areia acumuladas dentro da caverna. Elas podem agir como um medidor da mudança de quantidades de precipitação pluvial no deserto de Kalahari. Quando Robbins e seus colegas escavaram a Caverna de Drotsky, pegaram amostras de areia em intervalos regulares, da superfície para o fundo, da vala de 130 centímetros de profundidade, com mais probabilidade datando de 30.000 a.C. A maior parte dessa areia fora soprada para dentro — numa média de 4,45 centímetros cada mil anos. Algumas amostras de areia eram em grande parte compostas de partículas muito finas, de menos de 0,08 milímetros de tamanho, mais facilmente carregadas no vento; outras amostras tinham composição mais grossa, com muitas partículas de mais de 0,2 milímetros — o tipo de areia depositado por água corrente. Robbins e seus colegas raciocinaram que quando as condições do lado de fora eram muito secas, toda a areia que entrava na caverna seria soprada de dunas próximas, e, portanto, de composição extremamente fina. Nos períodos mais úmidos, a vegetação teria brotado nas dunas e estabilizado sua superfície, proporcionando muito poucas partículas para o vento levar. Mas nessas condições, o escorrimento após uma chuva forte teria lavado os grãos mais grossos para dentro da caverna. Os indícios evidenciavam muito claramente que o período entre 20.000 e 11.500 a.C. foi dos mais úmidos dos últimos 30 mil anos, pois continham os mais ásperos grãos de areia. E assim, em completo contraste com tão grande parte da África subsaariana, o LGM e seu depois imediato foram mais úmidos que o Holoceno no Kalahari. Esse resultado foi confirmado pelos indícios de fora da caverna. No leito agora seco do vale de Gewihaba, descobriu-se que a areia e cascalho datando de antes de 12.000 a.C. continham diátomos, que exigem substancial quantidade de água para sobreviver — diátomos são algas microscópicas com paredes ricas em
silício, tendo cada espécie uma forma e necessidades de habitat características. Assim, antes de 12.000 a.C. houve pelo menos um rio sazonal, senão permanente, dentro do vale. Os restos de uma tartaruga junto com as muitas rãs gigantes oferecem outros indícios de que um rio corria dentro do vale quando as fogueiras foram acesas dentro da caverna. Como havia abundantes fontes de água em redor, Robbins e seus colegas concluíram que entre 20.000 e 12.500 a.C. a caverna não oferecia vantagem especial alguma em relação a muitos lugares na região. Por conseguinte, não era usada por grupos de caça para mais que breves paradas de pernoite, ou talvez simplesmente como abrigo durante o dia. Quando o clima começou a mudar e as chuvas começaram a faltar, a Caverna de Drotsky tornou-se um foco de habitação — talvez o vale de Gewihaba oferecesse agora um dos pouquíssimos recursos de água confiáveis. Durante cerca de mil anos, as pessoas acenderam regularmente fogueiras e fizeram acampamento dentro da caverna, enquanto caçavam antílopes e lebres, desentocavam rãs gigantes e pegavam-nas nos poços na estação úmida. Mas como a aridez se instalou e o vale ficou inteiramente seco, a Caverna de Drotsky perdeu a atração; mais uma vez, era apenas um dos muitos lugares usados por pessoas em constante deslocamento, em busca de água no Deserto de Kalahari. A camada de cinza, ossos e carvão foi coberta por areia soprada pelo vento. Quando, em 1969, John Yellen perguntou aos modernos !Kung sobre a caverna, eles acreditavam que ela só fora usada como lugar de recolher mel; eles próprios jamais haviam acampado dentro da caverna. Após deixar a Caverna de Drotsky, Lubbock faz uma jornada de quase 2 mil quilômetros ao Cabo Ocidental do sul da África, chegando à margem sul do mundo desabitado pela terceira e última vez em suas viagens — já havendo visitado a Tasmânia e a Tierra del Fuego. Diante de si vê um rio raso, conhecido hoje como Verlorenvlei, que corre para oeste e chega ao Oceano Atlântico, a pouco menos de 20 quilômetros de distância. Um homem está dentro do rio com água pelos joelhos, uma lança de pesca acima da cabeça. Sob as vistas de Lubbock, ele golpeia a água, pragueja e tenta de novo, antes de desistir e seguir a trilha batida de volta a uma caverna no lado de um rochedo pouco abaixo no rio. Hoje a chamamos de Caverna da Baía dos Cefos — a primeira de quatro que Lubbock deve visitar ao explorar o que aconteceu no sul da África quando o aquecimento global mudou o mundo.
49 Uma Excursão pelo Sul da África Mudanças ambientais, dieta e vida social, 12.500 – 7.000 a.C. O pescador senta-se agora com dois companheiros junto às brasas de uma fogueira, observado por Lubbock, parado na entrada da caverna, voltado para dentro. Cada homem tem lanças encostadas na parede, uma mochila de couro contendo nódulos de quartzo, um martelo de pedra, faca e pedaços de tendão. Chumaços de capim foram colocados no chão, mas pouco fazem para cobrir os detritos deste e de muitos outros acampamentos posteriores na caverna. Após viajar pela maior parte do globo e visitar muitos sítios semelhantes, Lubbock apurou muito o sentido do olfato; isso, junto com o insucesso do pescador, sugere que a pesca é uma nova atividade para os habitantes da caverna. A Caverna da Baía dos Cefos é a Franchthi do Sul. Seus depósitos arqueológicos mostram como as pessoas mudaram as vidas quando o aquecimento global mudou seu mundo, trazendo o mar e seus produtos para a soleira da porta de uma caverna que antes ficava no interior. Escavada por John Parkington e seus colegas da Universidade da Cidade do Cabo na década de 1970, produziu ricas coleções de ossos de animais, peixes e pássaros, moluscos, cascas de ovos de avestruz e tartaruga, instrumentos feitos de vários materiais, junto com depósitos de carvão e cinza. Datam de cerca de 30.000 a.C. até os tempos modernos, e forneceram, após três décadas de estudo, uma notável intuição sobre a história humana no Cabo Ocidental do sul da África, na qual Lubbock entrou em 12.500 a.C. O uso da Caverna da Baía dos Cefos como acampamento de caça já se achava em andamento no LGM, quando o mar ficava a cerca de 35 quilômetros de distância — 15 a mais que na época da visita de Lubbock. A planície costeira era portanto maior, mas os animais talvez fossem escassos, devido às condições mais frias e mais áridas. Mesmo assim, o hoje extinto cavalo do Cabo e o búfalo gigante, o cefo, steenbok e grysbok [todos antílopes pequenos] estão presentes nos depósitos da
caverna entre o LGM e 9.000 a.C., após o que a planície foi inteiramente inundada pelo mar crescente e esses animais deixaram de ser caçados. Os que usavam a Caverna da Baía dos Cefos pegavam tartaruga para comer e usar os cascos como vasos. Uma camada escavada de cerca de 12.500 a.C. tinha tantas carapaças que Parkington a chamou de "monturo da tartaruga". Isso sugere que a visita anual à caverna pode ter sido no verão, quando as tartarugas e outros répteis eram mais fáceis de encontrar. Além de carvão de madeira de fogueiras, não se recuperou nenhum outro resto de planta. Se isso reflete uma dieta inteiramente baseada na caça ou a completa decomposição de matéria vegetal, ainda não está claro. Um estilo de vida baseado em caça grande nos matagais abertos parece generalizado em todo o sul da África no LGM e o depois imediato. Grãos de pólen de sedimentos da caverna sugerem uma paisagem de charnecas e matagais. O carvão das fogueiras confirma isso: o da Caverna Boomplaas, no Cabo Sul, indica que seus ocupantes tinham de encontrar combustível numa paisagem inteiramente desprovida de árvores. Os que usavam a Caverna da Cabana Rosa, hoje situada no Estado Livre de Orange — mais para o interior e numa maior elevação — se davam melhor, pois pegavam lenha de arbustos ao longo da borda de um vale próximo. Rebanhos de antílopes, cefos, búfalos e cavalos pastavam nas montanhas e baixadas, e teriam estado disponíveis para a caça. Os grandes mamíferos da Caverna da Baía dos Cefos, porém, estão representados, sobretudo, por queixadas e ossos de membros inferiores — partes de carcaça que sugerem aproveitamento de restos de caça de carnívoros. Esse pode ter sido um meio suficiente de adquirir carne, pois é provável que as pessoas fossem poucas, depois que seu número sofreu com as secas do LGM. Os sítios arqueológicos desse período são raros e, quando encontrados, sugerem pequenos grupos móveis que não permaneciam em seus locais de acampamento mais que algumas semanas de cada vez. Mesmo assim, caças comunais com lanças podem ter sido feitas nas paisagens abertas, talvez com o envio de batedores que tangiam os animais para emboscadas, como Lubbock tantas vezes viu em outras partes. Na época da chegada de Lubbock à Caverna da Baía dos Cefos — 12.500 a.C. — as paisagens e estilos de vida já tinham começado a mudar. Desde 16.000 a.C., as temperaturas e volumes de chuva vinham aumentando, em parte devido à chegada de chuvas de inverno para complementar as de verão. Os novos ocupantes da Caverna Boomplaas pegavam lenha de
arbustos e árvores. Quando faziam isso, teriam observado a substituição gradual de rebanhos a pastar por animais menores e mais solitários como o steenbok c o oreotrago, que pastavam dentro do matagal. Novos animais teriam exigido novos métodos de caça; isso por sua vez teria tido conseqüências para a vida social. Os animais de pasto tinham de ser tocaiados; arcos e flechas provavelmente substituíram as lanças usadas nas caçadas comunais. Tais caçadas eram coisas públicas, na certa envolvendo a participação de mulheres e crianças, e muitas vezes produzindo carne mais que suficiente para todos. Arcos e flechas, por outro lado, serviram para "privatizar" a caça, e com isso a propriedade de qualquer carne adquirida. As regras tornaram-se essenciais para sua distribuição, sobretudo porque os animais menores e solitários agora caçados ofereciam menores quantidades. Lynn Wadley, da Universidade de Witwatersrand, sugeriu que o padrão típico visto entre recentes caçadores-coletores africanos, como os !Kung, de mulheres como coletoras de plantas excluídas da caça, pode datar da adoção do arco e flecha para a caça, talvez por volta de 16.000 a.C. nessa região do mundo. Embora as mudanças nos grandes mamíferos representados em Boomplaas e outras cavernas lembrem mais mudanças em estilos de vida humanos, os roedores são igualmente reveladores sobre a mudança ambiental. Durante o LGM e depois, as corujas com ninho na Caverna Boomplaas comiam mussaranhos, que se sabe habitarem matagais abertos; após 12.500 a.C., sua dieta tinha mudado para os camundongos e arganazes, de habitat florestal. O rato das dunas é um roedor particularmente útil, pois oferece um medidor de chuva, como as partículas de areia na Caverna de Drotsky. Sabe-se que o seu tamanho varia com a precipitação pluvial: quando chove, crescem mais, supostamente porque as raízes que consomem são mais abundantes e nutritivas; na seca, são relativamente pequenos; e quando as condições se tornam áridas, desaparecem inteiramente dos depósitos nas cavernas. Pelas medições de seus ossos sobreviventes, sabemos que os ratos de duna pegados pelos caçadores da Caverna da Baía dos Cefos entre 12.500 e 7.000 a.C. eram substancialmente maiores que os que vêm de depósitos anteriores e posteriores na caverna. Grupos de caça continuam indo e vindo a cada primavera, enquanto Lubbock, sentado dentro da Caverna da Baía dos Cefos, lê seu exemplar
de Tempos pré-históricos — sabendo que lhe resta pouco tempo para acabar o livro. Ele ergue o olhar toda vez que chega um novo grupo; eles às vezes vêm de mãos vazias, outras trazem ratos de duna amarrados na cintura ou uma carcaça meio esquartejada na mão. Na maioria dos anos, chegam apenas homens, mas de vez em quando mulheres e crianças acompanham os caçadores, e sua estada se estende de poucos dias para semanas. Lubbock não tem idéia de onde passam o resto do ano, mas nota que muitas vezes trazem lascas de pedra feitas de um material negro grosseiro inexistente nas vizinhanças da caverna. Essa pedra é greda negra, e sua fonte mais próxima fica a 200 quilômetros da Caverna da Baía dos Cefos. Assim que Lubbock viu os recém-chegados instalar-se, limpar os lugares de fogueira e afastar quaisquer insetos e répteis indesejados que se alojaram dentro da caverna, retorna às páginas de seu livro. A mesma rotina anual de caça e pesca, contar histórias e cantar, fumar, pilheriar e fazer instrumentos recomeça. Só quando as pessoas chegam no ano 12.000 a.C. ele compreende que andou a negligenciar a mudança do mundo lá fora. Dois pingüins aparecem dentro da caverna — não entrando por si mesmos, mas pendurados no pescoço de um caçador. Esse caçador é um dos vários recém-chegados, logo seguidos por mulheres e crianças com cestas de lapas e algas marinhas, em vez de raízes e tartarugas como nos anos anteriores. Parecem açoitadas pelo vento e salgadas, após catarem comida na margem do Atlântico. Enquanto Lubbock esteve sentado a ler, a maré foi chegando — não a maré diária, mas aquela que flui e reflui com a mudança do clima. O aquecimento global veio derretendo as geleiras do norte; bilhões de litros d’água despejaram-se nos oceanos; o nível do mar subiu e trouxe a margem do Atlântico para a distância de um dia de caminhada da caverna. Em 12.500 a.C., não está a mais de cinco quilômetros, e assim um novo tipo de detrito logo será jogado em seu chão. No dia seguinte, Lubbock acompanha as mulheres e crianças até a praia e vê uma cena conhecida, que sabe ser repetida em todo o mundo quando começa o Holoceno. Pegam-se mariscos — neste caso, sobretudo lapas. Revistam-se poças nas rochas e reviram-se pedras em busca de caranguejos. Enquanto as mulheres trabalham e as crianças brincam, focas vigilantes ondulam no mar. Ao anoitecer, depois que estiverem vindo para
a praia, a situação virará, quando os caçadores se aproximarem sorrateiramente delas, prontos para matar. Quando Lubbock é mais uma vez deixado sozinho na caverna, detritos da cata de comida do litoral juncam o chão: conchas de moluscos, penas de gaivota jogadas fora, ossos de focas, pingüins e peixes. O mesmo acontece no ano seguinte, e no seguinte. Como as mesmas pessoas continuam voltando, Lubbock observa: elas envelhecem e mudam. Os meninos não vão mais com as mulheres para a praia, mas acompanham os homens nas caçadas; meninas adolescentes chegam recém-grávidas ou com o primeiro filho; alguns não voltam — não apenas os velhos, que morreram em outra parte, mas os que se casaram e juntaram-se a outro grupo. A natureza da caverna também começa a mudar. Quando Lubbock chegou, era um acampamento de caça sem sinais de trabalho doméstico. Mas agora há mós no chão. Limpam-se couros dentro da caverna, fazemse roupas e contas de casca de ovo de avestruz. Lubbock vê o enterro de um bebê sob o chão da caverna; quando Parkington escavar o sítio, encontrará mais cinco. As visitas tornam-se mais longas e mais freqüentes, duas ou três vezes ao ano, evidentemente destinadas a pegar recursos no melhor ponto: mexilhões no fim da primavera, lapas no verão e focas no começo do inverno. Os caçadores-coletores estão sempre observando as nuvens e marés, aumentando continuamente seu conhecimento da paisagem marinha — onde os pássaros fazem ninhos, quando os peixes se reproduzem. Fazem-se adaptações às quantidades e gama de comida que reúnem; assim que os mexilhões se tornam mais prolíficos na praia — conseqüência de mudanças nas correntes ao largo e temperaturas do mar — passam tempo recolhendo-os, em vez das duras lapas, de gosto desagradável. Com o correr dos anos, com o mar avançando sempre mais para perto da caverna, o estuário do Verlorenvlei — o rio que passa pela Caverna da Baía dos Cefos — se torna o local favorito de catar comida deles; abatem-se pelicanos e flamingos com flechas, pega-se uma variedade de peixes em redes, recolhem-se lagostas, cormorões, mergulhões e gaivotas caem em armadilhas. À medida que essas espécies entram na dieta, outras vão sendo esquecidas ou não mais são encontradas. Quando Lubbock chegou, as mulheres e crianças passavam muitas horas procurando tartarugas no matagal em
torno da caverna; agora passam o tempo todo na praia. As tartarugas tornaram-se escassas, porque o solo e a vegetação estão inundados de sal. Uns poucos antílopes pequenos são caçados, mas o cavalo do Cabo desapareceu inteiramente dos restos da planície, que se tornou mais árida, as poucas fontes de água doce desapareceram e plantas suculentas que chegam à altura dos joelhos agora crescem no antigo matagal. Em 10.000 a.C., o chão da caverna é um fedorento monturo de conchas; depois de haver-se sentado e dormido em tais monturos em outras partes do mundo pré-histórico, Lubbock não deseja fazê-lo de novo. Na verdade, é hora de sair numa excursão, visitando outras cavernas bem no interior, antes de retornar ao Cabo Ocidental em 7.000 a.C. para ver o quanto mudou a vida na Caverna da Baía dos Cefos nos milênios intermediários. Após subir a escarpa para as altas planícies hoje conhecidas como Grande Karoo, Lubbock cruza o matagal seco pontilhado de arbustos enfezados, no rumo nordeste. A paisagem, na maior parte, é poeirenta e aborrecida, uma mistura de amarelos calcinados e pardos sedentos. O ar é límpido, e todas as direções são limitadas por colinas e topos de montanha. Quando chega a chuva de verão, cai em tais torrentes que a água escorre do chão cozido para dentro de toda fissura e vala, antes de entrar nos rios e correrem para o mar. Dificilmente parece umedecer o solo; e, no entanto, fica um legado de curto prazo no súbito aparecimento de flores de delicado matiz — roxo, branco, carmim c amarelo-canário — todas fulgindo vívidas sobre um tapete de verde. Depois de viajar quase 800 quilômetros desde a Caverna da Baía dos Cefos, e atravessar altas planícies, colinas, salinas e lagos secos, Lubbock chega à Caverna Wonderwerk, nos flancos leste das colinas Kuruman. A noite caiu. Ele se aproxima sob um céu estrelado, ao som de cantos e palmas lá dentro; ao entrar na caverna, vê vinte ou trinta mulheres sentadas em torno de uma fogueira, oscilando ao ritmo de sua música; um número semelhante de homens dança em torno do círculo. Outro conjunto de figuras, de tamanho gigante, apresenta-se caoticamente nas paredes: sombras humanas projetadas pelas chamas tremulantes. A música ecoa nas câmaras escuras da caverna. Lubbock aguarda o momento e então se junta às mulheres sentadas, espremendo-se dentro do círculo e pegando o ritmo com as mãos. Várias lajes de pedra foram postas em torno da fogueira, cada uma com a forma de um animal gravada. Os dançarinos freqüentemente passam por entre as
mulheres, ou mesmo saltam por cima delas, baixam para examinar as pedras, pegando-as firme e dizendo fórmulas mágicas ao cefo, cavalo e búfalo que mostram. Agora também Lubbock sua e oscila, bate palmas no ritmo e canta, envolvido pela música e a dança, as chamas e o ar quente, pungente, drenado de oxigênio. A dança torna-se frenética; vários homens começam a tremer, arrepiar-se e balançar, e então, num estado semelhante ao transe, deixam o mundo terreno dentro da caverna. Dois cambaleiam em torno do círculo, pondo as mãos trêmulas em cada pessoa sentada, os dedos espremendo couros cabeludos num pedido para que a doença se vá. Outros desabam, tremendo incontrolavelmente no chão, um sangrando em profusão pelo nariz. Acaba. As palmas, canto e dança têm uma parada súbita. Os xamãs se contorcem no chão e depois se imobilizam; os outros jazem estendidos de costas, arquejando forte, aliviados por terem sido curados de seus males. A Caverna Wonderwerk teve uma longa história de estudo. As escavações iniciais foram feitas na década de 1940, seguidas por novo trabalho em fins da de 1970, em parte por Anne e J. Francis Thackeray, da Universidade de Yale. A caverna tem depósitos com artefatos de pedra que remontam a muito antes do LGM; as camadas de 10.000 a.C. e depois contêm ossos de animais de espécies pastadoras como zebra, alcéfalo e gnu. O hoje extinto cavalo do Cabo encontra-se na mais baixa das camadas do Holoceno. Além de artefatos de pedra e ossos de animal, os Thackerays encontraram várias placas de pedra com gravuras; todas, com exceção de uma, continham imagens geométricas e datavam de tempos relativamente recentes do Holoceno. Uma placa, no entanto, datava de 10.000 a.C. e foi a base do meu elaborado cenário da dança medicinal xamanística. Não tem mais de 8 centímetros de largura e mostra uma imagem inacabada de um mamífero não identificável, que parece um cavalo ou um antílope sem cabeça. Muitas outras obras de arte podem ter estado presentes dentro da Caverna Wonderwerk em 10.000 a.C., pois suas paredes estão cobertas com pinturas de data desconhecida. Sabemos que os artistas já trabalhavam no sul da África em 20.000 a.C., por causa de uma coleção de placas pintadas da Caverna Apolo, na Namíbia, que mostram uma criatura parecida com uma girafa, um rinoceronte e um gato selvagem que alguns acreditam ter pernas humanas. Os arqueólogos continuam sem saber se datam de 20.000 ou 40.000 a.C.; qualquer que seja a data, estabelecem que pessoas
já haviam começado a pintar animais em superfícies de rocha antes de 10.000 a.C. Também sabemos que pedaços de casca de ovo de avestruz eram gravadas em 12.000 a.C. — possivelmente muito antes — e que se faziam gravuras em superfícies de rocha durante todo o Holoceno. A pintura foi largamente praticada por povos indígenas do sul da África — os boxímanos San — durante todo o tempo histórico. As pinturas mais recentes foram extensamente estudadas pelos arqueólogos e sabe-se que mostram práticas xamanísticas: comunicação com um mundo do espírito, e viagens para lá, de alguns indivíduos que têm o dom de fazê-lo. Em vista das semelhanças entre sua imagística e a arte de 10.000 a.C. e antes, como a presença de formas meio humanas, meio animais, é bastante possível que as práticas xamanísticas também motivassem a criação de arte rupestre do sul da África em tempos préhistóricos. Nessa base repousa meu cenário de uma dança curativa na Caverna Wonderwerk em 10.000 a.C. A primeira pessoa a perceber que danças em transe, visões e xamãs proporcionam a chave para compreender a arte rupestre dos séculos XIX e XX no sul da África foi David Lewis-Williams, professor de Arqueologia Cognitiva da Universidade de Witwatersrand. Fazendo um estudo detalhado dos registros históricos de boxímanos San, e falando com os que ainda sobreviviam, ele encontrou impressionantes semelhanças entre as práticas xamanísticas San e a imagística na arte deles. Descobriu que muitas pinturas representam danças em transe, mostrando grupos de corpos oscilantes; outras registram a própria experiência do transe. Os próprios xamãs podem ser reconhecidos nas pinturas pelo sangue a jorrar do nariz de uma figura, ou por suas formas em parte humanas e em parte animais — sendo a transformação em outra espécie uma parte-chave da experiência do transe. As pinturas de cefos são particularmente significativas porque esse animal continha a potência que os xamãs precisam dominar para entrar em transe. Quando eles dançavam, muitas vezes se voltavam para as pinturas de cefo nas paredes da gruta — como imaginei os da Caverna Wonderwerk fazendo com as placas gravadas no chão. As histórias escritas registram que quando o transe era completo, os xamãs falavam ao grupo de suas visitas ao mundo dos espíritos; a arte rupestre indica que usavam as pinturas nas paredes das cavernas para fazer o mesmo.
Sentindo-se particularmente animado após a dança, Lubbock deixa a Caverna Wonderwerk para continuar sua excursão pelo sul da África. A localidade seguinte que deve visitar é a Caverna da Cabana Rosa, 450 quilômetros a sudoeste, aonde chegará em 8.500 a.C. A região é relativamente exuberante; seus matagais e arbustos sustentam mais animais do que ele viu antes nessa região do mundo. Isso reflete em parte outro aumento na precipitação pluvial e na temperatura, e em parte o fato de que viajou mais a leste, para uma área que sempre foi uma paisagem mais produtiva que a Grande Karoo. Ele agora passa por mais locais de acampamento que jamais antes; vê caçadores tocaiando caça e mulheres arrancando tubérculos do chão. Há de fato um grande aumento no número de sítios arqueológicos conhecidos no sul da África após 12.000 a.C., o que deve refletir um substancial aumento na população humana. Em 10.000 a.C., as pessoas evidentemente começaram a ocupar todos os variados habitats da região. A maioria dos sítios, porém, não passa de pequenos grupos de instrumentos de pedra jogados fora e o lixo de sua fabricação. Desde o LGM, os caçadores-coletores do sul da África moldaram nódulos de pedra em núcleos muitas vezes de forma cônica e dos quais se destacavam lâminas pequenas e finas. Os arqueólogos usam o termo sítios "Robberg" para designar tais coleções de instrumentos. Muito poucas das lâminas receberam outros desbastamentos para torná-los formas específicas. Algumas podem ter sido encaixadas em lanças, mas seriam pouco mais eficazes que as pontas feitas de madeira endurecida. Não eram, porém, o único tipo de instrumentos de pedra em uso no sul da África. Também se faziam grandes lascas, muitas das quais eram mais desbastadas em formas chamadas de raspadores, enxós e rastilhas. Os sítios que contêm tais lascas e instrumentos — conhecidos pelos arqueólogos como sítios "Oakhurst" — encontram-se em grande número por todas as paisagens abertas do interior do sul da África. Muito poucos podem ser datados, mas acredita-se que a maioria fique entre 12.000 e 7.000 a.C., coincidindo com uma proliferação de pontas de osso que indicam um acentuado aumento na caça com arco e flecha. John Parkington sugeriu que as mesmas pessoas fizessem os tipos de instrumento Robberg e Oakhurst — que eram na verdade complementares. Embora as pequenas lâminas pareçam adequadas para uso na caça e pesca, as grandes lascas e raspadores parecem mais úteis
para limpar alimentos vegetais, preparar couros e trabalhar madeira. E assim, diferentes instrumentos podem ter sido feitos e abandonados dependendo de quais atividades se tratava. Podia também ser uma questão de simples geografia, com as matérias-primas disponíveis ditando que tipo se fazia. No interior, as rochas de grão grosseiro, como greda negra, eram encontradas em grandes blocos, possibilitando que se destacassem facilmente grandes lascas. Os nódulos de quartzito encontrados nas baixadas do Cabo levam mais à fabricação de lâminas pequenas e delicadas. Os sítios em cavernas com longas seqüências de depósitos em camadas, porém, como a Caverna da Cabana Rosa, aonde Lubbock está para chegar, sugerem ser improvável que a explicação por Parkington das duas tecnologias esteja inteiramente correta. Mostram consistentemente que as grandes lascas e raspadores foram feitos numa data posterior aos núcleos cônicos e lâminas pequenas. Parece que uma tradição foi completamente substituída por outra em toda a região — uma acentuada mudança na fabricação de instrumentos que coincidiu com a expansão da habitação humana para o interior do sul da África. Após outros 5 mil anos, os estilos de fabricação de instrumentos retornou mais uma vez à produção de lâminas, que os arqueólogos chamam de tradição Wilton. Uma trilha batida em meio a uma vegetação de arbustos leva Lubbock a uma caverna incomum, formada por uma grande rocha caída da face de um rochedo e encerrando o grande abrigo atrás. De dentro vem o barulho de conversas e risadas, de pelo menos vinte pessoas que se sentam em torno de lareiras num espaçoso interior, a rocha abrigando-as do frio vento do lado de fora. Mais luz entra por uma clarabóia natural no teto. Com isso, Lubbock vê feixes de capim e folhas que serão usados como cama encostados nas paredes da caverna, e um nicho entupido de lenha. Enfiaram-se pedaços de pau em fendas para servir de cabides para sacos, roupas, vasos d'água, arcos e uma carcaça esquartejada. Todos, com exceção dos muito pequenos, parecem trabalhar. Perto da entrada alguns homens lascam pedras. Usam o tipo negro, de grão grosso, e deixam toda nova lasca cair, aparentemente indesejada, no chão, embora uma ou outra seja apanhada dos detritos e posta de lado para ser mais trabalhada. Outro grupo senta-se mais para os fundos, na limpeza e preparação de couros — raspando a gordura, esticando, torcendo e batendo para torná-los mais maleáveis. Na viagem desde a
Baía do Cefo, Lubbock ficou sabendo que esse trabalho em couro é sempre feito pelos homens — eles caçam os animais e, portanto trabalham suas peles, fazendo roupas, cintos e sacos. Três outras lareiras são cercadas por mulheres, meninas e os bebês. Em duas destas, raízes bulbosas são moídas e reduzidas a uma papa; na terceira, duas mulheres sentam-se juntas transformando fragmentos de casca de ovo de avestruz em contas. Ouve-se um rumor constante de conversas em cada lareira; de vez em quando, uma pessoa ocupa o palco central e conta uma história a todos. Lyn Wadley, da Universidade de Witwatersrand, escavou os restos dessa cena, junto com os de várias outras cujos detritos se misturaram. Encontrou concentrações de carvão e osso queimado, indicando onde ficavam as lareiras, densos conjuntos de pedra lascada perto da entrada e fragmentos de casca de ovo de avestruz indicando o local da fabricação de contas. Havia também uma lareira cercada por instrumentos que sugere trabalho em madeira, e mós onde pigmentos tinham sido preparados, enquanto a química dos sedimentos da caverna indicava que muito material vegetal fora trazido para dentro, acabando por apodrecer no chão. O trabalho de Lyn baseou-se numa longa história de escavação no que é uma caverna, sobretudo impressionante — que atraiu continuamente os arqueólogos, como fez com os caçadores-coletores na pré-história. As camadas que datam de 10.000 a.C. formaram-se acima das que remontam a mais de 50.000 a.C. e abaixo de uma seqüência de camadas que acabaram apenas há uns 500 anos. Pelas camadas mais recentes, Lyn descobriu que a caverna era um local de encontro e centro ritual dos ancestrais imediatos dos historicamente conhecidos boxímanos San. Uma de suas muitas pinturas rupestres mostra uma dança medicinal; outra, uma leoa andando entre um rebanho de cefos. Lyn interpreta a última como mostrando a sempre presente ameaça do mal ao bem — o dócil e gregário cefo representando o ideal de comportamento humano entre os San. Em 8.500 a.C., Lubbock entra na caverna, passando nas pontas dos pés por entre as lareiras até a parede do fundo, onde encontra um pouco de capim para sentar-se. Logo depois que ele se instala, chegam mais visitantes; gritam alto do lado de fora, causando um súbito silêncio antes que todos se levantem para recebê-los. Entra o que parece ser uma família — duas crianças, três adultos, uma dos quais carrega um bebê, uma velha. Após muitos cumprimentos formais e informais, todos se sentam de novo,
tendo-se os recém-chegados espalhado entre as lareiras, cada pessoa com amigos ou parentes particulares. A família visitante só fica na Caverna da Cabana Rosa dois dias. Quando eles partem, Lubbock nota que as moças usam novas contas, e os homens têm pontas de flecha de osso, presentes dados em troca das roupas de couro que trouxeram. O próprio Lubbock fica mais alguns dias, passando um deles numa caça e outro à procura de plantas comestíveis, antes de partir uma manhã muito cedo, enquanto o grupo continua a dormir na caverna. Reuniões c visitas anuais entre grupos, famílias e indivíduos que passam a maior parte do ano separados eram cruciais para o estilo de vida dos modernos boximanos. Era com elas que se renovavam as amizades, passava-se informação e faziam-se outros ritos de passagem c trocavamse presentes. Estes últimos eram essenciais, criando e afirmando laços de amizade a que se podia recorrer em tempos de necessidade. Quase tudo podia ser um presente, mas os artigos mais valiosos eram pontas de flecha de pedra e contas de casca de ovo de avestruz. Cada indivíduo, dos mais novos aos mais velhos, tinha seu próprio conjunto de doadores de presentes, encontrados dentro do seu próprio grupo e de outros. Alguns parceiros podiam ver-se uns aos outros apenas uma vez por ano, se muito. Nenhuma dupla tinha exatamente o mesmo conjunto de parceiros, o que produzia uma "rede de doação de presentes" que se estendia por centenas, senão milhares, de quilômetros pela paisagem. Quando a antropóloga Polly Wiessner estudou a doação de presentes entre os boxímanos do Kalahari no início da década de 1970, descobriu que mais de dois terços dos bens de cada pessoa tinham sido recebidos como presentes de seus parceiros doadores. O resto fora feito ou comprado, e destinava-se a ser dado. Essa rede de doação de presentes revelou-se crucial para a sobrevivência no Deserto de Kalahari. Com seu imprevisível regime de chuvas, cada grupo enfrentava um constante risco de escassez de comida e água. Se isso ocorria, os membros podiam recorrer à ajuda dos parceiros doadores que viviam em outras partes, pois eles eram obrigados a partilhar sua comida. Polly descreve como funcionava isso a partir de suas próprias experiências em 1974. Um grupo de !Kung enfrentou séria falta de comida: ventos fortes durante toda a primavera haviam destruído a safra
de nozes que eles esperavam colher, e chuvas excepcionalmente fortes tinham levado a um capim demasiado alto, tornando difícil a captura de lebres e espalhando a caça maior. Em agosto, os !Kung passavam a maior parte do tempo fazendo artesanato para servir como presentes e sabendo por visitantes passageiros das condições em outras partes. Em setembro, o grupo já começara a dispersar-se, as pessoas comunicando o desejo de visitar parentes "porque sentiam saudades deles e queriam dar presentes". Dentro de duas semanas, metade da população partira, espalhando-se muito entre outros grupos e aliviando a pressão sobre os que ficaram. Lyn acredita que os que ocupavam a Caverna da Cabana Rosa em 10.000 a.C. também se preocupavam com a doação de presentes. A partir de 12.000 a.C., a Caverna da Cabana Rosa e outros sítios arqueológicos começam a conter artigos que teriam sido ideais como presentes, notadamente pontas de flecha de osso e contas de casca de ovo de avestruz. Lyn não acha coincidência que isso apareça em maior número apenas quando as pessoas começaram a colonizar as paisagens do interior do sul da África — coisa que se refletiu no aparecimento de tantos instrumentos Oakhurst. Tendo a segurança de parceiros doadores de presentes, as pessoas podiam arriscar-se a explorar novas paisagens e assentar-se naquelas onde podia surgir uma súbita escassez de comida. Lubbock já viajou cerca de 400 quilômetros até a quarta caverna de sua excursão pelo sul da África, a última antes de voltar ao Cabo Ocidental. É a Caverna Boomplaas, hoje localizada num penhasco de calcário acima do leito do vale do Congo. Encarapitado numa rocha do lado de fora, ele admira a vista do vale, e depois abre mais uma vez Tempos pré-históricos. Hilary Deacon, hoje na Universidade de Stellenbosch, África do Sul, procurou uma caverna como a Boomplaas no início da década de 1970. Ele queria escavar uma que tivesse depósitos cobrindo pelo menos de 100 mil anos atrás até tempos recentes; também queria uma caverna que contivesse lareiras bem conservadas, ossos de animais e outros restos orgânicos. Boomplaas quase se encaixava no papel — os primeiros depósitos tinham "apenas" 80 mil anos, e assim Deacon teve de cavar em outra parte para retornar no tempo além daquela data. Boomplaas oferece valiosa informação sobre as mudanças no ambiente e estilos de vida humanos quando o Pleistoceno chegou ao fim e começou o Holoceno. Mas são as camadas mais recentes escavadas por Deacon que tanto importam para sua história. Ele descobriu que estrume de carneiro
formava as camadas de cima, conseqüência de pastores que usaram a caverna como aprisco nos últimos cem anos. Essas pessoas foram um dia descritas como "hotentotes" e é sobre elas que Lubbock lê agora em Tempos pré-históricos Para sua história dos hotentotes, o John Lubbock vitoriano recorreu a um livro escrito por um homem chamado Kolben que aspirava a ser uma história do Cabo. Continha os insultos hoje conhecidos, aplicados a tantos dos "selvagens modernos" descritos em Tempos pré-históricos. Os hotentotes eram "em muitos aspectos o povo mais sujo do mundo"; um de seus costumes, confinar velhos numa choupana solitária, onde, "sem ninguém para confortá-los ou ajudá-los", "morrem ou de velhice ou de fome, ou são devorados por algum animal selvagem"; as crianças indesejadas — segundo Kolben — eram "enterradas vivas". Outros costumes eram descritos como impróprios para publicação. O Lubbock vitoriano preocupava-se com a exatidão dessas afirmações, e observou sua incompatibilidade com descrições anteriores dos hotentotes como "as pessoas mais amistosas, mais liberais e mais benévolas umas com as outras que já apareceram na terra". Tendo visitado tantos "selvagens" do mundo pré-histórico, o John Lubbock moderno sabia que seu xará estava inteiramente certo em questionar aquela última barragem de ofensas racistas vitorianas. Interessava-se mais pelas cuidadosas descrições do autor de roupas e trabalho em ferro dos hotentotes, das bexigas de animais e cestos de palha impermeabilizados que eles usavam para guardar leite. Embora a data seja 8.000 a.C., recipientes semelhantes já eram usados dentro da Caverna Boomplaas, não para leite, mas para água e plantas coletadas. Os animais domesticados e pastores só chegarão dentro de mais 7 mil anos, pelo menos. Lubbock fecha o livro e abriga-se na caverna quando a chuva começa a cair. No chão, espalham-se tapetes feitos de juncos trançados, entre os quais se acha o conhecido grupo de um acampamento de caçadores-coletores — várias lareiras, couro meio trabalhado, lascas de pedra, cestos, gamelas e lenha. Por baixo há muitas camadas de terra socada compostas de aluvião e areia trazidos pela água, rocha erodida da parede da caverna e restos decompostos de tapetes, cestos e sacos. Isso por sua vez cobre os detritos dos que usaram a caverna antes do início do Holoceno, caçando cefo, cavalo do Cabo e búfalo gigante quando os matagais cobriam o vale do Cango.
Isso fora antes de arbustos espinhosos e árvores substituírem os matagais em 12.000 a.C. E assim quando, em 8.000 a.C., um grupo de caçadores chega à Caverna Boomplaas, traz a carcaça meio esquartejada de um pequeno antílope que vivia mais de comer arbustos do que de pastar no chão. É o steenbok, um animal que se encontra no vale do Cango hoje. Como esses e outros animais semelhantes se espalharam com o novo mato baixo, os de pasto tiveram de ir procurar comida em outro lugar. Alguns, como o rinoceronte branco e o gnu preto, conseguiram fazer isso e sobrevivem hoje. Mas seis espécies se extinguiram: o cavalo do Cabo, o búlalo gigante, o gnu gigante, o springbok de Bond, o springbok do sul e um grande porco parecido com o javali africano. Richard Klein, da Universidade de Chicago — que estudou os ossos de cavernas do sul da África durante mais de trinta anos — questionou se se pode atribuir o fim dessas espécies apenas à mudança de clima e seu impacto sobre a vegetação. Uma das principais preocupações de Klein é que as espécies condenadas já tinham sobrevivido a vários períodos anteriores de mudanças de clima equivalentes. Além disso, como vários sobreviveram até 10.000 a.C., parece ter uma lacuna de pelo menos dois mil anos entre a disseminação da floresta e sua extinção. O springbok de Bond sobreviveu ainda mais, e era caçado em 6.500 a.C., em vista de ossos encontrados dentro de outra caverna. E assim Klein pensa que os caçadores coletores da Caverna Boomplaas e outras partes tiveram um papel no último desaparecimento desses animais. Não precisavam ter feito muita coisa — apenas o abate de uns poucos de cada espécie todo ano poderia ter tido um efeito devastador em populações já em estado frágil. A mudança da caça com lança para o uso de arco e flecha pode ter sido um fator importante. E também a expansão da população humana para o interior, por meio da rede de doação de presentes. Durante períodos climáticos anteriores, quando os matagais foram reduzidos pela disseminação de árvores, espécies como o cavalo do Cabo e o búfalo gigante poderiam ter sobrevivido no interior, livres da ameaça de predação humana. Mas em 12.000 a.C. tais refúgios tinham sido perdidos, diante da nova expansão de assentamento humano. Já não havia lugar seguro para esperar a volta de condições mais amenas. Assim, a situação do sul da África parece semelhante à da América do Norte, onde as extinções se deram em âmbito muito mais extenso. Nas
duas regiões, as mudanças ambientais apenas parecem insuficientes para ter causado a extinção. Também o era a extensão da caça humana. Mas o impacto combinado das duas coisas parecia ter sido tão fatal para o cavalo do Cabo e o búfalo gigante do sul da África quanto para o mamute e a preguiça do chão americanos. Da Caverna Boomplaas, Lubbock dirige-se para o oeste, retornando à caverna na Baía dos Ccfos onde começou sua excursão pelo sul da Alrica. Enquanto faz isso, o clima começa a mudar de novo. Após pelo menos mil anos de crescente chuva, essa tendência inverteu-se, possivelmente com o retorno apenas à chuva de verão — coisa que inibiu o crescimento da vegetação e causou a retirada de alguns animais comedores de arbusto das margens de sua área. Quando Lubbock chega à Caverna da Baía dos Cefos em 7.000 a.C., não apenas a planície costeira já desapareceu inteiramente, mas também grande parte da praia rochosa onde ele vira a coleta de moluscos, algas e caranguejos. Resta pouco mais que uma faixa de areia improdutiva. Enquanto ele andou viajando pelo interior, o nível do mar continuou a subir, chegando a três metros acima do que é hoje. A caverna acha-se agora isolada sobre uma ponta de terra, exposta aos ventos atlânticos e freqüentemente mergulhada em neblina, e a mais próxima fonte de água doce fica a cerca de vinte quilômetros de distância. A Caverna da Baía dos Cefos está deserta por dentro. Uma camada de areia soprada pelo vento cobre as conchas, ossos de animais e outros detritos que um dia se acumularam em seu chão. Um monte de cocô diz a Lubbock que o lugar é agora usado por animais; os sedimentos no fundo foram perturbados pelo covil de um chacal. Lubbock senta-se no chão frio e úmido, não surpreendido por terem as pessoas partido para viver em outra parte. Tampouco ficou John Parkington quando encontrou uma lacuna cronológica no uso fora isso contínuo da Caverna da Baía dos Cefos. Ele concluiu que as pessoas tinham ido viver no interior, onde se podia encontrar água doce com facilidade. Sem ninguém para observar nem luz para ler, Lubbock lembra o que mais está acontecendo no mundo perto dessa data na história humana. Em Jericó, um rapaz cobre de gesso a caveira do pai, e em Nikomedeia, na Grécia, os primeiros agricultores limpam a terra. Na outra ponta da Europa, caçadores-coletores assam avelãs numa minúscula ilha escocesa. Um estouro de bisões ocorre em Horner, nas Grandes Planícies da
América do Norte, e abóboras são colhidas no vale de Oaxaca e vicunhas pastoreadas nos Andes. No outro lado do mundo, as paredes de rocha da Terra de Arnhem na Austrália são pintadas com serpentes do arco-íris e inhames. No leste da Ásia, arroz selvagem começa a ser semeado em Pengtoushan e esparrelas para javalis são cavadas nas Colinas Tama do Japão. Em Damdama, no Ganges, uma tartaruga é içada de um rio próximo. Lubbock pensa nos agricultores recém-assentados que constróem casas de adobe em Mehrgarh e Jeitun, e nos de longa data que fazem vasos e discutem com mercadores visitantes na cidade de Yarim Tepe. Mas seus pensamentos são levados quando as fortes chuvas começam a cair e as ondas do Atlântico quebram na praia, jogando espuma carregada de sal dentro da caverna. Já escureceu completamente. Como não há possibilidade de luar nessa desenfreada tempestade, Lubbock se encolhe para dormir no frio chão da caverna. A Caverna da Baía dos Cefos iria ficar sem uso por mais 4 mil anos — período em que todo o Cabo Ocidental também seria efetivamente abandonado. Só após 2.500 a.C., depois que o nível do oceano baixou, essa caverna se tornou mais uma vez um abrigo favorecido pelos catadores de moluscos na praia.
50 Raios nos Trópicos Caçadores-coletores na África Central e Ocidental; mudança ambiental na África Oriental, 7.000 – 5.000 a.C. John Lubbock abriga-se da chuva que não pára sob uma enorme rocha de granito. A pedra fica em cima de um amontoado de rochas e cobre a entrada de pequena caverna onde se sentam outros três homens, encolhidos em torno de uma pequena fogueira. A data é 7.000 a.C., e Lubbock está no oeste da Nigéria. A caverna se tornará conhecida como Iwo Eleru — um nome local iorubá que significa "pedra de cinzas". Encostado na parede, Lubbock observa os homens comendo brotos tirados da floresta em volta; puxam-nos entre os dentes para desprender a polpa, deixando um emaranhado de fios no chão. Os homens permanecem dentro da caverna, comendo e conversando, até que a chuva começa a passar. E então, após uma breve troca de palavras, desaparecem entre as árvores do lado de fora. No início de suas viagens pelo sul da Ásia, o vislumbre que Lubbock teve dos habitantes da Idade da Pedra dessa região tem de permanecer frustrantemente breve, porque poucos restos arqueológicos são conhecidos entre 20.000 e 5.000 a.C. É difícil encontrar sítios de qualquer tipo; e as efêmeras lareiras e instrumentos de pedra típicos deixados espalhados pelos caçadores-coletores são quase impossíveis de localizar. A pesquisa aérea não consegue penetrar no dossel da floresta tropical para identificar monumentos ou ruínas, e quaisquer outros artigos no chão estão escondidos sob a densa vegetação. A grande maioria de locais de acampamento, outrora localizadas em margens de rios, terá sido levada por inundações ou enterrada pelo aluvião. E assim os arqueólogos dependem em grande parte de descobertas casuais de camponeses e dos que abrem estradas ou cavam poços. As cavernas dentro das partes rochosas da doresta oferecem a melhor possibilidade de encontrar ocupação pré-histórica. Mas como a poeira transportada pelo ar é escassa e essas cavernas são formadas de granito resistente, não têm os depósitos no chão necessários para lacrar e
preservar detritos humanos deixados dentro. Iwo Eleru é a única exceção. Em fins da década de 1960, Lhurston Shaw, então professor de Arqueologia na Universidade de Ibadan, quis examinar a arqueologia do fim da Idade da Pedra na Nigéria: a que vinha depois de 15.000 a.C. Estava interessado, sobretudo na antigüidade de numerosos machados de pedra que vinham à luz com descobertas aleatórias em todas as florestas do oeste africano. Eram conhecidos localmente como "raios", e muitas vezes colocados por sacerdotes do local em posições veneradas, como nos altares a Sango, o deus do trovão. Desconfiando de que eram na verdade produtos da Idade da Pedra, Shaw começou a procurar uma caverna adequada para escavar, e acabou por encontrar Iwo Eleru, localizada a meio caminho entre a costa sul e a borda nordeste da floresta tropical. A caverna fora usada antes como abrigo temporário. É provável que cada ocupação tenha durado pouco mais que alguns dias e fosse separada por longos intervalos, talvez de um século ou mais, da seguinte. A mais recente fora por camponeses de uma aldeia local a 10 quilômetros de distância — as cinzas de suas fogueiras deram nome à caverna. Sob esses detritos modernos, havia pedaços de cerâmica e fragmentos de machados — os primeiros feitos por volta de 3.000 a.C., os últimos cerca de mil anos antes. A cerâmica e os fragmentos de machado foram encontrados em camadas que continham microlitos c raspadores, juntos com um grande número de núcleos e aparas de lascas. Continuavam até abase do depósito na caverna, datada de 10.000 a.C. E assim a tecnologia da pedra lascada permaneceu sem mudança por todo o Holoceno. Além do aparecimento de machados e cerâmica, o único indício que Shaw descobriu de mudanças em estilos de vida vinha de um aumento gradual no uso de jaspe negro para fabricação de instrumentos. Essa pedra é muito melhor para lascar que o quartzo existente no local, mas a fonte mais próxima ficaria pelo menos a 50 quilômetros da caverna. Só uma minúscula proporção dos instrumentos nos níveis mais baixos era feita de jaspe negro; nas camadas de cima, ele era usado em mais de 30% dos instrumentos. Isso podia indicar muitas coisas: que as pessoas viajavam distâncias mais longas durante suas caçadas e coleta de plantas, que se faziam viagens especiais para recolher nódulos de jaspe negro. Sem mais indícios, é difícil saber qual — se alguma — destas explicações é correta. A única outra descoberta em Iwo Eleru foi um mal preservado túmulo de homem nas camadas de baixo, datando de alguns séculos antes da
chegada de Lubbock. Shaw não conseguiu localizar um poço funerário nem qualquer outro artigo deliberadamente colocado dentro da cova; ele pensa que o corpo foi deixado muito contraído e coberto apenas com uma fina camada de terra. Os dentes do homem são descritos como "gastos até as gengivas em grandes declives e curvas que deixam apenas pequenas meias-luas de esmalte em torno da borda". Esta é na verdade uma característica dos restos dentais de caçadores-coletores em ambientes equatoriais, resultado de puxar plantas fibrosas e cobertas de areia entre os dentes para tirar as partes carnosas comestíveis. No LGM, Iwo Eleru era cercada pela savana, e a floresta tropical do sul da África se restringia a pequenos refúgios ao longo da costa e nas margens de grandes rios. De 12.000 a.C. em diante, crescentes chuvas e temperaturas fizeram a floresta espalhar-se muito além de suas fronteiras atuais. Hoje há uma lacuna no sentido oeste-leste, do longo da floresta do oeste africano, conhecida como a Fenda de Daomé, que fica nas Repúblicas de Togo e Benin. A floresta de cada lado tem uma gama idêntica de animais e plantas, indicando que um dia foi uma só. Em outra parte, a extensão da floresta no Holoceno Inicial é evidente pelos tocos de espécies da floresta tropical encontrados dentro de solos enterrados de savana que ficam além dos limites da floresta de hoje. Em vista da ausência de ossos de animais e grãos de pólen nos depósitos dentro de Iwo Eleru, é quase impossível dizer exatamente quando a caverna foi cercada pela floresta como é hoje. Os microlitos e raspadores de Iwo Eleru são essencialmente os mesmos que os encontrados em sítios do leste e do sul da África, como a Colina Lukenya e a Caverna da Cabana Rosa, que se sabe haverem sido em mata aberta ou savana. Shaw sugere que o aparecimento de machados de pedra polida algum tempo após 4.000 a.C. pode assinalar a data em que Iwo Eleru foi cercada pela floresta tropical, exigindo que seus ocupantes modelassem novos instrumentos. Mas apesar disso, parece improvável que o abrigo tenha ficado em savana aberta até então. Diagramas de pólen do lago Bosumtwi, em Gana, sugerem que um substancial reflorestamento já começara em 10.000 a.C. Quando fazia sua viagem da Caverna da Baía dos Cefos a Iwo Eleru, Lubbock revisitou inicialmente localidades pelas quais havia passado na jornada para o sul. Voltou à Caverna Pomongwe, nas Colinas Matopos do Zimbábue de hoje, onde, em 15.000 a.C., encontrara os dois caçadores
fazendo um acampamento de pernoite. Na segunda visita à caverna, um grupo de mulheres e crianças espalhava-se pelo matagal próximo e parecia coletar bagas. Lubbock parará para ajudar e descobrira que elas catavam lagartas — bastante mais nutritivas. Os arbustos estavam sobrecarregados, permitindo às mulheres e crianças comerem enquanto trabalhavam e ainda encherem os cestos que traziam. Os cestos eram levados para a caverna e esvaziados em poços de armazenamento nos fundos, tampados com folhas presas por pedras. A caverna transformara-se desde a visita anterior de Lubbock 8 mil anos atrás, virando um assentamento-chave para as muitas famílias que caçavam e coletavam regularmente nas agora bem aguadas Colinas Matopos. Lenha e substanciais montes de capim empilhavam-se contra as paredes para uso como cama, e feixes de flores e ervas secas pendiam de tarugos. Perto da entrada, uma grande quantidade de brasas refulgentes transformava-se em cinzas, protegidas do vento de fora por um quebravento de arbustos. Parecia uma lareira de uso comunal; em torno das paredes havia outras menores, de aparência privada. O chão estava coberto de tapetes nos quais se exerciam várias atividades artesanais — pedaços de couro cortado, cascas de ovos de avestruz, agulhas de osso e mós espalhavam-se em volta. As mulheres e crianças sentavam-se agora nos tapetes, esperando a volta de um grupo de caça. Lubbock olhou dentro dos poços de armazenamento no fundo da caverna. Um era revestido de raízes e continha as bagas, outro estava vazio, mas fora equipado com um casco de tartaruga, supostamente para manter seco o seu conteúdo. Da Caverna Pomongwe, Lubbock refez seus passos anteriores dentro do Deserto de Kalahari; a Caverna de Drotsky estava vazia, embora tivesse detritos recentes no chão. Cinqüenta quilômetros mais ao norte, porém, ele encontrou uma reunião de várias famílias dentro das três impressionantes Colinas Tsodilo — conhecidas hoje como homem, mulher e criança. As pessoas tinham como base uma caverna de aparência impressionante, com um grande teto acima, dentro da qual secavam várias prateleiras de cascudos, lembrando a Lubbock o Wadi Kubbaniya em 20.000 a.C. Ele logo descobriu que aquelas pessoas do Kalahari também pegavam peixes que se reproduziam num lago próximo imediatamente após a inundação anual. Lubbock passou alguns dias pescando, mais uma vez usando as mãos para pegar por baixo dóceis peixes nos rasos, embora
seus novos companheiros preferissem usar lanças com pontas de osso farpadas. Quase todas as demais atividades cm andamento na caverna eram conhecidas de Lubbock. As mulheres sentavam-se em grupos pequenos ao ar livre, fazendo contas de casca de ovo de avestruz e moendo várias raízes. Faziam-se microlitos e raspadores, usados para consertar armas de caça e limpar couros, esculpiam-se novas pontas do osso da perna de um antílope. A única coisa nova para Lubbock — pelo menos na África — era ver a preparação de pigmentos. Torrões de tufo calcário branco e ocrevermelho eram reduzidos a um fino pó, depois misturado com água em bacias de carapaça de tartaruga. Figuras humanas e sinais enigmáticos eram pintados nas paredes do que seria adequadamente conhecido como Gruta das Pinturas Brancas. Após deixar as Colinas Tsolido, a etapa final da viagem de Lubbock a Iwo Eleru levou-o à recém-expandida floresta tropical da bacia do Congo. Passou grande parte do tempo num rio ou noutro, após "descolar" uma carona de canoa ou "tomar emprestada" uma embarcação. Gostou de estar de volta nos trópicos, sentindo-se tão esmagado pela extravagância da natureza como quando viajara no sudeste asiático e no Amazonas. Grandes corredeiras espumavam embaixo de altos picos, com uma beleza igualada primeiro pelos vividos búceros e martins-pescadores, e depois pelas flores de cor laranja, carmim e puro branco encontradas no chão da floresta. A vida silvestre, dos hipopótamos e gorilas às moscas e mosquitos dos man-guezais, cercava-o em profusão. As únicas pessoas que viu foram em minúsculos grupos ao longo das margens dos rios; elas sempre desapareciam na floresta antes que ele pudesse alcançá-las, ou remavam depressa em suas canoas. Além de uma faca com lâmina de pedra perdida ou jogada fora e um punhado de lascas de nódulos de quartzo numa localidade que hoje conhecemos como Besongo, nas margens do rio Busira, não deixaram outros traços. Como em outras partes da África, os arqueólogos se frustraram na bacia do Congo — sobretudo quando se trata de estabelecer por quanto tempo as pessoas podem ter vivido no coração das florestas tropicais. Embora se descobrissem duas lascas de pedra em 1945, o primeiro comunicado formal de instrumentos de pedra da bacia do Congo só foi feito quarenta anos depois. O arqueólogo Johannes Preuss efetuou uma pesquisa
sistemática da área em 1982-1983, trabalhando com o Museu Nacional do Zaire, como era chamada então a região. Trabalhou em torno da margem do lago Tomba, imediatamente junto ao próprio rio Congo, e depois nas margens de vários rios tributários, em busca de restos arqueológicos. As margens dos rios eram particularmente desafiadoras para pesquisar, por serem ou planas e inteiramente cobertas de vegetação, ou abertas, mas muito inclinadas. Mesmo assim, após pesquisar mais de mil quilômetros de margens, encontrou 19 grupos de artefatos para acrescentar aos das margens do lago. Besongo, no rio Busira, foi um dos sítios mais produtivos — forneceu 94 lascas. Muitos outros não produziram mais que duas ou três peças. A única pista sobre a idade das lascas de quartzo, e as poucas peças lascadas e transformadas em instrumentos de trabalho, é que devem ser mais novas que os sedimentos nos quais foram encontradas. Preuss datou estes de 25.000 a.C. Mas ainda não se sabe se as lascas de quartzo indicam que havia pessoas na bacia do Congo em 20.000, 15.000 ou 5.000 a.C., ou mesmo apenas há alguns séculos. A idade delas faz uma substancial diferença quanto ao tipo de estilo de vida que devemos associar-lhes; se de 15.000 a.C. ou antes, por exemplo, as pessoas teriam vivido dentro de uma savana, cm vez do habitat de floresta tropical em que as lascas foram encontradas. Qualquer que seja a sua idade, as pessoas que as jogaram fora viajavam evidentemente longas distâncias, pois a fonte mais próxima da pedra que usavam fica a pelo menos 200 quilômetros. Outro conjunto de problemas enfrentou Lawrence Robbins, da Universidade do Estado de Michigan, e seus colegas, quando analisaram as descobertas de suas escavações na Gruta das Pinturas Brancas, nas Colinas Tsodilo, em Botsuana. O trabalho deles revelara uma admirável profundeza de depósitos, demonstrando que seres humanos vinham usando a caverna por pelo menos 100 mil anos. O nome vem do grande número de pinturas brancas que cobrem suas paredes, incluindo representações de um elefante, cobras e figuras a cavalo. As últimas não podem ter muito mais de um século, pois só se viram cavalos no Kalahari em meados da década de 1800 d.C. Tradições locais atribuíam as pinturas a boxímanos recentes — situação inteiramente diferente das pinturas da Terra de Arnhem, Austrália, e Bhimbetka, Índia, que foram feitas antes da memória viva e atribuídas a seres sobrenaturais. Mesmo assim, algumas pinturas na Gruta das Pinturas Brancas poderiam ser muito mais antigas
que outras; as perto do chão estão desbotadas e provavelmente foram feitas quando o chão da caverna era bem mais baixo que hoje. Sob os mais recentes depósitos da caverna, Robbins e seus colegas encontraram uma camada de areia entupida de cascudos, microlitos, fragmentos de casca de ovo de avestruz, mós e pontas de osso farpadas. Infelizmente, ele não conseguiu datar essa camada com mais precisão do que situá-la entre 21.000 e 3.000 a.C. O problema é que as grandes quantidades de ossos de peixe sugerem lagos e poços próximos, os últimos dos quais são documentados entre 19.000 e 14.000 a.C. Supõe-se que as Colinas Tsolido eram inteiramente secas no Holoceno, como são hoje, com as mais próximas possibilidades de pesca a 45 quilômetros de distância, no rio Okavango. Mas datas de radiocarbono indicam que ocorreu a pesca entre 9.000 e 3.000 a.C., o que combina com o estilo dos artefatos de pedra e de osso. O dilema de Robbins é exacerbado pela forte probabilidade de os artefatos se terem movido dentro da areia mole do chão da caverna: espinhas de peixe e pedaços de carvão podem ter sido arrastados para cima ou para baixo por roedores em suas tocas. Isso foi de fato demonstrado por um fragmento de arpão de osso que se descobriu combinar com outro descoberto 20 centímetros abaixo. É provável que essa profundidade de areia tenha levado 4 mil 500 anos para acumular-se; poderia facilmente ter sido penetrada por muitos outros fragmentos de ossos e carvão. A data em que uma série de poços de armazenamento foi feita no fundo da Caverna Pomongwe, nas Colinas Matopos, é também um tanto vaga. Os poços foram escavados no início da década de 1960 por Cran Cooke, que fez trabalho arqueológico pioneiro no que era então a Rodésia. Ele descobriu grossas camadas de cinzas dentro da área de entrada, e sapatas de pedra que sugerem um quebra-vento. Os poços continham uma legião de descobertas interessantes: um tinha lagartas queimadas; vários tinham sido revestidos com capim, outro com um casco de tartaruga; um outro poço continha as raízes de uma planta venenosa (Boophone disticha), supostamente usada para impedir que insetos atacassem seu conteúdo original. Outro poço fora usado como lareira e ainda continha um pedaço de barbante muito queimado, de fibra de casca de árvore torcida, preservado porque fora protegido embaixo de uma laje de pedra. Quando Nicholas Walker, da Universidade de Uppsala, fez um novo estudo da Pomongwe no início da década de 1980, teve acesso às
anotações inéditas de Cooke. Havia várias datas de radiocarbono, que iam de 13.000 a 2.000 a.C. Descobriu-se que nem sempre estavam na ordem certa: uma camada era datada como mais nova que outra acima dela, ou datas inteiramente diferentes vinham da mesma camada, ou a idade parecia inadequada aos tipos de instrumentos que pretendiam datar. Walker concluiu que o mais provável era que os poços datassem de cerca de 4.000 a.C., mas os indícios continuam discutíveis. Se ele estiver certo, isso não exclui a possibilidade de que as lagartas tenham sido colhidas 3 mil anos antes, quando Lubbock fez sua segunda visita à Caverna Pomongwe. Viajando nas florestas tropicais do centro e oeste da África, Lubbock não pôde avaliar a impressionante mudança sofrida pelos lagos do leste. Quando passara pelas margens dos lagos Turkana e Victoria no LGM, a água estava em níveis muito abaixo dos de hoje. Muitos lagos menores haviam desaparecido inteiramente. Em 7.000 a.C., ocorria exatamente o oposto: durante vários milhares de anos os lagos em muito excediam seus níveis atuais. Assim como as maiores chuvas após 12.000 a.C. possibilitaram à floresta tropical expandir-se mais do que hoje, também elevaram as bacias de lago do leste da África a níveis sem precedentes. As novas margens ainda são bastante visíveis como faixas de conchas e sedimentos do lago encalhadas no alto e seco muitos metros acima do atual nível da água. O lago Turkana ficava 85 metros acima do que fica hoje, dobrando o tamanho de sua corrente e fazendo-a transbordar a bacia e lançar água no sistema do rio Nilo. Numerosas pequenas bacias foram inteiramente inundadas; muitos dos pequenos lagos hoje encontrados no Vale Rift do sul da Etiópia se juntaram e formaram um imenso lago que transbordava no rio Awash. As margens dos lagos evidentemente se revelaram lugares de pesca atraentes, pois se encontram vários sítios contendo microlitos e pontas de osso farpadas em torno das linhas da margem do lago Turkana. Um desses sítios é Lowa-sera, no Quênia, onde as pontas farpadas têm finos sulcos em torno da base, indicando que linhas foram um dia amarradas ali. Encontraram-se espinhas de peixe, assim como ossos de crocodilo c hipopótamo. Após 12.000 a.C., a África tropical teve o mais úmido período de sua história recente, recebendo talvez 50% mais chuva do que hoje. A última causa foi uma mudança para o norte do sistema de monção, que levou
chuva aos trópicos, privando áreas mais ao sul como o Kalahari. Essa situação não ia durar, porém; os níveis dos lagos caíram e as florestas recuaram para suas posições atuais. O norte da África teve uma história de chuva semelhante, o que deu temporariamente ao Saara uma paisagem bastante diferente da que conhecemos hoje. É o que Lubbock vai descobrir na penúltima etapa de sua jornada em volta do mundo.
51 Carneiro e Gado no Saara O desenvolvimento do pastoralismo no norte da África, 9.600 – 5.000 a.C. A data é 6.800 a.C. — não se passaram mais de duzentos anos desde que Lubbock deixou Iwo Eleru e dirigiu-se para o que é hoje o Deserto do Saara, no norte. Enquanto andava, a floresta tropical ia ficando rala, e ele encontrou muitos grupos de caçadores-coletores descansando em acampamentos e cavernas. Lubbock levou pouco tempo para chegar à parte leste do maciço central do Saara, conhecido hoje como Tadrart Acacus. É uma massa de calcário e xisto antigos que se ergue de um mar de areia em volta para leste e oeste. Os wadis do Acacus estão secos quando ele chega, mas a região se acha evidentemente bem aguada por chuvas de verão. Em vez de areia vazia, os rochedos e penhascos são cercados por uma savana de mato baixo, com tamarizes e pés de acácia em torno de lagos e poços rasos. Os lados dos wadis, em forma de penhascos, abrigam numerosas cavernas e grutas, diante das quais as pessoas fizeram seus acampamentos. Como muitos que Lubbock viu em todo o mundo, há quebra-ventos e pequenos abrigos de palha, lareiras, mós, montes de lascas de pedra, detritos da fabricação de cestos e limpeza de couros; as mulheres, que carregam cestos de semente derrubadas de espigas de capim selvagem, foram mais produtivas. A princípio, a vida pouco parece ter mudado desde que Lubbock iniciou sua viagem global em Ohalo. Mas ele logo muda de idéia quando visita duas cavernas com uma coisa muito diferente a oferecer. A primeira parece pouco mais que um recesso abaixo de uma extensa plataforma do rochedo. O chão do lado de fora está inteiramente limpo de detritos humanos, e Lubbock nota que as pessoas parecem passar muito ao largo da entrada da caverna quando transitam pelo wadi. Dentro, o chão é nu: rocha sólida com alguns trechos de areia soprada pelo vento. Na parede do lado direito há uma pintura — um desfile de figuras esquemáticas ao longo de uma linha ondulada. Pintadas apenas em esboço, têm cabeças exageradas e nelas usam adereços enfeitados com faixas paralelas e plumas. Todas se voltam para o leste, algumas
aparentemente em posição de adoração — curvadas ou com os braços erguidos e bem abertos. Duas figuras são anômalas; uma é pintada em vermelho forte e a outra está de cabeça para baixo, as pernas muito abertas. Ao deixar essa caverna, que se tornará conhecida como Lan Muhuggiag, Lubbock não andou mais que alguns quilômetros antes de passar por uma segunda que se sente compelido a visitar. Tem uma entrada enormemente alta e larga em forma de arco, e é cercada por um acampamento de caçadores-coletores. Há poucos ocupantes, sentados num grupo e conversando animados sobre algum assunto que Lubbock não entende. Quando passa, ele nota um vaso cheio d'água no chão; a primeira cerâmica que vê desde que deixou Yarim Teppe, na Mesopotâmia. Pegando-o, corre os dedos sobre as linhas onduladas gravadas em sua superfície. Ao entrar na segunda caverna, o cheiro de estéreo e urina anuncia a presença de carneiros. Quatro deles estão num aprisco no fundo; não animais domésticos, de lã branca, mas selvagens; os mesmos, na verdade, que Lubbock viu caçados nas cavernas de Tamar Hat e Haua Fteah no início de suas viagens africanas. Estão sobre camadas de estéreo pisoteado e endurecido e comem a forragem enfiada entre os fortes galhos que os retêm. São criaturas fortes, impressionantes, mas têm as patas feridas e ensangüentadas das tentativas de fugir do aprisco. Animais sob controle humano são outra coisa que Lubbock ainda não viu em sua jornada africana. Quando se volta para deixar a fedorenta caverna, ele nota pinturas de figuras com cabeças redondas semelhantes às que acabou de olhar. Estas estão desbotadas e meio cobertas de terra. Uan Afuda, como é conhecida a caverna hoje, evidentemente perdeu qualquer significado religioso que algum dia teve. Em lugar dos deuses e espíritos estão carneiros — seres menos espirituais, porém de vantagens mais práticas em tempos de necessidade. Uan Afuda foi escavada em 1993-1994 por Mauro Cremaschi e Savino di Lernia, das Universidades de Milão e Roma, que descobriram que tanto a própria caverna quanto a área imediatamente fora foram usadas como local de acampamento a partir de 9.500 a.C. Vários outros sítios já haviam sido escavados na região, e Uan Afuda a princípio pareceu encaixar-se num padrão existente de acampamentos-base de caçadores-coletores nos
locais de acampamentos no Acacus e de pernoite nas baixadas em volta. Mas Uan Afuda continha uma descoberta muito intrigante: uma camada de 40 centímetros de espessura de estéreo endurecido no fundo da caverna, datando de 7.000 a.C. A princípio, julgou-se que isso resultava de carneiros selvagens que se abrigavam na caverna quando não ocupada por seres humanos. Mas após estudar chãos de caverna onde animais se abrigam no Acacus hoje, di Lernia percebeu que esses animais produzem apenas fezes soltas e esparsas. Comparada com estas, a densa e compacta camada de estéreo de Uan Afuda não parecia natural. Quando escavada, descobriu-se que continha detritos humanos: pedra lascada, torrões de carvão, ossos esquartejados. Também continha pólen e fragmentos de uma estreita gama de plantas que inclui cereais selvagens, figos e Echium — uma espécie conhecida por ser tóxica. Essa gama de plantas não poderia ter-se acumulado por si mesma, e nenhum animal teria escolhido tal dieta. O animal que deixou o estéreo foi identificado como o carneiro berbere, em parte pelo tamanho e forma de suas bolas de fezes, e em parte porque não se encontraram outros candidatos. Escavaram-se alguns ossos de outras espécies — chacal, alcélafo, porco-espinho — mas os de carneiro berbere eram de longe os mais numerosos. E assim di Lernia concluiu que por volta de 7.000 a.C. animais foram encurralados e alimentados dentro da caverna. Plantas tóxicas como Echium podem ter sido incluídas para atuar como soporífero e manter sob controle animais excitáveis — mais ou menos como os camponeses dão a seus carneiros folhas de salgueiro quando querem acalmá-los. A administração de carneiros selvagens na Caverna Uan Afuda surgiu como conseqüência de flutuações entre condições relativamente úmidas e secas no Saara central. Em 12.000 a.C., substanciais chuvas produziram lagos de água doce e abundantes poços e pântanos dentro e em torno do Acacus. Isso atraiu animais e pessoas de volta ao Saara central após a extrema aridez do LGM; surgiu um estilo de vida baseado na caça ao carneiro berbere, complementado pela colheita de plantas e tubérculos. As primeiras pinturas dentro de Uan Afuda, Uan Muhug-giag e outras cavernas foram feitas nesse tempo relativamente rico— representações de animais selvagens que antecederam as figuras de cabeça redonda vistas por Lubbock nas paredes. Di Lernia acha que a mudança da caça para o encurralamento do
carneiro berbere se deveu a um acentuado declínio em sua disponibilidade no agreste. A partir de 8.000 a.C. — talvez um pouco antes — as chuvas começaram a reduzir-se mais uma vez, poços secaram e a quantidade de vegetação caiu. Vários milênios de caça podiam já ter reduzido seriamente o número de animais selvagens no Acacus e em volta, mas mesmo que não, essa volta da aridez exigiu uma substancial mudança nos estilos de vida humanos. Em vez de abandonarem a região como um todo — como tinham feito habitantes anteriores — as pessoas começaram a explorar uma gama de recursos mais ampla e a usar as existentes de novas formas. Encontram-se as primeiras mós, indicando um maior uso de capins selvagens trabalhosos de coletar e preparar. Aparecem também os primeiros vasos de cerâmica, as superfícies decoradas com linhas em ziguezague e onduladas. Talvez seu objetivo primeiro fosse fazer uso mais eficaz de suprimentos de água cada vez mais escassos. A inovação mais importante, porém, foram a captura e o encurralamento do carneiro berbere. Com toda probabilidade o abate só ocorria quando surgia a necessidade, proporcionando um seguro contra estações de seca e recursos potencialmente escassos. Di Lernia acha que os animais eram de propriedade comum, e, portanto o encurralamento não teria interferido na ética de partilha dos caçadores-coletores. Mas já surgira, pelo menos, o potencial da propriedade privada de um recurso valioso. Processo semelhante pode ter levado à domesticação de cabras e carneiros no oeste da Ásia. Mas, como confirmaram estudos genéticos, o carneiro berbere jamais produziu um primo domesticado. Isso talvez se deva a que a lenta transição de selvagem para doméstico tenha sido detida quando as pessoas de Uan Aluda tiveram de mudar mais uma vez seu estilo de vida após 7.000 a.C. Essa data assinala a chegada de um novo povo às suas terras, um povo que vinha do leste, trazendo uma cepa inteiramente domesticada — não carneiro, mas gado. Antes da chegada dos pastores de gado, os caçadores-coletores do Acacus tinham desenvolvido um estilo de arte típico, envolvendo as figuras de cabeça redonda que Lubbock viu pintadas nas paredes de suas cavernas. Essa arte tem sido estudada desde a década de 1950 por Fabrizio Mori, da Universidade de Roma, cujo trabalho culminou com um magnífico corpus publicado em 1998. Registrando trabalhosamente pinturas e gravuras feitas em vários estilos, Mori estabeleceu três períodos sucessivos de arte
antes de 5.000 a.C.: grandes animais, "cabeças redondas" e "pastoril", em que predomina o gado. Traços de pigmentos em mós, representações de carneiro berbere e a ausência de gado das pinturas "cabeças redondas" levaram-no a acreditar que elas foram feitas entre 9.500 e 7.000 a.C. Mori acredita que as figuras de cabeça redonda em Uan Muhuggiag estão fazendo culto na hora do amanhecer, e que as linhas onduladas abaixo representam água que corre no wadi. Há outras pinturas de "cabeças redondas" dentro da caverna, uma das quais inclui duas formas alongadas que parecem cadáveres envoltos prontos para o enterro. Encontrou-se de fato um túmulo perto da entrada da caverna — um homem deitado de costas com as mãos no rosto como para defender-se." Mori pensa que Uan Muhuggiag, mantida inteiramente limpa de detritos humanos, foi um lugar de profundo significado religioso para os que caçaram e depois encurralaram carneiro berbere no Acacus. A data é 6.700 a.C., e Lubbock está no meio de uma multidão que se formou rapidamente nas vizinhanças de Uan Afuda. Todos olham um menino que surgiu no cume de uma duna próxima. Ele, porém, é de menos interesse que o gado a seu lado. Os animais parecem os que Lubbock viu em Yarim Tepe na Mesopotâmia, com as costas largas e não as ancas típicas do zebu do sul da Ásia domesticado em Mehrgarh, Embora as pessoas que usam Uan Afuda e outras cavernas há vários anos saibam da disseminação para oeste dos pastores de gado, é a primeira vez que se vê o novo estilo de vida pastoril no próprio Acacus. Juntam-se ao menino — cerca de 10 anos de idade — dois garotos mais velhos. Durante vários minutos, os caçadores-coletores e pastores de gado se encaram, antes que os meninos dêem meia-volta e desapareçam atrás da duna. A multidão se dispersa para fogueiras e cavernas, onde sem dúvida discutirá como deve reagir a esse novo povo em seu meio. Lubbock já sabe o que tem de fazer: visitar esse novo mundo pastoril africano, que continuará no continente muito depois de sua excursão global chegar ao fim. Ele viaja para leste por uma paisagem de baixo matagal e semideserto, pontilhada por rasos lagos sazonais. Logo encontra um local de acampamento abandonado — pequenos círculos de pedras que foram usadas como lareiras e vários detritos humanos, incluindo ossos de gazela e lebre esquartejadas. Entre esse amontoado há várias pedras em pé com cordas ainda presas, onde o gado foi amarrado, e com toda probabilidade
será de novo. Sua próxima parada é Nabta, no leste do Saara, um acampamento de pastores de gado localizado a cerca de 2 mil quilômetros de Uan Afuda e não mais de cem do Wadi Kubbaniya, no vale do Nilo, onde ele antes colheu tubérculos no LGM. Lubbock chega ao anoitecer de um dia de verão em 6.700 a.C., abrindo caminho por entre arbustos que lhe alcançam os joelhos, e encontra uma dúzia de palhoças circulares e oblongas reunidas à margem de um lago raso. Uma pequena boiada acha-se no chão dentro de um cercado feito de galhos espinhosos. Um grupo de homens e garotos adolescentes senta-se diante das choupanas apreciando o pôr-do-sol, as mulheres conversam em pequenos grupos em torno das palhoças e as crianças brincam por perto. Quando Lubbock se aproxima, acendem-se fogueiras c o crepúsculo de repente vira noite. Ele está tão exausto que entra na palhoça mais próxima e adormece num tapete de palha no chão. O mugido do gado ao ser levado da aldeia para pastar acorda-o antes do amanhecer. A choupana onde dormiu revela ser a da cozinha: perto dele uma mulher prepara comida. É alta e esguia, o corpo envolto num couro bem cortado e os cabelos negros amarrados dentro de um lenço. Ela cuida de um vaso de cerâmica meio enterrado no chão de areia, entre brasas que aquecem a mistura parecendo mingau. Tudo o que a choupana contém, além dessa lareira e vários tapetes, é uma pequena pilha de lenha e um feixe de ervas pendurado do teto. A própria choupana é uma construção simples, mas robusta — um círculo de galhos de tamariz enfiados no chão, amarrados no ápice e cobertos de peles de animais formando uma cúpula. Lubbock vê a mulher servir o mingau em várias cuias de cabaça. Leva-as para fora, onde o marido, mãe e filhos esperam para comer. Lubbock passa o dia observando a vida nesse acampamento de pastores. Torna a encontrar a mulher elegante dentro de uma choupana oblonga próxima, que tem nichos para dormir nos lados e camas feitas de pilhas de finos galhos e couros. Ela está acocorada junto à fogueira, cantando para si mesma enquanto espera que alguns torrões de carvão comecem a arder dentro de uma lareira. Assim que eles desprendem um forte cheiro aromático, ela joga o carvão em dois baldes feitos de couro esticado em armações de madeira. Gira-o e despeja-os de volta na lareira, preparando assim os baldes para receber o leite dessa manhã. Logo após o amanhecer o gado retorna, conduzido por vários rapazes e
meninos. São vinte animais ao todo, mas o rebanho dispersa-se em quatro grupos menores, cada um de uma das famílias do acampamento. É trabalho das jovens levar seus bezerros de um cercado menor e deixar que eles mamem por um breve tempo, antes de as mulheres irem ordenhar as vacas nos baldes fumigados. Uma vez feito isso, a família reúne-se num círculo junto à choupana oblonga, cada um com uma cuia feita de meia cabaça. Lubbock senta-se com eles e observa que ninguém bebe enquanto o marido da mulher não fala, dizendo talvez uma prece ou bênção. Cada pessoa por sua vez pega então um pouco de leite com a cuia e põe-se a beber. Depois que todos se alimentaram e descansaram, os meninos levam o gado para buscar mais pastos; como é a estação úmida, há bastante suprimento de capim e nutritivas vagens de acácia por perto. Os bezerros são alimentados com forragem e levados pelas moças para beber à beira d'água, mas fora isso permanecem no acampamento. Lubbock faz diferente, seguindo atrás da mulher, que leva o leite que sobrou para a sua choupana cozinha e realiza tarefas domésticas. Os pisos de areia das choupanas são salpicados com água para impedir a poeira; pegam-se lenha e água; colhem-se galhos aromáticos para limpar os baldes de leite, junto com fibras de casca de árvore e raízes para consertar os tapetes. A velha mãe da mulher ajuda no trabalho e fica de olho nos dois netos pequenos, continuamente na iminência de engatinhar para a lareira aberta. Pouco depois, Lubbock se vê à beira do lago observando as crianças a brincar: caçando lagartos, jogando pedras, fazendo os papéis de um dono de rebanho com a esposa. Todas parecem ter menos de 10 anos, que parece ser quando começam seus papéis de adultos, Como os meninos maiores e homens não necessários para pastorear o gado partiram para caçar gazela e conferir suas armadilhas, o acampamento torna-se muito silencioso no calor do meio-dia. As crianças descansam, e os adultos cumprem suas tarefas à sombra. Os velhos fazem cordas e trabalhos em couro, as mulheres traçam os tapetes. No fim da tarde, Lubbock ajuda com a limpeza e fumigação dos vasos de leite, como preparação para a volta do gado. Quando o dia chega ao fim, qualquer rapaz disponível vai ao encontro dos pastores e ajuda a trazer o gado para casa. Ordenham-se as vacas de novo, antes que fique escuro demais para trabalho manual, e depois juntam-se aos homens visitantes de acampamentos próximos, que trazem algumas
folhas para mascar. As mulheres e crianças a princípio ficam juntas ouvindo a conversa dos homens, e depois fazem suas próprias reuniões para mexericar e contar histórias. As pessoas partem uma a uma em busca de suas camas. Lubbock volta à choupana cozinha, onde torna a dormir no chão. Se Lubbock teria de fato visto gado domesticado em Nabta e passado um dia assim — semelhante ao de recentes pastores de gado no leste da África — são questões discutíveis. O sítio foi escavado pela mesma equipe que trabalhou no Wadi Kubbaniya: a Expedição Pré-histórica Combinada chefiada por Fred Wendorf, Angela Close e Romuald Schild. Descobriram-se vários sítios em torno dos antigos depósitos de lagos de Nabta entre 1974 e 1977. Um desses — chamado H-75-6 — proporcionou coleções particularmente abundantes de restos de plantas e ossos de animais. Foi mais examinado entre 1990 e 1992, quando se descobriram as choupanas e lareiras em que se baseia a visita de Lubbock. Também se encontraram poços, sugererindo que as pessoas preferissem ficar em Nabta durante os meses de inverno, quando o lago estaria inteiramente seco. A descoberta mais importante foram ossos de gado, alguns datados de 9.000 a.C., quando não mais que acampamentos de curta duração eram feitos à beira do lago na estação chuvosa. Wendorf e seus colegas também encontraram ossos de gado de uma data semelhante em outros sítios no deserto, notadamente Bir Kiseiba, cinqüenta quilômetros a nordeste de Nabta. Nem a forma nem o tamanho desses ossos excluíam a possibilidade de virem de gado selvagem. Mas Wendorf e colegas julgaram que a paisagem em redor desses sítios seria demasiado seca para o gado sobreviver. Todos os outros animais representados em suas coleções de ossos — gazela, lebre, cágado e chacal — eram de tamanho pequeno e tinham-se adaptado às condições do deserto. Ao contrário dessas espécies, o gado precisa tomar água todo dia, e, portanto teria exigido ajuda humana para sobreviver no leste do Saara. O significado dessa afirmação é que põe a data da domesticação do gado no norte da África mais cedo que a do oeste da Ásia, que em geral se concorda seja por volta de 7.500 a.C. Antes da escavação de Nabta e Bir Kiseiba, havia um consenso de que o pastoreio de gado se espalhou do oeste da Ásia para o norte da África por volta de 7.000 a.C. — da mesma forma como se espalhou para a Europa — seguido um milênio depois por
carneiros e cabras domesticados. Não se derrubam facilmente as opiniões consensuais, e as afirmações de Wendorf logo foram contestadas por vários críticos, todos eles reconhecidos especialistas em domesticação de gado. Eles questionaram a data e identificação do pequeno número de fragmentos de ossos de "gado" que Wendorf encontrou; perguntaram por que os antílopes do deserto estavam ausentes das coleções de ossos se as condições eram tão severas, e sugeriram que os poços eram construções recentes acidentalmente escavadas em sítios arqueológicos. Wendorf e seus colegas responderam a essas críticas, e assim o debate foi paralisado. Só em 1996 apareceram de repente novos indícios, apoiando fortemente a posição de Wendorf — indícios que vinham do gado moderno. Uma equipe de geneticistas do Trinity College em Dublim, chefiada por Daniel Bradley e Ronan Loftus, comparou o DNA de gado africano e europeu para identificar quando haviam partilhado pela última vez um ancestral comum. Mediram a extensão da diferença entre as duas amostras de DNA, medindo com isso o número de mutações ocorridas desde que as duas linhagens divergiram. Usando uma estimativa para a taxa em que surgem novas mutações, pôde-se propor uma data real para a divergência. Bradley e Loftus concluíram que as cepas européia e africana vinham evoluindo separadamente por pelo menos 20 mil anos. E assim, o gado doméstico na África deve ter tido uma origem inteiramente independente do da Europa, que se sabe originário do Oeste da Ásia. Assim, a domesticação africana pode de fato ter ocorrido em 9.000 a.C. Em outras palavras, a interpretação por Wendorf dos ossos de Nabta e Bir Kiseiba foi inteiramente validada pela genética de gado moderno. É difícil dizer com precisão, porém, onde e exatamente quando apareceu o primeiro gado doméstico africano. Uma possibilidade é que isso tenha ocorrido no vale do Nilo em alguma data antes de 9.000 a.C. Talvez fosse apenas com o apoio do gado doméstico que as pessoas puderam espalharse pelas paisagens mais precárias do leste do Saara. Embora substancialmente mais úmido que hoje, quaisquer lagos ficavam secos durante o inverno, e a estiagem era freqüente. Infelizmente, há uma escassez de sítios arqueológicos no vale do Nilo entre 12.000 e 9.000 a.C. Mas como nenhum sítio de antes de 600 a.C. produziu ossos de animais domésticos, parece provável que a domesticação tenha surgido em outra parte.
Pode ter sido dentro do próprio leste do Saara. Nesse cenário, as pessoas dispersaram-se do vale do Nilo para viver um estilo de vida inteiramente diferente de caçadores-coletores nas bordas dos lagos do deserto em 10.000 a.C. Pode ter havido gado selvagem para a caça durante períodos de chuva relativamente elevada— embora nenhum desses animais seja conhecido. Podia-se ter capturado, amarrado e abrigado bezerros como um seguro contra escassezes de alimentos em futuros anos de seca — exatamente da mesma forma como pessoas no Acacus encurralaram alguns cordeiros selvagens dentro de suas cavernas. Com o tempo, à medida que o clima se tornava mais seco, as secas de inverno mais freqüentes e a água dos lagos menos confiável, as pessoas se tornariam tão dependentes de seu gado quanto o gado dos seres humanos para acesso a água e pastagem. As pessoas teriam podido usar o leite e sangue do seu gado, matando-o apenas por carne quando as condições se tornavam severas. E quando os tempos eram de desespero, o estoque doméstico e um novo estilo de vida de pastoreio poderiam ter evoluído facilmente dentro do leste do Saara em 9.000 a.C., espalhando-se para dentro — e não para fora — do vale do Nilo por volta de 5.000 a.C. Ali, seu leite, carne e tração acabariam por se tornar um dos fatores que estearam a civilização egípcia. Quer o gado domesticado se tenha desenvolvido no vale do Nilo ou no leste do Saara, pastores de gado já ocupavam as cavernas do Acacus em 6.500 a.C. — cerca de duzentos anos depois da visita de Lubbock. Os caçadores-coletores originais podem ter-se mudado para outra parte ou se misturado com migrantes do leste. Qualquer que seja o caso, Uan Muhuggiag e outros sítios foram usados como abrigos de gado, seus chãos cobrindo-se de estéreo, as paredes marcadas com uma nova e florescente arte que substituiu as figuras de cabeça redonda. As representações de gado servem para lembrar-nos que os animais dos pastoralistas eram muito mais que bens econômicos que forneciam leite, sangue, carne e couro: a vida social e os rituais deles, e alguns diriam sua própria forma de pensar, estavam intimamente interligados com seus animais. Em 6.700 a.C., Lubbock ficou em Nabta durante todo o verão e entrando nos meses mais desafiantes do inverno, quando o lago secou e se cavou um poço. Ele ficou sabendo mais da vida desses primeiros pastores de gado africanos — como cultivavam o painço e o sorgo selvagens, e como
as veias do gado eram cortadas com lâminas de pedra para fornecer nutritivo sangue. Lubbock participou de uma seqüência de cerimônias durante todo o ano, à medida que crianças entravam na puberdade, faziam-se casamentos e os velhos morriam. Sempre que ocorriam anos de seca sucessivos, o local de acampamento de Nabta era abandonado pelo vale do Nilo ou lagos sobreviventes em outras partes. Visitantes chegavam constantemente, assim como as pessoas de Nabta visitavam seus amigos e parentes em outras partes. A população de Nabta aumentou e famílias partiram para estabelecer novos acampamentos, abrindo aos poucos seu caminho para o Acacus no leste. Por volta de 5.800 a.C., visitantes do norte trouxeram um pequeno rebanho de carneiros e cabras, alguns dos quais logo estavam sendo pastoreados junto com o gado. Após um prolongado período de seca, a bacia de Nabta foi inteiramente abandonada, o que ocorreu por volta de 4.000 a.C. Lubbock, porém, já partira mais de cem anos antes — dirigindo-se para o vale do Nilo no norte, onde não apenas as viagens africanas, mas toda a sua viagem ao redor do mundo chegaria ao fim.
52 Agricultores no vale do Nilo e Além A chegada da agricultura de cereais ao norte da África, 5.5000 – 4.000 a.C. O vento esgarçou as nuvens a fios esfarrapados, e uma solitária garça real cruza ociosa o céu vermelhão e laranja, violeta, malva e o mais claro verde. De pé na borda de um promontório que se ergue acima das baixadas, John Lubbock vê o sol se pôr por trás dos campos de junco do delta do Nilo, num dia de verão de 4.500 a.C. Faz silêncio, além do fraco coaxar das rãs que vem de um pântano distante. A natureza montou um maravilhoso espetáculo para as últimas horas de Lubbock no mundo préhistórico. Ele vira-se e olha um conjunto de moradas às suas costas, imaginando se a cultura vai fazer o mesmo. Uma única pluma de fumaça sobe em espiral da aldeia, conhecida dos arqueólogos hoje como Merimde. Lubbock aproxima-se e entra numa mistura de cheiros de cozinha: carne assada, hortelã e pão assando sobre pedras quentes. Segue por um beco que serpeia entre moradas de adobe, de pisos tão rebaixados que seus ombros roçam os telhados de palha. Ouve murmúrios de vozes e o estalar de chamas; dobrando uma esquina, entra num pátio onde os aldeões se reúnem, pelo menos cem. Usam mantos elegantes, lenços na cabeça, contas e badulaques. Sentam-se ou ficam de pé em torno de lareiras onde a comida é cozinhada. Lubbock fica de pé no meio da multidão, que olha em volta em expectativa. E então outro viajante entra no pátio, este visível a todos e acompanhado de um velho local, talvez seu pai. Assim que aparecem, eleva-se um grito. Todos se levantam e erguem as mãos; fazem-se cumprimentos formulaicos, seguidos de palavras mais informais de boasvindas ao há muito esperado hóspede. As crianças precipitam-se para ele e o arrastam para um espaço vazio preparado com almofadas junto a uma fogueira onde uma cabra inteira foi assada num espeto. Quando ele se senta, os outros fazem o mesmo. Serve-se chá de hortelã. Agora que esse viajante chegou, o banquete e as celebrações podem começar. Lubbock jamais descobre quem ele é, por onde andou e por que é tão reverenciado. Pega às escondidas um pouco de pão e senta-se num canto, sem ser visto.
Após deixar os pastores de gado de Nabta, Lubbock seguiu o vale do Nilo rumo ao norte, refazendo a pé a viagem para o sul que fez de canoa em 20.000 a.C. A vida para muita gente dificilmente mudou desde então; ainda se caçavam gado selvagem e alcéfalo; ainda se pescavam cascudos em grande número sempre que eles se reproduziam; ainda se colhiam plantas selvagens. Algumas famílias também se dedicavam ao cultivo e administravam pequenos rebanhos de carneiros e cabras. Mas Lubbock permaneceu à distância de qualquer acampamento ou aldeia até chegar a um grande lago alimentado pelo Nilo, a menos de cinqüenta quilômetros de onde começava o delta. Isso era no que se chama hoje a Depressão de Fayum, onde se descobriram as mais antigas aldeias agrícolas conhecidas do vale do Nilo. Eram bem diferentes das que Lubbock vira na Europa e Ásia, pois as safras cultivadas e os animais domesticados continuam sendo meros complementos de uma dieta de caçadores-coletores. Lubbock passou dois séculos explorando os assentamentos localizados em torno do lago após sua chegada a Fayum em 5.000 a.C. Nenhum deles tinha qualquer morada mais substancial que choupanas de palha ou fora usado por mais que alguns meses em qualquer época. Seus ocupantes tinham pequenos rebanhos de carneiros, cabras e às vezes gado, freqüentemente levados para pastar no platô em volta. Semeavam-se cevada e trigo em pequenos tratos na planície aluvial do lago, depois deixados em descaso enquanto as pessoas caçavam e pescavam em outras partes, em Fayum e além. Imediatamente após as chuvas de verão, conseguiam-se cascudos em grandes quantidades em pântanos e poços que apareciam em torno do lago. Quando chegava o inverno, as pessoas voltavam as atenções para as aves silvestres, caçando-as e pondo armadilhas para elas dentro do pântano. Cultivavam-se cereais, e colhiam-se muitas plantas selvagens — muitas vezes em tais quantidades que se podiam fazer estoques para o caso de dificuldades mais adiante no ano. Em certa ocasião, Lubbock ajudou a encher vinte grandes cestos revestidos com grãos de cereais e outras sementes. Esses cestos ficavam em colinas pequenas, mas destacadas, a certa distância do assentamento à beira do lago onde as pessoas tinham base num conjunto de choupanas simples. Lubbock continuou sem saber se o cume era usado para proteger os depósitos da umidade e o risco de inundação do lago, ou para escondê-los dos muitos visitantes que vinham a Fayum em viagens Nilo acima e abaixo.
Em 4.800 a.C., Lubbock sentara-se na margem do lago e pensara na viagem em torno do mundo, desde Ohalo, passando por muitos locais de acampamento, cavernas, aldeias e cidades, enquanto viajava por 15.000 anos de história humana dentro de cada continente do mundo. Agora restava para visitar o único assentamento de Merimde no delta do Nilo. Não ficava mais de 100 quilômetros ao norte e seria lá que terminariam as suas viagens. A Depressão de Fayum foi mais intensamente explorada em busca de assentamentos do Neolítico que qualquer outra região do norte da África. Hoje, contém um pequeno lago sujo e salino, que cobre cerca de 200 quilômetros quadrados. Quando o historiador grego Heródoto o visitou em 450 a.C., maravilhou-se com o lago, que devia ter uma extensão 10 vezes maior; em 5.000 a.C., cobria mais de 20 mil quilômetros quadrados. Essas margens antigas foram mapeadas pela primeira vez no século XIX, e depois pesquisadas em busca de sítios arqueológicos na década de 1920 pelas arqueólogas de Cambridge Gertrud Caton-Thompson e Elizabeth Gardner. Uma das primeiras descobertas delas foi um monturo baixo e alongado que chamaram Kom W. Revelou ser um acúmulo de detritos de um estilo de vida misto de caçador-coletor e agricultor — carvão, ossos de animais, espinhas de peixe, cacos de vasos, artefatos de pedra e assim por diante. Em volta da borda, buracos foram cavados no leito de pedra para uso como lugares de cozinhar; alguns ainda tinham panelas contendo peixe e outros ossos. Os sinais de arquitetura estavam surpreendentemente ausentes — apenas simples abrigos devem ter sido usados enquanto o monturo se acumulava em muitas visitas breves à beira do lago. Kom W, um sítio ligeiramente menor, foi descoberto a pouca distância. Foi apenas a menos de um quilômetro dali que Gertrud e Elizabeth fizeram sua espetacular descoberta: 56 silos de grãos, escavados num pequeno cume, nove deles ainda contendo grãos e outras sementes. Outros 109 silos foram descobertos numa aldeia vizinha, um dos quais, continha grão queimado datando de pouco antes de 5.000 a. C. Esses silos sugerem a forma como pastoralistas recentes do leste da África, como o povo Kel Tamasheq de Mali, armazenam as sementes de capim selvagem. Fazem isso como um seguro contra escassez futura. O grão é secado e armazenado em sacos de couro ou buracos na areia. Se a safra seguinte proporciona grão suficiente, os depósitos são substituídos ou reabastecidos. De outro modo, é mantido e dizem que continua
comestível por pelo menos dois ou três anos. Após o trabalho de Gertrud e Elizabeth, vários projetos arqueológicos foram feitos dentro da Depressão de Fayum por equipes britânicas, americanas e egípcias — incluindo uma pesquisa da Expedição Préhistórica Combinada. Em conseqüência, descobriram-se muitos novos sítios, incluindo densos conjuntos de lareiras à beira do lago onde antes se secavam os peixes. Mas não se encontraram mais silos, nem qualquer indício de arquitetura mais substancial que choupanas de palha. A agricultura continuara evidentemente uma atividade marginal — os recursos selvagens em Fayum parecem ter sido tão abundantes e diversos que se podia ignorar em grande parte o trabalho duro de cuidar de plantas e animais domésticos. A mais antiga aldeia desse tipo que conhecemos do oeste da Ásia, com casas de adobe e pátios, encontra-se em Merimde. Esse sítio localiza-se 45 quilômetros a noroeste do Cairo, na borda oeste do delta do Nilo, e ergue-se como um pequeno tell sobre um esporão do deserto que se projeta na planície aluvial. Descoberto e explorado na década de 1930, Merimde foi mais estudado entre 1978 e 1988, revelando quase mil anos de ocupação entre 5.000 e 4.100 a.C. Começara a vida como acampamento de caçadores-coletores, e suas primeiras fases sugerem um estilo de vida muito parecido com o que ocorria em torno do lago Fayum, com substancial volume de pesca, caça e coleta de plantas selvagens. Usava-se o cultivo de cereais e os animais domésticos como simples complemento da dieta. Mas ao evoluir para uma aldeia agrícola, seu conjunto de simples cabanas cobertas de couro acabou sendo substituído por moradas em forma de domo, construídas com blocos de barro misturado com palha. Construíram-se celeiros, e a vida em Merimde foi estruturada pelo cultivo do grão e a administração de rebanhos. Ao contrário do gado, a fonte última de carneiro c cabra, trigo e cevada em Merimde, Fayum e Nabta era o oeste da Ásia. Não há sinais de que fossem domesticados independentemente no vale do Nilo, onde aparecem pela primeira vez muito depois de a agricultura ter-se estabelecido no vale do Jordão e além. Ainda não está claro exatamente como carneiros, cabras e cereais se espalharam pela África. Estações áridas podem ter expulsado os pastoralistas dos desertos de Negev e do Sinai para o vale do Nilo. Escavações em Merimde c Fayum recuperaram muitos tipos de instrumentos que são encontrados no oeste da Ásia, como pontas de
flecha tipicamente serrilhadas e cabeças de maça em forma de pêra. As artes de fiar e tecer também parecem ter-se espalhado a partir do leste. É provável que a migração de pessoas e o comércio tenham tido um papel na chegada de aldeias neolílicas de estilo asiático ao vale do Nilo, como fez na disseminação da agricultura na Europa. Mas ainda não está claro por que as cabras, carneiros e cereais demoraram tanto a chegar. Em 5.000 a.C., substanciais cidadezinhas agrícolas já prosperavam na Europa e no sul da Ásia, para onde o carneiro, a cabra c os cereais se tinham espalhado pelo menos dois mil anos antes. Isso exigira que migrantes ou comerciantes viajassem distâncias muito maiores que as necessárias para alcançar o delta do Nilo partindo do vale do Jordão. O deserto do Sinai pode ter sido uma barreira, mas esta dificilmente seria mais severa que o planalto iraniano que era preciso atravessar para a agricultura chegar ao sul da Ásia. Uma vez presentes no norte da África, assentamentos agrícolas semelhantes ao de Merimde logo se espalharam pelo vale do Nilo. Formavam pequenas comunidades dispersas de choupanas, poços de armazenamento e cercados de animais. Foram necessários outros mil anos para que surgissem assentamentos mais substanciais, com casas de adobe. Logo após 3.500 a.C., encontram-se os primeiros traços de canais — o início de um sistema de irrigação que seria a chave do cultivo de safras, no qual se basearia a civilização egípcia ao surgir nos dois mil anos seguintes. O impacto do cultivo de cereais e do pastoralismo na história africana está além do alcance cronológico deste livro. Basta dizer que a partir de 3.500 a.C. o norte da África se tornou severamente árido, como permanece até hoje. Os pastoralistas foram expulsos do Saara e seu estilo de vida aos poucos espalhou-se para o sul, à medida que as pessoas migravam para as paisagens de savana do oeste, leste e sul da África. Os caçadores-coletores indígenas provavelmente desempenharam um papel adquirindo eles mesmos gado, carneiro e cabra — talvez pelo roubo de animais ou ganho pelo comércio ou riqueza de noivos quando se acertavam casamentos. Em 3.000 a.C., o pastoralismo do gado estava presente nas bacias de rios do oeste africano e nas savanas em torno da Colina Lukenya; foram necessários pelo menos mais três mil anos para chegar ao Cabo. Essa dispersão para o sul foi uma coisa muito mais desafiadora que a disseminação para oeste das economias agrícolas pela Europa vários
milhares de anos antes. Os pastores africanos tinham de enfrentar paisagens quentes e devastadas por secas, uma multidão de predadores e — o pior de tudo — uma legião de parasitas e doenças endêmicas. Um aspecto final da agricultura africana que merece comentário é o cultivo de plantas indígenas, algumas das quais evoluíram para formas domesticadas. Muitas destas são conhecidas de tempos históricos, incluindo melancia, painço, sorgo de regiões de savana, junto com a noz de cola, óleo de palmeira e vigna das margens da floresta. Mas quase não temos idéia de quando começou o cultivo dessas plantas. Como explicou Jack Harlan, reconhecida autoridade em safras nativas africanas: "A agricultura africana pode ser tão antiga quanto qualquer outra, ou mais jovem que a maioria." Um véu de cheirosa fumaça paira sobre o pátio em Merimde onde o banquete chegou ao fim. Algumas pessoas já dormem em torno das fogueiras, outras falam baixo tomando chá. Lubbock senta-se em seu canto e observa o outro visitante de Merimde levantar-se para despedir-se. Conhece o procedimento correto: curva a cabeça, abraça e beija os anfitriões, diz as palavras apropriadas. E então deixa o pátio, acompanhado pelo velho com quem chegou. Também é hora de Lubbock partir. Sem ser visto por ninguém, também ele curva a cabeça agradecendo, não apenas ao povo de Merimda, mas a todos aqueles que viu no mundo pré-histórico. E também deixa o pátio, andando sozinho para dentro da escuridão.
Epílogo: "A Bênção da Civilização" Impactos passados, presentes e futuros do aquecimento global na história humana Em cada continente que visitou, John Lubbock entrou na história do mundo em 20.000 a.C. e saiu 15 mil anos depois. Suas viagens possibilitaram-me escrever mais uma narrativa sobre vidas humanas que um catálogo de descobertas arqueológicas. Quando começaram, era uma época de igualdade econômica global, quando todos viviam como caçadores-coletores num mundo de extensas camadas de gelo, tundra e deserto. No fim, muitos já viviam como camponeses. Algumas pessoas cultivavam trigo e cevadas, outras arroz, taioba ou abóbora. Alguns viviam de pastorear animais, algumas do comercio e outras de artesanato. Um mundo de acampamentos temporários fora substituído por outro de aldeias e cidadezinhas, um mundo com mamutes transformara-se noutro de carneiros e gado domesticado. Estabelecera-se o caminho para as imensas disparidades globais de riqueza com que convivemos hoje. Muitos caçadores-coletores sobreviveram, mas seu destino estava selado quando começou a agricultora. Os novos agricultores, ávidos por terra c comércio, continuaram a perturbar a vida dos caçadores-coletores. Foram seguidos por caudilhos e depois estados-nação que construíram impérios em todos os cantos do mundo. Alguns caçadores-coletores sobreviveram até tempos recentes vivendo nas partes aonde os agricultores não podiam ir: os inuit, os boxímanos do Kalahari c os aborígines do deserto. Mas nem essas comunidades existem mais, aniquiladas efetivamente pelo século XX. Não é coincidência o fato de a história humana ter atingido um ponto decisivo num período de aquecimento global. Todas as comunidades enfrentaram o impacto da mudança ambiental — súbitas enchentes catastróficas, gradual perda de terras costeiras, ausência de rebanhos migratórios, disseminação de densa e muitas vezes improdutiva floresta. E junto com os problemas, todas as comunidades se viram diante de novas oportunidades de desenvolver, descobrir, explorar e colonizar. As conseqüências foram diferentes em cada continente. O oeste da Ásia, por exemplo, por acaso tinha uma série de plantas selvagens adequadas ao cultivo. A América do Norte tinha animais selvagens susceptíveis de
extinção assim que a caça humana se combinou com a mudança de clima. A África era tão bem dotada de plantas selvagens comestíveis que esse cultivo não tinha nem mesmo começado em 5.000 a.C. A Austrália igualmente. A Europa não tinha potencial próprio de cultiváveis, mas tinha os solos e climas em que prosperariam os cereais e animais domesticados em outras partes. A América do Sul tinha a vicunha e o norte da África o gado selvagem, o México a abóbora e o toesinlo, o Yangtzé o arroz selvagem. Continentes, e regiões dentro de continentes, também tiveram suas histórias ambientais particulares, definidas por seu tamanho, forma e lugar no mundo. As pessoas que viviam na Europa e no oeste da Ásia tiveram o percurso mais acidentado de mudança ambiental. Os que viviam no deserto central australiano e na floresta amazônica, o menos. O tipo de florestas que se espalhou no norte da Europa favoreceu o assentamento humano, e o da Tasmânia causou o abandono de seus vales. O derretimento das camadas de gelo no norte, causaram a perda de planícies costeiras em todo o mundo, com exceção do extremo norte, onde ocorreu exatamente o oposto quando a terra, livre do fardo de gelo, ergueu-se mais depressa que o mar. Embora a história de qualquer região fosse condicionada pelo tipo de recursos selvagens que possuía e o caráter específico de sua mudança ambiental, nenhum desses fatores determinou os fatos históricos que ocorreram. As pessoas sempre tinham opções e tomavam decisões de um dia para o outro, embora com pouca idéia ou conhecimento das conseqüências que se seguiriam. Ninguém que plantava sementes selvagens nas vizinhanças de Jericó ou Pengtoushan, cuidava de abóboras perto de Guilá Naquitz ou cavava leiras no Pântano de Kuk previu o tipo de mundo que a agricultura ia criar. A história humana surgiu tanto de acasos quanto de desígnios, e os caminhos da mudança histórica foram muitos e variados. No oeste da Ásia, os caçadores-coletores assentaram-se para viver em aldeias permanentes antes de começarem a cultivar, como fizeram no Japão e na planície do Ganges. Por outro lado, o cultivo no México e Nova Guiné levou a plantas domesticadas e agricultura muito antes de aparecer o assentamento permanente. No norte da África, o gado veio antes das safras, como a vicunha veio antes da quinoa nos Andes. No Japão e no Saara, a invenção da cerâmica antecedeu o começo da agricultura, ao
passo que ocorreu simultaneamente com a origem do cultivo de arroz na China; sua invenção no oeste da Ásia se deu muito depois que tinham começado a florescer cidades agrícolas. Quem poderia ter previsto o curso que tomaria a história? Em 20.000 a.C., o sudoeste da Europa estabeleceu o ritmo cultural com sua arte da era do gelo, em 8.000 a.C. era uma região inteiramente indistinta. Em 7.500 a.C., o oeste da Ásia tinha cidades que abrigavam mais de mil pessoas, mas dentro de um milênio pastoralistas itinerantes faziam acampamentos dentro de suas ruínas. Quem teria imaginado que as Américas, último continente a ser colonizado, o último a iniciar uma história própria, se tornaria a mais poderosa nação no planeta Terra hoje, com sua cultura impregnando cada canto do mundo? Ou que a primeira civilização teria surgido na Mesopotâmia? Ou que a Austrália continuaria sendo uma terra de caçadores-coletores quando a agricultura florescia na Nova Guiné? Embora a história de cada continente fosse única, e exigisse sua própria mistura especifica de narrativa e argumentação causal para explicá-la, algumas forças de mudança histórica foram comuns a todos. O aquecimento global foi uma; o crescimento da população humana, outra; isso ocorreu em todo o mundo quando as pessoas se libertaram da alta mortalidade imposta pelas secas e o frio da era do gelo e exigiram novas formas de sociedade independente de mudança ambiental. Um terceiro fator comum foi a identidade de espécie. Todas as pessoas, em todos os continentes, em 20.000 a.C., eram membros do Homo sapiens, uma espécie única e recém-evoluída de humanidade. Como tal, partilhavam os mesmos impulsos biológicos e os meios de realizá-los — um misto de cooperação e competição, partilha e egoísmo, virtude e violência. Todos tinham um tipo de mente peculiar, de insaciável curiosidade e recém-descoberta criatividade. Essa cabeça — inteiramente diferente da de qualquer outro ancestral humano — possibilitou às pessoas colonizarem, inventarem, resolverem problemas e criarem novas crenças religiosas e estilos de arte. Sem ela, não haveria história humana, mas apenas um contínuo ciclo de adaptação e readaptação à mudança ambiental que começara milhões de anos atrás, quando evoluiu o nosso genus. Em vez disso, todos esses fatores comuns se combinaram, engajando-se com as condições únicas de cada continente e uma sucessão de contingências e latos históricos, para criar um mundo que incluía agricultores, cidades, artesãos e comerciantes. Na verdade, em 5.000 a.C.
restava muito pouco para a história posterior fazer; todo o trabalho de base do mundo moderno já fora concluído. A história tinha simplesmente de desenvolver-se até chegar aos dias atuais. John Lubbock senta-se no topo de uma colina no sul da Inglaterra, perto de onde eu vivo e trabalho. E um dia de verão cm 2003. Ele lê o capítulo final de Tempos pré-históricos e encontra seu xará vitoriano exaltando as "bênçãos da civilização" sobre a vida selvagem, "escrava de suas próprias necessidades, suas próprias paixões...", uma vida onde a pessoa não "pode depender de ninguém, e ninguém pode depender dela". Como mostrou o meu livro, o desenvolvimento da moderna arqueologia provou que tais opiniões estão inteiramente erradas. Os caçadores-coletores descritos em Tempos pré-históricos não eram mais selvagens esfomeados e moralmente decrépitos descritos no livro que os Nobres Selvagens propostos por Jean-Jacques Rousseau. Há dois motivos principais para o sucesso da arqueologia na denúncia de tais opiniões e revelação da verdadeira natureza dos tempos préhistóricos. Primeiro e antes de mais nada está o compromisso de seus praticantes, dos distintos acadêmicos que citei dentro de meu texto aos milhares de voluntários que cavaram buracos e lavaram objetos descobertos desde o início da disciplina. Segundo, e não muito atrás, vem o uso da ciência: aquele que nos permite identificar algodão dentro de uma conta de cobre corroído, reconstituir o padrão de migrações préhistóricas a partir dos genes das pessoas vivas hoje, especificar temperaturas da era do gelo com asas de besouros e — mais especialmente — estabelecer a ordem dos fatos com o emprego de datação por radiocarbono. O John Lubbock vitoriano valorizou a ciência, não apenas por seu papel na nascente disciplina da arqueologia que ele próprio ajudou a criar, mas como uma das grandes "bênçãos da civilização" que a agricultura e a indústria tinham entregue à humanidade. Prodigalizou louvores ao telescópio e ao microscópio como tendo melhorado o olho humano e oferecido "novas fontes de interesse" para as mentes inquiridoras. Elogiou a imprensa, que "põe todos os que assim o escolhem em comunhão com... as idéias de um Shakespeare ou Tennyson, as descobertas de um Newton ou um Darwin... propriedade comum da humanidade". Citou o clorofórmio para ilustrar como o progresso da ciência diminuiu o grau de sofrimento humano.
Não temos motivo para contestar sua afirmação — a idéia de viver permanentemente num mundo de caçadores-coletores, sem livros nem remédios, é bastante apavorante. Mas quando se está num topo de colina no sul da Inglaterra e se vê a devastada paisagem que a agricultura moderna produziu, deve-se ser menos confiante que o John Lubbock vitoriano. Em 12.500 a.C., o sul da Inglaterra era uma tundra da era do gelo freqüentada pela rena, a coruja da neve e a lebre ártica; em 8.000 a.C., estava coberta de exuberantes florestas dentro da qual pastava o veado-vermelho e o javali fuçava o chão da mata. Mesmo em 1950, era uma paisagem de rica textura de bosques e campos, de poços, trilhas e pastos. Mas em 2003, há vastos pedaços da Inglaterra onde raramente existe uma árvore ou arbusto, dos quais os animais e pássaros foram quase inteiramente expulsos pela indústria da agricultura moderna. Há muito poucas colinas de onde não se pode ouvir o tráfego embaixo e os aviões acima. Seu ar poluído nos faz pensar na circularidade da história. Agricultura e indústria foram produtos de uma história ocasionada pelo aquecimento global. Agora são elas próprias a causa de um novo aquecimento global que já teve considerável impacto sobre o mundo e vai condicionar a história futura da humanidade. O desflorestamento em massa e a queima de combustíveis fósseis aumentaram o nível dos gases de estufa e o planeta Terra se torna mais quente do que pretende a natureza. Nas últimas décadas, geleiras em todos os continentes recuaram, a capa de neve no Hemisfério Norte reduziu-se de forma impressionante, e a plataforma de gelo da Antártica está à beira do colapso. Como nos tempos pré-históricos, o mundo natural passa por uma mudança. As datas de florescimento de muitas plantas já se adiantaram, os pássaros se reproduzem mais cedo e mudam de habitat. Mais uma vez, os insetos estiveram entre os primeiros a reagir: nuvens de afídios chegam mais cedo ao Reino Unido, e encontram-se borboletas na América do Norte e Grã-Bretanha em mais altas altitudes e mais ao norte. Prevê-se que o próximo século de aquecimento global causado pelo homem será bem menos extremo que o que ocorreu em 9.600 a.C. No fim do Jovem Dryas, a temperatura média global subira 7°C em cinqüenta anos, enquanto o aumento previsto para os próximos cem anos é de menos de 3°C; o fim da última era do gelo levou a um aumento de 120 metros no nível do mar, enquanto o previsto para os próximos cinqüenta anos são
uns reles 32 centímetros no máximo, subindo para 88 centímetros em 2.100 d.C. Contudo, embora o futuro aquecimento global possa ser menos extremo que o de 9.600 a.C., o mundo moderno se acha num estado muito mais frágil, devido à poluição ambiental e às necessidades de recursos de seis bilhões de pessoas. Em conseqüência, as ameaças à comunidade humana e aos ecossistemas naturais são muito mais severas que as dos tempos pré-históricos. Quando as vastas regiões baixas do mundo da era do gelo foram inundadas, muitas eram desabitadas; os assentamentos que existiam — como a cidade de Atlit-Yam de 7.000 a.C. na costa israelense — abrigavam algumas centenas de pessoas no máximo. Hoje, 120 milhões de pessoas vivem nas regiões do delta de Bangladesh, 6 milhões delas em terra a menos de um metro acima do atual nível do mar, e 50 bilhões 3 metros abaixo. A elevação do nível do mar será acompanhada por devastadoras tempestades e penetração de sal em seus suprimentos de água doce. Quando o aquecimento global tornou inabitáveis os vales da Tasmânia após 14.000 a.C. e o Deserto do Saara após 5.000 a.C., o povo desses lugares procurou outros lugares para viver — o mundo ainda se achava bastante vazio de assentamento humano. Mas aonde irão as novas populações deslocadas? As das regiões de deltas inundadas; as de baixas ilhas inundadas nos oceanos Pacífico e Índico; as da África subsaariana, onde a freqüência e intensidade da seca se tornarão demasiado severas para ser aliviadas por qualquer volume de ajuda internacional? O aquecimento global que levou ao fim a era do gelo criou localidades de recursos abundantes que as pessoas reclamaram para si e estavam dispostas a lutar por elas, como no vale do Nilo em 14.000 a.C. Esses conflitos eram coisas triviais comparados com os que conhecemos hoje; mas nosso mundo moderno parece destinado a tornar-se ainda mais violento, à medida que se sentirem os impactos de um novo aquecimento global. A escassez de água doce se tornará um importante fator de conflito. As reservas já se acham sob pressão, devido às demandas da agricultura moderna e das necessidades humanas diárias. Tais pressões se tornarão sérias com as previstas reduções de chuvas e maior evaporação nos pontos de coleta-chave do mundo. A água eclipsará a Terra, a política e até a religião como motivo de disputa entre os estados do Oriente Médio — um fato que já começou. Além disso, é provável que o aquecimento global
exacerbe os extremos existentes de riqueza e pobreza no mundo: prevê-se que aumentará a produtividade agrícola nos países desenvolvidos, e o contrário ocorrerá no mundo em desenvolvimento. O terrorismo internacional deve prosperar. É irônico que o continente que se tornou habitável em conseqüência do aquecimento global após o LGM seja agora o que mais faz para tornar vastas áreas do mundo inabitáveis para outros com sua excessiva contribuição à causa de um novo aquecimento global: a América do Norte é a principal poluidora de nossos céus. John Lubbock olha ao longe o tráfego no campo do sul da Inglaterra. É sombrio. Grande parte dos bosques de carvalho do Holoceno Inicial já foi varrida nos tempos pré-históricos. Mas essa região só tomou a aparência agora desolada nos últimos cinqüenta anos: deixou-se que poços virassem lama e depois secassem, capões de mato foram removidos, sebes reduzidas, pequenas fazendas substituídas por empresas tipo fábrica que se especializaram em semear trigo e colher subsídios. A paisagem de pradaria de hoje sofre de erosão do solo e foi poluída pelo excesso de fertilizantes e pesticidas. Como acontece com tão grande parte de outras terras agrícolas do mundo ocidental, produz muito mais alimentos do que precisamos. E, no entanto, vivemos num mundo chagado pela fome. Oitocentos milhões de pessoas vivem à beira da inanição — número que se prevê venha a aumentar com o novo aquecimento global. Nos próximos cem anos, é provável que mais 80 milhões de pessoas estejam famintas e desnutridas devido à mudança ambiental. Alguns acreditam que a única maneira de acabar com a fome mundial é modificando geneticamente as safras existentes para aumentar sua produção, melhorar sua resistência a pragas c torná-las tolerantes a solos salgados. A modificação genética de plantas induzida pelo homem surgiu primeiro das tentativas de caçadores-coletores no oeste da Ásia de enfrentar as secas do Jovem Dryas e alimentar os agrupamentos em Göbekli Tepe e outras partes. O cultivo por eles de cereais selvagens criou inconscientemente mudança genética e produziu o trigo e a cevada domesticados que cultivamos hoje. A genética de outras espécies também foi mudada pela ação humana, criando abóbora, milho e feijões, arroz, quinua, taioba c batata domesticados. Essas plantas sustentaram o aumento da população humana no Holoceno Inicial, e agora, pela reprodução e administração de safras, sustentam nossa vasta população
global. Porém mais dois bilhões vão precisar alimentar-se no próximo quarto de século. Alguns cientistas acreditam que a engenharia genética de plantas em nível molecular — inserção deliberada de DNA de uma espécie em outra — é simplesmente o próximo passo nessa história de manipulação de plantas por necessidade humana. Como novas variantes genéticas solucionaram uma crise de alimentos causada por mudança climática anterior, afirmam, outras variantes genéticas podem fazer o mesmo por nós hoje. Pode ser, mas a arqueologia nos deu outra lição, talvez muito mais importante, do passado. Assim que a agricultura começou, os excedentes resultantes das novas variantes genéticas de alta produtividade passaram para um controle centralizado, como é evidente nas construções de Jerf el Ahmar em 9.300 a.C., Beidha em 8.200 a.C. e Kom K em 5.000 a.C. Desde o início mesmo da agricultura, a comida se tornou uma mercadoria, uma fonte de riqueza e poder para os que controlavam sua distribuição. E assim deve-se desconfiar que é provável que as desigualdades já existentes de suprimento de comida global aumentem com a criação de ainda mais variantes genéticas, com produções ainda mais altas. Os que guardavam os silos de grãos nos tempos pré-históricos estão se reencarnando como empresas de biotecnologia que patenteiam plantas e distribuem suas sementes. A paisagem conspurcada do sul da Inglaterra, e a de muitas outras regiões do mundo moderno, colocam outra questão sobre biotecnologia. Como tem sido evidente por esta história, quando os arqueólogos estudam um ambiente passado invariavelmente encontram uma diversidade muito maior de plantas e animais que as conhecidas hoje no mesmo lugar. A Hora da estepe de floresta nas vizinhanças de Ohalo em 20.000 a.C. e a fauna da América do Norte em 15.000 a.C. são apenas os exemplos mais óbvios de um mundo natural muito mais rico e mais variado nos tempos pré-históricos. A biodiversidade foi reduzida pela mudança de clima — o crescente zoneamento de tipos de vegetação nas latitudes norte favoreceu os poucos especialistas sobre os generalistas. Mas as conseqüências da agricultura para a biodiversidade foram muito mais severas, como se pode avaliar imaginando a devastada paisagem em torno de Ain Ghazal em 6.500 a.C. ou olhando a de qualquer região intensamente cultivada do mundo hoje. Irá o cultivo de novas variantes genéticas, plantas artilicialmente
resistentes a pragas e doenças, levar a perda da biodiversidade a novos extremos? Irão essas plantas invadir e atropelar as comunidades de espécies selvagens que ainda sobrevivem? Irão os refugiados restantes do mundo natural, sobretudo as preciosas terras úmidas e pântanos salgados, também ser transformados em terra agrícola, como aconteceu com as florestas do sul da Inglaterra quando as pessoas tiveram as primeiras variantes genéticas para semear? Não há respostas. A biotecnologia pode ser a maior bênção que temos e levar ao fim a fome mundial; safras resistentes à doença, geneticamente modificadas, podem proteger a biodiversidade pela redução da necessidade de borritos químicos. A necessidade comum de água poderia reduzir as facções em guerra no Oriente Médio. A extensão e impactos previstos do aquecimento global podem estar inteiramente errados. Nossos políticos podem criar a vontade e os meios de conter a poluição, distribuir os recursos com justiça por todo o mundo, proporcionar novas casas para pessoas deslocadas e preservar o mundo natural. Podem fazer tudo isso. Mas provavelmente não farão. Assim, que dizer da "bênção da civilização"? São os prazeres do microscópio, as idéias de Darwin, a poesia de Shakespeare e os avanços da ciência médica recompensa suficiente para a degradação ambiental, o conflito social e o sofrimento humano que em última análise derivam da origem da agricultura 100 mil anos atrás? Teria sido melhor se continuássemos como caçadores-coletores da Idade da Pedra, renunciando ao desenvolvimento da literatura e da ciência? A resposta está em nossas mãos; depende do que prefiramos fazer nos próximos cem anos de aquecimento global — nosso futuro, o do planeta Terra, continua em nossas mãos. Tudo o que sabemos com certeza é que no fim do século XXI o mundo será bastante diferente do que é hoje — talvez tão diferente quanto o mundo de 5.000 a.C. foi do LGM. John Lubbock vira a página e lê o parágrafo final de Tempos préhistóricos. Encontra palavras que continuam inteiramente adequadas para hoje: Mesmo em nosso próprio tempo, podemos esperar ver alguma melhora, mas a mente abnegada encontrará sua maior satisfação na crença em que, qualquer que seja o nosso caso, nossos descendentes compreenderão muitas coisas ocultas de nós, apreciarão melhor o belo mundo em que vivemos, evitarão muito do sofrimento a que estamos sujeitos, desfrutarão
de muitas bênçãos das quais ainda não somos dignos, e escaparão de muitas das tentações que deploramos, mas às quais não podemos resistir inteiramente. John Lubbock, Prehistoric Times, 1865, p. 492