R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
Reificação e linguagem em Guy Debord
1
2
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Universidade Estadual do Ceará-UECE Reitor: Jáder Onofre de Morais Vice-Reitor: João Nogueira Matos Editora da UECE - EdUECE Diretora: Lucili Grangeiro Cortez Conselho Editorial da EdUECE: Antônio Luciano Pontes, Elba Braga Ramalho, Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, Francisco Horácio da Silva Frota, Gisafram Nazareno Mota Jucá, Jáder Onofre de Morais, José Ferreira Nunes, José Henrique Leal Cardoso, José Júlio da Ponte, Francisco Josênio Camelo Parente, Lucili Grangeiro Cortez, Luiz Cruz Lima, Manfredo Ramos, Marcelo Gurgel Carlos da Silva, Marcony Silva Cunha, Maria Salete Bessa Jorge, Selene Maia de Morais. Universidade de Fortaleza - UNIFOR Chanceler: Airton José Vidal Queiroz Reitor: Carlos Alberto Batista Mendes de Sousa Coordenação Editorial da Unifor: José Antônio Carlos Otaviano David Morano
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
João Emiliano Fortaleza de Aquino
Reificação e linguagem em Guy Debord
Prefácio Ilana Amaral
UNIFOR ENSINANDO E APRENDENDO
Fortaleza - 2006
3
4
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
R eificação e linguagem em Guy Debord © 2006 Copyright by João Emiliano Fortaleza de Aquino Impresso no Brasil / Printed in Brazil Depósito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE Av. Paranjana, 1700 – Campus do Itaperi – Fortaleza – Ceará CEP: 60740-000 – Tel: (085) 3101-9893. FAX: (85) 3101-9603 www.uece.br – E-mail:
[email protected] Universidade de Fortaleza – Unifor Av. Washington Soares, 1321 – Edson Queiroz – Fortaleza – Ceará CEP: 60811-905 – Tel: (85) 3477 3000. FAX: (85) 3477 3055 www.unifor.br Revisão de texto: Estenio Ericson Botelho de Azevedo Roberto Robinson Bezerra Catunda Editoração Eletrônica: Antônio Franciel Muniz Feitosa Capa: João Emiliano Fortaleza de Aquino Impressão: Gráfica da Unifor Tiragem: 500 exemplares Ficha Catalográfica: Thelma Marylanda Silva de Melo CRB 3/623 A657r
Aquino, João Emiliano Fortaleza de Reificação e linguagem em Guy Debord/João Emiliano Fortaleza de Aquino. – Fortaleza: EdUECE / Unifor, 2006. 200p. ISBN: 85-88544-10-5 Inclui bibliografia. 1. Filosofia. 2. Teoria Crítica. 3. Estética. 4. Comunicação. 5. Expressão. I. Título. CDD: 100
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
5
Agradecimentos Este livro é a publicação parcial de minha tese de doutoramento Reificação e linguagem em André Breton e Guy Debord apresentada em abril de 2005 ao Programa de Estudos Pósgraduados em Filosofia da PUC-SP. Nesta ocasião, ratifico meus agradecimentos à Banca Examinadora, compostas pelos Professores Dr. Paulo Eduardo Arantes, Dr. Celso Fernando Favaretto, Dra. Eliane Robert Morais, Dr. Antonio José Romera Valverde e Dra. Jeanne-Marie Gagnebin, minha orientadora, a cuja generosidade intelectual devo em grande parte o desenvolvimento exitoso de minha pesquisa. Agradeço também à Capes (PICDT-UECE) e à Unifor (Fundação Edson Queiroz), que tornaram materialmente possível o curso e sua conclusão. Aos Professores Batista de Lima e Lucili Grangeiro Cortez, por seu empenho por esta publicação. Muito especialmente, a meus pais, irmãos e sobrinhos, em convivência com os quais, e pelo amor junto a eles experimentado, tudo se tornou possível e bom e a promessa foi inscrita. A Estenio, Ilana e Robinson por compartilharem do sentido, das palavras e do uso; uma partilha que, sendo comunicação e ação comum, veio a ser fundamental à minha decisão de publicar este trabalho, expressando um novo tempo que é vestígio de todos os outros que virão.
6
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
A Augustino, Dimas, Deínha, Edson, Galba, Glau, Gorete, Jeff, Júnior, Maxwell, Neidinha, Ormezita, Patrick, Roberto, Rossana, Sílvia Fernanda, Sulivan, Tyrone, amigos com os quais momentos tão importantes desta caminhada puderam ser compartilhados. A Caciana e Fran, pela amizade, por inúmeras outras coisas e também por Freud. A Adriana, Almir, Érika, Guilherme, Josberto, Léo, Lílian, Luciano (USP), Luciano (UFMA), Luis Inácio, Marli, Neto, Orlando, Pablo, Plínio, Sônia, Sybil (Gugu), Talita, Vieira, Wilson, que ajudaram a tornar São Paulo um lugar de diálogo e solidariedade. Do mesmo modo, àqueles que, na chegada ao Estado de São Paulo, comigo se mantiveram no aconchegante “exílio” de Campinas: “cumade” Desterro, Jô, “cumpade” Lindomar, Manuel Carlos, Sarinha (Sassá) e Vitória. A Adauto, Araci, Casemiro, D. Conceição (Secretária do CCHUnifor), Expedito, Fátima, Jackson Sampaio, Jomar (i n memoriam), Manfredo Ramos, Maria Teresa, Sylvinha, Sílvia Helena (Secretária da Coordenação de Filosofia da UECE), amigos e colegas de trabalho, sempre solidários. A Joyce, Secretária da Pós-graduação em Filosofia da PUC. A Cleide, Noeme, Vânia, Vanessa, protetoras e anjos da guarda do dia-a-dia. A meus alunos da UECE e da Unifor.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
7
A Assis e Vilani, meus pais.
8
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
9
Puisque chaque sentiment particulier n’est que la vie partielle, et non la vie entière, la vie brûle de se répandre à travers la diversité des sentiments, et ainsi de se retrouver dans cette somme de la diversité... Dans l’amour, le séparé existe encore, mais non plus comme séparé: comme uni, et le vivant rencontre le vivant. Guy Debord, La societé du spectacle (o filme)
10
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
11
Sumário
Para além do espetáculo (Ou: dos possíveis valores desta obra)
13
Considerações introdutórias
23
Capítulo I: Espetáculo e linguagem 1.1 O tempo e a existência histórica 1.2 O tempo pseudocíclico da “sociedade do espetáculo” 1.3 A natureza arcaico-moderna do “espetáculo”
45 47 58 66
Capítulo II: O problema da expressão 87 2.1 Surrealité e expression em Breton 89 2.2 Debord e a crítica da “superestimação do inconsciente” 95 2.3 Os limites da expression e da profondeur de l’esprit 103 Capítulo III: Expressão estética e comunicação prática 3.1 O conceito de langage commun 3.2 Arte moderna e aspiração a uma nova comunidade
121 123 135
Capítulo IV: Crise e desvio da arte moderna 149 4.1 O barroco e a invasão da arte pelo histórico 150 4.2 A crise da expressão, enquanto crise da arte moderna 161 4.3 Détournement e comunicação histórica 172 Considerações finais
183
Bibliografia
191
12
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
PARA ALÉM
DO
ESPETÁCULO
13
Para além do espetáculo (Ou: dos possíveis valores desta obra) Isso que aqui se apresenta não passa de um pequeno folheto, proprio marte, proprio auspiciis, proprio stipendio. Kierkegaard
O livro que ora se apresenta é a publicação de parte da pesquisa que resultou na tese de doutoramento de Emiliano Aquino sob o título Reificação e linguagem em André Breton e Guy Debord. Como parte de uma tese de doutorado, é um trabalho minucioso, resultado de uma pesquisa séria. É assim um excelente trabalho de especialista, desses que servem para ilustrar o público universitário e estimular novos estudos e pesquisas sobre o tema. Enquanto parte de uma tese, este livro possui méritos não negligenciáveis. A aprovação com nota máxima e louvor e sua indicação imediata para publicação, bem como sua escolha pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC de São Paulo como candidata ao Prêmio Anpof de melhor tese em filosofia do ano de 2005, são disso demonstrações suficientes. Num contexto em que, no âmbito da pesquisa filosófica, os especialistas são cada vez menos capazes de encontrar conexões interessantes que permitam referir o seu olhar de lupa a questões mais fundamentais, menos capazes, portanto, por meio destas relações mais amplas, de apontar para algo que possua interesse para alguém além da meia-dúzia de outros especialistas pagos para avaliá-los, para estudiosos do mesmo autor ou para alguns candidatos a futuros especialistas,
14
ILANA AMARAL
os estudantes universitários, num tal contexto de deserto intelectual, próprio à miséria do nosso tempo, a tese de Emiliano Aquino é um verdadeiro oásis. Com efeito, para além de ser o primeiro a apresentar a reflexão de Guy Debord no Brasil, trabalho que ele realiza com uma acuidade e clareza que só o bom olhar analítico do especialista permite e que, enquanto tal, cumpre a função de apresentar ao leitor brasileiro um Debord quase inteiramente desconhecido, Emiliano Aquino escreve uma tese capaz de levantar interessantes problemas relativos às questões mais centrais dos nossos tempos para o público acadêmico. A seriedade de seu trabalho é atestada pelo uso das fontes primárias nos originais, seguida de uma investigação exaustiva das fontes secundárias e de ricas conexões, com uma erudição sábia, daquelas que quase não se vê mais. Ela é amparada ainda – o que permite uma maior inteligibilidade acerca das reflexões de Debord – por uma cuidadosa pesquisa histórica dos contextos de produção de seus textos. Assim, se A sociedade do espetáculo é o centro de sua análise acerca da reflexão debordiana, não ocupam lugar de menor importância os textos da Internacional Situacionista e demais obras daquele autor às quais Emiliano recorre para esclarecer importantes passagens de sua obra principal. Emiliano Aquino realiza assim, em seu texto, uma apresentação de A sociedade do espetáculo na qual esta é posta em relação com os debates filosóficos e sociais tanto das vanguardas literárias como da intelectualidade francesa do segundo pós-guerra, assim como com algumas referências centrais para Debord no âmbito da tradição filosófica. A discussão realizada acerca da perspectiva dos surrealistas, em particular a da obra de André Breton, na qual são apontadas como centrais as questões da linguagem e da crítica da modernidade, pontua como um momento ímpar de clareza e acuidade. A abordagem histórico-social que põe o pano de fundo para a análise dos conceitos lhe permite apontar, quando da tematização do esforço filosófico subjacente à postura de Breton, os momentos
PARA ALÉM
DO
ESPETÁCULO
15
essenciais de uma abordagem da linguagem e da experiência artística cuja raiz é a própria crise de sentido encontrada pelo autor do Manifesto surrealista como realidade nuclear da experiência moderna, diante da qual as experimentações surrealistas se constituem numa proposta de desmascaramento e, portanto, mais como recusa desta ausência do que como tentativa positiva de uma resposta propriamente artística ao problema do sentido. A tematização dos pressupostos éticopolíticos da obra de Breton, pensados a partir do horizonte do autor de A s ociedade do espetáculo, para além de informar (seguindo os passos de Peter Bürger, embora deles também se afastando) sobre a natureza da ação das vanguardas literárias, naquilo que estas significam, dada a própria pergunta pelo sentido da atividade artística no mundo moderno, tal tematização conduz a uma dimensão central do horizonte da modernidade, qual seja, aquilo que Emiliano Aquino caracteriza como a afirmação de um horizonte expressivo do Eu, diante da ausência de sentido das relações entre os Eus, e da linguagem como expressão, em sua experiência presente. Estes, dentre inúmeros outros, são momentos que iluminam o debate acerca das vanguardas literárias e de suas relações com o universo histórico-social que as circunda, ao mesmo tempo em que trazem para o centro da discussão o debate, central à filosofia contemporânea, acerca das determinações da relação entre o Eu, tomado como subjetividade substancial e, assim, isolado em um solipsismo iniludível, e a exigência de se pensar a linguagem como experiência fundante daquilo que é o homem. Aqui, ressaltando a continuidade de esforço crítico entre Debord e Breton em associar a possibilidade de uma linguagem com sentido à crítica da experiência moderna enquanto lugar de sua ausência, o autor aponta para aquilo que é o elemento mais central de sua tese: conceber a linguagem como determinação central do humano implica – e é assim que a linguagem se encontra tematizada por Debord – pensá-la como comunicação, como diálogo prático, para além, portanto, dos horizontes da linguagem pensada como
16
ILANA AMARAL
expressão de um Eu que, deste modo, se apresenta sempre num isolamento fundamental, isolamento que justamente indica a sua natureza substancial, não-mediada pela linguagem. É assim que esta perspectiva de Debord, embora em continuidade com o impulso do esforço crítico de Breton, dele se afasta radicalmente quanto às conclusões. Apontando as posições de Debord com relação a algumas das questões mais caras à filosofia contemporânea, nosso autor consegue apresentar um Debord iluminado pelos diálogos que estabelece, seja com as vanguardas literárias seja com a tradição ocidental em seu conjunto. As relações com Heródoto e Maquiavel, bem como as especificidades da apreensão de Debord acerca da experiência histórica da pólis grega, que o autor destaca serem contemporâneas àquelas realizadas no final dos anos cinqüenta e início dos sessenta pelos helenistas franceses, são momentos de seu texto nos quais o caráter polêmico, a apropriação detournée por Debord de temáticas daqueles autores e a retomada de contextos históricos são ressaltados. Isto se dá em uma particular oposição a certas leituras – como aquelas realizadas por Anselm Jappe e Michael Löwy – que precisamente descuram deste caráter desviado das apropriações feitas por Debord, seja de idéias seja de momentos da experiência histórica, para com isso autorizar justamente uma leitura que reenvia a obra de Debord a um substancialismo do qual a leitura de Emiliano Aquino precisamente se afasta de modo radical. É assim que a atribuição de um romantismo (Löwy) ou de uma nostalgia, que de todo modo o situaria em relação com o romantismo (Jappe), é inteiramente refutada com base na exposição de dois elementos centrais à leitura de Debord. Em primeiro lugar, a centralidade da crítica do presente, centralidade cuja natureza de per se exclui qualquer passadismo da reflexão debordiana. A esta centralidade da crítica do presente na obra de Debord é fundamental justamente a crítica das separações, separações que, como afirma Emiliano Aquino, encontram-se presentes também em todos as sociedades de classes anteriores à
PARA ALÉM
DO
ESPETÁCULO
17
sociedade espetacular. Assim, a apropriação de Debord da experiência da pólis grega é inteiramente desviada. Não se trata de uma afirmação in totum daquela experiência, mas da retomada da possibilidade do livre uso de seu “tempo vivido” realizada pelos senhores da democracia ateniense, da retomada deste assenhoreamento de si que a experiência grega significa para Debord. Este elemento do uso autônomo e universal, entre os senhores, do tempo e da fala – a isonomia e a isegoria da pólis – aparece inteiramente identificado por Debord à presença naquela experiência das separações – o trabalho escravo e a exclusão do feminino e a própria forma estatal da experiência grega – que o capitalismo espetacular aprofunda e torna universais. Assim, o que Emiliano Aquino mostra, em sua polêmica com Jappe e Löwy, é que se trata, para Debord, quando desta apropriação da experiência grega, de retomar, desviandoos, os elementos da experiência passada. As condições desta apropriação desviada do passado, contudo, são pensadas sob o signo das possibilidades dadas no presente. Esta centralidade do presente afirma-se a partir da constatação – e Emiliano Aquino apresenta uma articulação interessante entre Breton e Debord em sua exposição que é particularmente generosa com a leitura de Breton, como o é, aliás, todo o seu texto – do caráter necessariamente ambíguo da apropriação da experiência moderna, pois se se trata para ambos de criticá-la como locus da ausência de sentido, trata-se também de afirmar positivamente alguns de seus elementos centrais; em particular, para Breton, é preciso assumir aí a própria aparição do indivíduo e, especialmente para Debord, as possibilidades abertas com o intenso desenvolvimento dos poderes materiais da sua época. Essa leitura é justo o que permite a Emiliano Aquino apresentar a assunção por Debord das possibilidades abertas – e ao mesmo tempo negadas – na modernidade como o exato oposto de um qualquer passadismo romântico. Em segundo lugar, a afirmação da linguagem como centro da reflexão de Debord, afirmação em cujo núcleo se encontra justamente o elemento dinâmico do
18
ILANA AMARAL
diálogo concreto na negação do presente, possibilitado pela crítica prática das relações espetaculares do capitalismo contemporâneo, implica justamente a abolição necessária de qualquer elemento substancializador que autorizaria aquelas leituras nostálgicas. Assim, dentre os muitos méritos deste livro, encontramos o de repor com rigor a reflexão de Debord na perspectiva do diálogo prático e negativo que lhe é essencial, perspectiva que afasta muito radicalmente a resposta debordiana ao problema da linguagem de alternativas “dialógicas” apresentadas na filosofia contemporânea – penso em Habermas e em Appel – cuja natureza é centralmente determinada pela positivação da experiência do discurso. O que aparece como central ao Debord que Emiliano Aquino nos apresenta é, ao contrário, uma consideração do diálogo cuja determinação é negativa. Tal como exposta por Emiliano Aquino, a reflexão de Debord se apresenta, em um aspecto essencial, distante daquela de Adorno, autor que, como sublinha o próprio Emiliano Aquino, também acolhe em sua reflexão a centralidade do negativo. Tal aspecto é aquele que se refere, em Debord, à centralidade do diálogo prático como linguagem da negação desta forma histórica do mundo, como atividade negativa possível diante das contradições do mundo moderno, postura que, assumindo as possibilidades de negação sempre repostas na contradição essencial às relações fetichistas, não se conclui na perspectiva de um “grande hotel abismo”, para usar as palavras de Lukács, mas ao contrário, remete todo o horizonte da crítica ao terreno da comunicação prática, pensando-a a partir do elemento mesmo da negação em ato no tempo presente. Falar de negatividade nos conduz aqui a um outro plano possível de abordagem deste livro. O que ele expõe como central – a reivindicação do diálogo prático e negativo por Debord – é a crítica teórico-prática do mundo contemporâneo. Esta é levada a efeito, como lembra Emiliano Aquino citando Giorgio Agamben, por um Debord estratego, isto é, que antes de situar-se como filósofo se pensava como homem de ação. Em seu centro
PARA ALÉM
DO
ESPETÁCULO
19
encontra-se a recusa da reificação e das separações produzidas pelas e nas relações espetaculares. Tal crítica supõe em Debord, como já antes supusera em Marx, a assunção da natureza contraditória das relações fetichistas como determinação central do mundo moderno, contradição nucleada na relação entre valor de uso e valor de troca inscrita na forma-mercadoria. Deste modo, e segundo as reflexões por ele mesmo apresentadas, um livro e este livro, nas atuais condições sociais de produção, é necessariamente uma mercadoria. Se este livro se origina do financiamento estatal e da aprovação das instituições universitárias, ele aumenta seu valor de troca, tanto pelo acréscimo simples das horas de trabalho dedicadas à formação especializada, como pela introdução do valor simbólico que, sob as relações espetaculares, a hierarquia do trabalho intelectual sempre supõe. Um livro, este livro é, do ponto de vista do valor de troca, uma expressão da “separação consumada” da qual nos fala Emiliano Aquino, expondo Debord. Como mercadoria, entretanto, – e aqui a negatividade diante da autonegação ínsita à subsunção do valor de uso no de troca assume justamente o seu lugar central –, o presente livro deve ter também, necessariamente, um valor de uso. É certo que, como mostra com rigor Emiliano Aquino, não vemos em Debord uma nostalgia das sociedades fundadas na produção de valores de uso, mas antes a aposta na necessária ruptura com o mundo presente. Esta ruptura, no entanto, parte do acolhimento da sociedade moderna segundo aquilo que ela implica de desenvolvimento positivo dos poderes materiais sociais do homem, cuja apropriação comum, contudo, encontra-se negada. Se não encontramos em Debord uma utopia reacionária de reconstituição de uma sociedade produtora de valores de uso, isso está, entretanto, longe de significar que o uso enquanto tal deixe de significar para ele o horizonte concreto da existência humana, concretude cuja subssunção no abstrato do valor econômico justamente põe a contradição nuclear das relações mercantis-espetaculares. Antes, trata-se radicalmente, para
20
ILANA AMARAL
Debord como para Emiliano Aquino, de afirmar o horizonte da concretude, do uso que nega sua subsunção no abstrato da troca, como possibilidade de apropriação de si, pois é justamente por esta apropriação – deste modo, necessariamente negativa – que se pode pensar a linguagem com sentido: a comunicação. Este livro, que apresenta justamente a natureza contraditória das relações fundadas no valor, próprias à nossa experiência contemporânea, vive, deste modo, ele próprio, esta agonia esquizóide própria a toda mercadoria. Como produto do trabalho especializado ele é a confirmação da separação consumada do mundo mercantil. Enquanto tal, também a sua apropriação pela via universal do especialismo, ou seja, a sua apropriação nos marcos de um trabalho acadêmico, será sempre o oposto daquilo que seu conteúdo afirma. A este uso especializado aparecerá como inteligente, interessante, brilhante mesmo, o feito do autor quando da discussão, por exemplo, sobre tempo e história, discussão na qual a retomada da crítica marxiana da reificação é posta em relação com o uso concreto e possível do tempo. Do mesmo modo, uma tal apropriação verá como intelectualmente instigante a discussão sobre o lugar da linguagem na reflexão debordiana, reflexão que de modo profundamente ilustrado remete a tantos diálogos no interior da tradição filosófica e com as vanguardas artísticas. Dentre estes diálogos, Emiliano Aquino retoma uma relação teórica particularmente importante: a das reflexões de Debord com as do jovem Lukács da Teoria do Romance, com as do Benjamin de Origem do drama barroco, O narrador, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, além de com o Adorno da Teoria estética. Aos olhos do especialista, ela parecerá pertinente, inteligente, erudita e extremamente perspicaz. Se a realidade nos olha de volta respondendo ao modo como a olhamos, como dizia um filósofo caro a Emiliano (essa é por conta da nossa “reserva nacional”...), uma outra apropriação ou um outro uso possível deste seu texto qualifica aquela exposição sobre tempo e história tão-só – e isso é mais que
PARA ALÉM
DO
ESPETÁCULO
21
qualquer elogio especializado possa dizer – como uma soberba expressão da crítica da economia política, de teoria efetiva da crítica prática do presente. Esta mesma apropriação entende as relações de Debord com o jovem Lukács e Benjamin não como relações – o que seria inteiramente estéril e, no máximo, “interessante e produtiva” – entre autores da tradição, mas a entende antes como relação entre posições comuns de uma tradição de negação crítica do e no presente. Naquela tematização do tempo e da história, assim como no conjunto deste texto, o que está em jogo, para um tal uso que parte da negação ao invés de um uso especializado, é a própria possibilidade prática da apropriação comum do tempo e da vida mesma, expropriada nas atuais relações mercantis. Do mesmo modo, tal leitura apreende, na tematização da centralidade da linguagem na obra de Debord, a aposta deste nas possibilidades da negação do tempo presente, na perspectiva da comunicação, no diálogo prático instituído na e pela negação do mundo do capital, enquanto possibilidades únicas de constituição do sentido no tempo presente. A comunicação, assim pensada, não é um pressuposto positivo, mas antes é a própria afirmação da negação em ato, da qual a fala, momento sem dúvida de positivação, é justamente elemento inseparável, constitutivo, como afirma Emiliano Aquino em seu texto. A comunicação e o diálogo prático se encontram, deste modo, em outro lugar que o do discurso separado da fala espetacular. Afinal, trata-se, na comunicação prática, de um discurso cuja única instância de legitimação, para falar como gostam os filósofos contemporâneos, é a sua existência bruta de fala da negação prática, aquela que se exercita na grève sauvage, n o sabotage do trabalho forçado (o trabalho assalariado), nas assembléias e conselhos operários, enfim, nas formas autônomas, antimercantis e antiestatais, de negação do presente mundo reificado. Numa tal apropriação, perde o sentido a armadilha filosófica que afirma a pressuposição positiva de toda fala (como de todo pensar), dado que não se trata aqui, em absoluto, de autolegitimação do pensamento ou da linguagem,
22
ILANA AMARAL
mas da fala que se nega enquanto é negação do mundo – e, portanto, que é também negação de si: autonegação e afirmação da linguagem como relação prática. É só assim, no elemento da negação prática do mundo presente, que é possível a afirmação do diálogo, da comunicação, tal como a pensa Debord. Aquilo que pode significar uma leitura objetivadora – do ponto de vista de um uso possível deste texto de Emiliano Aquino, o uso da leitura do especialista – se limita à mera constatação espetacular do espetáculo. Sob a perspectiva oposta, a do uso negativo, a mesma que era a de Debord e que é a de Emiliano Aquino, que transforma a crítica das separações em potência destrutiva do presente, faz este livro falar, como diz seu autor em outro contexto, “de fio a pavio sobre crítica do capitalismo e revolução”. Como na vida cotidiana, a apropriação é o que pode, também aqui, determinar o valor de uso deste livro. Que de per se seu conteúdo convoque a uma posição negativa no mundo presente é, certamente, a sua melhor promessa e a sua maior aposta. Ilana Amaral Fortaleza, maio de 2006
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
23
Considerações introdutórias [A história universal] supõe uma língua na qual todo texto de uma língua viva ou morta deve poder ser integralmente traduzida. Ou melhor ainda, ela é esta língua mesma. Não como língua escrita, mas como língua celebrada, festejada. Esta festa é purificada de toda cerimônia e ignora seus cantos. Sua língua é a idéia da própria prosa, que é compreendida por todos os homens, como a língua dos pássaros é compreendida pelas crianças nascidas num domingo. W. Benjamin, em apontamentos preparatórios a Sobre o conceito de história
I Este livro discute as reflexões de Guy Debord (19311994) sobre a linguagem, com base na hipótese de que, no centro do seu pensamento, se encontra um esforço de reflexão acerca da linguagem em que estética e crítica social são inseparáveis. Trata-se, portanto, de pensar a linguagem numa relação entre estética e teoria crítica, já que as reflexões sobre a linguagem, neste autor, são essencialmente conexas à práxis social e à sua crítica. Meu ponto de partida é justamente a relação prática e teórica de Guy Debord com a experiência histórica da arte moderna, particularmente a dos movimentos de vanguarda estética. Em sua ruptura com as antigas linguagens artísticas, os grupos de vanguarda do início do século passado – especialmente o(s) futurismo(s), o dadaísmo e, por fim, o
24
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
surrealismo – pensam o próprio de suas linguagens, suas técnicas e seus estilos, interrogando-se pela diferença entre “velho” e o “novo” por eles experimentado. E fazem-no todos baseados no reconhecimento da crise – e até mesmo da impossibilidade estética, ética e social de manutenção – das antigas linguagens poéticas e pictóricas. Atuando e pensando em torno da primeira guerra – o futurismo surge em 1909, o dadaísmo, em 1916 e o surrealismo, em 1924 –, época em que se experimenta o fim do período de paz e prosperidade capitalista na Europa (18711913), os artistas de vanguarda se colocam, individual ou coletivamente, numa reflexão que é contemporânea das tentativas e dos fracassos de revolução social do primeiro quarto do século, tanto quanto dos novos esforços de reflexão filosófica que, como os seus próprios, também buscam compreender a crise social e artística das antigas linguagens e modos de expressão. As obras juvenis de G. Lukács são emblemáticas desses esforços filosóficos, obras que se refletem naquelas de W. Benjamin e T. Adorno que mantêm, numa perspectiva tanto estética quanto de crítica social, a reflexão sobre a crise da linguagem. Mais do que uma reflexão conjuntural, centrada no acontecimento da guerra, embora o impacto deste “acontecimento” lhes tenha sido fundamental, estes esforços de compreensão da crise da tradição expressam – nas vanguardas, não menos que na filosofia – tentativas de configuração da nossa modernidade, tendo como núcleo precisamente a crise da linguagem que nela se apresenta. Para determinar melhor o problema que aqui me coloco, contudo, faz-se necessária a explicitação, ainda que sumária, das diferenças entre estes dois terrenos de articulação de crítica social e reflexão estética. Nas reflexões estético-filosóficas do século 20 que se desenvolvem numa perspectiva crítica, especificamente naquela nascida dos esforços filosóficos das primeiras décadas do século, mantém-se em geral, como determinação estética central, a exigência da resolução formal da obra de arte. Neste ponto, encontra-se a principal diferença
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
25
entre o terreno no qual se situa Guy Debord e o das reflexões também centradas na relação entre crítica social e estética que, principalmente com Lukács e Adorno, caracterizam o pensamento crítico no século 20. A exigência estética da forma está no centro da obra que o jovem Lukács publica em 1916, a Teoria do romance. Com base nela, pensa-se predominantemente a crise da linguagem e das formas não sob a ótica que caracteriza a reflexão e a prática das vanguardas, nas quais há o questionamento da forma e mesmo da obra, mas justamente sob o critério estético da “lei formal”. Nesta obra seminal do pensamento estético do século 20, a questão da forma é ao mesmo tempo ética e estética. Porque o seu mundo – a moderna sociedade burguesa – é aquele em que “a imanência do sentido à vida tornou-se problemática”, o romance “busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”. A forma é, assim, a busca do sentido que não é mais imanente à vida e ao mundo, como seria na epopéia (conforme a metafísica das formas que Lukács apresenta nesta obra); a forma, neste sentido, “é a resolução de uma dissonância fundamental da existência, [é] um mundo onde o contra-senso parece reconduzido a seu lugar correto, como portador, como condição necessária do sentido”. Esta é a grandeza e a fragilidade do romance (e de seu mundo histórico): a possibilidade e a necessidade da “interioridade” subjetiva e de seu princípio ético como ponto de partida para a boa construção da “forma”, de modo que, esteticamente, a “forma romanesca” é ela mesma dissonante, exigindo a colaboração das “forças” éticas e estéticas. O mesmo não ocorreria na epopéia, onde a “afirmação” de sentido seria anterior à própria “figuração” estética; ali, a forma era-lhe imanente porque antes já o era à vida e ao mundo, enquanto no romance essa afirmação de sentido é dada na própria resolução “formal”. 1 1 . Cf. G. Lukács, Teoria do romance [1916]. Tr. br. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, particularmente I, 34, pp. 55 ss.
26
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Consoante com isso, Adorno – um autor em cuja obra a relação entre teoria crítica e estética se funda numa profunda consciência da moderna crise da linguagem e do caráter aporético, até mesmo contraditório, da forma artística na sociedade burguesa – volta-se, em suas análises críticas e em suas formulações estéticas, para as experiências artísticoliterárias que respondem positivamente à crise das formas, reelaborando-as. Para Adorno, a arte se determina pela forma estética, pelo modo específico do seu “aparecer”, pela sua “imagem”, estabelecendo, através da elaboração da “aparência”, uma diferença com relação à realidade imediata. É justamente nesta “diferença estética” que a obra de “arte autêntica”, enquanto “objeto reconciliado na imagem”, se encontra obliquamente com o real, torna-se o seu “conhecimento negativo” e, portanto, a sua “consciência verdadeira”; somente assim, é per se uma crítica da alienação e da reificação.2 Deste modo, é sob a exigência estética da “lei formal” que Adorno recebe positivamente em sua reflexão as obras e os autores modernistas. Com isso, mantém-se no mesmo horizonte conceitual do “velho” Lukács, com quem travou áspero debate nos anos 50 sobre o “modernismo” e o “realismo”: o horizonte das “leis imanentes à forma”, concepção fundamental à Teoria do romance e que um e outro afirmam neste debate, ainda que sob desdobramentos profundamente distintos.3 Por isto mesmo, 2 . Tomo estas expressões assinaladas entre aspas da primeira parte do ensaio de Adorno intitulado Erpresste Versöhnung [1958], em Noten zur Literatur [1958]. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1958, pp. 251-280; Une réconciliation extorquée, em Notes sur la literature. Tr. fr. Sibylle Muller. Paris: Flammarion, 1983, pp. 171-199. 3 . Sobre este debate Lukács-Adorno, cf. G. Lukács, Realismo crítico hoje [1958]. Tr. br. E. Rodrigues. Brasília, DF: Editora de Brasília, 1960; T. Adorno, Une réconciliation extorquée [Erpresste Versöhnung], edições citadas. Para uma relação entre as posições estéticas desses dois filósofos, na perspectiva posterior de uma importante discípula do filósofo húngaro, ver A. Heller, “Lukács y la sagrada familia”, em Dialética de las formas. Tr. esp. Montserrat Gurgui. Barcelona: Ediciones 62 s/a, 1987, pp. 177 ss.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
27
Adorno mantém uma distância com relação à pretensão programática das vanguardas de dissolução da forma, encontrando na afirmação da autonomia da forma artística um contraponto à alienação e à massificação. Em linhas gerais, é também esta a posição de Lukács, que encontra na especificidade estética da obra de arte – na “grande arte” realista, na “arte autêntica” – uma experiência a salvo da vida alienada do capitalismo moderno.4 II Se a discussão entre Lukács e Adorno supõe, na formulação conceitual e crítica de cada um destes autores, uma distinção na própria experiência artístico-literária entre o “modernismo” e o que – com Lukács, para efeito de diferenciação – podemos chamar de “realismo”, a determinação do objeto deste trabalho supõe uma outra. Refiro-me à diferença entre a experiência artístico-literária modernista , que reelabora e mantém a forma estética, reinventando-a, e aquela que é própria às vanguardas históricas, experiência na qual se questiona o critério estético da resolução formal. Possibilitar esta distinção conceitual talvez seja a grande – mas, certamente, não a única – contribuição da obra de Peter Bürger, Theorie der Avantgarde [1974]. Como Bürger chama a atenção, o conceito de “vanguarda
4 . Na sua última Estética, mobilizado por preocupações ontológicas, Lukács discute a relação entre vida cotidiana e objetivação artística, concebendo esta última num processo histórico-ontológico de diferenciação com relação àquela, até o ponto em que a arte adquire o estatuto de uma objetivação específica distinta das atividades cotidianas, como objetivação humanogenérica; como as ciências, a arte seria uma atividade não-cotidiana. Como objetivação não-cotidiana é que a arte pode ser concebida como lugar de elaboração de um sentido ético humano-genérico que demarca não apenas com a forma geral da cotidianidade, mas também com a cotidianidade alienada própria da sociedade burguesa. (Cf. G. Lukács, Estética, vol. I, “La peculariedad del estetico: Cuestiones preliminares y de principio”. Tr. esp. Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1982).
28
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
histórica” a p r e s e n t a d o e m s e u l i v r o s e r e f e r e à q u e l a s experiências (o futurismo russo, o dadaísmo e o surrealismo francês) que intentaram fazer a crítica da “instituição arte”, buscando a superação de sua autonomia – em cujo centro se encontra a determinação da forma estética – na “práxis vital” (isto é, na vida cotidiana). As vanguardas históricas, diz Bürger, “não se limitam a rechaçar um determinado procedimento artístico, mas sim a arte de sua época em totalidade e, portanto, verificam uma ruptura com a tradição. Suas manifestações extremas se dirigem especialmente contra a instituição arte, tal e como se formou no seio da sociedade burguesa”. 5 Esta demarcação conceitual ajuda a pensar o específico da práxis das vanguardas históricas com relação ao conjunto das experiências literárias que reinventaram a linguagem na literatura modernista (Proust, Joyce, Kafka...) e que, baseandose em Bürger, o crítico inglês Terry Eagleton, justamente para diferenciá-las das vanguardas históricas, nomeia de “alto modernismo”. 6 É preciso notar que esta distinção proposta por Bürger e Eagleton entre o modernismo e as vanguardas está ausente não apenas nas formulações de Lukács, Adorno e Benjamin, mas também nas de Guy Debord. Mas esta é uma distinção capital, de um ponto de vista teórico e para a delimitação do objeto deste livro, pois determina o terreno no qual se movem a s r e f l e x õ e s d o a u t o r d e A sociedade do espetáculo. Concretamente, ela indica um outro lugar experiencial e conceitual de articulação entre teoria crítica e estética. Ou, dizendo com mais precisão: ela indica um outro campo no qual o momento reflexivo-conceitual de busca de superação das fronteiras da filosofia e da estética filosófica tradicionais se relaciona com um momento “destrutivo” da autonomia formal da obra de arte. 5 . P. Bürger, Teoría de la vanguardia [1974]. Tr. esp. Jorge García. Barcelona: Ediciones Península, 1987, p. 54. 6 . Cf. T. Eagleton, “Capitalismo, modernismo e pós-modernismo”, em Crítica marxista, v. 1, nº 2. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, pp. 53 ss.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
29
A teoria apresentada por Bürger, na medida em que promove esta distinção-chave, torna-se, portanto, fundamental para a elaboração da questão que procuro discutir no pensamento de Debord. Certamente, numa retrospectiva histórica, esta demarcação não pode ser absolutizada, pois a renovação da forma no alto modernismo implicou sempre um elemento de destruição formal que lhe foi e é central, tal como o puderam perceber, com valorações distintas, Lukács, Adorno e Debord. Do mesmo modo, a destruição formal das vanguardas teve conseqüências importantes na invenção de novas formas. Este elemento construtivo positivo da experiência das vanguardas históricas é reconhecido por Bürger e se constitui até mesmo no elemento central de sua teoria. Bürger concebe a crítica vanguardista da “instituição arte” como o momento histórico de uma “autocrítica” da arte cujo resultado concreto – histórica e conceitualmente – não é a efetiva negação da atividade artística, mas precisamente o desvelamento positivo das categorias da arte na sociedade burguesa: o estranhamento (o shock dos dadaístas), a inorganicidade (a alegoria, no sentido de Benjamin), a montagem etc. Também neste aspecto delineia-se uma característica distintiva da tese que busco discutir e desenvolver neste livro. Ao buscar pensar um possível significado histórico, e não apenas conjuntural, do programa vanguardista de dissolução das formas, a posição de Debord se distancia radicalmente da conclusão última de Bürger, cujo modelo teórico parece terminar por positivar historicamente a recuperação, pelo establishment cultural, do projeto e dos experimentos das vanguardas históricas. Note-se que Bürger não pretende construir uma história da arte moderna, na qual se limitaria a identificar a permanência, na arte pós-vanguardista, das formas postas ou desenvolvidas pelas vanguardas; antes, procura, ao formular uma “teoria da vanguarda”, explicitar uma racionalidade histórica que operou, “às costas da consciência” (como diria Hegel), no desenvolvimento da arte moderna. Em sua teoria, Bürger
30
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
sustenta a noção de “resultado do processo histórico” no qual o momento negativo (nesse caso, a pretensão vanguardista de reencontro da arte com a vida cotidiana) é assumido, subsumido e, finalmente, neutralizado como um momento de uma démarche histórica agora já concluída. Para ele, o papel histórico das vanguardas foi, a despeito de sua “intenção” de superação da “instituição arte”, justamente o esclarecimento do conceito geral da arte como uma “instituição”, o mesmo ocorrendo com outras determinações da experiência artística moderna, tais como o conceito de “meios artísticos”, a destruição do conceito tradicional de “arte orgânica” (simbólica), o princípio da “construção” (determinado pela montagem e pela alegoria) na esfera da recepção etc. Em outras palavras, Bürger propõe uma explicação teórica centralmente positiva, dialético-sistêmica na qual o negativo é reconvertido positivamente. Ele não se pergunta se algum momento negativo, em face da presente forma social e da atual experiência estética, teria permanecido não-integrado, nãorecuperado neste “processo histórico”. Antes, concebe este mesmo “processo histórico” como um lugar de racionalidade à qual sua teoria oferece explicitação. Por isso, não parece casual que ele explique a positiva reconversão estética das vanguardas sob os termos de “restauração” e de “fracasso”: segundo ele, as vanguardas “fracassaram” em seu projeto de fundir arte e vida; após as vanguardas, mas também graças à revolução que elas operaram na arte, a “instituição arte” e a “obra” foram “restauradas”. Não há dúvida, objetivamente falando, que a “instituição arte” e a “obra de arte” sobreviveram ao ataque das vanguardas.7 Mas, abstraindo-se por enquanto da validade ética e social de tal programa, caberia a pergunta: por quê? Para pensá-la, não seria filosoficamente mais generoso falar 7 . Cf. M. Dufrenne, Art et politique. Paris: Union Général d’Éditions, 1974; R. N. Fabrini, A arte após as vanguardas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
31
em “derrota” e, por seqüência, em “recuperação”, “absorção”, “integração”, noções estas que demarcam melhor a natureza antagonista dessas experiências, ao invés do uso da categoria de “fracasso”, que traz a idéia mais branda de simples ‘falta de êxito’? Assim a reflexão conceitual poderia amparar-se numa concepção de história que não se limita aos “resultados do processo histórico”, ao mesmo tempo que, para a reflexão estética, se tornariam mais ricas as relações entre a experiência artística e a lógica recuperadora da sociedade existente. Para esta perspectiva, Adorno – insuspeito quanto a qualquer idéia vanguardista de dissolução da forma – contribui, ao indicar a “neutralização” como imanente à reificação. Aquilo que em Bürger aparece como racionalidade do “processo histórico” (e é teoricamente apanhado em sua positividade) aparece em Adorno antes como denúncia: “A neutralização é o preço social de sua [da arte] autonomia. [...] No mundo administrado, a neutralização é universal. Outrora, o surrealismo protestou contra a fetichização da arte enquanto esfera particular, mas enquanto arte, que, no entanto, era, foi empurrado muito para lá da pura forma de protesto”. 8 Ora, esta lógica neutralizadora da sociedade produtora de mercadorias é teórica e historicamente inseparável das experiências de “derrotas” das negações da ordem: somente ao ser derrotado, o negativo pode ser recuperado; e, em tal recuperação, a positividade do sistema só pode operar ao fazer, ela mesma, uma “montagem”, uma desconstrução do negativo, deslocando, desviando os seus elementos, somente assim tornados recuperáveis. Para uma perspectiva teórica crítica, tal compreensão da lógica recuperadora do mundo reificado exige, no trato com as questões culturais e os problemas teóricos, uma concepção de história diferente da que é pressuposta pela teoria da vanguarda de Bürger. Comparando a revolução espartaquista de 1919 e a 8 . T. Adorno, Teoria estética. Tr. port. Artur Morão. Lisboa-São Paulo: Martins Fontes, 1988; Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Surkhamp Verlag, 1970, pp. 339-340.
32
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
bolchevique de 1917, Debord falou que “vitórias” são, muitas vezes, apenas “derrotas”; e que há “derrotas” que, sob determinados aspectos, são “vitórias”: tudo dependeria da persistência e do inacabamento de determinados problemas históricos que estão em jogo nessas experiências, e que podem ser recolocadas em jogo em experiências outras. É esta relação diversa com a experiência histórica, na medida em que, com base no presente, admita ou não a persistência de determinados problemas teóricos, que fundamenta este estudo e as reflexões que, com Debord, sugiro com relação às vanguardas. A pergunta primeira da qual parto é: o que de negativo, das experiências das vanguardas, permanece não-integrado, não-recuperado? Bürger tem grande mérito ao explicitar a intenção programática, as categorias estéticas e a importância histórica, também em termos estéticos, da experiência das vanguardas. Mas, ao mover-se sob o horizonte do “resultado do processo histórico”, abdica de tomar como objeto de reflexão tudo aquilo que excede ao que historicamente restou em positivo. O grande achado teórico de Bürger, que lhe permite ainda criticar as reflexões de Lukács e Adorno, sobre a “intenção” das vanguardas de fusão de arte e vida somente o conduz a relacionar as categorias estéticas às experiências artísticas. No entanto, o que havia de “extra-estético” nessa “intenção”, e que, pela sua própria natureza, deveria ser tomada como central numa análise histórica das repercussões dessa intenção e de sua práxis correspondente, não é examinado por Bürger. Este limite de sua teoria não parece ser dado pelo pressuposto teóricometodológico em que se fundamenta (a unidade entre as categorias estéticas e as experiências artísticas), mas antes pela concepção de história na qual se move e pela preocupação em inscrever estreitamente – com base no “resultado do processo histórico” – as experiências das vanguardas numa preocupação meramente “estética”. Este estudo não pretende oferecer uma teoria da vanguarda alternativa à de Bürger, à qual é devedor em mais de
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
33
um aspecto. As presentes considerações visam apenas, com base na demarcação do campo experiencial e reflexivo que o próprio Bürger permite identificar, a afirmação da possibilidade da persistência e do inacabamento – no pensamento de Debord – de algumas questões postas pelas vanguardas e que ficam à margem da teoria do “fracasso” e da “restauração”. A persistência e o inacabamento teóricos de determinadas questões históricas não significam, neste caso, a “atualidade” das experiências dadaísta, futurista (russa) ou surrealista, nem mesmo a dos próprios situacionistas. Antes, significa a possibilidade de que determinadas questões, que num e noutro caso foram centrais, devem ser ainda pensadas com relação tanto aos problemas práticos da nossa existência social quanto aos problemas conceituais que, com base nesta mesma existência e em suas contradições, ainda se mantêm. Neste caso, trata-se precisamente da questão central que abordo, numa relação entre estética e teoria crítica: o problema da linguagem. Feitas essas considerações, a localização do assunto deste livro nas fronteiras da Estética pode ser mais bem explicitada. Como assinalou Adorno, a condição fundamental para a reflexão estética é uma relação com a experiência artística fundada em categorias especificamente estéticas. Está claro que o programa e a experiência das vanguardas, porque colocam em questão a forma e a obra, se afastam da categorização meramente estética. Mas como nunca se distanciam completamente deste terreno de experiência e reflexão, pensando a transformação da vida social a partir dele, as vanguardas expõem, como insistem Adorno e Bürger, problemas realmente estéticos. Esses problemas são inseparáveis das pretensões antiartísticas e antiestéticas; e é nesta tensão que as questões sociais da existência lhe aparecem de modo central. III No início do século 20, os dois esforços que buscam a reflexão e a apreensão sobre a experiência moderna de crise
34
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
da tradição e da linguagem – o artístico e o filosófico – se mantêm separados prática e teoricamente, apesar de sua contemporaneidade e da proximidade de suas preocupações. Quanto à recepção, ainda que parcial, desta reflexão filosófica que se desenvolve no mesmo período das vanguardas do início do século, a experiência de Guy Debord já acontece num momento privilegiado. Ele e seus companheiros da Internacional Situacionista se beneficiam com as publicações em língua francesa, no final dos anos 50, início dos 60, de obras fundamentais daqueles esforços de reflexão, mormente Marxismo e filosofia, de K. Korsch, História e consciência de classe, de G. Lukács; a elas, pode-se ainda acrescentar Teoria do romance, obra do período não-marxista deste último autor. Com a leitura dessas obras, Debord e os situacionistas entram em contato, portanto, com textos que foram fundamentais para as reflexões filosóficas que se desenvolveram em situações históricas contemporâneas às das vanguardas do início do século e que, como estas, também pensaram a crise da linguagem. Nem todas elas são, certamente, obras que discutem diretamente o problema da linguagem (que, na Teoria do romance é o próprio tema e que, em História e consciência de classe, ocupa um importante lugar na primeira parte do ensaio sobre a reificação), mas abrem caminho para uma abordagem mais ampla da crítica da economia política, numa postura mais distante do dogmatismo e da estreiteza que viriam a se constituir no chamado marxismo oficial. Guy Debord e os situacionistas podem mediar, com estas reflexões filosóficas, as que recebem das vanguardas e que constituem o impulso principal de suas próprias reflexões. E somente podem, ressalto, porque partem das formulações da própria experiência prática e reflexiva da moderna poesia francesa, particularmente de vanguarda, das preocupações ali fundamentais acerca da linguagem, de sua crise na modernidade e das buscas estéticas de sua renovação. Surgida em 1957, a partir da fusão de alguns pequenos grupos europeus, a Internacional Situacionista (I.S.) pretende
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
35
retomar a atividade de vanguarda que desaparecera na Europa desde os anos 30, com a derrota das revoluções sociais, a ascensão dos fascismos alemão e italiano e, após a segunda guerra, a incorporação dos experimentos estéticos das vanguardas pelo establishment cultural. Com efeito, trata-se aí do projeto histórico das vanguardas de encontro entre arte e vida cotidiana, encontro unicamente capaz de transformar radicalmente esta mesma vida cotidiana e, eo ipso, ultrapassar os limites da atividade criativa determinados, pela presente divisão social do trabalho, às fronteiras da arte. “A arte será assim ultrapassada, conservada e superada numa atividade mais complexa”, diz o próprio Debord sobre o sentido deste programa de ultrapassagem da arte. “Seus elementos poderão se reencontrar aí parcialmente, mas transformados, integrados e modificados pela totalidade”. 9 Para Bürger, a recolocação em jogo deste projeto das vanguardas históricas mereceria certamente uma consideração polêmica. Para ele, o ciclo histórico das vanguardas se encerrou no entreguerras, por dois motivos: primeiro, porque “a pretensão de reintegrar a arte na práxis vital já não pode colocar-se seriamente na sociedade existente, uma vez que as pretensões vanguardistas fracassaram”, explicação que é quase tautológica; segundo, porque as “neovanguardas” dos anos 50-60 não procuraram questionar a forma artística (a “instituição arte”), mas ingressar no aparato artístico institucional. 10 Ora, Debord e os situacionistas, extremamente críticos com relação às “neovanguardas”, buscam recolocar o problema das vanguardas históricas sob novos fundamentos teóricos e práticos, com base 9.
“Sur l’emploi du temps libre”, Internationale Situationniste nº 4, junho de 1960, p. 4. (As referências aos números da revista da Internacional Situacionista se baseiam em Internationale Situationniste 1958-1969. Texte intégral des 12 numéros de la révue, édition augmentée. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1997; as páginas citadas se referem àquelas das primeiras edições de cada número da revista). 10. Cf. P. Bürger, Teoría de la vanguardia, p. 67.
36
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
numa análise crítica da própria experiência surrealista e da impossibilidade, sob o ponto de vista desta mesma experiência e em face das novas circunstâncias históricas, de repeti-la. Apesar das suas reais inovações formais (a pintura industrial de Pinot Gallizio e Asger Jorn, os filmes do próprio Debord), os situacionistas mantêm um traço já encontrado nos surrealistas que é o predomínio das idéias, das pretensões teóricas, das formulações programáticas em comparação com a quantidade de “obras artísticas” produzidas, que, em geral, num caso e noutro, foi relativamente pequena.11 Essas pretensões teóricas são alimentadas, no contexto intelectual francês do final dos anos 50, início dos 60, pelas diversas buscas de renovação teórica da esquerda. Os situacionistas mantêm, neste período, uma relação próxima a H. Lefèbvre. Em 1961, alguns deles, incluindo o próprio Debord, chegam a ingressar no Socialismo ou Barbárie, grupo animado, dentre outros, por C. Castoriadis, C. Lefort, J.-F. Lyotard. Eles lêem, discutem e publicam, em sua revista, sobre a Arguments e outros autores e publicações teóricas de esquerda. No entanto, seria falso ver nestas relações e nos elementos que, com base nelas, são incorporados à reflexão situacionista, incluídas as obras de Lukács e Korsch, a conformação teórica central de sua experiência. Bem ao contrário, como Debord insiste em diversos momentos, há experiências pessoais que, biográfica e existencialmente anteriores à interlocução com a filosofia acadêmica de esquerda, marcam profundamente a reflexão situacionista. Do próprio Debord, parece ser a experiência vital na Saint-German-desPrès dos anos 50, “este meio dos empreendedores de 11. Na apresentação da tradução de Ivo Barroso do Nadja, de Breton (São Paulo: Imago, 1999), observa-se, com razão, “o número relativamente pequeno de obras importantes que o movimento [surrealista] em seus momentos ortodoxos [sic] produziu”. Para uma descrição dos experimentos – “obras” – situacionistas, ver, sobretudo, M. Bandini, L’esthétique, le politique [1977]. Tr. fr. Claude Galli, Marseille, Via Valeriano, 1988; G. Marelli, L’amère victoire du situacionisme. Arles: Editions Sulliver, 1998.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
37
demolição”, “o bairro de perdição”, como ele recorda em Panégyrique I; “um bairro onde o negativo mantinha sua corte”, afirma no filme In girum imus nocte et consumimur igni. Estas experiências à margem do mundo intelectual francês conformam desde o início de sua atividade todo um “programa” prático. Nelas, Debord e seus amigos reencontram uma temática tão fundamental ao dadaísmo e ao surrealismo – e já antes presente na poesia e nos textos de Baudelaire – como a experiência da deambulação, da flânerie na grande cidade moderna, temática recolhida pelos situacionistas sob a forma da dérive e da crítica teórica do urbanismo. Nelas, eles também se deparam praticamente com a questão do trabalho (ou, antes, da recusa do trabalho alienado, já presente em Rimbaud e Breton), o problema do uso do tempo vivido e a crítica do lazer e da cultura de massas. É esta feição marginal e “destrutiva” da sua experiência, que em alguns momentos conteve até mesmo, segundo Debord, um elemento “niilista”, que se expressa na insistente valoração positiva dos ludditas, das classes dangereuses, dos ouvriers sauvages pelos situacionistas. Não é o caso aqui de procurar estabelecer um perfil intelectual de Debord. Mas importa, sim, situá-lo na “tradição insurrecional” 12 da moderna poesia francesa, relação que, de modo algum, o distancia da cultura clássica ou da dialética alemã, de Hegel e Marx. Ao contrário, todas essas leituras e relações parecem ser trazidas precisamente para essa “herança” que Debord reivindica sob o nome de “poesia moderna”, em relação com a qual sempre se pôs quando buscou situar-se existencial ou teoricamente. Do ponto de vista existencial, assim se refere à experiência de sua juventude na Saint-German-des-Près: “Afinal, era a poesia moderna, desde cem anos, que para aí nos levara. Éramos alguns a pensar que era preciso executar seu programa na realidade; 12. Devo o uso deste termo a Paulo Eduardo Arantes, nos seus comentários à tese de doutoramento, da qual este livro se serve como base.
38
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
e, em todo caso, não fazer qualquer outra coisa”. 13 Teoricamente, não é outra a explicação do impulso fundamental da teoria crítica exposta em A sociedade do espetáculo: “Quinze anos antes, em 1952, quatro ou cinco pessoas pouco recomendáveis de Paris decidiram pesquisar a ultrapassagem da arte. [...] A ultrapassagem da arte é a ‘passagem ao noroeste’ da geografia da verdadeira vida, que com freqüência fora tão procurado durante mais de um século, notadamente a partir da autodestruição da poesia moderna”. 14 Qual relação, porém, existiria entre sua reflexão teórica e a experiência da moderna poesia francesa, particularmente de vanguarda? A hipótese deste livro é a de que esta questão é precisamente a da linguagem, fundada num conteúdo socialmente crítico que, com base em Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e Mallarmé, já era central para o surrealismo. Pelo menos a partir de 1958, nos textos da revista Internationale situationniste e no filme Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps (1959), começa a ganhar importância temática, nos escritos de Guy Debord, o problema da linguagem. Assumindo e buscando ultrapassar teoricamente o horizonte modernista e vanguardista da “expressão”, ao mesmo tempo em que reconhece e se solidariza com a natureza crítica desta estética expressiva, Debord critica a “pseudocomunicação” da sociedade existente e estabelece a relação entre a comunicação e o programa, já apresentado pelos dadaístas e pelos surrealistas, de transformação da vida cotidiana. Ele o faz justamente por interpretar que é esta a questão que esteve no centro das reflexões e dos experimentos práticos da arte moderna, na crítica da instituição arte e nos experimentos de dissolução das formas do dadaísmo e do surrealismo. É esta interpretação das 13. G. Debord, Panégyrique I [1989]. Paris: Gallimard, 1993, pp. 34-35. 14. G. Debord, “Préface à la quatrièmme éditions italienne de La société du spectacle” [1979], em Commentaires sur la société du spectacle [1988]. Paris: Gallimard, 1992, pp. 130-131.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
39
experiências do modernismo e das vanguardas históricas o que, antes de tudo, torna possível a sua específica recepção dos livros de Marx, Lukács, Korsch, obras que lhe permitem pensar, numa perspectiva ao mesmo tempo estética e de crítica social, a questão da linguagem. Num ponto bem específico, Debord refaz, por seus próprios meios, e com base na discussão interna às vanguardas, um caminho que em geral foi aquele de outros autores: o da tematização da experiência cultural, da crise social da linguagem, inseparável da crise artística das formas, tendo como centro as categorias críticas da reificação e do caráter fetichista da forma-mercadoria. Ele pretende, assim, desenvolver uma reflexão sobre a experiência histórica da arte moderna e das vanguardas do início do século, reflexão ao mesmo tempo centrada na questão da linguagem e baseada na crítica marxiana do valor, e da qual, em proximidade e ruptura com aquela experiência, resulta uma teoria crítica do capitalismo desenvolvido, exposta em A sociedade do espetáculo. “Fora-nos preciso retomar a crítica da economia política compreendendo precisamente e combatendo ‘a sociedade do espetáculo’”. 15 Essa apropriação da crítica da economia política, explicitada pelo próprio Debord em diversos de seus escritos, foi já observada e comentada por muitos autores.16 Ela constitui a temática principal do livro de Anselm Jappe, Guy Debord, talvez o mais importante – em termos de discussão filosófica – sobre o pensamento e a experiência histórica do fundador da Internacional Situacionista. Mas, precisamente quando identifica na crítica da forma-mercadoria a “atualidade” do pensamento de Debord, Jappe encontra na insistência do autor de A sociedade 15. G. Debord, “Notes pour servir à l’histoire de l’I.S. de 1969 a 1971" em La Véritable Scission dans l’Internationale [1972]. Paris: Fayard, 1998, p. 95. 16. R. Gombin, Les origines du gauchisme. Paris: Éditions Seuil, 1971; P. Wollen, “The Situationist International”, em New Left Review, London, March/April 1989, pp. 67 ss; A. Agamben et al., I situazionisti. Roma: Manifestolibri, 1991; A. Jappe, Guy Debord [1993]. Tr. br. Iraci Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
40
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
do espetáculo na tematização da linguagem e da comunicação um “limite” em seu pensamento, pois, segundo sua análise, ela o remeteria às noções clássicas da “natureza humana”, da “verdade” e assim por diante. Neste livro, pretendo pensar a relação entre a reflexão sobre a linguagem e a crítica do fetichismo mercantil não como duas vertentes do pensamento de Debord, em que a “atualidade” de uma (a crítica da forma-mercadoria) é independente e mesmo potencialmente oposta à outra (a crítica da linguagem), mas sim como aspectos inseparáveis de um único e mesmo ponto de partida da crítica da sociabilidade tardocapitalista, centrado na crítica da linguagem e na crítica da forma-mercadoria.17 Tratase aí, segundo a minha hipótese, de uma “crítica unitária” que, ao compreender o espetáculo como “o momento em que a mercadoria chegou à ocupação total da vida social”, pode também, numa mesma determinação, compreendê-lo como “o contrário do diálogo”. 18 Em outras palavras, minha hipótese é a de que a apreensão da crítica marxiana do fetichismo mercantil por Debord tem sua especificidade numa nucleação – pelo conceito de espetáculo – da questão da linguagem, sob o horizonte comunicativo. Deste modo, a retomada do esforço teórico da crítica do valor, por Debord, incide diretamente numa potencialização da própria crítica da economia política para constituir-se como base teórica para uma reflexão e uma postulação socialmente críticas sobre a linguagem e a práxis comunicativa (cuja diferença para com o “agir comunicativo” 17. O conceito a dar conta do capitalismo em suas atuais características neste livro, seguindo o pensamento de Debord, é o de “sociedade do espetáculo”. Faço uso aqui de outros termos – tais como capitalismo tardio, capitalismo mais desenvolvido, capitalismo moderno, sociedade tardoburguesa etc. – que designam a mesma coisa, mas liberam o leitor da repetição nominal do conceito capaz de oferecer inteligibilidade crítica desta coisa. 18. G. Debord, La société du spectacle [1967]. Paris: Gallimard, 1992, respectivamente, §§ 42 e 18, itálicos no original. (De agora em diante, A sociedade do espetáculo será indicado no próprio texto ou em rodapé, pelas iniciais SdS, seguidas do parágrafo correspondente).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
41
de Habermas será de modo rápido, mas suficiente, apontada no terceiro capítulo). Em Debord, o conceito central desta reflexão é o de linguagem comum como referência normativa da crítica do presente. Conforme argumentarei, esta categoria assume até mesmo uma natureza metafísica, motivo pelo qual sua reflexão se encontra com as do jovem Lukács (e seu conceito de gleiche Sprache, “linguagem igual, comum”) e de Benjamin ( e s e u c o n c e i t o d e Erfahrung , “ e x p e r i ê n c i a c o m u m e comunicável”). Ao situar-se sempre sob o horizonte da “poesia moderna”, Debord se apropria das suas reflexões acerca da linguagem e das suas experiências de destruição das formas. Com Breton e os surrealistas, a reflexão sobre a linguagem já articula uma assunção positiva da destruição das formas com a pergunta pelo seu sentido. Eles buscam já, no processo de destruição da antiga linguagem artístico-pictórica e dos velhos modos de expressão, uma renovação da linguagem ou, mais ainda, uma nova posição “ontológica” (e quase “mágica”, como propõe Blanchot) da linguagem num mundo enfim liberado. Esta procura é, segundo Debord, a questão fundamental posta pela poesia moderna quando ela destrói as velhas formas de “comunicação unilateral” da arte. “Não se contesta nunca realmente uma organização da existência sem se contestar todas as formas de linguagem que pertencem a esta organização”, diz Debord.19 Nestes termos, apresenta-se o mesmo procedimento de compreensão da linguagem – já proposto por Breton e pelo surrealismo – como um lugar no qual algo de muito sério e fundamental está colocado: o problema do modo e do sentido da vida; portanto, uma concepção segundo a qual a linguagem não se constitui num meio, num instrumento. Debord, contudo, afasta-se das categorias de profundeza do espírito, inconsciente, sonho e 19. G. Debord, Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps [1959], em Œuvres cinematographiques complètes 1952-1978 [1978]. Paris: Gallimard, 1994, p. 26.
42
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
expressão, que são centrais à reflexão surrealista e que, de modos distintos, estiveram presentes em experiências diversas da arte moderna. Do ponto de vista histórico, os limites que ele encontra em Breton e no surrealismo têm a ver com a crítica do próprio capitalismo contemporâneo, num momento, o do segundo pós-guerra, em que a insistência no inconsciente, no sonho, na interioridade subjetiva e na expressão não-comunicativa perde a negatividade que antes portaram; e, por isto, a questão antes colocada por Breton quando de sua ruptura com o dadaísmo mais uma vez deve ser posta: a pergunta pelo sentido prospectivo da destruição, pela arte moderna, da antiga linguagem. Esta pergunta é, para Debord, inseparável da necessidade da “elaboração consciente do desejo” e de um novo horizonte com base no qual a crítica da reificação precisa ser feita: uma “nova” linguagem comum, o diálogo prático, uma nova comunicação. Com relação ao surrealismo e às outras experiências artísticas modernas, Debord se posiciona por uma transição, no que diz respeito ao horizonte da reflexão estética e social sobre a linguagem, do conceito de “expressão” ao de “comunicação” ou “diálogo”. Esta transição, conforme buscarei argumentar, nos remete ao próprio conceito central de sua crítica da “sociedade espetacular-mercantil”. Em outras palavras, Debord busca recolher e manter, ultrapassando-a, a natureza crítica da expressão não-comunicativa (e, por isso, refratária à “pseudocomunicação” da sociedade burguesa), tal como concebida e experienciada pela arte moderna e as vanguardas do início do século, formulando a perspectiva crítico-social da “comunicação”. Este horizonte comunicativo se apresenta, assim, inseparavelmente, como a perspectiva em favor da qual é feita a crítica da sociedade fundada na produção fetichista de valor e, neste mesmo gesto, à “ultrapassagem da arte”, à “realização da poesia” se acrescenta um novo conteúdo. A expressão poética moderna foi sempre, segundo Debord, uma denúncia da linguagem reificada, pseudocomunicativa e até mesmo anticomunicativa; em negativo, esta denúncia aspirou a uma
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
43
nova, autêntica e livre comunicação. A elaboração prática de uma nova comunicação é, portanto, o modo de realizar o programa elaborado de modo negativo pela forma e pelo conteúdo socialmente críticos de toda a poesia e a arte moderna. Deste modo, a superação da atual divisão social do trabalho, a transformação da vida cotidiana, a substituição do trabalho alienado por uma atividade livre e lúdica, enfim, a eliminação das relações sociais fundadas na forma-valor, pressupostas no programa das vanguardas históricas de ultrapassagem da arte, passam a ter como núcleo e fundamento prático a produção histórica daquilo mesmo que, na sociedade produtora de mercadorias, é obliterado pela expropriação da atividade produtiva: o jogo criativo e prático da comunicação e do diálogo. Dito isto, o objeto deste livro pode ser, assim, melhor determinado: busco aqui retomar a crítica teórica de Debord à “sociedade do espetáculo”, sob a hipótese de que o centro dessa crítica é a análise da expropriação da potencialidade comunicativa dos homens, potencialidade esta historicamente constituída pelo e no mesmo processo social de reificação que impede sua livre realização prática. Este é o fundamento da reflexão de Debord, reflexão ao mesmo tempo crítica e reivindicadora da tradição insurrecional das vanguardas históricas e da arte moderna.
44
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
45
Capítulo I
Espetáculo e linguagem O passado não nos deve absolutamente perturbar já que devemos somente lamentar nossos erros. Mas o futuro nos deve tocar ainda menos, já que ele não está de modo algum à nossa vista e que nós talvez não cheguemos jamais a ele. O presente é o único tempo que é verdadeiramente nosso, e o qual devemos usar segundo Deus. Pascal, Carta a Mlle. de Roannez
Em A sociedade do espetáculo, há três capítulos em que Debord discute sobre o lugar e o significado históricos da emergência da modernidade: os capítulos V – “Tempo e história” e VI – “O tempo espetacular”, ambos centrados, como indicam seus títulos, na experiência histórica e social do tempo, e o capítulo VIII – “A negação e o consumo na cultura”, no qual a linguagem é diretamente tematizada. A discussão realizada nos capítulos V e VI sobre o moderno é inseparável de uma temática que esteve sempre presente em toda a obra de Debord, sendolhe mesmo essencial: a relação dos homens com a passagem do tempo. Já no capítulo VIII, Debord desenvolve uma discussão sobre a linguagem e a cultura, questões que são o próprio objeto de discussão no presente livro e que, como buscarei demonstrar, estão no centro da sua reflexão crítica sobre o capitalismo contemporâneo. Tempo e linguagem, considerados em seus usos
46
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
históricos possíveis, são indissociáveis em sua reflexão sobre a sociabilidade tardoburguesa: as atuais formas históricas de um e de outro se determinam reciprocamente, constituindo um todo da experiência presente da reificação. Nos dois primeiros subcapítulos seguintes, opto por tomar a concepção debordiana da experiência moderna com base em sua discussão dos capítulos V e VI de A sociedade do espetáculo, confrontando-a, no terceiro subcapítulo, com algumas passagens dos dois primeiros capítulos do mesmo livro, centrados no conceito de “espetáculo”. Este procedimento se justifica por dois motivos. Primeiro, porque neste primeiro capítulo pretendo melhor determinar sua assunção crítica da modernidade, afastando-me da hipótese de uma crítica romântica do presente, crítica supostamente alimentada por determinadas valorações positivas da comunidade pré-moderna, como interpretam M. Löwy e, de certo modo, também A. Jappe. Para M. Löwy, encontra-se em Debord um “protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna em nome de valores do passado”. 1 Em certa medida, esta leitura foi antecipada por A. Jappe, que estende as análises de Debord acerca da pólis grega e das repúblicas democráticas italianas – que serão apresentadas a seguir – à “aldeia, [ao] bairro, [à] corporação e mesmo [às] tabernas populares”, os quais supostamente “constituíam formas de comunicação direta em que cada um conservava o controle sobre uma parte ao menos de sua própria atividade”. 2 Ora, o capítulo VIII, ao ser tomado isoladamente, apenas superficialmente permite que os conceitos ali presentes de comunidade e linguagem comum sejam interpretados nas perspectivas que M. Löwy aponta (com base numa leitura que 1 . M. Löwy, que tipifica nestes termos o “romantismo anticapitalista”, enquadra nele tanto Breton e os surrealistas quanto Debord e os situacionistas (M. Löwy, “Consumé par le feu (Le romantisme de Guy Debord)”, em Lignes, nº 31. Paris: Harzan-Lignes, 1997, p. 163). 2 . A. Jappe, Guy Debord, p. 61.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
47
também aparece em Jappe). Mas não me parece casual que a discussão sobre a linguagem e a cultura, nos termos que aparecem no capítulo VIII, seja precedida pelos capítulos V e VI, sobre o tempo, e VII, sobre o espaço (“A organização do território”). Se olhado mais de perto, este procedimento se revela um método expositivo que discute antecipadamente dois elementos fundamentais da experiência moderna – a relação com o tempo e o espaço sociais em suas concretudes históricas – e oferece, nesta anterioridade expositiva, o caráter “moderno” da discussão seguinte sobre a linguagem e a cultura. O segundo motivo desta opção é que, nas considerações sobre a natureza arcaico-moderna do espetáculo, que seguem à discussão – baseada nos capítulos V e VI – sobre o significado histórico da modernidade, busco articular a relação entre a reificação e a linguagem, relação esta que é fundamental à crítica debordiana do capitalismo avançado e parâmetro de toda a sua reflexão estética baseada na experiência social da linguagem, a ser apresentada nos capítulos seguintes deste livro. Somente com base nesta crítica do capitalismo tardio, na qual se articulam de modo substancial a experiência social da reificação e a da linguagem, pode ser mais bem compreendida sua concepção comunicativa da linguagem. Neste sentido, as considerações sobre o conceito de espetáculo, apresentadas no último tópico deste capítulo, delinearão já de início a perspectiva distinta das reflexões de Debord diante da reivindicação expressiva da interioridade subjetiva pelo surrealismo e por parte significativa da experiência estética modernista.
1.1 O tempo e a existência histórica Debord concebe uma essencial relação entre dois termos, os quais distingue para, na reflexão, melhor aproximá-los: o tempo e a história. O que fundamentalmente significa a sociedade moderna, para ele, é o surgimento de novas condições materiais
48
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
de produção social da existência, que trazem consigo a destruição inseparavelmente dos antigos modos de experiências do tempo e dos antigos modos de vida, da “tradição”. “Durante todo o tempo em que a produção agrária permanece o trabalho principal, o tempo cíclico, que permanece presente no fundo da sociedade, alimenta as forças coligadas da tradição, que vão conter o movimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesa extirpa essas sobrevivências em toda a vastidão do mundo” (SdS, § 141). Sob um determinado aspecto, ele em nada difere aqui da interpretação materialista – ao contrário, a retoma – que desde Marx compreendeu sempre a relação, no capitalismo, entre o desenvolvimento das forças produtivas e a superação das antigas formas de relações sociais. Mas, ao formular uma reflexão sobre a experiência histórica com base na questão do tempo histórico – da experiência e da consciência social da passagem do tempo –, Debord ajunta à interpretação materialista estabelecida, e com base nisto a rearticula, uma temática específica. Trata-se de pensar o “histórico”, a “consciência histórica”, fundados na experiência real, social, dos homens com a passagem do “tempo irreversível”, o tempo constituindose no “conteúdo principal do termo ‘história’”. 3 O que significa a irreversibilidade do tempo, como conteúdo possível da experiência e da consciência históricas, pode ser aproximativamente compreendido na sua apreciação da narrativa de Heródoto: esta expressaria precisamente o devir de uma “história consciente” como consciência de um “tempo irreversível”. De fato, a justificativa de Heródoto para a exposição de sua “investigação” (historía) expressa bem a consciência de uma passagem irreversível do tempo, uma passagem que é destruição e morte, e a qual a sua narrativa não busca evitar, mas antes acolher como condição de possibilidade mesma daquilo que ela quer manter na memória e salvar do 3 . Carta a Mustapha Khayati, 08.10.65 (G. Debord, Correspondance, vol. 3. Paris: Fayard, 2003, p. 69).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
49
esquecimento. Por duas vezes, após o seu célebre parágrafo inicial, Heródoto expressa esta representação da existência temporal dos homens, que Debord recolhe positivamente como consciência histórica d o tempo irreversível. Uma, quando se apresenta como narrador isento dos acontecimentos, “percorrendo por igual as pequenas e grandes cidades dos homens”: “Pois a maioria das que antigamente eram grandes tornaram-se pequenas; e as que, em meu tempo, eram grandes, antes eram pequenas. Sabendo, portanto, que a felicidade humana jamais permanece no mesmo ponto, recordarei igualmente ambos os tipos” (I, 5). Outra, quando, fazendo Sólon dialogar com Kroisos, coloca nos lábios do legislador ateniense aquela sentença que, antes, já assumira como centro de sua própria representação da experiência humana sob a passagem do tempo: “todo homem é contingência, evento” (symphorê, I, 31). Que houvesse já, na cultura grega, uma consciência da essencial mortalidade humana, em harmonia e distinção com a imortalidade dos deuses, Debord não ignora. Aquele trecho do canto VI da Ilíada, que mais classicamente a expressa, ele o cita, como epígrafe, em seu Panégyrique: “As gerações dos homens são como aquelas das folhas...” Segundo Platão, tal representação, não apenas da existência humana, mas de toda a existência, seria o “fundamento” mesmo da poesia épica e todo o pensamento grego, com exceção precisamente de Parmênides.4 Contudo Heródoto expressaria, conforme Debord, uma ruptura radical precisamente por tematizar claramente – acrescento, como justificativa mesma de sua narrativa – a passagem irreversível do tempo, como lugar da atividade e da construção humanas. Segundo diz Debord, Heródoto rompe em sua narrativa com a representação do tempo que está presente nas antigas crônicas, nos antigos anais e listas reais , ligados ao “poder divinizado” do despotismo oriental, pois nestes se apresentava certamente uma representação do tempo irreversível, mas na 4 . Cf. Crátilo, 402 a-b; Teeteto, 152 e, 180 c-d.
50
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
forma d a sucessão das dinastias, o “tempo irreversível do poder”. Ora, se as crônicas expressavam uma consciência da irreversibilidade do tempo – o esforço em salvaguardar na memória, da ação destruidora do tempo, as aventuras e as guerras dos dinastas, esforço este mobilizado precisamente pela esperança mítica na imortalidade da alma –, elas o faziam, no entanto, como forma de uma apropriação e um uso privados da experiência e da memória históricas; e da memória porque antes da própria experiência.5 Segundo Debord, a história, uso da passagem irreversível do tempo em viagens, guerras e aventuras, é, no despotismo oriental, um privilégio dos maîtres da sociedade; a “base” da sociedade, todos os outros indivíduos permanecem sob a experiência de um tempo que se apresenta repetitiva, cíclica, imobilizada e presa à terra e ao trabalho agrícola. A representação da irreversibilidade da passagem do tempo, com tudo o que significa de uso livre da mortalidade, só foi possível na experiência democrática dos senhores gregos que, ao ampliar entre seus pares (e outros mais) as decisões da vida comum, ampliou também a participação prática na história. Quando narra as viagens de Sólon, Heródoto simboliza a excelência de suas próprias viagens, não para as guerras e os comércios, como tradicionalmente a aristocracia o fez, mas simplesmente para conhecer e experimentar: viajar. 6 Deste modo, situa sua própria 5 . Sobre as listas reais, os anais e as crônicas, ver F. Hartog, A história de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001, p. 16: “A história era real (somente o rei fazia a história), reservada (já que estava nas mãos de uma casta de intelectuais, mestres da escrita), monumental (fazendo-se ver também nas grandes inscrições)”. Cf. também J. Le Goff, História e memória. Tr. br. Irene Ferreira et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992, pp. 431 ss. 6 . “Hóspede ateniense, nos é conhecida tua fama, por tua sabedoria e pelas tuas viagens...”, diz Kroisos a Sólon (I, 30). A partir do século VI, os homens livres da Grécia experimentaram viagens não relacionadas com as guerras e os comércios: “Alguns, como é natural, por comércio, outros como soldados, outros também para visitar os países...”, diz o próprio Heródoto (III, 139).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
51
experiência de deslocamento qualitativo e concreto no espaço – inseparável, em sua narrativa, da experiência e da consciência da passagem destrutiva e irreparável do tempo, tornado assim também concreto e qualitativo – na experiência da pólis grega. É este uso qualitativo e concreto da experiência temporal que significa, para Debord, a experiência com a passagem irreversível do tempo. Esta concepção expressa a importância que a atividade, a ação – no sentido clássico de práxis – ocupa em seu pensamento. A consciência histórica que Heródoto expressa e experimenta é um produto direto da experiência democrática dos senhores, experiência de participação nos negócios comuns da pólis e, na mesma medida, participação na história, na atividade prática comum, “comunicação prática”, tal como Debord a entende: “Desta comunicação prática entre aqueles que se reconheceram como os possuidores de um presente singular, que experimentaram a riqueza qualitativa dos acontecimentos como a sua atividade e o lugar onde habitavam – a sua época –, nasce a linguagem geral da comunicação histórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiu descobrem nele, ao mesmo tempo, o memorável e a ameaça do esquecimento: ‘Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui os resultados do seu inquérito, para que o tempo não possa abolir os trabalhos dos homens...’” (SdS, § 133). Esta representação de Heródoto e da experiência democrática grega, por Debord, é contemporânea dos novos estudos que, na França dos anos 60, começam a ser feitos sobre a Grécia clássica e, especialmente, sobre sua experiência democrática. 7 Um traço importante em tais estudos é o 7 . Entre outros, cf. P. Vidal-Naquet, Temps des dieux et temps des hommes (1960); J.-P. Vernant, Les origines de la pensée grecque (1962); F. Chatelet, La naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne en Grèce (1962). P. Vidal-Naquet defende que, entre os gregos, a representação do tempo nunca foi única. Em Homero e Hesíodo, há uma representação dupla, ora como tempo irreversível e linear, ora como tempo cíclico. Em Heródoto, contudo, há uma representação do tempo hegemonicamente linear, um “tempo histórico” distinto do “tempo mítico”. Nele, o “tempo dos homens”
52
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
estabelecimento da relação da pólis democrática com suas “invenções”: a narrativa histórica, a filosofia, a tragédia... Com base em sua própria posição crítica em face do capitalismo contemporâneo e dos interesses e preocupações nascidos das questões postas pelo dadaísmo e o surrealismo, o específico da apreensão desses novos estudos, por Debord, é precisamente a da experiência e da consciência da passagem irreversível do tempo como formas inaugurais de experiência e consciência históricas. “O homem, ‘ser negativo que é unicamente na medida em que suprime o ser’, é idêntico ao tempo”, diz Debord, desviando o sentido do § 258 da Enciclopédia das ciências filosóficas de Hegel. “A história sempre existiu, mas nem sempre sob sua forma histórica. A temporalização do homem, tal como ela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo se manifesta e devém verdadeiro na consciência histórica” (SdS, § 125). Com base nesta identidade do homem e da passagem do tempo, concepção que tem profundas raízes na moderna experiência poética francesa e que é central à sua crítica da reificação, o que primeiramente Debord recolhe e interpreta em Heródoto não é uma narrativa histórica “verdadeira” em é o de “incerteza” e, por conseqüência, “liberdade”; mais ainda, “Heródoto não crê que uma evolução seja reversível”. Em sua obra, F. Chatelet articula precisamente o surgimento do “espírito historiador”, do “pensamento historiador” (pensée historienne) na experiência da pólis grega e na autocompreensão, naquela experiência, do homem como “ser histórico”, que experimenta suas palavras, decisões e ações como significativas e irreversíveis; manifesta-se aí exatamente uma consciência do “destino temporal do homem” e da “irreversibilidade do curso do tempo”. Debord, no entanto, não apenas recebe as conclusões de tais estudos, mas os resignifica a partir de sua crítica da reificação do tempo no capitalismo avançado. Deste modo, toma o gesto de Heródoto não como expressão de um “pensamento historiador” – conceito que, em F. Chatelet, mantém-se no âmbito epistêmico do discurso historiográfico – mas como pensamento histórico, como consciência histórica, conceitos que remetem mais diretamente à própria existência social como histórica, porque situada numa atividade prática comum de intervenção e invenção históricas.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
53
oposição à “falsidade” do mito, mas este se tornar consciente da passagem do tempo, enquanto irreversível e linear; passagem que, na ausência da atividade prática construtiva dos homens, se mantém inconsciente, tal como ocorre nas narrativas míticas, onde o tempo é experimentado ainda de modo “inconsciente” pois se apresenta sob a forma da reivindicação do passado – enquanto permanência organizadora de sentido – ao presente. A história – forma da passagem do tempo que submete a si e à destruição que ele move toda a experiência humana – é, pela primeira vez, conscientemente vivida na democracia dos senhores gregos exatamente porque, antes de senhores de escravos, mulheres e coisas, resolveram e conseguiram ser senhores e “possuidores de um presente singular”, a “sua é p o c a ” , e e x p e r i m e n t a r e m “ a riqueza qualitativa dos acontecimentos como sua atividade”. É, portanto, a assunção pelos homens de sua “época”, tomando-a como sua própria “atividade”, que permite à passagem irreversível do tempo – móvel da destruição, mas que, por isso mesmo, é também condição e lugar da criação – se tornar “consciente”, enquanto possibilidade e efetividade da “consciência histórica”. Nesta análise, Debord manifesta a relação entre sua concepção de “consciência histórica” e o uso prático e social da linguagem, na forma do diálogo. Como Vidal-Naquet chama a atenção, Heródoto registra – no livro V, § 78 da Historía – que a experiência democrática dos cidadãos gregos não se centra numa formal e abstrata isonomía, mas também na isegoría, “o direito legal à palavra”8, ou ainda, a igualdade na agorá. Debord concebe o uso histórico da linguagem pelos senhores gregos, como linguagem dialogal e decisória (portanto, prática), precisamente nos termos de uma “linguagem geral da comunicação histórica”.
8 . P. Vidal-Naquet, Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio [2000]. Tr. br. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 179.
54
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
A consciência histórica, como “história consciente” da passagem do tempo, significa para ele – considerando a experiência democrática dos senhores gregos – a assunção prática de sua própria época enquanto sua atividade, a s s u n ç ã o q u e é indissociável da participação dialogal, da linguagem compartilhada e disputada que quer, e pode, não apenas se expressar, mas decidir e realizar. É esta linguagem dialogal que se faz “comunicação histórica” no duplo e inseparável sentido de uma possessão prática da sua própria época, enquanto jogo e gozo da passagem do tempo, uso da destruição que ele provoca e da criação que ele possibilita. Possessão de sua própria época que necessita e pode possuir o seu próprio passado; e, por isso mesmo, também comunicação histórica que se expressa na consciência da ameaça do esquecimento e da importância do memorável. A relação que Debord estabelece entre a democracia dos senhores gregos e a experiência histórica, mediadas pelo uso prático e dialogal da linguagem, não deve ser lida, contudo, “filosoficamente”, como uma experiência histórica cuja racionalidade é assumida como fundamento supra-histórico de um modelo racional para a vida social. Esta seria, certamente, uma leitura atraente, tanto mais por se tratar dos gregos, mas que, neste caso, deve ser evitada: primeiro, porque a Debord não interessa, nos gregos, a experiência filosófica, mas sim, num sentido bem determinado, sua experiência histórica (tal como ele a entende); segundo, porque a questão da comunicação é anterior, nos seus textos, às novas discussões sobre a Grécia ocorrida na França nos anos 60, encontrando-se neles já no final dos anos 50, como parte de sua reflexão sobre a experiência artística moderna. Mais importante ainda, Debord considera limitada a experiência histórica dos gregos, e limitada num aspecto bem específico, a saber, a da essencial permanência ali da separação: “o poder partilhado das comunidades gregas existia apenas na dépense de uma vida social cuja produção permanecia separada
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
55
e estática na classe servil. Somente aqueles que não trabalham, vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pela exploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado o princípio da separação que fundava interiormente cada uma delas” (SdS, § 134).9 A permanência da separação – determinação que, em sua crítica do capitalismo desenvolvido, é fundamental ao próprio conceito de espetáculo – indica, na análise de Debord, a impossibilidade de uma vida histórica plena, impossibilidade determinada pelas próprias bases sobre as quais se erguem aquelas experiências democráticas: tanto a natureza agrícola de sua economia, submetida ao movimento cíclico das estações naturais, quanto a necessidade do domínio sobre outras cidades. A afirmação, por Debord, de uma exteriorização daquela separação interna às cidades gregas certamente reflete a tese do imperialismo ateniense, formulada por Jacqueline de Romilly e amplamente presente nas publicações francesas sobre a Grécia clássica, como explicação tanto da possibilidade de criação da democracia grega quanto de sua ruína. Mas, também neste caso, ao ser submetida ao conceito de separação, aquela tese é desviada para o horizonte teórico da crítica da reificação no mundo moderno. E, deste mesmo modo, a própria recepção positiva da dépense dos senhores gregos se libera de alguma possibilidade de arcaísmo, pois são identificados seus limites históricos quanto às suas bases materiais. O que lhe interessa nesta análise é o que a separação mesma – enquanto determinação constitutiva de uma qualquer sociabilidade – significa como obstáculo e empobrecimento da 9 . O termo dépense – em itálicos no original francês – faz uso aqui de um conceito introduzido por G. Bataille na tradição crítica francesa e proveniente das pesquisas da antropologia social do início do século passado. Em Bataille, a dépense (dilapidação, desperdício, destruição) expressa um radical questionamento da noção utilitária da produção e da acumulação de valores de uso e da noção socialmente admitida acerca do
56
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
vida histórica, pois obstáculo ao mesmo tempo da comunicação e da livre apropriação do tempo. O dialogar requer, antes de tudo, “tempo livre”, tempo da conversação que é, simultaneamente, tempo da ação; não à toa, o senhor grego se nomeava a si mesmo de eleútheros, “aquele que fala ou age como homem livre”. Se, no capitalismo espetacular, Debord encontra uma “separação acabada”, consumada, pelo domínio da forma mercadoria sobre a totalidade das experiências cotidianas, a separação, como o espetáculo, foi contudo sempre constitutiva de todo Estado, enquanto “poder separado”, autonomizado da sociedade: “É a mais velha especialização social, a especialização do poder, que está na raiz do espetáculo” (SdS, § 23). A natureza alienante de toda separação – enquanto separação dos homens com o mundo que eles mesmos criam – se apresenta também na democracia grega, limitando-lhe a experiência histórica, precisamente pela estreiteza e pela coerção de suas próprias condições de possibilidade; estreiteza e coerção inseparáveis da especialização do poder que, mesmo democratizada, era-lhe essencial. É a separação essencialmente constitutiva da experiência democrática grega que, sendo sua condição de possibilidade, impõe também seus limites. É assim que a consciência histórica ali verificada, posta pela experiência da democratização do poder separado, desenvolve-se, em virtude de sua própria natureza, em “raciocínio sobre a história [que] é, inseparavelmente, raciocínio sobre o poder” (SdS, § 134). É assim, sabemos, que ela estará em Tucídides e Políbios; mas também em Maquiavel, que seria expressão – como Heródoto que é útil. Neste conceito, trata-se de afirmar o prazer, o desperdício, o esbanjamento como relacionados com uma noção senhorial, soberana de vida (Cf. G. Bataille, “La notion de dépense” [La critique sociale, 1933], em Œuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1972, pp. 302-320). Esta concepção será central à posição crítica de Debord quanto ao capitalismo moderno (incluindo o burocrático).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
57
– da experiência das “comunidades democráticas e das forças que as arruínam” (SdS, § 139). Insisto neste aspecto, primeiramente, para observar que a referência de Debord às experiências democráticas das comunidades gregas e italianas não se constitui em quaisquer formas de modelos a partir dos quais ele faz a crítica do presente. Menos ainda se constituem em modelos de “comunidades” ligadas à tradição e às linguagens comuns tradicionais: bem pelo contrário, são formas de saída da tradição e de experimentação da história, contudo limitadas pelas próprias condições excepcionais e locais que as possibilitaram, condições estas marcadas por uma essencial separação. Ora, “comunidade”, “comunidades”, como termos para se referir às cidades gregas em seu período clássico são amplamente usados pelos helenistas franceses, nos anos 60, uso que Debord estende às cidades italianas da Renascença porque também estende a elas a concepção da relação entre experiência democrática e pensamento histórico. Principalmente, busco acentuar aqui – quanto ao que há de comum, em sua representação, entre as experiências grega e italiana – o sentido da relação estabelecida por Debord entre a experiência do tempo irreversível e a consciência histórica. Debord manteve sempre com Tucídides, Políbios e Maquiavel uma privilegiada relação intelectual. Isto se deve não apenas ao co-pertencimento entre consciência histórica e raciocínio sobre o poder nestes autores, relação que ele – que se dizia um “estratego” – assumiu como essencial. 10 Antes de tudo, devese a que, em seu recurso à experiência histórica para pensar o 10. Cf. G. Agamben, “Il cinema di Guy Debord”, em E. Ghezzi e R. Turigliato (org.), Guy Debord (contro) il cinema. Milano: Editrice Il Castoro, 2001, p. 103: “Uma vez, enquanto discutíamos, vendo que eu estava tentado (e ainda o estou) a considerá-lo um filósofo, Debord me disse: ‘Não sou um filósofo, sou um estratego’”. Na continuidade, Agamben diz o que considera significar, em Debord, ser “estratego”: “Debord compreendeu o próprio tempo como uma guerra na qual toda sua vida era estrategicamente
58
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
poder e a guerra, esses autores partiam de uma concepção radicalmente antimetafísica, nucleada pelo caráter temporal e historicamente limitado de toda existência humana. Maquiavel, ao justificar a utilidade política do conhecimento histórico, o opõe exatamente à especulação e à abstração.11 Para Debord, a experiência de Maquiavel e das “comunidades democráticas” da Renascença italiana expressa justamente, em termos históricos, uma “ruptura alegre com a eternidade”: “Na vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida se conhece como um gozo da passagem do tempo” (SdS, § 139).
1.2 O tempo pseudocíclico da “sociedade do espetáculo” Com base na identidade do homem e do tempo, o que significa para Debord a moderna sociedade burguesa, pela destruição das antigas formas de produção social e os modos de vida nelas existentes, é a possibilidade material – nela, contudo, irrealizável – do uso do tempo histórico. Assim como para Baudelaire, os dadaístas e os surrealistas, a experiência primeira das reflexões sobre a sociedade moderna é para Debord a presença da efemeridade, da finitude e da mortalidade de todas as coisas, presença que progressivamente se defronta com a crescente racionalização repressiva da ordem social. Ao destruir as anteriores bases materiais de produção préempenhada”. Essa concepção da existência não é apenas um traço idiossincrático da personalidade de Debord, mas uma inteira visão do mundo que explica sua relação com esses pensadores: “O mundo da guerra apresenta pelo menos essa vantagem de não deixar lugar para as tagarelices idiotas do otimismo. Sabe-se bem, no fim todos vão morrer. Por mais bela que seja a defesa em todo o resto, como aproximadamente se expressa Pascal, ‘o último ato é sangrento’” (G. Debord, Panégyrique I [1989]. Paris: Gallimard, 1993, p. 77). 11. “Como é meu intento”, diz ele, retomando uma idéia tão cara a Tucídides (Guerra do Peloponeso, I, 22), “escrever coisas úteis para os que se interessam, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade efeitual [verità effetuale] das coisas, ao invés de imaginações delas [imaginazione
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
59
capitalistas, fundamentalmente agrícolas, ligadas às estações da natureza e organizadas numa experiência cíclica do tempo, a sociedade moderna cria as condições – das quais recusa o uso – para uma vida humana plenamente “histórica”, uma vida situada num tempo que é sabido e experimentado como passageiro, irreversível e linear.12 Na experiência moderna, Debord encontra condições materiais da existência social em direta oposição à forma social sob a qual os homens delas fazem uso. As amplas possibilidades da vida histórica encontradas nos poderes materiais da sociedade moderna, possibilidades constituídas pela sua natureza “destrutiva” dos antigos modos não-históricos de vida, permanecem, sob as atuais relações sociais, “inconscientes”, “recalcadas” e, portanto, não trazidas à luz da práxis e da consciência históricas. Justamente porque o desenvolvimento das forças produtivas modernas é uma consideração fundamental ao seu projeto de uma “participação imediata em uma abundância passional da vida”, como experiência radical de uma “vida histórica”, a sua crítica da sociedade produtora de mercadorias não se dá em nome dos “valores do passado” (como supõe Löwy) ou de uma indeterminada “sociedade de valores de uso”, com todo o risco que uma tal concepção carrega de arcaísmo e de passadismo. Uma “construção experimental da vida cotidiana”, enquanto “liberdade no emprego do tempo”, não é pos sível, di essa]”. (N. Machiavelli, “O príncipe”, em Maquiavel. Col. Os Pensadores. Tr. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 61, trad. lev. modificada; “Il principe”, em Tutte le opere storiche, politiche e letterarie. A cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1998, p. 33). 12. Conceber que o tempo seja linear não implica, apesar das relações categoriais entre o tempo e a história, que esta também o seja. A linearidade do tempo expressa no pensamento de Debord, antes de tudo, a assunção da efemeridade da existência humana como fundamento metafísico de sua concepção de história e de sociedade. Em termos benjaminianos, o tempo linear não é, para Debord, vazio e homogêneo, bem pelo contrário. É porque o tempo é linear – como passagem de tudo que nele se cria e
60
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
segundo diz, “sem a posse dos instrumentos modernos de construção da vida cotidiana”. 13 Conforme as análises que Debord apresenta em A sociedade do espetáculo, a economia mercantil-capitalista funda um “tempo profundamente histórico”, enquanto um “tempo irreversível da economia”. Por seu conteúdo técnico-industrial e sua forma social burguesa, na qual a auto-expansão do capital é essencial ao seu movimento de autovalorização, a sociedade moderna se caracteriza por um movimento contínuo de destruição das antigas formas de vida ligadas às formações econômicas pré-capitalistas, bem como das suas formas históricas de experimentação e representação do tempo. Agora, diz ele, “Tudo o que era absoluto torna-se histórico” (SdS, § 73). Se, numa generalização histórica, as sociedades pré-modernas experimentam e representam ciclicamente o tempo, isto se deve às próprias determinações econômico-sociais – fundamentalmente, a predominância do trabalho agrícola –, determinações que, ligadas à terra e às estações da natureza, limitam, para a grande maioria da sociedade, as possibilidades de uma experiência com o tempo que não nas formas da repetição ritual e ancestral. Mas esta liberação da experiência temporal das formas cíclicas, ao se realizar precisamente sob a forma do tempo irreversível da economia mercantil, se traduz como “tempo das coisas”, “tempo reificado”, do qual nem mesmo as atuais classes dominantes, cons tituídas pelos administradores da economia, estão livres. morre – que a história é lugar permanente de criação, de invenção e de possibilidades. Como indicado na introdução e mais bem discutido no 4º capítulo, as contradições do presente reabrem constantemente, para Debord, o passado. A posição negativa em face do presente, posição fundada nas próprias contradições sociais, é também o ponto de partida da crítica benjaminiana à concepção do “tempo homogêneo e vazio”, como penso ter demonstrado no artigo Imagem onírica e imagem dialética em Walter Benjamin (em Kalagatos, Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE, Vol. 1, nº 2, Fortaleza, Editora da UECE, 2004, pp. 45-72). 13. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationale Situationniste”, nº 1, junho, 1958, pp. 20-21.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
61
No capitalismo avançado, a abstração própria à produção do valor econômico – cuja substância, no dizer de Marx, é o tempo de trabalho social objetivado, tempo de trabalho abstrato, portanto, quantificável – dá forma à experiência social do conjunto do “tempo vivido”. A linearidade, que a produção capitalista moderna libera da antiga experiência cíclica do tempo, não assume a forma da concretude e da qualidade, a concretude e a qualidade que um tempo histórico emancipado da repetição ritual e dos ciclos das estações possibilitaria. Ao contrário, a atual experiência social do tempo assume a forma do movimento do capital, ele mesmo abstrato e “cíclico”. A sociedade moderna funda um tempo “profundamente histórico”, pois não é mais uma sociedade da tradição, da permanência, mas, nas condições do capitalismo avançado, nega-o enquanto experiência imediata de vida dos indivíduos, mantendo-o recalcado – numa perversa realização histórica da metafísica – em suas “profundezas”: “A história, que está presente em toda a profundidade da sociedade, tende a se perder na superfície” (SdS, § 142). É esta experiência imediata, esta “superfície”, que Debord – em virtude da importância que em seu pensamento assume a categoria de vida cotidiana – chama de temps vécu, “tempo vivido”. O tempo linear e irreversível, agora possibilitado mas obstaculizado como tempo vivido pelos indivíduos, é para Debord o inverso do tempo abstrato da produção mercantil em sua imediatidade cotidiana. Este, ao contrário, se lhe apresenta como “a abstração do tempo irreversível, do qual todos os elementos devem provar pelo cronômetro sua mesma igualdade quantitativa” (SdS, § 147), com o que, então, a vida cotidiana é submetida ao domínio da abstração quantitativa e quantificável. O tempo abstrato de valorização e realização da mercadoria – tempo da produção, tempo do consumo, tempo do trabalho, tempo do lazer – se materializa, na vida cotidiana, na forma de “unidades homogêneas intercambiáveis” que, ao organizarem aquela mesma cotidianidade sob tal lógica abstrata e mutuamente reversível, repõem uma experiência “pseudocíclica” (pseudo-cyclique) com
62
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
o tempo, experiência esta, contudo, que se apóia sobre as novas e bem distintas formas modernas de produção social. No tempo vivido do capitalismo avançado, há algo de cíclico, pois, submetidas à lógica da produção e do consumo mercantis, as unidades de tempo – este mesmo abstrato e quantitativo – do trabalho são intercambiáveis, trocáveis com os usos do mesmo modo abstratos e quantitativos do tempo do lazer: abstratas e quantitativas todas, as porções de tempo usadas são equivalentes entre si. Fraturado em coágulos fixos, isolados e intercambiáveis, o tempo perde a qualidade e a concretude possíveis, e toda a experiência com ele é a de uma igualdade quantitativa que se repete ciclicamente. Mas não se trata, efetivamente, de uma experiência temporal cíclica, pois sua base é a economia industrial-capitalista moderna que, formalmente cíclica como movimento do capital e imediatamente vivida como cíclica no cotidiano e no inteiro percurso das vidas dos indivíduos, é, contudo, uma economia histórica no preciso sentido de que se move sobre uma forma de produção cujo tempo é irreversível e linear. 14 Do mesmo modo, o retorno temporal que na superfície da sociedade se move ciclicamente, consubstanciado pelas repetitivas exigências da produção e do consumo capitalistas, se apresenta, para Debord, não como um “eterno retorno do mesmo”, mas como um “retorno ampliado do mesmo” (retour élargi du même). É um retorno ampliado exatamente porque há um desenvolvimento linear da produção capitalista, manifesto de modo reificado na ampliação e no aumento quantitativos das 14. Para Debord, a concepção da experiência capitalista como tempo pseudocíclico, e não como “neocíclico”, era-lhe essencial como possibilidade historicamente constituída de um projeto de superação da atual ordem social na perspectiva do que ele chamava “história total” (histoire totale). O tempo neocíclico só seria sustentável num mundo capitalista que superasse todo o desenvolvimento desigual e em que a produção e o consumo coincidissem plenamente. O tempo neocíclico, portanto, só seria possível num mundo que realizasse a reificação total e de modo não contraditório. (Cf. especialmente carta a Mustapha Khayati,
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
63
mercadorias, e que, na superfície do consumo, reitera o retorno do mesmo – da mesma forma-mercadoria, ainda que sobre outros valores de uso – cuja mesmidade é já dada na produção, na lógica cíclica do próprio salariato, dos gestos mecânicos e repetitivos do trabalho. Se o retorno do mesmo se reapresenta na sociedade moderna, e precisamente sob forma ampliada, isto ocorre em razão do domínio, na própria produção, do presente (“trabalho vivo”, no dizer de Marx) pelo passado (“trabalho morto”, capital). Deste modo, algo de mítico, com todo o seu arcaísmo, é formal e efetivamente reintroduzido na experiência moderna e a compõe essencialmente, opondo-se ao (e obstaculizando o) “histórico” como forma imediata de vida dos indivíduos. Para Debord, esta não é contudo uma contraposição lógico-conceitual entre a base e a superfície da sociedade moderna, mas, antes, uma experiência cotidiana experimentada como contraditória pelos indivíduos. A subsunção da experiência imediata dos indivíduos na homogeneidade vazia – pois abstrata e quantitativa – do tempo na sociedade espetacular esvazia esta mesma experiência da possibilidade de constituição de sentidos próprios, de razões de viver emancipadas das exigências da racionalidade da mercadoria. No capitalismo da “abundância mercantil”, encontra-se interditada a realização das p o s s i b i l i d a d e s d a expressão concreta, i n s e p a r á v e l d a comunicação e da atividade, possibilidades estas constituídas modernamente pela emancipação da tradição e pelos “poderes materiais da época”. Os gestos repetitivos do trabalho e do consumo, o esvaziamento da comunicação tanto nas relações imediatas quanto genéricas, graças à transformação da quase inteira vida cotidiana em lugar da produção e da realização 08.10.1965, em G. Debord, Correspondance, vol. 3, p. 69). Em A sociedade do espetáculo, ele identifica o eterno retorno do mesmo apenas nas mais antigas sociedades agrícolas, cujo cotidiano – se é que seja teoricamente lícito falar em cotidianidade nas sociedades pré-modernas – é marcado por uma relação ritualística com o ancestral.
64
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
abstratas da mercadoria, compõem o que Debord chama de “crise da vida cotidiana”, da mesma vida cotidiana que a destruição da tradição, das antigas condições materiais de existência e da unidade casa-trabalho-culto fez surgir. “‘A vida privada é privada de que?’”, pergunta-se ele. “Antes de tudo, da vida, que dela está cruelmente ausente. As pessoas estão, tanto quanto é possível, privadas de comunicação e de realização de si mesmas. Precisaria dizer: de fazer sua própria história, pessoalmente”. 15 Rejeitando qualquer idéia de uma reificação total, Debord registra experiências individuais – o réellement vécu – sem relação direta com o tempo irreversível da economia e mesmo em oposição ao consumo pseudocíclico do tempo no capitalismo espetacular. Nestes casos, constituemse experiências que permanecem “clandestinas”, sem linguagem, sem comunicação e, portanto, sem memória e sem história. O realmente vivido “é incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não-memorável” (SdS, § 157). A vida individual permanece assim sem história, do mesmo modo que a descoberta pelo pensamento burguês de uma “história universal” já havia, nas diversas filosofias da história, sacrificado o indivíduo; e permanecem assim porque é a história mesma que, em sua imediatidade vivida, é socialmente recusada. Se, nas atuais relações espetaculares, a “história universal” é efetiva, consciente e oficialmente admitida em sua linearidade e irreversibilidade (e assim o é como expressão reificada de um tempo linear e irreversível da economia), no entanto, em virtude do domínio desta mesma economia e dados os imperativos práticos que este domínio implica, ela é negada aos indivíduos na forma da livre efetivação e livre comunicação de suas experiências imediatas. O isolamento mútuo dos indivíduos enquanto portadores de mercadorias, isolamento já 15. G. Debord, “Perspectives de modifications conscientes dans la vie quotidienne”, em Internationale Situationniste, nº 6, agosto, 1961, p. 24.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
65
identificado por Marx como uma relação entre “egoístas” e como “alienação com relação ao gênero”, é aqui retomado por Debord, com base na centralidade da atividade práxica e da linguagem, como isolamento e solidão até mesmo daquele que se furta à experiência social do tempo reificado. Isolamento e solidão, neste caso, na forma de uma incomunicabilidade dos usos clandestinos do tempo irreversível no interior de uma linguagem social que desconhece qualquer semelhante uso prático e ativo do tempo vivido e como contraface de uma forma de sociabilidade cuja única possibilidade de “relações genéricas” reside nas relações de compra e venda, relações que, nucleadas na objetividade reificada do valor, são elas mesmas resistentes a toda comunicação. Na interdição, imposta aos indivíduos, da atividade, da linguagem e da comunicação do “realmente vivido” e cujo fundamento é a própria expropriação econômico-quantitativa do tempo e da atividade autônoma no capitalismo contemporâneo, Debord compreende uma verdadeira expropriação da história e da memória. Esta é uma expropriação das possibilidades mesmas da expressão prática dos indivíduos como realização, como produção de sua própria história e comunicação do realmente vivido, expropriação enfim pela qual a sociedade espetacular se denuncia justamente “como organização social presente da paralisia da história e da memória” (SdS, § 158). É porque a experiência cotidiana é aquela do movimento pseudocíclico – em que a vida inteira se subsume nos gestos repetitivos e, em sua extensão, nos sucessivos ritos de iniciação – que ela não é existencialmente experimentada nem consciencialmente representada como passagem de um tempo irreversível. Nela, não há o que efetivamente, qualitativamente lembrar, pois tudo parece e é reposto e retornado; e quando tudo é reposto e retornado, não há o que realizar ou o que possa, com a realização, ter fim. Em última análise, a experiência pseudocíclica do capitalismo espetacular, embora erguida sobre a base do tempo histórico, constitui o que Debord chama de
66
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
“falsa consciência do tempo” (fausse conscience du temps) que dissolve a própria representação da morte; e o faz porque, antes, já dissolve a noção da vida, do tempo finito de vida, como lugar da atividade, da realização de desejos e planos. “Imobilizada no centro falsificado do movimento do seu mundo”, diz Debord, “a consciência espectadora já não conhece na sua vida uma passagem para sua realização e para sua morte. Quem renunciou a dépenser sua vida, não deve mais reconhecer sua morte. [...] Esta ausência social da morte é idêntica à ausência social da vida” (SdS, § 160). Fundamental a esta análise de Debord é que, segundo ele, a paralisia da memória e da consciência históricas na sociedade contemporânea ocorre graças à paralisia prática da história. A racionalidade abstrata própria da economia mercantil, com seu tempo abstrato e quantitativo, organiza a vida cotidiana de tal forma que, ao impedir a atividade do indivíduo, fazendoo “espectador” de sua própria vida, impede-o também de deparar-se com a ameaça do esquecimento ou com a importância do memorável . E s q u e c e r e l e m b r a r s ã o , n a s o c i e d a d e espetacular-mercantil, funções das imagens produzidas e permitidas “socialmente” pela racionalidade econômica e estatal; e isto ocorre porque, antes, a experiência temporal mesma se desenvolve apenas como “tempo de consumo das imagens” e “imagem do consumo do tempo”, mas não como uso efetivo e qualitativo do tempo efetivo e qualitativo (isto é, “histórico”). Aos indivíduos – que, assim, se constituem em espectadores – não cabe a assunção de sua “época”, porque não lhes cabe a de seu “tempo”; não lhes cabe, do mesmo modo, a sua memória coletiva ou individual, porque, antes, não lhes cabem a realização e a comunicação.
1.3 A natureza arcaico-moderna do “espetáculo” Nas discussões sobre o tempo e sobre o espaço, presentes nos capítulos V, VI e VII de A sociedade do espetáculo, Debord
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
67
demonstra duas formas essenciais nas quais se produz um retesamento disciplinar e repressivo que é especificamente moderno e, no entanto, também arcaico. Esta é, contudo, uma determinação mais central à sua concepção crítica do capitalismo avançado como um todo: “O mais moderno é aí também o mais arcaico” (SdS, § 23). Esta determinação regressiva se deve justamente à constatação da afirmação cotidiana, imediatamente fenomênica, da lógica abstrata da forma-mercadoria. O movimento fetichista do valor, ao estender-se à totalidade da vida cotidiana, impõe-lhe uma fixidez, um sentido permanente de organização da vida social, de onde tudo provém e para onde tudo retorna, algo semelhante – mas não idêntico – ao que ocorria nas sociedades pré-capitalistas com relação aos valores arcaicos tradicionais. Se o fascismo é, para Debord, “o arcaísmo tecnicamente equipado”, um “Ersatz decomposto do mito”, é esta mesma forma moderna do mítico-arcaico que “é retomada no contexto espetacular dos meios de condicionamento e de ilusões mais modernos” (SdS, § 109). Assim como o tempo agora socialmente experimentado não se constitui num “eterno retorno do mesmo”, mas num “retorno ampliado do mesmo”, não num tempo “cíclico”, mas “pseudocíclico”; e assim como a cidade não regride ao campo, mas se torna um “pseudocampo”, do mesmo modo o arcaísmo que retorna no capitalismo avançado se apresenta como “pseudovalores arcaicos” (pseudo-valeurs archaïques) e o mito, como um “Ersatz decomposto”. Segundo Debord, no capitalismo espetacular se encontra a reintrodução formal e aparente d e modos de experiência tradicionais, pré-modernos na própria experiência social moderna; uma reintrodução que é justamente formal e aparente, pois é determinada sobre novas bases históricas, mas nem por isso menos concreta e real. Sob o conceito de espetáculo, momento da economia capitalista em que a mercadoria teria atingido a “ocupação total da vida cotidiana”, Debord diz buscar unificar e explicar uma
68
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
diversidade de “fenômenos aparentes”, que são, eles mesmos, “as aparências desta aparência organizada socialmente” (SdS, § 10). O que isto significa? Esta questão interroga sobre algo fundamental ao seu conceito de espetáculo. A primeira coisa a observar é que a ocorrência aqui do conceito de aparência não remete, num primeiro momento, à aparência visível, sensível, mas antes à categoria – de procedência hegeliana – de aparência (Schein, Erscheinung), na qual Marx situa, nos primeiros capítulos de O capital, as trocas de equivalentes. Já nesta instância aparente, Marx vê manifestarse uma objetividade fetichista que, nucleada na lei do valor, escapa ao controle dos homens e se lhes impõe como “uma relação entre coisas”. De modo expresso, Marx concebe este caráter fetichista da mercadoria determinado não por sua “natureza física” ou pelas “relações materiais” presentes no intercâmbio prático entre os indivíduos durante sua produção, mas exclusivamente pela forma social deste mesmo intercâmbio, enquanto intercâmbio mercantil; portanto, concernente à “aparência objetiva das determinações sociais do trabalho”. 16 É esta “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil que se constitui numa “objetividade fantasmagórica”, pois se apresenta aos homens como uma relação “natural”, constitutiva das próprias coisas, quando é somente uma determinação histórica da forma de suas próprias relações sociais. Contudo, trata-se de uma “aparência” necessária, pois constitutiva da lei do valor que per se se apresenta na objetividade e necessidade de uma “lei natural”. Segundo Debord, é esta “aparência socialmente organizada” que, estendendo sua lógica ao conjunto das atividades e relações cotidianas, no capitalismo desenvolvido, produz e organiza as “aparências”, os “fenômenos aparentes” 16. K. Marx, O capital, t. I/1. Tr. br. R. Barbosa e F. R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 71.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
69
imediatamente presentes na experiência social dos indivíduos. A “aparência objetiva” do intercâmbio mercantil, da qual Marx afirma categoricamente a autonomia e a independência em face da “natureza física” e das “relações materiais” da produção de valores de uso, torna-se agora, ela mesma, fisicamente aparente, sensivelmente visível; torna-se uma “aparência socialmente organizada” que se manifesta, no capitalismo espetacular, em fenômenos “aparentes”, “visíveis”. Graças à extensão das relações mercantis à totalidade da vida cotidiana, a autonomia da aparência das trocas fetichistas de valores passa a constituir soberanamente, submetido à sua lógica abstrata, um conjunto de fenômenos aparentes que, deste modo, se tornam, eles próprios, também autônomos frente aos indivíduos. N’O capital, Marx se refere à mercadoria como uma “coisa fisicamente metafísica”; ou, como diz a tradução francesa que Debord tem sob os olhos, “coisas supra-sensíveis ainda que sensíveis”. Em sua análise do capitalismo contemporâneo, Debord observa um movimento de “volta” desta abstração constituidora do valor econômico em direção ao sensível, movimento pelo qual, contudo, este não é restituído em sua autonomia material, mas, rigorosamente ao contrário, é completamente subsumido à abstração do valor. 17 O valor de troca, tendo chegado a um tal nível de autonomia, pelo superacúmulo de capital e pela extensão de sua lógica ao conjunto do espaço-tempo vivido, pode apresentar-se na imediatidade da totalidade dos valores de uso; e de tal modo que a sua lógica
17. Trata-se aqui, segundo G. Agamben, de uma compreensão da relação reflexiva essencial à mercadoria entre “transparência” e “fantasmagoria”, através da qual o capital oculta seu “reino encantado”, “expondo-o à plena vista”. É precisamente ao colocar-se de modo transparente, imediatamente visível, que o caráter fetichista da mercadoria, segundo Agamben, se mantém oculto na totalidade dos fenômenos do período espetacular do capitalismo. (G. Agamben, “Glosse in Margini ai Commentari sulla società dello spetacollo” [1990], em Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 61).
70
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
abstrata não apenas se torna visível, mas é também a única coisa que se faz ver. A autonomização dos fenômenos aparentes da abstração do valor econômico é nomeada por Debord como “mundo da imagem autonomizado” (SdS, § 2). Contudo, não se trata – como julga criticamente Mario Perniola – de “uma atitude iconoclasta que considera com suspeição as formas sensíveis”. 18 O espetáculo não seria, diz Debord, “um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens” (SdS, § 4). No seu uso do conceito de “imagem”, Debord não faz uma referência estrita à “visão” sensível, mas antes a um “modo de produção”, do qual o espetáculo seria, não um “suplemento”, uma “decoração acrescentada” – ou se quisermos, uma “superestrutura” – mas “a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e sua consumação corolária” (SdS, § 6). O que Debord tem em vista sob o conceito de “imagem” são justamente as relações sociais fetichistas, fundadas na autonomização do valor e estendidas à totalidade do uso social do tempo, do espaço, para além do trabalho assalariado, mas essencialmente obedecendo à sua lógica disciplinar e contemplativa. Portanto, se ele pode falar do espetáculo como constituído na produção, como “modo de produção”, é precisamente porque julga que, “com a separação generalizada do trabalhador e de seu produto, perdem-se todo ponto de vista unitário da atividade realizada, toda comunicação direta entre os produtores [...] a atividade e a comunicação se tornam o atributo exclusivo da direção do sistema” (SdS, § 26). Em outras palavras, o conceito de espetáculo não diz respeito ao “simples olhar”, mas sim “é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção de sua obra. É o contrário do diálogo” (SdS, § 18). Se se tem em vista estas duas últimas passagens citadas, compreende-se que, sob o conceito de espetáculo, Debord busca 18. M. Perniola, A estética do século XX [1997]. Tr. port. A. Cardoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 82.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
71
e s s encialmente articular duas fundamentais dimensões constitutivas da aparência social, num momento em que a formamercadoria se estendeu ao conjunto do vivido: a expropriação da atividade autônoma, inseparável da expropriação da linguagem comunicativa. Neste sentido, sua reflexão sobre aparência social no capitalismo mais desenvolvido não considera apenas a visibilidade do produto mercantil, sua “estética”, sua “aparência”. 19 Tampouco a tendência – realmente existente – da produção cultural tardocapitalista em se voltar para produtos “visíveis”, centrado na “imagem” e na “visão” ocular. 20 Estes fenômenos são antes determinados por (e constitutivos de) uma experiência mais fundamental: a extensão – junto com a da forma-mercadoria – da lógica disciplinar, contemplativa e passiva do trabalho assalariado à totalidade da vida cotidiana. Estes conceitos de passividade e contemplação merecem uma melhor explicitação. Para Debord, a extensão horizontal das trocas de equivalentes (a “aparência” do metabolismo do capital, no sentido de Marx) traz à “superfície” da vida social, impondo-se-lhe como forma determinante imediata, a contemplação essencial ao trabalho assalariado, que, de todo modo, está na base desta mesma universalização da formamercadoria dos produtos do trabalho. Ter em conta esta relação entre o trabalho assalariado e o espetáculo é importante, pois ela responde à crítica freqüente de que esta última categoria estaria limitada à esfera da circulação de mercadorias e não
19. Esta é somente uma determinação – cf. § 15 de A sociedade do espetáculo – deste movimento mais amplo de dominação do vivido pela reificação fetichista do valor. Em sua unilateralidade, como crítica da sedução estética da aparência dos produtos, esta determinação foi – cinco anos após a publicação do livro do Debord – discutida por W. Hauer, em Crítica da estética da mercadoria (1972). 20. Como salienta, de modo simpático mas unilateral, F. Jameson (A cultura do dinheiro, ensaios sobre a globalização. Tr. br. M. E. Cevasco e M. C. P. Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, especialmente pp. 87 ss e 114 ss).
72
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
concerniria à produção do capital. 21 Contudo, deve-se lembrar que, para Marx, “só a partir desse instante [em que a força de trabalho assume, para o próprio trabalhador, a forma de uma mercadoria] se universaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho”. 22 Esta universalização não está separada, portanto, daquilo mesmo que caracteriza a produção capitalista enquanto produção de mais-valor: a generalização do trabalho assalariado. Em sua concepção crítica do espetáculo, na qual são centrais as transformações sofridas pela aparência social, Debord tem em conta justamente esta determinação. A extensão das trocas mercantis funda uma transformação – ou, se se quiser, um ajuste – na aparência social, com a emergência de um conjunto totalitário de fenômenos que produzem e exigem, já na imediatidade do vivido, a passividade contemplativa própria ao trabalho assalariado. Sua consideração sobre a aparência social não se restringe à troca de equivalentes, mas busca pensar as experiências sociais imediatas dos indivíduos numa situação histórica na qual o intercâmbio mercantil se mostra, na totalidade extensiva dos seus mais diversos fenômenos, tão hierárquico quanto a própria produção mercantil fundada no salariato. Em outras palavras: a instância d a s trocas iguais, que simultaneamente viabiliza e oculta a produção da mais-valia e as contradições que se desenvolvem progressivamente com base na relação negativa entre valor de uso e valor na forma elementar da mercadoria, passa a manifestar de modo aparente a contemplação que, no trabalho assalariado industrial, é essencial à própria produção do valor. 21. Sobre esta crítica, cf. entre outros, G. Dauvé, “Kritik der Situationistischen Internationale”, em R. Ohrt (Hg.), Das grosse Spiel. Die Situationisten zwischen Politik und Kunst. Hamburg: Nautilus, 1999; D. Blanc, L’Internazionale situazionista e il suo tempo. Milano: Colibri, 1998; “Zur Kraft der situationistischen Kritik und ihrer Rezeption in Deutschland”, aparecido em Wildcat-Zirkular, Nº 62, fev/2002, pp. 32-36, http:// www.wildcat-www.de/zirkular/62/z62situa.htm. 22. K. Marx, O capital, I, p. 141, n. 41. Entre colchetes, uma passagem do próprio Marx imediatamente anterior a esta que compõe a parte principal da citação.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
73
A “contemplação” – categoria que, na filosofia jovemhegeliana, é compreendida como inerente ao idealismo filosófico e à qual o jovem Marx contrapõe a atividade práxica – é tomada por Debord como uma forma de relação social própria a este momento extensivo da relação mercantil. Spectacle é uma palavra francesa que vem do spectare e do speculare latinos, verbos que remetem às noções de contemplação, observação, de acompanhamento passivo de algo exterior pela visão. Estes verbos estão também na raiz de speculatio , spéculation, Spekulation, concepção filosófica que L. Feuerbach caracteriza criticamente como uma inversão idealista entre sujeito e predicado, inversão esta que, já nas reflexões do jovem Marx, aparece como forma filosófica positivadora da alienação.23 Como “especulação” materializada, fundada na “contemplação”, “o espetáculo”, segundo Debord, “filosofica a realidade”, sendo, nisto mesmo, “o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver [...] É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo” (SdS, § 19). Trata-se de uma inversão especulativa entre o sensível e o supra-sensível que, na análise do jovem Marx retomada por Debord, ganha forma histórica concreta no domínio do valor sobre o valor de uso, domínio cuja base última é justamente a inversão entre o produtor e seu produto operada pelo trabalho alienado. Para Debord, o capitalismo mais desenvolvido apresenta de modo imediato, fenomênico e aparente a lógica da abstração supra-sensível do valor econômico, impondo uma
23. Cf. L. Feuerbach, Princípios da filosofia do futuro. Tr. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002; K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. Tr. br. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. Pelo que indica a epígrafe do Capítulo II de A sociedade do espetáculo, esta relação é sugerida a Debord também pelas análises de G. Lukács em História e consciência de classe, no célebre ensaio sobre a reificação. A. Jappe faz uma exaustiva aproximação entre estes dois textos no primeiro capítulo de seu Guy Debord (edição citada, pp. 37-51).
74
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
inversão entre sensível e supra-sensível que, desde sempre, fora imanente ao fetichismo da forma-mercadoria. Disto decorre que, no centro de sua crítica social, se encontra a sugestão de que a categoria do fetichismo do valor, sendo uma “abstração real”, cheia de “manhas teológicas” e “argúcias metafísicas” (como diz Marx), se apresenta como “sensível”. Não se trata, portanto, de uma denúncia do sensível em nome de uma realidade verdadeira supra-sensível, mas, rigorosamente ao contrário, é denúncia da dominação da abstração do valor econômico sobre o “sensível”; é a compreensão crítica de que, nas condições do capitalismo avançado, a lógica supra-sensível do valor tornouse imediata, imajada, transformando o próprio “sensível” em algo do mesmo modo “abstrato” (tal como ocorre na quantificação do tempo, na banalização do espaço, no consumo de mercadorias...). Como “imagem” que se impõe para ser “vista” e “contemplada”, o automovimento do capital se constitui em experiência da passividade na imediatidade da totalidade do vivido. Uma segunda dimensão inseparável desta primeira é aquela que diz respeito à linguagem, pensada como linguagem comunicativa. Sob este ponto de vista, justamente no qual se posiciona a discussão realizada no presente livro, não se trata de separar, muito menos de opor, como faz A. Jappe, à “importância atribuída [por Debord] à ‘comunicação’”, uma suposta “grande novidade efetiva da [sua] teoria [...] [que] decorre [...] de sua referência ao papel fundamental da troca e do princípio de equivalência na sociedade contemporânea”. 2 4 Ora, se a alienação da atividade se revela, no capitalismo tardio, como essencialmente o “contrário do diálogo” é precisamente porque, segundo Debord, a expropriação da atividade produtiva
24. A. Jappe, Guy Debord, p. 189. Em História e consciência de classe, obra à qual Jappe relaciona com razão A sociedade do espetáculo, já está presente este nexo entre a contemplação prática e a expropriação da comunicação, nexo ao qual, contudo, Jappe parece não ter dado a devida importância.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
75
no capitalismo pressupõe a – e resulta necessariamente na – perda da comunicação direta entre os produtores. A expropriação da atividade autônoma no trabalho e a expropriação da linguagem comunicativa são duas determinações que se refletem reciprocamente. Se a contemplação filosófica, a qual Debord – seguindo Marx – toma como análoga à contemplação da passividade mercantil, foi sempre uma compreensão da atividade humana sob a categoria do “ver”, ela não foi menos uma concepção da linguagem como auxiliar e instrumento do pensamento abstrato. Também este aspecto é central à “filosofação da realidade” pelo espetáculo. Como tematizada por toda a poesia moderna francesa, de Mallarmé a Breton, a experiência “lingüística” na sociedade moderna é – como será discutido nos próximos dois capítulos – a de uma instrumentação. Com base na moderna experiência poética francesa e na crítica da economia política, Debord apresenta uma crítica teórica do capitalismo desenvolvido – ex professo, esta seria sua “novidade” – na qual se encontram articuladas, de modo inseparável, a passividade mercantil e a instrumentação reificada da linguagem.25
25. Este gesto é ressaltado por G. Agamben ao considerar que o fundamental à teoria crítica do espetáculo é que, nela, “a análise marxiana vai integrada no sentido de que o capitalismo [...] não era voltado só à expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria natureza lingüística ou comunicativa do homem” (G. Agamben, “Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo”, em G. Agamben et al., I situazionisti.Roma: Manifestolibri, 1991, pp. 14-15). Neste mesmo horizonte de análise, P. Virno acentua que, sob a categoria de espetáculo, o que está em questão é um modo de produção, no qual “a comunicação humana tornou-se mercadoria”. Daí que, segundo ainda Virno, a interpenetração entre trabalho assalariado e expropriação da comunicação humana expresse, no pensamento de Debord, a exigência de que a crítica do capitalismo deva comportar a crítica da concepção instrumental da linguagem, de modo que a “abolição do trabalho assalariado” se constitui também, de modo essencial, em “liberdade da linguagem” (P. Virno, “Cultura e produzione sul palcoscenico”, em G. Agamben et al. I situazionisti, pp. 19-26).
76
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Estas duas dimensões concernentes, de modo inseparável, à aparência social – a passividade contemplativa e a expropriação da linguagem comunicativa – se encontram de modo essencial com a característica “arcaica” e regressiva da sociabilidade tardocapitalista, fundada na extensão da lógica do trabalho assalariado e da forma-mercadoria à totalidade do vivido. A formulação deste encontro é efetuada por Debord ao trazer a teoria psicanalítica para o interior de sua reflexão social. Em A sociedade do espetáculo, Debord estabelece uma analogia – retomada em diversos momentos deste livro e em outros textos – entre a experiência social do capitalismo mais desenvolvido e o sonho do indivíduo, no qual Freud indica tanto uma regressão da faculdade “lingüístico”-comunicativa dos homens quanto um não-acesso à atividade, à “motilidade”, graças ao caráter imagético e alucinatório das “vivências infantis” (infantile Erlebnisse) que ali retornam.26 Esta apropriação da psicanálise é um momento fundamental da crítica social elaborada por Debord. Num dos seus primeiros textos, ele já afirma ser necessário “ter em vista um tipo de psicanálise para fins situacionistas”. Mantendo uma posição polêmica com o surrealismo, ele se propõe a uma outra relação com a psicanálise com vistas ao “esclarecimento de desejos primitivos” e, considerando as novas condições materiais da sociedade, a “achar desejos precisos de ambientes para realizá-los, ao encontro dos objetivos perseguidos pelas correntes saídas do freudismo”. 27 Neste momento, sua referência é ainda o freudomarxismo (“as correntes saídas do freudismo”), mas já demonstra a leitura da psicanálise e a inclusão de determinadas 26. S. Freud, A interpretação dos sonhos. Obras psicológicas completas de Freud, vol. V. Tr. br. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987, pp. 500; Die Traumdeutung. Sigmund Freud Studienausgabe, Band II. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1972, pp. 521-522 ss. Trata-se aqui de todo o tópico “A regressão” (Die Regression), do capítulo VII desta obra. 27. “Problèmes préliminaires à la construction d’une situation”, em Internationale Situationniste nº 1, junho de 1958, p. 11.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
77
conclusões da pesquisa psicanalítica em sua própria reflexão estética e na crítica do surrealismo (a qual será mais bem discutida no segundo capítulo). No período em que redige A sociedade do espetáculo, Debord estabelece uma interlocução mais positiva com a psicanálise freudiana. Segundo avalia, as descobertas da psicanálise, “como o pensava Freud”, são inaceitáveis para a sociedade dominante, já que esta é fundada numa hierarquia repressiva. No entanto, o próprio Freud teria mantido uma posição “centrista” ao afirmar – o que sem dúvida é inteiramente questionável – uma “identificação absoluta e supratemporal entre a ‘civilização’ e a repressão por uma exploração do trabalho”. 28 Com base nisso, o que há de verdadeiro na psicanálise, sua “verdade crítica parcial”, teria sido conduzida para o interior de um “sistema global não-criticado”. Esta postura centrista e conciliatória de Freud, finalmente, levou “a psicanálise a ser oficialmente ‘reconhecida’ [...] contudo, sem ser aceita em sua verdade: seu uso crítico possível”. 29 Qual seria, então, este “uso crítico possível”? Para Debord, “as descobertas da psicanálise são um reforço – ainda não empregado graças a evidentes motivos sociopolíticos – para a crítica racional do mundo: a p s i c a n á l i s e c e r c a [traque, p e r s e g u e , a c o s s a ] , o m a i s profundamente, a inconsciência, sua miséria e suas miseráveis instâncias repressivas, que somente extraem sua força e seu aparato mágico de uma bem vulgar repressão prática na vida cotidiana”. 30 Esta última passagem aparece justamente numa polêmica com C. Castoriadis em torno do problema da “função
28. “De l’aliénation: examen de plusieurs aspects concrets”, em Internationale Situationniste, nº 10, p. 63. 29. Idem, ibidem. 30. Idem, p. 79. Esta afirmação de Debord sobre a psicanálise é, evidentemente, insuficiente; nas páginas seguintes e, sobretudo, no capítulo II voltarei a discutir esta concepção debordiana, interpretando-a como uma apropriação desviada (détournée) de determinadas conclusões teóricas de Freud.
78
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
da aparência social no capitalismo moderno”. É esta apropriação da psicanálise para a reflexão sobre a “aparência social” que, em A sociedade do espetáculo , Debord resume de modo privilegiado ao dizer: “O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna aprisionada, que somente expressa, afinal de contas, seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono” (SdS, § 21). Em A interpretação do sonho, Freud observa que os sonhos – como “realização” alucinatória dos desejos – têm uma característica que interessa de modo particular à analogia que Debord sugere entre a experiência onírica e a experiência social tardoburguesa. Ao se apresentar em “imagens sensoriais” (sinnliche Bilder), o conteúdo de representação do sonho permite ao sonhador crer vivenciar o que está sendo sonhado. Ora, o desejo que se “realiza” no sonho é, segundo Freud, um “desejo infantil”, “inconsciente”; é precisamente por isso que a “satisfação do desejo” (Wunscherfüllung) onírica tem e precisa ter um “caráter alucinatório” (halluzinatorische Charakter). Disto resulta que, no sonho, se encontram tanto uma regressão tópica, pois ao contrário do que ocorre em estado de vigília, os processos psíquicos não se dirigem para a “extremidade motora”, mas recuam para a “extremidade sensorial” (é justamente por desviar-se da motilidade e do acesso à realidade externa, permitindo que o sono continue, que esta “direção retrocedente” é responsável pela natureza alucinatória do sonho); quanto formal, pois os conteúdos desiderativos retomam a arcaica forma imagética de que se constituíram na infância ontogenética e filogenética, retrocedendo da linguagem articulada, comunicativa para as imagens sensoriais.31
31. Para toda esta sucinta retomada, cf. S. Freud, A interpretação dos sonhos, pp. 489-502 ss; Die Traumdeutung, pp. 510-524 ss. Mais uma vez, tratase do subcapítulo “A regressão”, do capítulo VII.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
79
Se se tem em vista estes aspectos da teoria freudiana do sonho, a analogia proposta por Debord tem justo o propósito de salientar que o espetáculo se constitui numa dupla regressão social à passividade contemplativa e não-comunicativa dos homens, submetidos em sua experiência mais imediatamente cotidiana às “imagens”, às “aparências” socialmente organizadas. Em outras palavras, o c a p i t a l i s m o c o n t e m p o r â n e o é essencialmente uma expropriação do diálogo e da atividade autônoma. Mas esta analogia sugere também um significado para a persistente denúncia, por Debord, de que o espetáculo é uma “falsificação”, uma “negação da vida”. O espetáculo, diz ele, é “a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana, quer dizer, social, como simples aparência. [É] a negação visível da vida [...] uma negação da vida que se tornou visível” (SdS, § 10). A subsunção de toda a vida cotidiana à “aparência do sistema”, à troca mercantil, transforma a totalidade das relações genéricas dos indivíduos em manifestação aparente da lógica do valor econômico, em modos concretos e imediatos de afirmação das trocas de equivalentes. As possibilidades outras constituídas pelo desenvolvimento das forças produtivas modernas são substituídas por satisfações falsificadoras destas mesmas possibilidades – possibilidades estas que Debord nomeia ora sob a expressão marxiana da sociedade sem classes, ora sob a fórmula poética da vraie vie, da qual aquela seria, para ele, sinônima. No capitalismo mais desenvolvido haveria uma “satisfação alucinatória” dos desejos, tal como no sonho do indivíduo. Em sua denúncia da “pseudovida”, da “falsificação/ negação da vida”, não há portanto uma posição “platônica” (sic), na qual “os fenômenos concretamente existentes podem ser comparados com seus modelos”, como supõe A. Jappe.32 Bem
32. A. Jappe, Guy Debord, p. 179.
80
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
pelo contrário, há uma assunção materialista da noção poética da vraie vie, compreendida de modo imanente com base nas possibilidades materiais do capitalismo contemporâneo, possibilidades estas que são recalcadas pela dominância da forma-valor. A determinação fixa e fixadora do metabolismo do capital, já a partir da subsunção do cotidiano à forma-mercadoria, ao impedir o uso emancipatório das modernas forças produtivas, conduz a sociedade moderna mais desenvolvida à substituição dos desejos possíveis por carências ou necessidades (besoins) que estão aquém das possibilidades materiais já existentes. Num dos artigos integrantes de “Marxismo e teoria revolucionária”, C. Castoriadis já questionava a existência de “necessidades ‘verdadeiras’” (besoins ‘vrais’) e, portanto, descartava a consistência teórica da denúncia situacionista da “pseudo-realidade” (‘pseudo-réalité’).33 Precisamente no texto acima referido acerca da importância da psicanálise para a compreensão da aparência social no capitalismo desenvolvido, Debord argumenta que, na denúncia da pseudo-realidade do capitalismo avançado, não se trata de modo algum de reivindicar uma “natureza humana” (nature humaine) , t a m p o u c o d e denunciar uma “substituição mercantil” (remplacement marchand) das supostas “necessidades elementares” (besoins élementaires), mas sim de compreender a possibilidade de “ultrapassar” (dépasser, em itálicos no original) estas supostas “necessidades elementares”, das quais o “imaginário” presente na sociedade mercantil mais desenvolvida não está “além”, mas “aquém”. 3 4
33. Publicado em Socialisme ou barbarie, nº 40, 1965 (cf. C. Castoriadis, Instituição imaginária da sociedade. Tr. br. G. Reynaud. São Paulo: Paz e Terra, 1982, pp. 188-189). 34. Debord e os situacionistas se distanciam sempre da crítica sociológica da “sociedade de consumo”, do “consumismo” etc. A um pensamento votado à dépense e ao potlatch, como o seu, nada mais estranho do que o lamento da perda da simplicidade natural e da vida austera. Sua crítica se volta antes à abundância mercantil, sinônimo da necessidade e não dos desejos;
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
81
Ainda segundo Freud, no sonho do indivíduo, a força afetiva arcaica e inconsciente do desejo infantil fortalece representações psíquicas de experiências do presente para, associando-se a estas, chegar ao pré-consciente e, deste, à consciência sob formas de imagens, pelas quais ganham “realização”, “satisfação”. Em analogia com o sonho, a sociedade do espetáculo é, para Debord, a afirmação contundente da força econômica arcaica e inconsciente da forma-valor. Submetendo a si toda experiência humana, a forma-valor impõe-se como arkhê, como estrutura primitiva e permanente que retesa, recalca aquelas possibilidades do presente que se abrem para o futuro, enformando o surgimento e a satisfação das “necessidades” (besoins). Nesta perspectiva, a teoria freudiana do sonho é desviada de seu sentido imediatamente psicanalítico, pois, segundo Debord, o sonho-espetáculo satisfaz de modo alucinatório, substitutivo e falseador não os “desejos” inconscientes (“infantis”, no dizer de Freud), mas possíveis outros “desejos conscientes” (désirs conscients); ele realiza necessidades que nunca foram, de fato, desejos conscientemente elaborados, necessidades estas já determinadas pelos próprios limites históricos da forma-mercadoria. De outra maneira, é o “inconsciente social” da economia mercantil que, desconhecendo as possibilidades dos poderes materiais da época, se apresenta permanentemente “realizado” (ou “satisfeito”) nas mais imediatas e cotidianas experiências sociais dos indivíduos, recalcando a formulação e a efetivação consciente do “desejo vivo” (désir vivant, termo este que Debord usa para distinguir sua noção de desejo consciente tanto do desejo inconsciente da psicanálise quanto de uma noção de desejo ou necessidade “naturais”, “autênticos” dados de modo ela é uma crítica, portanto, da forma-mercadoria em nome da liberação do uso abundante das coisas, cujo sentido pode ser permanentemente inventado e reinventado e cuja condição primeira é o uso histórico, concreto e qualitativo, do tempo e da linguagem.
82
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
supra-histórico). Não são os “desejos primitivos”, “arcaicos” (como considerados pela psicanálise) que se encontram recalcados, substituídos no sonho-espetáculo, mas sim os desejos possíveis no presente, desejos cuja possibilidade se encontra submetida à forma arcaica da mercadoria e às suas “necessidades”. Em suma, não é a arkhê-mercadoria que é transformada em imagens alucinatórias, mas antes é ela que transforma em imagens aparentes as possibilidades do presente, que deixam de ser conscientemente elaboradas e vividas em toda a potencialidade que os poderes materiais da época permitem. Na denúncia da falsificação da vida, da pseudo-realidade, da falsificação das necessidades, Debord busca afirmar não uma suposta realidade primeira e autêntica que, por sua fixidez, seria o critério de crítica do presente, mas antes constata criticamente a fixidez de um presente aprisionado ao arcaísmo da formavalor que impede, recalca e substitui por imagens oníricas as possibilidades historicamente constituídas de elaboração e realização efetiva do desejo consciente. Não há para Debord – leitor que é de Pascal, Hegel e Nietzsche – uma qualquer realidade verdadeira fora ou a despeito da história, constituindose esta justamente da reinvenção permanente do uso da vida, mas é este uso que é recalcado, embora possibilitado, pelo capitalismo espetacular. O que se encontra expresso no capitalismo avançado, sob a forma do espetáculo é, segundo diz Debord, “o que sociedade pode fazer”; porém, o “permitido” sob a lógica do arcaísmo mercantil se opõe ao historicomaterialmente “possível”. As transformações econômico-sociais, o desenvolvimento das forças produtivas, as imensas possibilidades constituídas materialmente de uma outra vida se mantêm, sob o espetáculo, conservados como “inconsciência”. Por isto mesmo, como sonho, o espetáculo se lhe apresenta
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
83
justamente como “o coração do irrealismo da sociedade real” (SdS, § 6). Como irrealidade que se torna efetiva, tanto quanto a “abstração” mercantil é, para Marx, “real”, Debord pensa o espetáculo como uma “substituição”, um “Ersatz”, não do mundo presente, mas sim da vraie vie, de uma outra vida já possível no presente.35 A natureza visível e imediata da dominância da formavalor no capitalismo contemporâneo – pela qual a aparência social encontra-se profundamente transformada – é uma determinação central não apenas ao conceito de espetáculo, mas também à afirmação prospectiva imanente à crítica que Debord dele elabora. Como forma de existência fenomênica e aparente do fetichismo mercantil, o espetáculo é também a imediata apresentação destas mesmas possibilidades mantidas inconscientes pelo arcaísmo da forma-mercadoria. “As próprias forças que nos escaparam mostram-se a nós em toda a sua potência”, diz ele (SdS, § 31). Em outro parágrafo, Debord volta a falar sobre esta auto-exposição da reificação: “O capital não é mais o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação o estende/expõe [étale] até a periferia sob formas de objetos sensíveis” (SdS, § 50). Neste caso, devem-se conservar pelo menos três dos sentidos que o verbo étaler possui: acumulado, o capital se desenvolve, se estende e s e mostra (se expõe, se apresenta). Se o espetáculo é a extensão horizontal das relações mercantis, extensão que causa profundas transformações na aparência social, não é, contudo, um fenômeno 35. Nesta mesma perspectiva de apropriação da psicanálise, pode-se entender o significado radical do termo “ilusão” (illusion), tão freqüente em A sociedade do espetáculo. A “ i l u s ã o ” (Illusion), para Freud, não é necessariamente um “erro” ( Irrtum), mas o “preenchimento”, a “satisfação” ou a “realização” (Erfüllung) de desejos que não são necessariamente falsos, irrealizáveis ou contraditórios com a realidade. Contudo, como ocorre nas crenças religiosas ou, por analogia, nos delírios, a ilusão “põe à frente” (vordrängt) o desejo com relação à “realidade” (Wirklickkeit). Quando Debord diz que o espetáculo é “a reconstrução material da ilusão religiosa” (SdS, § 20) ou a “ditadura efetiva da ilusão” (SdS, § 213), ele
84
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
restrito à “superfície”; sua base é precisamente a acumulação de capital e a concentração capitalista das forças produtivas. “O espetáculo”, diz Debord, “é o capital em um tal grau de acumulação que se torna imagem” (SdS, § 34). Mas, cabe indagar, imagem de quê? A resposta não poderia ser outra senão esta: de si mesmo, de sua natureza fetichista e de seu poder material, que é o poder material da sociedade que dela se encontra alienado sob a forma-capital. Não se trata, pois, da imagem falsificadora de alguma existência verdadeira transcendente ou de uma natureza humana a-histórica. Sob a forma do espetáculo, é o capital acumulado e sua natureza fetichista que se mostra, de modo distorcido, certamente, mas também em sua verdadeira natureza: como espetáculo, o capital se mostra, se apresenta como uma força autônoma, força cujo fundamento não é outro que a própria força material social, o próprio resultado do trabalho social tornado autônomo em face da sociedade. De outro modo, é a própria contradição fundamental de toda uma época histórica – contradição entre seus poderes materiais, possibilitadores de uma outra vida, e a forma social que aprisiona a realização destas mesmas possibilidades – que se apresenta numa necessária aparência invertida, inversão esta que, sendo essencial à forma-valor, se mostra como potência humana sobre-humana. O que o espetáculo mostra, deixa ver é, sob forma alienada e substitutiva, as próprias possibilidades da vraie vie. Se ele é a superacumulação do capital tornada “imagem”, “fenômeno aparente”, o seu conteúdo material é o desenvolvimento das tem em vista não apenas a inversão sujeito-predicado já assinalada por Feuerbach quanto à filosofia especulativa e à religião, mas também, em analogia com a crítica freudiana da religião, a natureza ilusória da “realização” dos desejos-possíveis nas condições do capitalismo mais desenvolvido. Cf. S. Freud, O futuro de uma ilusão [1927]. Obras psicológicas completas de sigmund Freud, vol. XXI. Tr. br. J. O. Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974, pp. 43 ss; Die Zukunft einer Illusion. Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1974, pp. 164 ss.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
85
forças produtivas que torna possível, pela superacumulação de valores de uso, a superação para além d o besoin material e, portanto, a formulação consciente e social do désir. É particularmente neste aspecto que a aproximação feita por Debord entre a experiência social do capitalismo espetacular e o sonho do indivíduo ganha importância. Em analogia com as imagens oníricas, as aparências autônomas da forma-mercadoria recalcam, distorcem e escondem, mas também – porque são ambíguas e descontínuas (graças à separação e à ausência de unidade que são essenciais à própria alienação) – mostram, deixam ver o desenvolvimento material de possibilidades outras que tornam desnecessária a própria economia mercantil. 36 Do mostrar-se da alienação, da visibilização do capital, Debord concebe justamente que “a economia autônoma se separa para sempre da necessidade profunda na medida mesma em que ela sai do inconsciente social que dependia dela sem saber. // No momento em que a sociedade descobre que ela depende da economia, de fato a economia depende dela. Esta potência subterrânea que cresceu até aparecer soberanamente também perdeu sua potência. Aí onde estava o isso econômico deve vir o eu” (SdS, §§ 51-52). Deste modo, a aparência social, ao realizar a falsificação da vida, não é, ela mesma, inteiramente falsa. Como aproximativamente propõe a psicanálise em relação ao sonho e às imagens oníricas, toda a questão é traduzir em desejo consciente, através da linguagem e da práxis comunicativas, as
36. De modo algum esta afirmação entra em contradição com a análise de Agamben, anteriormente indicada, sobre a reflexão, no espetáculo, entre a “transparência” e a “fantasmagoria” da mercadoria, mas, ao contrário, a pressupõe. Ao expor-se à “plena vista”, o capital certamente “oculta seu reino encantado” (Agamben), mas nisto mesmo também deixa ver a “ocultação”, o fetichismo que lhe é essencialmente constitutivo; um deixar ver que expõe, na imediatidade do vivido, a completa autonomia e separação da forma social da produção mercantil com relação às possibilidades de formulação e realização conscientes de desejos vivos, possibilidades estas, segundo Debord, constituídas historicamente pelo desenvolvimento das forças produtivas.
86
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
possibilidades que se encontram ocultadas/apresentadas nestas imagens, formulando o projeto social de liberação da história do aprisionamento mítico-arcaico da modernidade burguesa tardia. É justamente sob este projeto que Debord conclui A sociedade do espetáculo, ao indicar as condições, que são uma única e mesma, da emancipação possível em nossa época: “Aí somente onde os indivíduos estão ‘diretamente ligados à história universal’, aí somente onde o diálogo se armou para fazer vencer suas próprias condições” (SdS, § 221).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
87
Capítulo II
O problema da expressão Nunca permanecemos no tempo presente. Antecipamos o futuro, por chegar com muita lentidão, como para lhe apressar o curso; recordamos o passado, a fim de detê-lo, porque rápido em demasia: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e apenas não pensamos no único que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que já não existem e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente comumente nos fere. Ocultamo-lo à vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, lamentamos vê-lo escapar. Pascal, Pensamentos
O desenvolvimento do capitalismo produz a obliteração cotidiana da comunicação. Para Debord, esta é uma expropriação da potencialidade lingüístico-comunicativa que conduz justamente a uma crise da vida cotidiana no capitalismo mais desenvolvido, em razão da reintrodução formal e aparente, mas essencial ao espetáculo, do arcaísmo mítico pela extensão das relações mercantis à totalidade do vivido. Neste âmbito, a própria categoria da expressão, tal como pensada e experimentada esteticamente pelo surrealismo e pela arte moderna, encontrase também em crise, o que sig nifica para Debord a crise nem apenas, nem primeiramente de uma categoria estética, mas antes
88
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
da perspectiva socialmente crítica com base na qual o surrealismo e toda a arte moderna formularam sua experiência com a modernidade e refletiram sobre a linguagem; antes ainda, trata-se de uma crise do que Debord chama de “expressão concreta” dos indivíduos, expressão essencialmente práxica, cotidiana, crise esta que, por fim, traz consigo a da própria categoria estética da expressão. É em face desta experiência social mais ampla, na qual se inclui a própria experiência estética, que Debord busca pensar criticamente – não apenas em A sociedade do espetáculo, mas já em textos que datam do final dos anos 50 – a experiência social, tendo como centro o uso social da linguagem, pensada na forma da comunicação. De 1958 a 1967, ano em que finaliza e publica A sociedade do espetáculo, a relação entre expressão e comunicação ocupa um importante lugar na reflexão de Debord, precisamente nos termos de uma afiliação de seu pensamento à poesia moderna, cuja posição negativa diante da sociedade burguesa não é, para esta afiliação, um aspecto secundário; e na qual a experiência surrealista (no que diz respeito à reflexão sobre a expressão e à posição negativa em vista da sociedade moderna) constitui, para ele, uma referência prática e teórica central. Precisamente porque o surrealismo assume uma centralidade nesta experiência da poesia moderna que Debord tem em vista, é que a reflexão deste último sobre a expropriação da comunicação, inseparável da que se realiza sobre a expressão concreta e a atividade autônoma dos indivíduos, tanto implica um posicionamento sobre a experiência surrealista quanto significa uma retomada e uma recolocação do programa das vanguardas históricas de ultrapassagem da arte. A busca por Debord de ultrapassagem – mas não abandono – da expressão é exatamente o modo como ele enfrenta as ambigüidades que encontra no surrealismo, num mesmo movimento de retomada de seu programa de ultrapassagem da “instituição arte” (Bürger) e de fusão entre arte e vida cotidiana. Aí mesmo pretende posicionar-se, inseparavelmente, em vista da sociedade produtora de
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
89
mercadorias em sua fase espetacular, na qual a essência anticomunicativa da ratio mercantil se tornou imediata e total. Com o objetivo de oferecer as bases desta discussão, este capítulo busca uma melhor determinação da reflexão de Breton sobre a linguagem, em sua forma expressiva e em sua posição negativa diante da sociedade moderna, situando, em seguida, a concepção de Debord acerca da experiência surrealista e do modernismo estético.
2.1 Surrealité e expression em Breton Em Breton, a noção de surréalité é concebida como lugar de não-contradição, pois lugar de existência e expressão da pluralidade de sentidos que não apenas não se constitui negativamente, mas também não reconhece a negatividade dialética. Este não-reconhecimento é a própria condição de possibilidade de coexistência e justaposição do que é contraditório, antinômico, na interioridade subjetiva em sua expressão lírica. Ora, é porque a subjetividade pura se dá numa positividade imanente – e apenas por isso, paradoxal, ambivalente, justaposta – de sentidos, que tal posição de Breton se encontra bem distinta daquela sobre a qual Marx – com base em Hegel e Feuerbach – insiste, que é a negatividade da finitude sensível e prática e, portanto, nela, a inscrição da atividade, da autonegação, do trânsito, da superação, enfim, do “gênero”. Neste último aspecto, é que a concepção bretoniana de dialética – concepção que ele articula numa relação com a da expressão, enquanto surréalité – se encontra com uma outra determinação fundamental a esta mesma concepção da expressão, que é o seu caráter não-comunicativo, pois constitutiva da subjetividade pura, solitária. De modo irônico, Breton diz que a linguagem surrealista se adapta, ao melhor, ao diálogo, porém não no sentido da possibilidade de uma linguagem comum, verdadeiramente comunicativa, mas sim no da discordância, da impossibilidade
90
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
radical de uma produção comum e comunicável de sentido. Se, quando dois pensamentos se afrontam, um ocupa-se do outro, a atenção aí desprendida é “toda exterior”: “Minha atenção [...] trata o pensamento adverso como inimigo”. 1 Ora, tal postura se constitui, antes de tudo, de um dado fundamental da experiência cotidiana, da “conversa corrente” (conversation courante), na qual o pensamento “‘retoma’ quase sempre, nas palavras, as figuras das quais ele se serve; ele me põe em posição de tirar partido delas na réplica, desnaturalizando-as”. 2 Segundo esta perspectiva, pondo-me ante o outro enquanto subjetividade pura auto-exilada das relações genéricas tomo as palavras que escuto do meu interlocutor apenas e necessariamente como figuras, cuja significação se constitui e se mobiliza em mim num sentido outro daquele que me foi transmitido: ao mobilizar imagens, lembranças, desejos, as palavras por mim recebidas – porque ambíguas, ambivalentes – me reconduzem permanentemente para além dali. “As palavras, as imagens oferecem-se apenas como trampolins ao espírito daquele que escuta”. 3 São trampolins para aquele que escuta, pois lhe chegam como metáforas, imagens mobilizadoras de seus próprios e diversos pensamentos, tanto quanto, no limite, já foram propriamente expressas, por aquele que fala, também como imagens, metáforas, figuras de pensamentos outros que não necessariamente os que foram conscientemente convocados a se apresentarem na conversa corrente. A expressão é não-comunicativa exatamente porque, por ser constituída em e por sujeitos não-unitários, mobiliza a ambivalência, a ambigüidade de que nos fala Freud, como coexistência e justaposição de sentidos múltiplos, nãocontraditórios, tal como o princípio da identidade, da não1 . A. Breton, Manifeste du surréalisme, em Oeuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1988, p. 335. 2 . Idem, pp. 335-336. 3 . Idem, p. 336.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
91
contradição, é ignorado pelo “trabalho do sonho” e, em geral, pelos recursos inconscientes de fuga da censura. Como paradoxo não-contraditório é, por isto mesmo, não-comunicativo e nãodialogal: tanto porque a palavra, enquanto símbolo, é recebido numa outra referência significativa pelo ouvinte, quanto porque, inseparavelmente, dada esta mesma ambivalência do signo, se experimenta aí ao extremo a ausência de qualquer com- entre os falantes: comunhão de pensamentos, significação comum da linguagem, logo, comunicação, comunidade. Precisamente porque expressiva, esta é uma linguagem significativa não-comunicativa. Não é difícil ver aí a radicalização da concepção seja da subjetividade cindida, seja de uma subjetividade lírica, voltada para um mundo interior, seja ainda de uma capacidade figurativa e transfigurativa das palavras-imagens, próprias à concepção surrealista de mímesis. Mas, mais fundamentalmente, Breton aqui se posiciona criticamente diante da exigência social da “comunicação” e busca, precisamente assim, como já antes o fizera T. Tzara nos manifestos dadaístas, desmascarar tal exigência: “Não existe nenhuma conversa em que não se passa alguma coisa dessa desordem. O esforço de sociabilidade que preside a ela e o grande hábito que dela nós temos conseguem sozinhos dissimulá-lo passageiramente, para nós”. 4 Por isso mesmo, para Breton, a “verdade absoluta” do “diálogo” (dialogue), verdade esta que o surrealismo teria mesmo por meta restabelecer, é o “solilóquio” (soliloque). Precisamente aqui estamos diante da determinação central da concepção expressivista da linguagem, tal como o concebem Breton e o surrealismo. E, justamente aqui, ela se determina por uma posição antiinstrumental da linguagem, como recusa de um uso dela que a tome não em sua dimensão criadora e, assim, possibilitadora da expressão, mas sim na condição de instrumento de um “diálogo”, de uma “conversa”, de uma “comunicação” que, no mundo “exterior” e reificado da “lógica” e do “racionalismo”,
4 . Idem, p. 335, itálicos no original.
92
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
só pode mesmo ocorrer como, nas palavras de Mallarmé, “em silêncio, uma moeda na mão do outro”. O que pode ser a linguagem, enquanto instrumento de “comunicação” cotidiana, num mundo todo exterior às profundezas do espírito, num mundo dos imperativos práticos, do trabalho e das convenções fixas, senão uma linguagem banal que, de fato, funcione como moeda de troca? A banalização da linguagem, a sua redução a esta posição pobremente mediadora, pois mediação de uma experiência que ocorre como se numa “caixa, de onde é cada vez mais difícil sair” (Breton), constitui a própria linguagem como lugar cotidiano e empobrecido de relações reificadas. A recusa da “comunicação”, da “conversa”, enfim, do “diálogo” por Breton tem, pois, o central sentido de uma recusa dessas mesmas relações e, eo ipsum, da banalização da linguagem que aí ocorre, “diálogo” e banalização aos quais ele contrapõe, enquanto solilóquio, a expressão. Nessas reflexões, Breton mobiliza uma determinação central em toda a experiência poética moderna que é esta afirmação do lugar negativo que a interioridade subjetiva, mesmo quando articulada teoricamente numa imanência positiva, como ocorre precisamente no fundador do surrealismo, ocupa em face de relações genéricas reificadas. Neste aspecto, Adorno é, sem dúvida, aquele que mais radicalmente – porém, como reconhece, numa época em que a experiência dela se encontra em crise – busca traduzir estético-filosoficamente tal afirmação; e o faz exatamente com fundamento na oposição entre expressão (Ausdruck) e comunicação (Kommunikation). 5 É porque, no mundo reificado, a consciência individual é o único lugar possível de uma consciência verdadeira, porque é precisamente no 5 . A posição de Adorno sobre o surrealismo – se permanece sempre, sem dúvida, extremamente crítica quanto à questão da forma estética em face da idéia de superação da arte – não se esgota naquele tão radical distanciamento que encontramos em Retrospectiva do surrealismo (Rückblickend auf den Surrealismus), publicado nas Notas sobre a literatura. Na Teoria estética, há aproximadamente cerca de oito referências diretas
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
93
indivíduo que se constitui o único lugar possível da negatividade diante das tendências totalitárias da sociedade de mercado, que Adorno encontra na obra de arte – em sua mímesis refratária à exterioridade social, não obstante s e r ela m e s m a , contraditoriamente, um fait social – uma obrigatória “mediação subjetiva” (subjektive Vermittlung). Ainda que a mímesis – uma produção racional que, ao mesmo tempo, resiste à racionalidade administradora – se ponha, num de seus momentos, numa consubstanciação pelo universal (Allgemeines), isto ocorre necessariamente na dependência do sujeito individual, singular (Einzelsubjekte). Daí que a obra de arte “não pode isolar-se da expressão [ Ausdruck], e esta não existe sem sujeito [ Subjekt]”. 6 É, pois, nesta natureza mimética – que não é uma mímesis imediata do sujeito, mas mímesis de si mesma da obra de arte autônoma, em sua “refração” (Berchung) da realidade que lhe é “exterior” (Auswendung ) – q u e a e x p r e s s ã o s e p õ e negativamente em face da “universalidade discursivamente discernível” (diskursiv erkannte Allgemeiheit), universalidade que, em termos estéticos, só poderia significar uma heteronomia inteiramente estranha à arte. Se alguma relação há entre a obra de arte e a sociedade presente, tal acontece necessariamente pelo caráter refratário da primeira com relação à segunda, daí que, para Adorno, “a comunicação [Kommunikation] das obras de arte com o exterior, com o mundo diante do qual, feliz ou infelizmente, elas se fecham [verschliessen], ocorre através da não-comunicação [Nicht-Kommunikation]”. 7 É claro que, nessas considerações, Adorno se situa numa posição especificamente estética distinta da de Breton, que não ao surrealismo que, em sua maioria, portam considerações essencialmente solidárias, particularmente no que diz respeito às suas posições críticas da reificação, da racionalidade administradora, do seu papel histórico em expressar a crise artística (nisso, seguindo Benjamin), porém mantendo essencialmente aquele mesmo distanciamento – ao mesmo tempo em que busca situá-la historicamente – de sua posição crítica contra a arte. 6 . Adorno, Teoria estética, p. 56; Ästhetische Theorie, p. 68. 7 . Idem, p. 16; na ed. alemã, p. 15.
94
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
apenas reivindica uma outra atividade que não a da “arte” e da “obra de arte”, mas também aponta para uma outra e bem diferente concepção de mímesis. Contudo, parece que o fundamental é, precisamente, que Adorno, ao buscar refletir estético-filosoficamente sobre a arte moderna, retoma essencialmente a afirmação de Breton quanto à expressão, enquanto é esta constituída por uma anteposição crítica da interioridade subjetiva em face da exterioridade reificada; e do mesmo modo sublinha a demarcação de um campo de autonomia necessariamente negativo, mimético, c o m relação à “universalidade discursiva”. O que está contido na expressão, segundo Adorno, “é o caráter de linguagem da arte, fundamentalmente diferente da linguagem enquanto seu medium”. 8 Em outras palavras, não é a linguagem universal, discursiva, melhor ainda, cotidiana, “comunicativa” (a linguagem enquanto medium, como discutira o jovem Benjamin), o lugar da expressão – cujo conteúdo de autonomia Adorno, diante da uniformização dos comportamentos, da decadência do gosto, da inclinação à heteronomia na sociedade tardocapitalista, só pode encontrar na arte –, mas, ao contrário, na transformação da “linguagem comunicativa” (kommunikative Sprache) e m “mimética” (mimetische) , c o n s i d e r a n d o a q u i o c a r á t e r autonomamente expressivo que, para ele, a mímesis porta. É porque, na sociedade de mercado, o medium da linguagem apenas pode se colocar como uma universalidade discursiva alienada, q u e a Ausdruck d e m a r c a , d i a n t e d e l a , u m a r e c u s a d a Kommunikation. Quando Adorno, para quem a expressão também é soliloquio, assume, em termos estético-filosóficos, o mesmo ponto de vista estético-expressivo e, portanto, radicalmente não-comunicativo de Breton, como recusa da “comunicação” reificada própria das relações sociais de mercado, ele testemunha, do mesmo modo que o fundador do surrealismo, a 8 . Idem, p. 132; na ed. alemã, p. 171.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
95
determinação mais geral que a categoria da expressão porta com relação à experiência poética moderna. Na concepção da expressão por Breton, que a formula tendo em vista também a experiência estética que ocorre no exterior do surrealismo, trata-se precisamente de afirmar com radicalidade uma experiência expressiva que, presente na escrita e na figuração pictórica de diversos autores, é a única que se lhe apresenta como conforme às potencialidades criadoras da linguagem e, nisto mesmo, sua potencial negação da banalidade de seu uso social. Desde sempre, é esta recusa dos “imperativos práticos” e “comunicativos” o que constitui sua concepção lírica, logo, expressiva em face da sociedade moderna. A concepção da subjetividade solitária, essencial ao seu lirismo, em razão da crise da tradição e do presente domínio da reificação, é o que constitui sua concepção da expressão não-comunicativa e, por isso mesmo, aversa aos “imperativos práticos” e ao chamado reificado da “ação”. 9
2.2 Debord e a crítica da “superestimação do inconsciente” De uma perspectiva teórica, a crítica de Debord ao surrealismo pode ser inicialmente situada com relação à representação surrealista do inconsciente e do sonho. Contudo, ao contrário do que normalmente se considera, suas considerações sobre o surrealismo não se estabelecem, em primeiro lugar, sob o critério de que este movimento tenha ou não razão em teoria, seja de modo relativo, seja absoluto, mas sim sob o de “conseguir catalizar, por um certo tempo, os desejos 9 . Cf. A. Breton, Manifeste du surréalisme, p. 345: “Eu finjo, infelizmente, agir num mundo no qual, para chegar a compreender suas sugestões, eu teria que transitar por dois tipos de intérpretes, uns para me traduzir suas sentenças, outros, impossíveis de achar, para impor aos meus semelhantes a compreensão que eu teria deles. [...] Eu estarei só, bem só em mim, indiferente a todas as danças do mundo”.
96
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
de uma época”. 10 Precisamente disto decorreria sua importância histórica. Este critério se torna fundamental para a reflexão de Debord, pois funda sua pergunta pela relação entre o programa surrealista e as novas experiências sociais do capitalismo desenvolvido, pergunta esta que se move por uma central positivação da natureza crítica das questões concernentes às “razões de viver” apresentadas pelo surrealismo no entreguerras. Para Debord, a afirmação surrealista da “soberania do desejo” e da “surpresa”, sintetizada na proposta de um “novo uso da vida”, mesmo em face do capitalismo do segundo pósguerra possui “possibilidades construtivas” que não podem ser abandonadas, mormente no que tais afirmação e proposta significam de negação da reificação, dos imperativos práticos e do conseqüente estreitamento da experiência vital. Contudo, devem ser pensadas com base num fundamento teórico diferente do posto pelo próprio surrealismo. Esta base é precisamente a relação dialético-materialista entre os desejos da época e os meios materiais de sua realização, relação essencial a toda reflexão estética e social de Debord. Este compreende que a falta de tais meios, quando da experiência da primeira geração surrealista, determinou em grande parte os próprios limites de seu programa crítico. A continuidade, pela segunda geração surrealista, da recusa de pensar construtivamente as possibilidades constituídas por tais meios torna o programa surrealista, se tomado como um todo, historicamente inapropriado. É esta fragilidade da concepção surrealista em face do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo no segundo pós-guerra que torna necessário um balanço teórico de suas posições, pois ela é absolutamente inseparável do modo 10. G. Debord, Rapport sur la construction de situations et sur les conditions de l’organisation et de l’action de la tendance situationniste internationale [1957], Anexo 2 a Internationale Situationiste 1957-1969, ed. cit., p. 691. (Doravante, este texto será citado apenas por “Rapport”).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
97
como se apresenta seu afastamento crítico da realidade “exterior”. “O erro que está na raiz do surrealismo”, diz Debord, “é a idéia da riqueza infinita do inconsciente. A causa do fracasso ideológico do surrealismo é haver apostado que o inconsciente era a grande força, finalmente descoberta, da vida. [...] A fidelidade formal a este estilo de imaginação finda por conduzir às antípodas das condições modernas do imaginário: ao ocultismo tradicional”. 11 Nesta passagem, Debord se refere centralmente à representação surrealista do inconsciente como fonte inesgotável do novo, representação da qual se distancia apoiando-se na concepção freudiana do caráter arcaico dos desejos inconscientes e de sua apresentação imagética no sonho. Debord se recusa a tomar o “inconsciente” como fonte da criação histórica, pois, com Freud, o concebe como um “mundo arcaico”. Contudo, deve-se observar que seu afastamento do horizonte surrealista do inconsciente se determina pela mesma preocupação de Breton: a da relação entre os “desejos” e a “vida”. Neste sentido, não há uma afiliação imediata de Debord à teoria psicanalítica, pois ele formula uma certa noção de “desejos” que se afasta também da psicanálise, para a qual o “desejo” se situa no arcaísmo do inconsciente. Como já dito no primeiro capítulo, o termo “desejo” aparece sempre nos textos de Debord numa dimensão social, como volição prospectiva a ser elaborada conscientemente. Sustentando um “conflito perpétuo entre o desejo e a realidade hostil ao desejo”, Debord considera que a tarefa da teoria crítica não é “interpretar as paixões: trata-se agora de encontrar outras delas”. 12 Ainda assim, neste desvio da concepção psicanalítica do desejo, enquanto desejo inconsciente, Debord se recusa – precisamente porque considera com propriedade o seu significado para Freud
11. Idem, p. 691. 12. Idem, pp. 700-701.
98
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
– a tomar o inconsciente como fonte inesgotável da criação do novo, tal como o fazem Breton e os surrealistas.13 O referir-se de modo distinto à noção de desejo e, em sintonia com a teoria freudiana, o recusar a positivação extrema do inconsciente e do sonho são gestos que se movem numa mesma direção. Sobre isto, é necessário fazer uma breve observação. Em Freud, a interpretação psicanalítica de fenômenos culturais e sociais procede sempre por intermédio d a “ s u p o s i ç ã o ” (Annahme) d e u m a “ p s i q u e d e m a s s a ” (Massenpsyche), na qual se fazem “analogias” (Analogien), “comparações” (Vergleichungen, Gleichstellungen) e s e encontram pontos de “concordância” (Übereinstimmung) entre os processos anímicos do indivíduo e os da “época” (ou da “comunidade cultural”, Kulturgemeinschaft).14 Freud admite, portanto, “a tentativa de uma transposição [Übertragung] da psicanálise na comunidade cultural”, mas alerta justamente que é preciso, neste caso, “não esquecer que se trata de analogias [Analogien] e que é arriscado, não apenas em homens, mas também em conceitos, arrancá-los d o ambiente [esfera, Sphäre] 13. Benjamin também já observara esta tendência arcaizante na primeira geração surrealista: “Uma ‘mitologia’, como diz Aragon, empurra as coisas de novo para longe. Apenas a explicação do que nos é aparentado, do que nos condiciona [uns Verwandt, uns Bedingenden] é importante”. A postura crítica e, ao mesmo tempo, reivindicadora do surrealismo por parte de Debord lembra em muito – algo que, infelizmente, não posso desenvolver neste livro – a posição que Benjamin adota e condensa no conceito de Erwachen, “despertar”. Noutra passagem, Benjamin anota: “Enquanto em Aragon permanece um elemento impressionista – a ‘mitologia’ – [fazer este impressionismo responsável por muitos filosofemas sem teor do livro], trata-se aqui de uma dissolução [Auflösung] da ‘mitologia’ no espaço da história”. (Cf. W. Benjamin, Paris, Capitale du XIXe. Siècle. Le livre des passages. Tr. fr. Jean Lacoste. Paris: Les Édtions du Cerf, 1989; PassagenWerk. Gesammelte Schriften, V-1/2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982, respectivamente, Cº, 5 e Hº, 17). 14. S. Freud, Totem e tabu [1912-13]. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Tr. br. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, p. 187 ss; Totem und tabu. Sigmund Freud Studienausgabe, Band IX, p. 440 ss; O futuro de uma ilusão, p. 58; Die Zukunft einer Illusion, p. 177.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
99
em que nasceram e se desenvolveram”. 15 Em face deste problema posto por Freud, deve-se observar que Debord não realiza propriamente uma “analogia” ou “transposição” (no sentido posto pelo próprio Freud) da psicanálise para a crítica social, mas sim um desvio de sentido, uma recontextualização da teoria psicanalítica ao se apropriar dela para a análise da sociedade.16 É como desvio que, situado no nível social, o desejo é postulado por Debord como consciente, coletivo e prospectivo. O que está implícito neste desvio (ou inversão) é uma conclusão simples: se o desejo inconsciente se manifesta às costas da consciência do indivíduo, ele está mais próximo de uma necessidade (besoin) do que de um desejo (désir). Portanto, o desejo de caráter prospectivo só pode ser uma elaboração consciente das contradições e possibilidades sociais historicamente determinadas. Nesta inversão operada por Debord, encontra-se também – e, talvez, principalmente – a necessidade de se distanciar da romantização do inconsciente, da concepção de uma autenticidade desiderativa interior, não mediada por considerações histórico-sociais, concepção esta mais ou menos generalizada nos meios de vanguarda franceses de então, fortemente influenciados pelo surrealismo do entreguerras. Justamente no surrealismo, o horizonte do inconsciente terminaria por fazê-lo desviar-se deste olhar para as condições históricas presentes. A essencial indistinção, em Breton, entre os desejos inconscientes (arcaicos) e os restos diurnos (recentes) é o que possibilita manter, como no sonho, a dependência dos últimos com relação aos primeiros. Isto introduziria no surrealismo, segundo a análise de Debord, um
15. S. Freud, Mal-estar na civilização [1932]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XXI, p. 169, tr. lev. modificada; Das Unbehagen in der Kultur. Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX, p. 269. 16. No último subcapítulo deste livro discuto sobre o conceito de “desvio” (détournement) em Debord.
100
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
certo arcaísmo, um certo primitivismo. Este arcaísmo ocorreria justamente porque, “desde a origem, há no surrealismo um antagonismo entre as tentativas de afirmação de um novo uso da vida e uma fuga reacionária para fora do real”. 17 Este antagonismo no surrealismo, justamente, “se manifestou, em primeiro lugar, pela superestimação do inconsciente e sua monótona exploração artística”. 18 Reconhecendo na concepção do inconsciente pela psicanálise e em sua assunção pelo surrealismo uma “surpresa”, uma escandalosa “novidade”, Debord recusa precisamente o gesto surrealista de tomá-lo como “a lei das surpresas e das novidades futuras”. 19 Com Freud, Debord lembra que o papel do sonho é o de “permitir continuar dormindo”. 20 Recorrendo freqüentemente ao fundador da psicanálise, Debord insiste na necessidade de potencializar a consciência, pela sua relação com a realidade, a dominar aquilo que lhe escapa e lhe retira o controle sobre suas atividades presentes. Neste uso da psicanálise, Debord busca reter a tendência imanente à sua técnica terapêutica de fortalecimento do Eu consciente. Lembre-se que, para Freud, o Eu se constitui naquela instância que, por meio da percepção do mundo exterior, assegura aos processos psíquicos uma relação com a realidade, organizando as descargas motoras das energias psíquicas e, assim mesmo, o acesso à atividade, à “motilidade”. Situado entre a realidade exterior, o Super-Eu e o Isso, o Eu “esforça-se por sujeitar, dominar” este último. Segundo Freud, 17. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de leur valeur effective”, em Internationale Situationniste, nº 2, dezembro de 1958, p. 33. Cf. também “Le bruit et la fureur”, em Internationale Situationniste, nº 1, junho de 1958, p. 5. 18. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de leur valeur effective”, loc. cit., p. 33. 19. G. Debord, Rapport, p. 691. 20. G. Debord, “Le souvenir au-dessus de tout”, loc. cit., p. 4. Cf. S. Freud, Interpretação dos sonhos, pp. 514 e 525 (Die Traumdeutung, pp. 538 e 549); Conferências introdutórias sobre psicanálise [1916/1917]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XV. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 165 [Conferência IX].
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
101
a psicanálise procuraria precisamente contribuir com esta tarefa, sendo “uma ferramenta que deve possibilitar ao Eu a progressiva conquista [tomada, fortschreitende Eroberung] do Isso”. 21 Sem que este propósito signifique a dissolução da radical diferença – já afirmada pela Interpretação do sonho e aprofundada pelos textos da chamada segunda tópica – entre as instâncias consciente e inconsciente, Freud volta a dizer noutro momento: “Seu propósito [da psicanálise] é, na verdade, fortalecer [stärken] o Eu, fazê-lo mais independente do Super-Eu, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder apropriar-se de novas partes do Isso [neue Stücke des Es aneigen kann]. Onde estava o Isso, o Eu deve vir-a-ser”. 22 Em A sociedade do espetáculo, D e b o r d retoma precisamente este paradigmático Wo Es war, soll Ich werden, desviando-o para a crítica da economia política: “Aí onde estava o isso econômico, deve vir o eu”. É deste modo que Debord exercita uma “apropriação” desviada da psicanálise, tomando suas categorias e sua “técnica terapêutica” quase como metáforas da crítica teórica de uma sociedade reificada que, a seus olhos, mantém o domínio do passado sobre o presente – e, assim, a determinação reflexiva do “arcaico” e do “moderno” – graças ao não-controle, pelos homens, de suas relações sociais; relações estas que se conservam “inconscientes”, exatamente porque se dão sob a autonomia abstrata da forma-valor. Tratase, portanto, de uma apropriação diferente da que Breton tenta da teoria freudiana, da qual Debord busca precisamente manter o fundamental esforço de liberação consciente da (e para a) vida presente. 21. S. Freud, O ego e o id [1923]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XIX. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 72, tr. lev. modificada; Das Ich und das Es. Sigmund Freud Gesammelte Werke, Bd. XIII. London: Imago Publishing, 1947, pp. 285-286. 22. S. Freud, Novas conferências introdutórias [1932/1933]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XXII. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 102 [Conferência XXXI], tr. lev. modificada; Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Sigmund Freud Gesammelte Werke, Bd. XV. London: Imago Publishing, 1946,p. 86.
102
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
É esta forma de interpretação da psicanálise – desviandoa para a crítica social, com vistas a um controle consciente dos homens sobre suas relações sociais genéricas – que está presente, desde o início, na reflexão de Debord sobre o surrealismo. Neste, Debord encontra um movimento oposto tanto às precupações da psicanálise freudiana quanto aos esforços que julga necessários para a crítica do capitalismo, justamente pela idealização surrealista do inconsciente e do sonho. Sob um outro aspecto, Debord considera que a tendência arcaizante da qual o surrealismo não pôde se libertar de todo, sendo inseparável de sua crítica da “consciência”, do “racionalismo”, da “lógica”, explicar-se-ia em grande parte pela necessidade de sustentar a crítica da experiência histórico-social do capitalismo no entreguerras, na qual se apresentaria uma “ruptura” entre a realidade social essencialmente “irracional” e os valores “lógicos” ainda fortemente proclamados por esta mesma sociedade. Daí decorreria o recurso surrealista não apenas ao “irracional” (irrationel , sic ), contra os “valores lógicos de superfície” (valeurs logiques de surface) desta mesma sociedade, mas também a contraditória “recusa da alienação na sociedade de moral cristã [...] [ao lado] do respeito pela alienação plenamente irracional das sociedades primitivas”. 23 Contudo, na medida em que, pelo desenvolvimento das próprias relações sociais fetichistas, no capitalismo plenamente desenvolvido do segundo pós-guerra, aquela “ruptura” é socialmente superada, os aspectos “irracionais” que se colocavam criticamente no surrealismo se tornam agora visivelmente uma característica
23. G. Debord, Rapport, pp. 691-692. A crítica de Debord ao surrealismo não se dá, portanto, como pensa E. Subiratis (A penúltima visão do paraíso. tr. br. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 2001), porque o surrealismo teria rompido em demasia com o passado, mas sim porque não teria conseguido teoricamente – dada a sua superestimação do inconsciente – romper bastante com ele, porque não fora capaz de assumir com radicalidade o presente, suas condições modernas de existência e, assim, pensá-las como base da crítica social.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
103
da própria sociedade tardocapitalista. O capitalismo moderno tanto “recapturou” (a rattrapé) as conquistas estéticas formais do surrealismo, quanto “tudo o que constituiu para o surrealismo uma margem de liberdade se encontrou recoberto e utilizado pelo mundo repressivo que os surrealistas combateram”. 24 Estas primeiras considerações de Debord sobre o surrealismo e o capitalismo moderno podem ser pensadas e justificadas com relação às transformações da aparência social, tais como concebidas e apresentadas em A sociedade do espetáculo. Fundadas no arcaísmo inconsciente da forma-valor e provocadas pela extensão das trocas mercantis, estas transformações reconvertem em positividade do sistema, tornando-o seu, o apelo surrealista ao inconsciente e ao sonho. Debord se afasta do horizonte surrealista do inconsciente justamente diante da necessidade da elaboração consciente dos “desejos”, em razão das características assumidas pela aparência social do capitalismo mais desenvolvido e das possibilidades constituídas por este mesmo desenvolvimento. A conseqüência mais imediata deste afastamento é a concepção dos limites da potencialidade crítica das categorias da “expressão” e das “profundezas do espírito”, consideradas essas características do capitalismo avançado.
2.3 Os limites da expression e da profondeur de l’esprit Reivindicando o sentido da experiência surrealista, Debord e os situacionistas se mantêm firmemente críticos da maior parte da produção cultural moderna que lhes é contemporânea, pois consideram que “tudo o que quer se situar, tecnicamente, após o surrealismo, reencontra os problemas de antes”, precisamente “as aberturas do surrealismo [...] sobre os problemas de uma
24. “Amère victoire du surréalisme”, em Internationale Situationniste nº 1, junho de 1958, p. 3.
104
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
verdadeira vida a construir”. 25 Recusam, assim, o isolamento das questões técnico-formais, estético-“artísticos” na apreciação do surrealismo, apreciação à qual faltaria a estima por aquele que teria sido, para os surrealistas dos anos 20, o problema central: a interrogação pelas “razões de viver”. Denunciam, por conseguinte, a recepção “dos detalhes, isolados e exagerados” tomados do que consideram ser uma “massa coerente das contribuições surrealistas”. Referindo-se particularmente aos grupos de neovanguarda, que se multiplicavam na Europa naquele período, Debord e os situacionistas consideram que todos eles “têm em comum ignorar o sentido e a amplitude do surrealismo”, ao mesmo tempo em que, porém, argumentam que este “caráter liberador depende agora da dominação sobre os meios materiais superiores do mundo moderno”. 26 A reivindicação por Debord do caráter liberador das questões colocadas pelo surrealismo, em razão das quais precisamente pode falar de uma sua “atualidade inultrapassável”, é fundamental à própria exigência de que este mesmo sentido liberador e atual deva mediar-se por uma consideração dos meios materiais da sociedade que são, necessariamente, as condições modernas do “imaginário”. Para ele, a questão não é a da simples contraposição do problema social das razões de viver, da vraie vie a construir, ao uso policial e disciplinar do desenvolvimento técnico da sociedade moderna, sob o risco seja de uma posição acrítica frente ao capitalismo desenvolvido (como correria no funcionalismo), seja de uma concepção primitivista, arcaizante (que ele encontra no surrealismo do segundo pós-guerra, embora já presente em gérmen na fase experimental do entreguerras). Não é o caso de aceitação ou de recusa da técnica simplesmente, mas da crítica das relações de produção que lhe dão forma histórica, ou seja, do uso social dos meios materiais desenvolvidos na sociedade contemporânea. 25. Idem, ibidem. 26. “Le bruit et la fureur”, em Internationale Situationniste, nº 1, p. 5.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
105
As questões postas pelos surrealistas somente encontram sua formulação apropriada, nas condições do capitalismo moderno, nesta colocação do problema do uso social das forças produtivas desenvolvidas socialmente. Isto quer dizer que aquela questão histórica, profundamente “atual” posta pelos surrealistas não pode ter qualquer uso, tampouco qualquer “atualidade”, a não ser com base nessas mesmas condições sociais de existência que, longe de se constituírem num impeditivo para a realização dos conteúdos sociais críticos elaborados pelo surrealismo, se oferecem precisamente como sua condição de possibilidade histórica. Tratar-se-ia, em outras palavras, de “liberar a tendência ao jogo” (libérer la tendence au jeu ), tendência presente nas próprias condições técnico-materiais do capitalismo desenvolvido, em contraposição ao seu uso para o controle e o condicionamento social. “Nesta perspectiva histórica”, diz Debord, “o jogo – a experimentação permanente de novidades lúdicas – não aparece de modo algum fora da ética, da questão do sentido da vida”. 27 Mais do que um problema teórico restrito à natureza da crítica revolucionária da técnica, o que emerge nessas considerações de Debord acerca do surrealismo é precisamente o que diz respeito à concepção surrealista da profondeur de l’esprit, como fundamento no qual a crítica do mundo reificado é mobilizada, e, por extensão, à sua concepção do uso crítico da linguagem como expression. A articulação entre essas duas temáticas – a dos meios materiais da época e a da crítica da profundeza do espírito e da expressão, como pensadas por Breton – não aparece diretamente nos textos situacionistas, mas é possível, sem qualquer extorsão teórica, constituí-la com base em diversos artigos publicados na Internationale Situationniste. Refiro-me, antes de tudo, à distância crítica de Debord da “pretensa profundeza subjetiva”, à qual ele contrapõe a 27. “Contribuition à une définition situationniste du jeu”, em Internationale Situationniste, nº 1, p. 10.
106
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
“expressão suficiente”, “concreta”, constituída pela assunção prática da “exterioridade”. O que aí se manifesta é uma desconfiança da representação tradicional da individualidade, justo num momento histórico em que esta categoria – na chamada “sociedade de massas” – se encontra profundamente questionada pelos rumos assumidos pelo desenvolvimento capitalista. As contraposições, a estas tendências inerentes à sociabilidade tardoburguesa, da “estrutura da individualidade”, do “espírito”, de sua “profundeza”, tanto quanto da representação humanista do “indivíduo inviolável e inalterável” têm como núcleo comum – embora essas categorias não sejam, seguramente, sinônimas – a persistência ainda de uma concepção burguesa (ou, como Debord escreve numa certa ocasião, “pequeno-burguesa”) de homem e de indivíduo, concepção que, enquanto tentativa de crítica social, se lhe apresenta como completamente impotente diante da nova realidade do capitalismo. Ao constatar que, no uso das novas técnicas para o “condicionamento social”, se encontra ameaçada toda a “concepção humanista, artística, jurídica da personalidade inviolável, inalterável”, Debord conclui em tom quase provocativo: “Nós a vemos desaparecer sem pesar”. 28 Esta é a mesma posição que se apresenta diante da oposição estética – afirmada por Lucien Goldmann – entre o classicismo e o romantismo, oposição que parece a Debord completamente anacrônica e em cuja aceitação se denuncia precisamente uma concepção ilusória, até mesmo conservadora, de “mistificação do humanismo”. 29 Não é certamente a esta concepção humanista que se afilia o surrealismo. Contudo, ao constituir uma concepção centrada na interioridade subjetiva, na oposição entre a interioridade e a exterioridade, uma concepção lírica fundada
28. “La lutte pour le contrôle des nouvelles techniques de conditionnement”, em Internationale Situationniste, nº 1, p. 8. 29. “L’avant-garde de la présence”, em Internationale Situationniste, nº 8, janeiro de 1963, pp. 14-22.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
107
nas profundezas do espírito, às quais identifica o inconsciente, Breton não deixa de reintroduzir ou mesmo manter uma representação não-histórica, não-social do homem, mesmo como recurso crítico de distanciamento de uma realidade históricosocial que buscou compreender e criticar sob os termos de “lógica” e de “racionalismo”. Numa posição teórica mais geral, Debord se mantém extremamente crítico do horizonte da interioridade, afirmando – numa polêmica contra a escrita de Michel Leiris – que “o que nos importa não é a estrutura individual de nosso espírito, nem a explicação de sua formação”. 30 “A realização real d o indivíduo”, diz ele ainda, “ p a s s a necessariamente pela dominação coletiva do mundo; antes dela, não há indivíduos, mas sombras girando em torno das coisas que lhes são anarquicamente dadas por outros”. 31 Numa outra passagem, Debord se opõe duramente à concepção por Henri Lefèbvre do “romantismo revolucionário”, fundado também “no desacordo especificamente moderno entre o indivíduo progressista e o mundo”. Uma atividade revolucionária na cultura e na sociedade não se poderia basear, segundo diz Debord, na “simples expressão do desacordo”. 32 Ainda aqui, manifesta-se a mesma recusa do critério da “interioridade” ou de uma “individualidade” que lhe parece abstrata. No que diz respeito à reivindicação da interioridade subjetiva por Breton, a questão é seguramente mais complexa e, para que não se constitua uma contraposição simples entre a sua posição e a de Debord, exige mais mediações. V. Kaufmann considera que o surrealismo, em Breton, “escolheu sempre a rua contra as cenas de interior e o romance”: “A verdadeira vida”, diz ele, “aquela que exige que se esteja sem fôlego, aquela que não conhece nem repouso nem quartos de dormir, é 30. “Problèmes préliminaires à la construction d’une situation”, loc. cit., p. 11. 31. Idem, p. 12. 32. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationale Situationniste, nº 1, p. 21.
108
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
fundamentalmente ligada ao exterior”. 33 Em sua análise, seria propriamente a posição de Aragon, em O camponês de Paris, a que manifestaria uma concepção presa aos ambientes fechados, conservadores do antigo e que se protegem das mudanças da cidade moderna: “A gente está aqui muito longe da aposta de Breton na vida, no exterior, na transparência, no encontro e na comunicação. [...] Aragon é um flâneur solitário, que investe as passagens como para resistir ao exterior, ao encontro, e porque as passagens são elas mesmas as últimas ilhotas de resistência à configuração haussmaniana da cidade”. 34 Sem dúvida, Nadja é um escrito cujos personagens e ações se situam estritamente na rua, em cuja apresentação por Breton é central – até mesmo como recurso crítico da experiência e da moral do trabalho e da indiferença pelo sentido da vida – a figuração da multidão. No Nadja, há certamente uma maior presença da “perda”, mesmo quando se trata da crítica da desindividuação, do que na flânerie de Aragon na Passagem da Ópera e , à noite (!), no Parque Buttes-Chaumont (sintomaticamente, alcunhado de “inconsciente da cidade”). Em Aragon, a conversão poético-imagética dos personagens e ambientes da Passagem em figuras “mitológicas”, não apenas “conduz as coisas de novo para longe” (Benjamin), mas traduz também uma maior resistência – ou, pelo menos, providencia uma mais rápida superação – do “estranhamento” que ele próprio reivindica. É Aragon mesmo quem opõe a Passagem à rua, ao se referir ao “limite das duas luzes que opõem a realidade exterior ao subjetivismo da Passagem”, também nomeada por ele, respectivamente, de “grande região da desordem” e “galeria iluminada por meus instintos”. Na rua, Aragon diz ver apenas 33. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires. Paris: PUF/Écriture, 1997, pp. 177-178. 34. Idem, pp. 178-179. Também M. Löwy, tendo em vista as críticas de Benjamin ao surrealismo, propõe uma distinção semelhante entre Aragon e Breton (M. Löwy, “Walter Benjamin et le surréalisme”, em Europe, nº 804, abril de 1996, p. 88).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
109
“pessimismo” e, por isto mesmo, decide: “Volto-me sobre meus passos: a luz [da rua] novamente se decompõe através do prisma da imaginação, resigno-me com esse universo colorido pelas cores do arco-íris. O que você ia fazer, meu amigo, nos confins da realidade?”. 35 Contudo, ainda que, no Nadja, figurem de modo muito mais central a rua e a multidão, Breton elabora – nos textos programáticos do movimento – uma concepção de interioridade subjetiva e de expressão que termina por se encontrar, embora não se identificando completamente, com a de Aragon. Em Breton, encontramos certamente uma elaboração mais ampla que, de modo assistemático (contudo, coerente), percorre e consubstancia o conjunto de suas reflexões sobre as condições da “lírica moderna”, a denúncia dos “imperativos práticos” e “utilitários” do “reino da lógica” e do “racionalismo absoluto”, a renúncia à “arte” e à “literatura”, a reivindicação de uma linguagem expressiva como recusa da comunicação reificada. Esta é uma concepção que contém ambigüidades, dentre as quais seguramente está a renúncia ao indivíduo unitário burguês no mesmo passo em que, em contraposição ao mundo burguês como um todo, reivindica as potencialidades das “profundezas do espírito”, da interioridade subjetiva. Neste gesto, Breton busca precisamente aprofundar ao extremo, na forma de uma concepção de mundo e com base na crítica do sujeito unitário, a tendência da escrita moderna – com Proust, Joyce, Kafka – de “desrealização” ético-significativa da realidade “exterior”, para assim mais radicalmente opor ao mundo reificado o conteúdo socialmente crítico da moderna poesia francesa desenvolvido desde Baudelaire. Portanto, se é verdade que, como defende Kaufmann, há em Breton uma tendência ao encontro e à comunicação, tendência figurada principalmente no Nadja, mas também presente nos jogos 35. L. Aragon, O camponês de Paris [1926]. Tr. br. Flávia Nascimento, Posfácio de J.-M. Gagnebin. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 75-77.
110
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
coletivos de escrita automática, nas enquêtes no interior do grupo surrealista, nos hasards objectifs nas ruas, esta tendência se encontra, contudo, ao lado ou até mesmo em oposição à centralidade da interioridade subjetiva por ele reivindicada e da concepção da expressão não-comunicativa por ele elaborada. Esta talvez seja uma ambigüidade que o surrealismo jamais conseguiu superar, ambigüidade que é inseparável da que Debord identifica: a que comporta uma exigência de um “novo uso da vida” e, ao mesmo tempo, uma reivindicação do “sonho” e do “inconsciente”. Essas ambigüidades são indissociáveis entre si justamente porque o “sonho” e o “inconsciente” se apresentam sempre, na reflexão de Breton, como a natureza própria da interioridade subjetiva, da “profundeza do espírito”, do “sonhador definitivo”, ora em contraposição à “realidade exterior” em Les pas perdus e nos dois manifestos, ora como fundamento de sua transformação em Les vases communicants. Em Debord, o que é central à crítica da concepção fundada na “interioridade” e na “individualidade” é que esta se mantém abstrata, pois se incapacita a considerar a “exterioridade” (isto é, as condições reais de existência) e a necessidade de ir além do “desacordo” entre a interioridade e o “mundo exterior”; portanto, a considerar com radicalidade a necessidade de sua apropriação e transformação práticas. O que esta crítica tem em comum com a que ele dirige ao “humanismo” ético e literário é a consideração que, em ambas posições, a crítica da sociedade burguesa não leva em conta as condições de existência do presente; nem teriam por que levar, já que se baseiam, sob um olhar teórico, em critérios não-históricos. É nesta precisa medida que sua crítica do surrealismo – com base numa reflexão sobre a relação entre os meios materiais da existência moderna e o próprio programa surrealista da construção da vraie vie – tem a ver com a crítica da reivindicação surrealista das profundezas do espírito e da expressão não-comunicativa. Deste modo, Kaufmann tem inteira razão ao afirmar, mas somente quanto aos situacionistas, que, com estes, “todas as portas estão, com
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
111
efeito, resolutamente abertas, tudo se passa fora, não há lugar de modo algum nem para o interior nem para a interioridade: doravante a subjetividade vive ou se expressa fora, ela é coletiva ou não será, ela é desatada de toda representação individual e, por conseguinte, também de toda prática literária”. 36 Da crítica debordiana ao horizonte da interioridade e da profundeza do espírito, não se deve concluir, no entanto, a representação positiva do “homem-massa” que caracterizou o construtivismo russo e o futurismo italiano, no início do século. Certamente, Debord assume algumas das exigências desses movimentos no que diz respeito ao abandono da concepção humanista clássica e da representação liberal da individualidade. Mas alguma coisa a mais e diferente se passa aqui. Antes de tudo, expressa-se uma concepção crítica do próprio capitalismo contemporâneo, no qual a forma da individualidade se lhe apresenta completamente esvaziada de realidade. Tornada inteiramente social pelas próprias características da sociedade moderna, a individualidade se tornou também, nas condições dominantes da reificação, “diretamente dependente da potência social, modelada por ela”, a tal ponto que “somente nisso que ela não é, é-lhe permitido aparecer” (SdS, § 17). Como contraface deste mesmo processo de abstração de toda individualidade real, sob a “mercadoria total” de que se constitui o espetáculo, encontra-se somente “o indivíduo fragmentário, absolutamente separado das forças produtivas que operam como um conjunto” (SdS, § 44). Finalmente, subsumida à reificação presente, sob a qual se mantém diretamente dependente de uma imediatidade social, ao mesmo tempo em que, por isto mesmo, se encontra nela fragmentada, isolada, “a vida individual não tem ainda história” (SdS, § 157). É nestas condições – diante das quais a individualidade permanece uma tarefa a ser ainda historicamente realizada – que os diversos recursos à individualidade, à interioridade 36. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires, p. 182.
112
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
subjetiva, ao humanismo, como fundamentos da crítica social, aparecem a Debord completamente destituídos de senso prático, pois, em sua unilateralidade, desprezam conceitualmente ou se relacionam acriticamente com a realidade social e histórica dos seus próprios pontos de partida. Por isto mesmo, na reivindicação da categoria do “social”, do “coletivo”, Debord não assume positivamente a categoria da “massa” ou da “multidão”, na qual vê apenas a contraface constitutiva dos indivíduos isolados, solitários (SdS, § 221). Para ele, a verdadeira reivindicação da individualidade apenas pode ser a busca por uma apropriação histórica das condições sociais de existência, que é, ao mesmo tempo, a apropriação das condições da existência histórica da individualidade. Este é o motivo pelo qual, na passagem acima citada, ele expressa um desinteresse pela “estrutura e formação individual do espírito”, afirmando categoricamente que, sob a reificação, “não há ainda indivíduos”. Estes somente seriam possíveis – numa escala social, vale a pena observar – com base numa “dominação coletiva do mundo”. É neste radical afastamento das representações da “interioridade”, da “individualidade”, do “humanismo” e, inseparavelmente, da “massa” e da “multidão solitária” que Debord considera que a assunção da questão surrealista da vraie vie passa necessariamente pela consideração histórica das presentes condições materiais da sociedade. Precisamente no debate que ele trava com Benjamin Péret, no segundo número da revista Internationale Situationniste, aparecem como indissociáveis as questões relativas aos meios tecnomateriais modernos, à consciência histórica da consideração do presente e à validade atual da “expressão artística”. Respondendo à acusação de Péret, segundo a qual os situacionistas quereriam colocar a poesia e a arte sob a “tutela da ciência” – termos que retomam de muito perto aqueles que Breton usou contra Apollinaire e os futuristas –, Debord argumenta que é precisamente este modo de entendimento das questões apresentadas pela I.S. acerca dos novos meios técnicos da
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
113
sociedade moderna que demonstra, em Péret e nos surrealistas, “a incapacidade de compreender os problemas atuais”. Segundo afirma, não se trata de que a ciência e a técnica sejam capazes – como interpreta Péret em seu artigo – de provocar “um novo modo de sentir” ou de engendrar uma “poesia original”, até mesmo porque o problema não diz respeito a um “‘sentir’ passivamente” ou a um “renovar a expressão nela mesma”. Bem distintamente, uma questão mais fundamental está posta, precisamente a da contradição estabelecida, no capitalismo moderno, entre o desenvolvimento das forças produtivas e as superestruturas culturais da sociedade. Antecipando uma compreensão teórica acerca do desenvolvimento e da crise da arte autônoma, que aparecerá em A sociedade do espetáculo, Debord afirma – quanto a essa contradição – que a religião e, sucedendo-a, o “espetáculo artístico” teriam sido “derivativos” paliativos de determinados desejos sociais cuja realização ressentia anteriormente de meios materiais socialmente disponíveis. O que caracterizaria o capitalismo moderno seria precisamente o desenvolvimento de forças produtivas que, estando na base da crise da religião e até mesmo da arte moderna, possibilitariam tanto a produção quanto a realização de novos desejos, de modo que “o movimento de desaparição, facilmente constatável, desses derivativos, vai junto com o desenvolvimento material do mundo, que é preciso compreender no sentido o mais amplo”. 37 Segundo Debord, a não consideração dessa nova situação histórica da experiência artística, das suas condições materiais socialmente estabelecidas e das possibilidades e dos limites aí determinados testemunha, como modo mesmo daquela “incapacidade de compreender os problemas atuais”, em Péret e nos surrealistas, uma concepção prisioneira das “riquezas factícias da memória” e da “conservação das emoções nas expressões artísticas”. No 37. “Le souvenir au-dessous de tout”, em Internationale Situationniste, nº 2, dezembro de 1958, p. 3.
114
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
surrealismo do segundo pós-guerra, Debord chega mesmo a identificar “impotência burguesa” e “nostalgias artísticas”, inseparáveis justamente da “recusa de encarar o uso libertador dos meios técnicos superiores de nosso tempo”. 38 Nestas considerações, Debord se posiciona não apenas com relação à recusa por Breton – em sua reflexão sobre a lírica moderna – d a s técnicas extra-artísticas, mas principalmente com relação à própria concepção que a sustenta. Esta concepção, comprometida com uma determinada visão lírica do mundo, não capacita a segunda geração surrealista a compreender historico-socialmente as novas condições de existência e, nelas, os limites e as possibilidades da própria expressão artística. Segundo entende, as forças produtivas no capitalismo avançado do segundo pós-guerra, pelo seu impacto sobre o modo de vida social, provocam tanto novas condições da experiência social artística quanto uma necessária recolocação da questão surrealista da vraie vie, inseparável, no próprio surrealismo, do programa de “ultrapassagem da arte”. Mas a reflexão sobre esta nova situação somente é possível, segundo julga Debord, sob a condição da superação da concepção lírica do mundo e, em conseqüência, das “profundezas do espírito” e da “expressão”, tais como presentes em Breton. Mais do que uma questão relativa à posição poético-lírica de Breton que, em nome da interioridade subjetiva e da expressão desse mundo interior em face de um mundo social esvaziado de sentido, recusa a exterioridade vazia dos aspectos puramente técnico-formais da poesia, Debord insiste na necessidade de uma reflexão sobre as próprias condições contemporâneas da vida social, como único fundamento de uma retomada do programa surrealista da vraie vie a construir.
38. “Suprême levée des défenseurs du surréalisme à Paris et révélation de leur valeur efective”, em Internationale Situationniste, nº 2, p. 33.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
115
Neste aspecto, a superação do surrealismo se identifica com a que Debord propõe da arte moderna como um todo, num mesmo movimento de reivindicação do significado crítico de sua experiência de “destruição da linguagem”. Ora, “a destruição da linguagem, desde um século de poesia”, segundo diz Debord, “se fez seguindo a tendência romântica, reificada, pequenoburguesa da profundeza [...] postulando que o pensamento inexprimível valia mais que a palavra”. 39 O horizonte surrealista da profondeur é o da poesia moderna como um todo. Por isso mesmo, os elementos críticos da poesia e da arte modernas, os quais o surrealismo radicaliza, são reconhecidos e mobilizados por Debord para uma reflexão de crítica social que, abandonando o horizonte da profundeza e da expressão, busca articular um sentido prospectivo para estas experiências artísticas. Partindo da própria perspectiva dadaísta e surrealista de ultrapassagem da arte, cujo conteúdo ético-existencial é a vraie vie, Debord encontra no que chama de “arte moderna” – sempre valorizada positivamente e situada historicamente em seus textos desde Baudelaire às vanguardas do entreguerras – este mesmo conteúdo crítico da reificação e, nisto mesmo, o recurso à interioridade e às “profundezas do espírito”. Em outras palavras, a superação que ele busca do surrealismo é também a superação do horizonte de toda arte moderna, num mesmo gesto de reivindicação de sua natureza crítica, presente tanto na “destruição da linguagem” quanto em seus temas; e o faz com base no horizonte específico das vanguardas históricas, no qual aquele conteúdo socialmente crítico e o programa de superação da arte se identificam. Ao indicar criticamente a tendência que qualifica de romântica, pequeno-burguesa da profondeur na destruição da linguagem realizada pela arte moderna, Debord considera justamente que “o aspecto progressivo dessa destruição, na 39. “Le sens du dépérissement de l’art”, em Internationalle Situationniste, nº 3, dezembro de 1959, p. 5.
116
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
poesia, na escrita romanesca ou em todas as artes plásticas, é ser, ao mesmo tempo, o testemunho de toda uma época sobre a insuficiência da expressão artística, pseudocomunicação. É ter s i d o a destruição prática d o s instrumentos d e s s a pseudocomunicação, pondo a questão da invenção de instrumentos superiores”. 40 Rigorosamente o mesmo ocorreria com a “desrealização” promovida pelo surrealismo, cujo fundamento – o recurso ao “inconsciente” – é criticado por Debord. Este identifica esta “desrealização” como comum, em graus e estilos distintos, a diversas outras experiências da escrita (Baudelaire, Kafka, Joyce, Proust) e a considera algo fundamental à própria natureza crítica da poesia e da arte modernas. A exemplo de outras diversas passagens do mesmo sentido, Debord – combatendo a opinião de Georges Pérec, segundo o qual a “crise da linguagem”, assumida positivamente pela arte moderna, é uma “recusa do real” – escreve: “Essa ‘recusa do real’, que [Pérec] vê banalmente sob a forma de um artista que recusa a realidade, é, num sentido completamente outro, a recusa do artista pelo real; a radiografia de uma recusa do artista que ‘o real’ fabricado socialmente opõe às tendências da vida real”. 41 Nos anos 30, Georges Bataille já notara, no recurso crítico de Breton à surréalité, uma posição “idealista”, até mesmo “romântica”, de “negação da vida” e do “mundo”. Segundo sua análise, haveria no surrealismo uma “resolução de aceder a uma região perfeitamente estrangeira a esse mundo de pequenas caretas”, da qual resultaria – e nota-se aqui a influência da crítica nietzscheana do “niilismo” ao qual conduzem os “ideais ascéticos” – um “pessimismo mais ou menos sem reserva”. 42 Este auto-exílio do mundo, esta “ascese” a um “mundo superior” demonstrar-se-ia precisamente naquilo que é reivindicado pelos 40. Idem, ibidem. 41. “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 59. 42. G. Bataille, Œuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1970, p. 324 (tratase de uma resenha, publicada em La critique sociale, nº 7, janeiro de 1933, de livros de Breton, Tristan Tzara e Paul Éluard).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
117
surrealistas como medium de mudança da vida: os “modos de expressão”. Centrada na “poesia”, a tentativa de transformação da vida esvaziar-se-ia “de uma parte da significação humana na medida em que ela se desembaraçava de certos elementos que têm ligação imediata com os elementos essenciais da vida”. 43 Este “método” surrealista conduziria a um “impasse” e a uma “ruptura com a vida”, tendência que já estaria presente na poesia francesa desde Mallarmé. Como costumaria ocorrer sempre aos intelectuais burgueses que aderem à revolução, os surrealistas se desviam, desta maneira, das “formas inferiores” próprias às condições materiais de existência e luta do proletariado, dirigindo-se para uma “ordem moral” superior, buscando criar “valores próprios” em oposição aos “valores estabelecidos”. O que resulta deste deslocamento é a imposição de uma “autoridade superior”, instância que lhes aparece sempre “estar situada acima de todas as lastimáveis contingências de sua existência humana, por exemplo, espírito, surreal, absoluto, etc.”. 44 Estas categorias expressam, segundo Bataille, justamente uma “predileção pelos valores superiores ao ‘mundo dos fatos’”. A crítica de Debord ao surrealismo e, por extensão, à toda arte moderna se encontra com a de Bataille precisamente nesta recusa da abstração – em nome do “ideal” – das condições 43. Idem, ibidem. Para Bataille, é próprio à poesia o acesso a um mundo “inteiramente heterogêneo”, contudo ela esteve sempre “à mercê dos grandes sistemas históricos de apropriação”, seu desenvolvimento autônomo conduzindo-a a uma “concepção poética total do mundo”, a uma “homogeneidade estética”. A “irrealidade prática” dos elementos heterogêneos que ela mobiliza são fundamentais para a “duração da heterogeneidade”, mas quando tais elementos são afirmados como uma “realidade superior” em oposição à “realidade inferior vulgar” – como justamente ocorreria no surrealismo – resulta sempre numa ruptura com a realidade; uma ruptura da mesma natureza daquelas que há nas religiões civilizadas, no idealismo e, segundo sua leitura da psicanálise, também nas neuroses. Ela se torna, portanto, “homogeneizadora”; e este seria precisamente o caso do surrealismo. G. Bataille, “La valeurs d’usage de D. A. F. Sade”, Œuvres complètes, t. II, p. 64. 44. G. Bataille, La “vieille taupe” et le préfixe sur dans les mots surhomme et surréaliste. Œuvres complètes, t. II, p. 94, itálicos no original.
118
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
“exteriores”, materiais, de existência. Mas o faz menos por uma reflexão “psicológica”, talvez mesmo “antropólogica” das condições da existência humana, como ocorre em Bataille, e mais por uma reflexão imediatamente histórico-social do capitalismo avançado do segundo pós-guerra.45 A crítica de Debord ao horizonte expressivo , fundado na profundeza, horizonte que ele identifica em toda a arte moderna, até mesmo porque esta crítica se situa noutro momento histórico que a elaborada por Bataille, é menos polêmica com relação à “negação da vida” que, em termos nietzscheanos, este último encontra na “desrealização” do real. Porque se depara com uma experiência artística que, tanto em termos formais quanto temáticos, considera abaixo daquela produzida pela arte moderna do entreguerras, Debord busca valorizar o conteúdo crítico da desrealização e da reivindicação da profundeza presente em sua destruição da linguagem tradicional, mobilizando-o contra o modo de vida dominante no capitalismo espetacular e, ipso facto, contra a experiência estético-cultural que lhe é constitutiva. Em outras palavras, Debord pensa historicamente essas experiências artísticas modernas num procedimento que mobiliza um duplo sentido do “histórico”: tanto considera o significado delas diante de seu tempo e dos problemas ético-existenciais, estéticos e sociais com que se defrontaram quanto pergunta pelo seu significado diante de uma outra época histórica, a do capitalismo desenvolvido d o s e g u n d o p ó s - g u e r r a . É 45. O próprio Bataille nomeia sua reflexão de “psicológica”, num sentido muito próximo do de Nietzsche, mediando-a com a psicanálise e os estudos de antropologia social. Deste modo, o projeto de Bataille parece assumir a ampla perspectiva de uma genealogia (no sentido nietzscheano) dos processos de idealização e de uma interpretação (no sentido psicanalítico) dos processos de simbolização social, tendo como ponto de fuga uma crítica materialista do idealismo, na qual o materialismo é concebido “fundado imediatamente nos fatos psicológicos ou sociais [...] a interpretação direta, excluindo todo idealismo, dos fenômenos brutos” (G. Bataille, “Matérialisme” (Documents, nº 3, junho, 1929), Oeuvres complètes, t. I, p. 180).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
119
precisamente assim que a “desrealização” do real pela arte moderna significa, para ele, a denúncia artístico-poética da recusa, pela sociedade capitalista, das “tendências da vida real”, ou melhor, das tendências para a “vida real” (termo que, em Debord, é sinônimo de vraie vie, por oposição à “negação” ou “falsificação” da vida no capitalismo desenvolvido). São estas tendências que a arte moderna expressou por meio de seu afastamento desse falso real , d e s s e “‘real’ socialmente fabricado”, recorrendo, para tanto, à profundeza do espírito e à expressão refratária à pseudocomunicação. Ora, é no interior dessas tendências históricas, socialmente críticas, da arte moderna – elas mesmas compreendidas criticamente por Debord, pois limitadas em face da experiência social do capitalismo desenvolvido – que o surrealismo passa a se situar em sua análise. Sua reflexão sobre o surrealismo se desenvolve progressivamente numa análise histórica da totalidade das experiências da arte moderna no entreguerras, consideradas como experiências socialmente críticas fundadas nas categorias da profundeza e da expressão. Mas é esta mesma análise que, fundada numa crítica teórica do capitalismo tardio, se mobiliza numa outra perspectiva acerca da linguagem, precisamente a perspectiva da linguagem comunicativa. “É preciso conduzir à sua destruição extrema todas as formas de pseudocomunicação”, diz Debord em 1958, buscando já aí articular uma perspectiva para a retomada da atividade cultural de vanguarda, “para um dia alcançar uma comunicação real direta”. 46 O verdadeiro ponto 46. G. Debord, “Thèses sur la révolution culturelle”, em Internationalle Situationniste nº 1, p. 21. Essa inflexão debordiana, central à totalidade de sua concepção estética e social, é pouco observada pela maioria de seus comentadores, que privilegiam sempre, de modo unilateral, sua crítica da “irracionalidade” do surrealismo e da sociedade espetacular, sem se aterem a este movimento, em sua concepção social e estética da linguagem, para um horizonte comunicativo. Além dos autores já citados (Jappe, Löwy e Subiratis), também este é o caso de Gianfranco Marelli (L’amère victoire du situationnisme, ed. cit.; La dernière Internationale, Les situationnistes. Tr. fr. David Bosc. Paris: Sulliver, 2000) e Mirella Bandini (L’esthétique, le politique: de Cobra à l’Internationale Situationniste, ed. cit.).
120
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
de fuga da crítica debordiana do surrealismo – crítica que se alimenta da própria radicalização extra-estética, por Breton, dos conteúdos socialmente críticos da experiência poética francesa moderna – se constitui precisamente nesta inflexão comunicativa. E se baseia numa teoria da emergência e da crise da arte moderna, inseparável da experiência histórico-social da linguagem. É o que discutem os próximos capítulos.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
121
Capítulo III
Expressão estética e comunicação prática Vagamos num vasto meio, sempre incertos e flutuantes, impulsionados de um extremo a outro. Algum termo em que pensamos nos apegar e nos manter firmes oscila e nos deixa; e se o seguimos, escapa a nossas garras, nos escapole e foge numa fuga eterna. Nada se detém para nós. É o estado que nos é natural e, todavia, o mais contrário à nossa inclinação; queimamos de desejo de encontrar um assento firme, e uma última base constante para aí edificar uma torre que se eleva ao infinito; mas todo nosso alicerce se quebra, e a terra se abre até os abismos. Pascal, Pensamentos
Em A sociedade do espetáculo , D e b o r d c o n c e b e a experiência histórica da cultura moderna estruturada pela divisão e pelo antagonismo entre inovação e tradição, divisão e antagonismo que constituiriam o próprio “princípio de desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas” (SdS, § 181). No capitalismo tardio, esta divisão e este antagonismo se encontram repostos na oposição entre o projeto de ultrapassagem da cultura separada na “história total” e sua manutenção como “objeto morto”; ou ainda, entre “a autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a
122
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
representação ilusória do não vivido” (SdS, § 185). Em outras palavras, as tendências crítico-destrutivas desenvolvidas em toda a experiência da arte moderna, esta mesma situada na esfera à parte em que se constitui a cultura separada, se deparam criticamente com a recomposição no capitalismo espetacular daquilo mesmo de cuja destruição a arte moderna se produziu historicamente. Trata-se, naturalmente, de uma recomposição artificial, pois posta precisamente como reintrodução formal e aparente do arcaico e tradicional nas condições do capitalismo contemporâneo. Contudo, as tendências objetivas imanentes da arte moderna, segundo a reivindicação que delas faz Debord, se posicionam criticamente diante dessa recomposição com base em sua própria experiência de “autodestruição crítica da antiga linguagem comum”, inseparável do próprio “destrutivo” das condições modernas de existência. Ora, o espetáculo consiste também numa linguagem comum, a “linguagem comum da separação” mercantil e, portanto, da não-comunicação. Sob o domínio da instância abstrata do valor econômico, diz Debord, “o que religa os espectadores é apenas uma relação irreversível com o próprio centro que mantém seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas o reúne enquanto separado” (SdS, § 29). É por isso que a manutenção da cultura separada – inerente à manutenção das presentes condições sociais, o que, numa palavra, significa a conservação do caráter semi-histórico da sociedade histórica dividida em classes (na qual a história total é ainda aprisionada no arcaísmo da economia mercantil) – é, ela mesma, a recomposição artificial da antiga linguagem comum destruída criticamente na experiência da arte moderna, destruição crítica, precisamente, que Debord, em sua teoria crítica do espetáculo, opõe à atual experiência social. Ao opor a experiência crítico-destrutiva da arte moderna à recomposição espetacular da linguagem comum, Debord busca articular para a primeira um sentido histórico possível, no qual a dupla recusa da linguagem comum da tradição e da linguagem comum do espetáculo possa fundar a perspectiva de uma outra
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
123
linguagem comunicativa. Estas considerações sobre a experiência da arte moderna – com base no próprio processo histórico de luta entre a tradição e a inovação, entre a antiga linguagem comum e sua autodestruição crítica na e pela arte moderna, luta reposta presentemente entre a recomposição artificial da antiga linguagem comum e a tendência histórica de superação da cultura separada – constituem o próprio núcleo da reflexão, inseparavelmente estética e social, de Debord. Nesta, apresentam-se de modo inseparável uma teoria da arte moderna (e de sua ultrapassagem) e uma teoria crítica da experiência social tardocapitalista. Para uma discussão apropriada desta reflexão dupla, é necessário ter como ponto de partida uma maior explicitação dessa “autodestruição crítica da antiga linguagem comum”.
3.1 O conceito de langage commun Em sua exposição extremamente concisa deste processo histórico, Debord recorre à noção de “comunidade da sociedade do mito”, cuja destruição significaria que a sociedade “deve perder todas as referências de uma linguagem realmente comum” (SdS, § 186). À primeira vista, Debord parece opor-se a esta “perda”, sendo esta oposição o que fundamentaria tanto sua crítica da natureza anticomunicativa da sociedade capitalista contemporânea quanto sua perspectiva de “reencontro” de uma linguagem comum. No entanto, algo de outro acontece. Nesta exposição, Debord considera na verdade dois horizontes: um, retrospectivo, a “comunidade inativa”, a “sociedade do mito”, a “antiga linguagem comum”; outro, prospectivo , “ a r e a l comunidade histórica”. Entre um e outro, como parte mesmo do processo histórico de dissolução/destruição do mundo prémoderno tradicional, realizada pela moderna “sociedade parcialmente histórica”, ele situa de modo altamente positivo a “autodestruição crítica da antiga linguagem comum”, na e pela arte moderna.
124
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Não se trata, pois, de uma decorrência direta entre o fim daquela suposta linguagem comum e a atual experiência anticomunicativa no capitalismo desenvolvido, como sugere a passagem acima citada. A natureza anticomunicativa do capitalismo espetacular se determina, bem distintamente, pelas próprias características da presente experiência social constituída pelo domínio extensivo das relações fetichistas do valor e as alterações na aparência social que daí decorrem. Contudo, ao opor diretamente – num determinado momento de sua exposição – aquela suposta linguagem comum à presente experiência radicalmente anticomunicativa do capitalismo contemporâneo, Debord tem em vista amparar sua perspectiva quanto a uma “nova” linguagem comunicativa, apresentando a atual experiência social como uma passagem, uma experiência transitória. Neste gesto, o conceito de linguagem comum termina por obter um alcance “metafísico”. Ainda que tenha em vista uma experiência histórica concreta, real – a experiência mais universal e constantemente reposta pelo desenvolvimento universal das relações mercantis de destruição das linguagens imersas em tradições –, Debord não a apresenta fáticoempiricamente, de modo imediatamente historiográfico. De fato, é inútil perguntar, quanto à exposição destes parágrafos de A sociedade do espetáculo, quando termina e começa uma e outra dessas experiências sociais da e na linguagem. Ao expor de modo não-historiográfico este processo que é, todavia, histórico, Debord sinaliza precisamente a natureza não-empírica de sua noção de linguagem comum, quando referida retrospectivamente. Todos os parágrafos dos capítulos V e VI de A sociedade do espetáculo demonstram justamente que ele não vê, nas antigas formas comunicativas tradicionais, uma qualquer “linguagem realmente comum” que tenha o mesmo sentido da linguagem comum que, segundo diz, deve ser “reencontrada” (retrouvé, SdS, § 187). Este juízo é reafirmado, no capítulo VIII sobre a cultura, quando ele nomeia a comunidade pré-moderna de “comunidade inativa”, em oposição à vindoura
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
125
“real comunidade histórica”. Fundadas nos mais diversos modos de hierarquias sociais, as sociedades pré-modernas se caracterizam precisamente por formas de separação, alienação, que já seriam, de algum modo, espetaculares. Outrossim, se é lícito falar – na perspectiva debordiana – de algo comum na linguagem ali experienciada, é apenas como persistência da tradição, do passado na organização de sentido no presente, enfim, do presente perpétuo na experiência do tempo cíclico, sendo este justamente o significado da linguagem comum recomposta artificialmente pelo espetáculo. É fundamentalmente esta concepção quanto às sociedades pré-capitalistas que determina que esta linguagem comum, quando apresentada retrospectivamente no contexto da discussão do oitavo capítulo de A sociedade do espetáculo, significando ali uma “linguagem verdadeiramente comum”, não tenha nem possa ter qualquer descrição historiográfica. Em tal contexto, esta categoria só pode mesmo adquirir uma feição “metafísica”: precisamente o mesmo sentido metafísico que encontramos na gleiche Sprache, linguagem igual, comum, presente na Teoria do romance (Lukács), e na Erfahrung, experiência coletiva e comunicável, n’O narrador (Benjamin). Lembre-se que nesse conceito lukacsiano, no qual justamente se baseia o conceito benjaminiano de experiência, encontra-se uma apresentação do passado pré-capitalista (a Grécia) como imagem de um “princípio regulador” para a crítica do presente. Nesta imagem, o idealizado “mundo orgânico”, “homogêneo”, se apresenta, como analisam A. Arato e P. Breines, num necessário e inevitável “nível abstrato”. Segundo estes autores, este nível abstrato justificar-se-ia justamente por uma “dimensão histórica” fundamental ao conceito em questão: a convicção de que “qualquer retorno à suposta ‘idade do ouro’ está totalmente descartada”. 1 A concepção fundamental discutida 1 . A. Arato e P. Breines, El joven Lukács y los orígenes del marxismo ocidental, p. 107.
126
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
na Teoria do romance é apontada em sua conclusão, que é, na verdade, uma abertura: a perspectiva de superação da formaromance (e, centralmente, da “vida problemática” que ele encarna) na promessa do mundo comunitário figurado por Dostoiévsky. Do mesmo modo, O narrador – que, contudo, já se distancia da Teoria do romance, pois o seu ponto de partida é a dissolução da própria comunidade popular russa – quer pensar a experiência, presente no entreguerras, do processo de destruição da linguagem tradicional, situando-o também num movimento de passagem en avant, cujo sentido a ser articulado e perseguido é inseparável da assunção crítica desta própria experiência histórica e de suas novas formas de linguagem, comunicação e escrita. É, p o i s , esta m e s m a natureza metafísica que reencontramos no conceito debordiano de langage commun. Quando Debord situa, retrospectivamente, uma linguagem comum que se desfez historicamente, precisamente como linguagem da “comunidade inativa” (entendida como “comunidade do mito”, em que o passado organiza ainda o sentido da vida presente, donde o seu imobilismo), seu acento é posto, na verdade, prospectivamente, em vista da “real comunidade histórica” (entendida justamente como liberação e realização das potencialidades atualmente presentes de uma “história total”). Em sua face retrospectiva, o conceito de linguagem comum designa criticamente a “comunidade inativa” e, ao mesmo tempo, nomeia idealmente as “referências de uma linguagem realmente comum” agora perdidas. Nestas mediações, o conceito de linguagem comum se apresenta constituído pela superposição de duas camadas, histórica, uma, metafísica, outra, camadas estas inseparáveis na sua natureza histórico-metafísica. Em sua dimensão histórica, a antiga linguagem comum é concebida justamente de modo crítico, pois relacionada à “comunidade inativa”, à “comunidade do mito”. Em sua dimensão metafísica, a “linguagem realmente comum” é suposta e positivamente idealizada , pois apresentada como uma experiência que,
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
127
antecedendo a presente experiência reificada de dissolução dos valores comunicativos, deve ser, num outro conteúdo histórico, “reencontrada” na “real comunidade histórica” a vir. Deve-se, contudo, observar que, assim como no jovem Lukács e em Benjamin, a natureza metafísica do conceito debordiano de linguagem comum não tem qualquer feição a- ou anti-histórica, transcendente, tampouco remete a qualquer representação de uma verdade existencial perdida a ser recuperada. Ao contrário, tem justamente um sentido históricometafísico que, em essência, busca indicar uma passagem, uma transição e uma não-fixidez da experiência histórica presente. Em outras palavras, a concepção debordiana de langage commun não se constitui num terminus a quo transcendente, com base no qual a crítica do presente é feita, mas sim num terminus ad quem negativo-imanente, uma perspectiva nascida da própria reflexão crítica da atual experiência social. Como observa R. Janine Ribeiro, a “vida autêntica”, para Debord, “não existiu antes e, talvez, jamais tenha existido. [...] A vida autêntica está por se fazer. Não é um dado da natureza, nem algo que se perdeu. Tudo está por ser conquistado”. 2 Em sua face essencialmente prospectiva, portanto, o conceito de langage commun recoloca o problema do “mais além deste mundo” (Lukács) no nível abstrato de uma filosofia da história (como diriam A. Arato e P. Breines acerca da Teoria do romance), ainda que no interior de um pensamento extremamente crítico das concepções idealistas que marcaram esta disciplina filosófica e de toda a filosofia, simplesmente; apresenta, portanto, um mais além deste mundo presente concebido de modo negativo-imanente com base em suas próprias contradições. Sem dúvida, pode-se encontrar uma radical diferença de sensibilidade entre aqueles conceitos lukacsiano e benjaminiano, fortemente influenciados pela oposição entre comunidade 2 . R. J. Ribeiro, “Feitiçarias do capital”, Folha de São Paulo, 17 de agosto de 1997.
128
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
(Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft) presente na sociologia alemã do início do século passado, e o conceito debordiano de linguagem comum. Aqueles primeiros guardam talvez um certo tom nostálgico, embora não passadista, tom que é completamente ausente em Debord quando este concebe, de modo bem crítico, a comunidade pré-moderna como comunidade inativa, até mesmo identificando o espetáculo, em sua natureza arcaica, a uma recomposição artificial daquela linguagem comum. Precisamente invertendo – e não, repondo, como acredita Löwy – aquela oposição entre Gemeinschaft e Gesellschaft, estabelecida por F. Tönnies e retomada de modos distintos por outros autores (inclusive pelo Lukács de História e consciência de classe), Debord diz que o capitalismo contemporâneo é uma “sociedade sem comunidade e sem luxo” (SdS, § 154). Neste juízo, ele busca apontar prospectivamente a “real comunidade histórica”, partindo da sociedade (semi)histórica do presente e, portanto, da positiva assunção da dissolução da comunidade précapitalista. Sob o termo de “real comunidade histórica”, Debord retoma na verdade o projeto da sociedade sem classes, compreendido já pelo Marx dos Manuscritos não como “relação genérica imediata, natural”, mas precisamente como “existência humana social”, cujos pressupostos são historicamente produzidos. Nem mesmo as communautés gregas e italianas, que aparecem tão positivamente em A sociedade do espetáculo, tampouco as comunidades pré-capitalistas tradicionais, “naturais”, fundam a reivindicação por Debord da real comunidade histórica, mas a perspectiva comunista da sociedade sem classes, novamente nomeada de comunidade pois pensada – em virtude da centralidade que a linguagem ocupa em sua reflexão – sob o horizonte de uma linguagem comum, uma “nova comunicação”. No que pesem as diferenças acima apontadas, a aproximação do conceito debordiano de linguagem comum d a q u e l e s d e gleiche Sprache e d e Erfahrung tem aqui importância, para além desta sua natureza prospectiva, mas dela
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
129
inseparável, em virtude da centralidade que o recurso metafísico nele ensaiado dá à linguagem e, portanto, à própria experiência histórica. Não se constitui num recurso nem à natureza, como em Rousseau, nem à interioridade subjetiva, como em Breton. Antes, constitui-se numa referência estrita à história, a uma matéria histórica, ainda que não de modo historiográfico. Precisamente neste recurso de natureza metafísica, demarca já uma renúncia a assumir – do ponto de vista histórico, real – qualquer herança ou pertença à tradição, pois, logo de entrada, a linguagem sobre a qual reflete é marcada pela ruptura, pela quebra, pela não-unicidade, pela não-transmissão. Como linguagem histórica, social, ela é pensada numa recusa de qualquer idéia de autenticidade metafísica, mesmo quando esta diz respeito à linguagem. Tampouco traduz uma concepção “teleológica” ou uma retomada de um movimento “triádico” da história, como crê A. Jappe; a feição “triádica” e “teleológica” aparece apenas como recurso metafísico (a antiga linguagem comum como suposta experiência que, noutro conteúdo, deve ser “reencontrada”), portanto, não na consideração e reivindicação propriamente históricas da antiga experiência social da linguagem (isto é, como a linguagem da “comunidade inativa”). “Perdendo a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem realmente comum, até o momento em que a cisão da comunidade inativa pode ser superada pelo acesso à real comunidade histórica”, diz justamente assim Debord (SdS, § 186). Ao referirse retrospectivamente à antiga “linguagem realmente comum”, como a algo que a sociedade, ao sair do “mito”, “deve perder”, ao mesmo tempo em que nomeia esta mesma experiência social anterior de “comunidade inativa”, Debord se coloca num campo de reflexão centrado na linguagem que pensa idealmente aquela primeira como ausência definitiva e irrecuperável e, históricofaticamente, c o m o a l g o a s e r n e g a d o , s e j a n u m o l h a r retrospectivo que valoriza positivamente sua autodestruição
130
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
crítica na e pela arte moderna, seja na denúncia de sua recomposição artificial no e pelo capitalismo contemporâneo. Em outras palavras, Debord concebe criticamente a existência histórica de uma linguagem comum nas sociedades précapitalistas, entendida como linguagem comum da tradição, portanto, como expressão das “forças que freiam o movimento” (SdS, § 141), como domínio do passado sobre o presente ou, se se quiser, como linguagem arcaica. Esta linguagem está “perdida” também no sentido de que é irretornável. Contudo, ela não foi de nenhum modo uma linguagem comum no mesmo sentido da “real comunidade histórica” que deve ser construída; logo, nada desta “real comunidade histórica”, desta nova linguagem comum foi de fato “perdida”, pelo simples fato de que nunca existiu. Debord, portanto, nomeia duas experiências históricas bem diversas – a “comunidade inativa” pré-capitalista e a “real comunidade histórica” comunista a vir – sob o mesmo signo da linguagem comum, num jogo metafísico de idealização retrospectiva das “referências de uma linguagem realmente comum” das sociedades pré-modernas, que “deve” ser perdida, e de aposta num reencontro com uma linguagem comum histórica (jamais efetivamente havida). Esta idealização metafísica, num momento, e esta crítica histórica, noutro, constituem o que antes foi chamado de uma superposição de duas camadas – histórica e metafísica – do conceito debordiano de linguagem comum. Apenas se admitida a existência dessas duas camadas torna-se compreensível por que as considerações negativas acerca da comunidade prémoderna (“inativa”, “do mito” etc.) podem se coadunar com as considerações idealmente positivas destas mesmas experiências comunitárias, nas quais teriam havido “referências de uma linguagem realmente comum”. Contudo, mesmo neste nível metafísico da exposição de Debord, a proposição de que uma linguagem comum deve ser “reencontrada” não diz respeito àquela linguagem comum da sociedade pré-moderna, mas sim, à linguagem comum da “real comunidade histórica”. O que aí se
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
131
demonstra é, como já observado, uma reflexão histórica centrada na experiência social da linguagem e elevada a um plano metafísico, procedimento que busca precisamente indicar a natureza transitória do presente e um sentido transitivo da atual experiência reificada da linguagem social. Nomeando de outro modo a natureza metafísica do conceito debordiano de langage commun, G. Agamben considera que Debord tem fundamentalmente em vista, em toda a sua teoria crítica do capitalismo contemporâneo, “o ser lingüístico do homem [...] a natureza lingüística ou comunicativa do homem [...] aquele logos no qual um fragmento de Heráclito identifica o Comum”. 3 É neste contexto que ele propõe de modo não polêmico a expressão (mas não a concepção) feuerbachiana de Gattungswesen , “essência-gênero”, para a determinação “lingüística” do homem, conforme a pensa e tematiza Debord. Sem tirar todas as conseqüências desta sugestão de Agamben, mas assumindo-a de modo polêmico (sem citá-lo), A. Jappe conclui que, em Debord, há uma compreensão da alienação que reapresenta de modo imediato a própria concepção feuerbachiana de Gattungswesen, daí sua consideração crítica que a posição debordiana quanto à reificação “supõe, evidentemente, a existência de uma ‘essência humana’ que possa servir de parâmetro para determinar o que é ‘são’ e o que é ‘alienado’”. E, nisto mesmo, diz ele, “atinge-se um limite evidente da teoria de Debord”. 4 3 . G. Agamben, “Glosse in margine ai Commentari sulla società dello spettacolo”, loc. cit., p. 67. Como prefácio à edição italiana dos Comentários, esta análise de Agamben tem importância do ponto de vista da compreensão que o próprio Debord tinha de sua obra: que eu saiba, esta foi uma situação única de edição, enquanto ele estava vivo, de uma obra sua prefaciada por outro autor, com sua autorização. 4 . A. Jappe, Guy Debord, pp. 51 e 57. Que a concepção crítica da reificação e da alienação – conforme o juízo dedutivo de Jappe – deva supor, “evidentemente”, uma “natureza humana”, apenas demonstra uma completa e radical ausência de qualquer compreensão histórico-dialética neste autor. Em Marx, como em Debord, não se trata de fazer uma crítica da alienação em nome de uma antropologia positiva, de uma natureza humana “sã”, mas
132
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Na análise d e A g a m b e n , c o n t u d o , a expressão Gattungswesen, mesmo quando reiterada pelas expressões de essere linguistico e natura linguistica, não constitui – como tampouco, em Debord, a concepção da reificação, da alienação e , n e l a , d o langage commun – qualquer determinação somente tomando por base o caráter historicamente contraditório de uma forma social de produção material da vida na qual os indivíduos, em suas relações genéricas, se produzem e se afirmam no modo da autonegação, da auto-alienação (ou auto-estranhamento, Selbstentfremdung). Não se trata, neste enfoque teórico, de uma negação exterior do que em positivo os indivíduos teriam sido historicamente antes dessas mesmas relações sociais ou do que supostamente são transcendentemente fora dessas relações, mas justamente da autonegação do que eles efetivamente são, porque assim se fazem, nas próprias relações sociais por eles mesmos produzidas. A rigor é esta mesma ausência de pensamento dialético que se manifesta na adesão de Jappe à tese de Robert Kurz e do grupo Krisis (agora também Exit!) quanto à existência de dois Marx (um, o da crítica da economia política, outro, o da luta de classes), tese que ele aplica a Debord: “A insistência [de Debord] na ‘luta de classes’ desconhece, entretanto, a natureza das classes criadas pelo movimento do valor e que só têm sentido em seu interior. Proletariado e burguesia só podem ser os instrumentos vivos do capital variável e do capital fixo; são os comparsas e não os diretores da vida econômica e social. Seus conflitos, isto é, suas ‘lutas de classes’, passam necessariamente pela mediação de uma forma abstrata e igual para todos – dinheiro, mercadoria. Desde então, tratava-se apenas de lutas de distribuição no interior de um sistema que ninguém punha seriamente em dúvida. [...] Quando acredita que é possível, nas condições atuais, a existência de um sujeito por sua própria natureza ‘fora’ do espetáculo, Debord parece esquecer o que ele mesmo declarou sobre o caráter inconsciente da economia mercantil, e o esquece novamente quando identifica esse sujeito ao proletariado” (A. Jappe, Guy Debord, pp. 58-59). Neste juízo, encontram-se na verdade uma incompreensão e um erro. O erro diz respeito à primária confusão conceitual entre as categorias capital variável e capital fixo, categorias que não constituem um par na teoria crítica do valor de Marx e que cumprem funções específicas e diferentes nas análises marxianas sobre as tendências da economia capitalista. Mais grave, contudo, é a incompreensão quanto às relações sociais capital e trabalho: para Jappe, elas se resumem à “forma abstrata e igual para todos – dinheiro, mercadoria”: em outras palavras, à esfera aparente da circulação de que nos fala explicitamente Marx. Ocorre que se se desenvolve uma relação entre iguais nesta esfera aparente, conforme o princípio de equivalência da mercadoria e do dinheiro, sua verdade não é, contudo, esta troca de iguais, mas sim, conforme expõe Marx, a produção capitalista de valor na qual se desenvolve a não-equivalência (a mais-valia, fonte do lucro capitalista). Em outras palavras, a verdade da identidade é a contradição. Que Jappe, Kurz e seus amigos não vejam isso, é porque lhes
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
133
antropológica, naturalista e não-histórica, como ocorre em Feuerbach. Quando Debord diz que “a comunidade [...] é a verdadeira natureza social do homem, a natureza humana”, 5 ao contrário de uma reposição da concepção feuerbachiana de “natureza humana”, ele reafirma a distinção de Marx frente a Feuerbach, distinção já presente embora de modo não-polêmico nos Manuscritos de 1844, dos quais justamente ele retoma estes termos. Para Debord, a comunidade é a “natureza social” do homem precisamente porque o homem é social e a real comunidade histórica a vir não é a (re)instauração de nenhuma vida comunitária “natural”, coisa já observada por Marx nos Manuscritos. “Nós pensamos, como Marx”, diz Debord, numa polêmica com Castoriadis, “que ‘a história inteira é somente a transformação progressiva da natureza humana’”. 6 Com base na reflexão de Debord, a requerida linguagem comum – que, em sua dimensão prospectiva, deve ser, de fato, encontrada e não “reencontrada” – só pode ser pensada justamente como terminus ad quem, como referência fundada na crítica da própria existência presente. Neste contexto, é sugestiva a alusão de Agamben a Heráclito; este falava do lógos, tomado aqui no sentido de linguagem, como o “comum” (ksynós, fr. 2), do qual os homens estão, contudo, “separados”, “descompassados” (aksýnetoi, fr. 1). É esta categoria de falta justamente o pensamento da contradição, a mesma falta que leva o primeiro a representar a teoria da alienação como “evidentemente” fundada numa “natureza humana sã”. Para uma crítica mais completa desta posição de Jappe, ver minhas “Anotações sobre A Sociedade do Espetáculo: apresentação de uma edição pirata” (prefácio a G. Debord, A sociedade do espetáculo, Belo Horizonte, Coletivo Acrático Proposta, 2003; on line em www.rizoma.net/interna.php?id=133&secao=potlatch); para uma crítica mais ampla das posições do grupo Krisis, ver Ilana Amaral, “Crítica ao ‘Manifesto contra o trabalho’” (revista contra-a-corrente, Fortaleza, CE, nº 9, setdez/99; on line em www2.autistici.org/contraacorrente/). 5 . G. Debord, “Le déclin et la chute de l’économie spectaculaire-marchande”, em Internationale Situationniste, nº 10, março de 1966, p. 11, itálicos no original. 6 . “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 79, itálicos no original.
134
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
“separação”, determinada pela reificação mercantil, separação com relação à própria experiência social genérica da linguagem comunicativa, somente agora possibilitada graças à destruição da “antiga linguagem comum”, que Agamben busca ressaltar e apontar como centro da crítica debordiana do espetáculo. Em outras palavras, a expropriação da potencialidade da linguagem comunicativa, nas condições do capitalismo contemporâneo, deve-se a que esta mesma potencialidade foi historicamente constituída pelas presentes condições históricas reificadas e, portanto, pela liberação social da linguagem do estranhamento tradicional essencial à antiga linguagem comum. Precisamente aí, o filósofo italiano determina a natureza histórica da reflexão de Debord sobre a linguagem, ao encontrar nela a tematização de uma permanência do estranhamento, contudo diferenciado, nas sociedades hierárquicas anteriores e na atual sociedade fundada no fetichismo mercantil. “Enquanto, de fato, no velho regime”, diz Agamben, “o estranhamento da essência comunicativa do homem se substanciava num pressuposto que fazia a função de fundamento comum, na sociedade espetacular é esta própria comunicatividade, esta própria essência genérica (isto é, a linguagem como Gattungswesen) que vem separada numa esfera autônoma. O que impede a comunicação é a própria comunicabilidade, os homens são separados pelo que os une”. 7 É sempre e fundamentalmente a experiência históricosocial na linguagem que aparece no conceito de langage commun em Debord, seja a “linguagem comum da inação social”, nas sociedades pré-modernas, seja a “linguagem comum da separação”, no capitalismo espetacular. Neste sentido é que, como faz Agamben, é lícito falar de uma tematização, por Debord, da “natureza” lingüística, do “ser” lingüístico do homem. Longe de pensar a linguagem como uma instância autonomizada no interior da vida social, como uma categoria filosófico-histórica abstrata que percorre as mais diversas formas de sociabilidade, 7 . G. Agamben, “Glosse in margine ai Commentari sulla società dello spettacolo”, p. 69.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
135
Debord a posiciona como uma determinação fundamental à sua reflexão social crítica do presente – e, assim, ele se permite uma dupla consideração retrospectiva – porque conclui, da experiência social contemporânea, a perspectiva da “comunidade realmente histórica”.
3.2 Arte moderna e aspiração a uma nova comunidade Neste âmbito de reflexão, Debord pensa a experiência artística como componente do mesmo processo histórico de dissolução da “antiga linguagem comum”. Este procedimento, na medida em que articula um sentido histórico da própria experiência artística moderna, tem importância decisiva para a natureza antes de tudo prospectiva do seu conceito de linguagem comum. Ao pensar esta experiência artística como parte integrante da experiência social da linguagem, parte na qual esta mesma experiência social foi assumida criticamente, Debord articula um sentido social prospectivo para a experiência histórica da arte moderna, inseparável da superação revolucionária das presentes condições de existência. Nesta juntura entre a experiência histórica da linguagem e a experiência artística moderna, Debord pensa uma teoria tanto da constituição histórica quanto da crise da arte autônoma, independente. Resumidamente, ele assim a apresenta: a experiência estética que, antes, se punha como “linguagem comum da inação social”, inseparável do “universo religioso” nas sociedades pré-modernas, se constitui, através da dissolução da antiga linguagem comum, em “arte independente no sentido moderno”, quando “sua afirmação independente é o começo de sua dissolução” (SdS, § 186). Nesta formulação, não há também qualquer descrição histórica, embora aponte para um movimento de constituição histórica do estatuto moderno da arte, como experiência estética apartada, separada de um todo social interligado; em suma, como experiência distinta daquela antiga
136
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
pertença imediata dos fenômenos estéticos a uma totalidade comunitária fechada, na qual se faziam constitutivos das ali inseparáveis atividades de trabalho e culto, nascimento e morte, guerra e paz. Esta formulação não é, certamente, inteiramente nova. Ao contrário, compõe um certo patrimônio comum da reflexão materialista sobre o modernismo. Justamente em seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin esboça algo semelhante, ao buscar pensar o declínio da aura da obra de arte, constitutiva de sua “inserção na tradição” e de sua “função ritualística”, como parte de uma afirmação crescente do “valor de exposição”, até o ponto em que a sua própria natureza artística – é esta sua tese estética principal – “talvez se revele mais tarde como secundária”. 8 Nas condições da reprodutibilidade técnica, inseparáveis da crise da experiência comunicativa prémoderna, diz Benjamin, “a arte perdeu sua autonomia”, o que implica, ao mesmo tempo, sua “refuncionalização”. 9 Nestas considerações, nas quais busca pensar o sentido histórico de determinadas experiências modernas, até mesmo as de vanguarda, Benjamin apresenta tanto uma teoria da constituição da arte autônoma, em seu sentido moderno, com base numa superação histórica de sua categoria cultual-ritualística (valor de culto), quanto uma reflexão da crise da própria experiência artística nas condições do capitalismo do entreguerras, na qual a “autonomia” da arte, determinante de seu estatuto enquanto arte no sentido moderno, é abalada com o declínio da aura que havia se conservado, sob a determinação do “culto à beleza”, mesmo na arte autônoma. Em traços gerais, este movimento se reproduz na reflexão de Debord. Também para ele, a arte independente se constitui historicamente de sua emergência do antigo universo mítico8 . W. Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica [1935/ 36]. Obras escolhidas, t. I. Tr. br. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 173. 9 . Idem, p. 176.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
137
religioso, como saída de uma linguagem comum tradicional; é precisamente este processo que, ao apartá-la do universo integrado da comunidade pré-capitalista, no qual um sentido transmitido está conservado, a constitui enquanto “arte independente” e, nisto mesmo, o começo de sua dissolução como arte, simplesmente. O que propriamente a constitui enquanto arte moderna autônoma é a sua assunção da crise – pondo-se a si mesma como o lugar da “autodestruição crítica” – da experiência e da linguagem comuns da tradição. Liberada para sua autonomia, pela destruição de seu antigo ethos histórico, a arte moderna se constitui enquanto tal ao se colocar como uma experiência na qual aquela destruição é assumida, segundo Debord, “criticamente”. Trata-se, com efeito, na arte moderna, de uma “autodestruição crítica da antiga linguagem comum”. 10 Todo o seu movimento é o da tematização e da experimentação consciente e significativa desta destruição da linguagem, movimento pelo qual sua própria existência se faz inseparável desta experiência histórico-social mais geral. Em Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité du temps, Debord considera justamente que “a libertação da vida cotidiana [...] passa pelo deperecimento das formas alienadas da
10. Contudo, a destruição crítica e consciente da linguagem comum da tradição ocorreu não apenas na arte moderna. A experiência artística realizou, em seu próprio âmbito, o mesmo processo histórico que a filosofia, a partir de Hegel, teria realizado: a “destruição de Deus”, tal como Debord expressa em termos nietzscheanos. É por isso que, quanto à arte, também se trata, para Debord, como para o jovem Marx quanto à filosofia, de uma “superação” que é inseparável de sua “realização”. Arte e filosofia experimentaram, em seus âmbitos, o fenômeno da proletarização da linguagem, da invasão da linguagem pela história, conforme aconteceu com o conjunto das condições de existência da sociedade. A destruição consciente e crítica, na arte e na filosofia, da antiga linguagem comum encontra-se com a posição revolucionária que o proletariado – conforme suas condições de vida no capitalismo – pode afirmar diante da sociedade de classes, segundo lhe atribuem Marx e Engels: suas condições de vida são o resultado tanto da destruição das sociedades pré-capitalistas quanto
138
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
comunicação”. 11 Esta experiência foi tematizada e efetivada pela arte moderna. Ao compreendê-la nesta articulação histórica com a experiência social da própria linguagem, e tendo em vista, criticamente, a natureza anticomunicativa do capitalismo contemporâneo, Debord busca justamente propor um sentido histórico prospectivo para essa experiência, sentido no qual a feição crítica da destruição da linguagem na e pela arte moderna é conservada. “O fato de que a linguagem da comunicação se perdeu, eis o que exprime positivamente o movimento de decomposição moderna de toda arte, sua aniquilação formal. O que este movimento exprime negativamente é o fato de que uma linguagem comum deve ser reencontrada” (SdS, § 187).12 Em sua concepção, toda a arte moderna foi – como modo consciente de uso da linguagem inserido na experiência histórica mais ampla de destruição da antiga linguagem comum – a manifestação positiva desta mesma destruição, que ela afirmou e requereu. Igualmente assim ela se fez arte independente, retirando-se do antigo universo religioso, destruindo-se criticamente a si mesma como arte pertencente àquele universo, constituindo deste modo sua própria independência formal num processo inseparável da destruição social da antiga linguagem comum. Contudo, na medida em que faz de si mesma o locus de uma destruição consciente, a arte moderna inscreve um sentido a este seu fazer-se, sentido que assinala en négatif a busca de uma outra, não alienada, linguagem comum. É na natureza negativa, crítica, da destruição da linguagem, em e pela arte moderna – destruição esta que é componente da natureza destrutiva da sociedade capitalista , mas também da posição do próprio desenvolvimento capitalista; por isso, seu ser de classe não se identifica com nenhuma forma anterior de sociedade, só podendo identificar-se com a destruição da presente sociedade de classes (cf. Manifesto do partido comunista [1848]. Moscou: Edições Progresso, 1987, especialmente o 1º capítulo “Burgueses e proletários”, pp. 43-44). 11. G. Debord, Œuvres cinématographiques complètes, p. 35. 12. Insista-se, Debord fala de uma linguagem comum a ser reencontrada, não da anterior linguagem comum a ser reencontrada.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
139
crítica da arte moderna em face desta forma de sociabilidade, caracterizada pela pseudocomunicação – que Debord encontra a perspectiva de uma outra e radicalmente diferente linguagem comum, e não na suposta antiga linguagem comum das comunidades pré-capitalistas ou no pressuposto positivo de uma essência humana. Retomando esta análise de Debord, V. Kaufmann considera que, em toda a experiência poética moderna, dos românticos alemães ao surrealismo, atravessa uma “exigência comunitária”. Mormente nas vanguardas, esta exigência medir-se-ia pelo projeto mallarmeano do “Livro total”, “enquanto ele representa o fim do livro, em todos os sentidos do termo”. 13 Seria justamente este o conteúdo último da crítica vanguardista da arte: “No horizonte de sua ultrapassagem ou de sua realização, na origem e no fim do sonho comunitário ou ‘comunista’ que a anima no curso deste século, há não a ação política no sentido tradicional do termo, mas o Livro. Há a vontade de um acabamento da arte numa totalidade onde esta seria feita não apenas para todos, mas também por todos”. 14 Para Debord, esta exigência comunitária de que fala Kaufmann ter-se-ia posto sob a forma negativa da destruição de toda linguagem pseudocomunicativa. Neste gesto se teriam mantido inseparáveis a destruição consciente da linguagem tradicional e a denúncia desta mesma destruição quando realizada pelo modo de vida dominante na sociedade moderna, no modo de sua banalização e de sua redução ao intercâmbio alienado e à pseudocomunicação. É aqui certamente que Debord se encontra com Mallarmé e sua crítica da redução da linguagem a uma “moeda”, mas também com Breton e sua recusa de que as palavras sejam tratadas como “pequenos auxiliares”. Que a arte moderna tenha experimentado ao limite o auto-exílio da ling uagem e da 13. V. Kaufmann, Poétique des groupes littéraires, p. 11. 14. Idem, p. 12.
140
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
comunicação alienadas, que – com Mallarmé e Joyce, mas também com o dadaísmo e o surrealismo – ela tenha experimentado até mesmo a “ilegibilidade”, é porque, segundo Kaufmann, “não se intercambiando, ela escapa precisamente à lei de troca”. 15 Por isso mesmo, Kaufmann sugere que a proposição debordiana da linguagem comum se constitui na transposição em termos histórico-sociais da proposição metafísico-comunicativa que Mallarmé nomeou de língua suprema, precisamente quando – e assim ele é interpretado, junto com toda a poesia moderna, por Debord – buscou distanciar-se poeticamente da linguagem cotidiana, reificada. Segundo a análise de Debord, a arte moderna “chegava sempre muito tarde, falando a outros do que foi vivido sem diálogo real e admitindo esta deficiência da vida” (SdS, § 186). Deste modo exatamente, a arte independente representou poético-artisticamente uma “comunidade do diálogo e o jogo com o tempo”. A representação – logo, a ausência, a substituição e a não-comunicação – de um diálogo inexistente, sob a forma da expressão da lembrança do que foi vivido sem comunidade e da recusa da comunicação alienada é o que, na arte moderna, inscreve a necessidade da comunidade e da comunicação. Lembro que, na Teoria do romance, Lukács diz que a linguagem monológica – esta que Debord considera positivamente como essencial à toda arte moderna – é “o tormento da criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade”. 16 Para Debord, é precisamente esta inscrição em negativo de uma busca pela comunidade e pela comunicação que se impôs, na arte moderna, como necessidade crítica de “falar a outros”, necessidade fundada numa profunda consciência de que este gesto expressa e denuncia uma “deficiência da vida”.
15. V. Kaufmann, Guy Debord, la révolution au service de la poésie. Paris: Fayard, 2001, p. 223. 16. G. Lukács, Teoria do romance, p. 43.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
141
Para uma melhor determinação desta perspectiva comunicativa que Debord elabora para a experiência expressiva da arte moderna, diante das características anticomunicativas do capitalismo mais desenvolvido, pode-se retornar àquela aproximação ensaiada, no início do segundo capítulo, entre Adorno e Breton. Nestes autores, a oposição ético-estética entre expressão e comunicação (em Adorno, entre Ausdruck e Kommunikation) tem precisamente o significado de uma posição negativa diante da “comunicação” reificada na sociedade de mercado, da qual a expressão se constitui numa denúncia (essencialmente integrante do conteúdo crítico e éticoexistencial da arte moderna). Breton constrói esta crítica da linguagem reificada com base numa noção de interioridade subjetiva, horizonte lírico cuja natureza abstrata e não mediada historico-socialmente em termos teóricos incapacita o surrealismo a uma reorientação de perspectiva, mesmo quando tal reorientação se torna necessária – segundo julga Debord – diante da experiência tardocapitalista de destruição de todos os valores comunicativos, quando o próprio sistema se torna “neodadaísta”. De modo semelhante, Adorno estrutura toda a sua perspectiva estética – que ocupa um importante lugar em sua crítica social do capitalismo tardio 17 – na oposição entre Ausdruck e Kommunikation, mesmo numa situação em que ele próprio reconhece a crise da categoria estética da expressão nas experiências das “neovanguardas”. Contudo, ele a reafirma porque permanece teoricamente comprometido com a “forma autônoma da arte”, tal como teria sido, segundo sua análise, experienciada pela arte moderna no entreguerras, buscando 17. Conforme Rodrigo Duarte, a expressão comparece na filosofia de Adorno não apenas como uma categoria estética, mas até mesmo como, simultaneamente, fundamento e linguagem/terminologia da filosofia: neste âmibito, “o radical sofrimento humano, conteúdo da expressão, torna-se através dela [da expressão] uma poderosa arma para o alcançamento da verdade” (R. Duarte, “Expressão como fundamentação”, em Kriterion, nº 91. Belo Horizonte: Departamento de Filosofia/FAFICH/UFMG, janeirojulho/1995, p. 56).
142
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
acentuar nesta experiência o caráter crítico da autonomia da arte em face da heteronomia dominante no capitalismo tardio. Ao contrário de ambos, Debord busca superar esta oposição, n ã o o p t a n d o , c o n t u d o , p e l a “ c o m u n i c a ç ã o ” (Kommunikation) contra a “expressão” (Ausdruck), mas concebendo a possibilidade de uma “comunicação direta” (e esta é uma essencial diferença conceitual que a tradução alemã de A sociedade do espetáculo indica sob o termo “direkte Mitteilung”). 1 8 C o m o Mitteilung , “comunicação”, “ato de partilhar”, “de dividir com”, a comunicação direta concebida por Debord tem o exato sentido contrário da Kommunikation criticada por Breton, Adorno e por ele próprio. Porém ele vai além de uma afirmação ético-existencial da Ausdruck (Adorno) ou da expression (Breton) contra a comunicação reificada das atuais relações sociais. Não desprezando ou contornando, mas precisamente tomando como fundamento o sentido éticoexistencial desta oposição, tal como experienciada na e pela arte moderna e tal como concebida teoricamente por Breton e Adorno, Debord busca ultrapassá-la dialeticamente, numa perspectiva comunicativa. Contudo, sua posição comunicativa se diferencia também da ultrapassagem pretendida por J. Habermas da concepção expressiva de Adorno. Antes de tudo, não se trata, para Debord, de distinguir fenomenologicamente, como o faz Habermas, mundo de vida e mundo sistêmico, mas, ao contrário, de indicar num procedimento dialético que a lógica reificada da forma18. G. Debord, Die Gesellschaft des Spektakels. Übersetzung aus dem französischen von J.-J. Raspaud. Hamburg: Edition Nautilus, 1978. Nesta tradução feita com o acompanhamento do próprio Debord, Raspaud traduz “moyens de communication de masse” (meios de comunicação de massas) por “Massenkommunikationsmittel”, opção que ele mantém sempre que o termo francês “communication” refere-se, em A sociedade do espetáculo, à “comunicação” reificada do sistema; e de “Mitteilung” para as ocorrências em que “communication” tem ali uma valoração positiva, isto é, como comunicação livre, portanto, negativa em face das relações reificadas da sociedade de mercado.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
143
mercadoria e do trabalho assalariado organiza a inteira vida cotidiana; em outras palavras, o chamado mundo de vida, categoria com a qual Habermas pensa a vida cotidiana, é de pronto determinado pelo mundo sistêmico das relações econômicas fetichistas. Em conseqüência, não se trata para Debord de tomar a comunicação cotidiana, como existente na presente sociedade alienada, como base de uma perspectiva social comunicativa, tal como pretende Habermas, que se refere a uma “racionalização da comunicação cotidiana, ligada às estruturas intersubjetivas do mundo da vida, para a qual a linguagem representa o meio genuíno e insubstituível de entendimento”. 19 Para Debord, a presente comunicação cotidiana, em todos os seus níveis possíveis de “racionalização”, é constituída pela mediação autônoma das relações mercantis, sendo, portanto, uma “pseudocomunicação”. Numa perspectiva adorniana, com razão R. Duarte diz, contra a posição de Habermas, que “se nenhum dos participantes de uma ação mediada pela linguagem está imbuído dessa negatividade tão essencial à filosofia, a ‘comunicação’ entre eles raramente ultrapassará o nível fático, no qual operam as instâncias ideológicas do mundo administrado”. Neste sentido, uma “‘ação comunicativa’ só se efetiva de fato a partir do momento em que ela está apta a incorporar plenamente uma negatividade radical com relação ao atual estado de coisas”. 20 É precisamente por satisfazer esta exigência, tomando-a como pressuposto, que a perspectiva comunicativa de Debord pode ser entendida como uma ultrapassagem dialética da posição adorniana, incorporando-a. Ao invés de simplesmente contornála, abandonando-a em favor de uma perspectiva comunicativa
19. J. Habermas, Teoría de la acción comunicativa, I. Tr. esp. M. J. Redondo. Madrid: Taurus, 1987, especialmente o tópico IV “De Lukács a Adorno: La racionalización como coisificación”, p. 437. 20. R. Duarte, “Expressão como fundamentação”, em Kriterion, nº 91, janeirojulho/1995, Departamento de Filosofia FFCH/UFMG, p. 63.
144
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
acrítica, como parece ser o caso de Habermas, Debord incorpora a negatividade existente na oposição entre a expressão e a comunicação reificada, tal como esta oposição foi constituída pela arte moderna e tematizada por Adorno. Em face da natureza essencialmente anticomunicativa do capitalismo contemporâneo, no qual a estética expressiva já não teria inteira a potencialidade negativa que possuíra no entreguerras, Debord se posiciona por uma perspectiva comunicativa como projeto social de superação do Estado e do mercado. Também neste aspecto se impõe uma radical diferença com a teoria comunicativa que Habermas iria articular alguns anos depois: não se trata, para Debord, de buscar uma fundamentação transcendental para a práxis comunicativa, mas sim de pensá-la fundada única e exclusivamente na práxis negativa em face do sistema único de alienações do mercado e do Estado, negatividade esta que a expressão poética moderna e as revoluções proletárias derrotadas, notadamente em suas experiências conselhistas e assembleárias, isto é, anti-hierárquicas, teriam indicado. É somente porque reivindica esta negatividade imanente à experiência da arte moderna que, para Debord , o programa da superação da arte, buscada pelas vanguardas do início do século, significa nas condições do capitalismo espetacular o programa da passagem da estética expressiva à práxis revolucionária comunicativa. Em outras palavras, a revolução proletária far-se-á herdeira da arte moderna, ao realizar positivamente o programa comunicativo que, em negativo, é imanente a esta última; em contrapartida, a arte moderna realizar-se-á, superando-se a si mesma enquanto arte separada, com a transformação da inteira vida cotidiana em vida criativa, desalienada, histórica, isto é, fundada na potência construtiva do diálogo prático. Nesta mesma perspectiva interpretativa, V. Kaufmann considera que a inflexão comunicativa operada por Debord, inflexão elaborada com base numa interpretação da experiência artística moderna, se constitui numa “política da comunicação” que coincide imediatamente com uma “poética
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
145
da revolução”. Esta coincidência conceitual demarcaria um inteiro movimento teórico pelo qual o horizonte de vanguarda da “superação da arte”, sendo ela própria reposta numa perspectiva comunicativa, exige ao mesmo tempo a superação da concepção tradicional da revolução e da política revolucionária. De fato, não são poucas as vezes em que Debord indica esta dupla ultrapassagem. “Não é um movimento cultural de vanguarda, mesmo tendo simpatias revolucionárias, que pode realizar [a crítica e a recriação da vida cotidiana]. Nem mesmo um partido revolucionário no modelo tradicional, ainda que ele conceda um grande lugar à crítica da cultura”. 21 Neste gesto, Debord busca operar e radicalizar o mesmo desvio, já levado a termo por Breton e os surrealistas, das categorias éticoexistenciais presentes na poesia moderna francesa. Mas, ao contrário do surrealismo no entreguerras, cujo desfecho o situa na periferia ora do leninismo no poder, ora do trotskismo no exílio – posição periférica que termina por repor, mesmo sob a intenção de uma crítica da “arte” e da “literatura”, a divisão especializada de tarefas políticas e artísticas –, Debord concebe um duplo afastamento das esferas separadas da “cultura à parte” e da “política especializada”, com base na centralidade categorial da crítica da vida cotidiana e, nisto mesmo, na prioridade temática e programática de superação da “pseudocomunicação” numa “nova comunicação”. É a esta posição, na dupla superação que ela indica da política e da arte tradicionais, que Kaufmann nomeia de “poética da revolução”, categoria comumente desprezada pelos comentadores de Debord porque, segundo este estudioso da literatura moderna, eles identificam a posição debordiana com as de “ultra-esquerda” (ultra-gauche) e, neste passo, desconhecem o “poético” nela implicado, identificando-o de modo imediato com a “arte” e a “obra de arte” no sentido
21. G. Debord, “Perspective de modifications conscientes dans la vie quotidienne”, loc. cit., p. 27.
146
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
tradicional. De modo indistinto e inseparável, “o apego à palavra e à comunicação é uma das chaves da vida e da obra de Debord”, sendo precisamente esta questão que “está no centro de suas reflexões sobre a necessidade de uma ultrapassagem da arte”. 22 E está porque, em Debord, a superação da arte, buscada pelas vanguardas do início do século, significa agora a passagem de um “falar a” (parler à) a um “falar com” (parler avec). No plano estético, este parler avec significa um novo modo narrativo. Desde seu segundo filme, Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité du temps (1959), Debord rompe com a estética não-comunicativa que apresentara em seu primeiro filme, Hurlements en faveur de Sade (1952). Em Sur le passage..., Debord retoma a narrativa, procedimento que se mantém em Critique de la séparation (1961), em In girum imus nocte et consumimur igni (1978) e, com algumas variáveis, nos seus últimos escritos (particularmente o Panégyrique I). Contudo, esta posição comunicativa não significa a reintrodução da narrativa clássica, desprezando aquele gesto crítico da arte moderna de recusa da pseudocomunicação, gesto que Debord valoriza e busca “salvar” em sua análise. V. Kaufmann parece ter inteira razão quando, em diferença com a opinião apresentada por P. Sollers,23 afirma que não se trata, nestes casos, de nenhuma “narrativa clássica”, mas, ao contrário, de uma outra forma de narrativa comunicativa, certamente, mas que incorpora no texto o princípio da colagem, da montagem, tal como experimentada pela arte moderna. O mesmo princípio que, aliás, se apresenta num texto teórico como A sociedade do espetáculo e na produção-colagem das imagens de seus filmes. Esta narrativa comunicativa, ao incorporar esses elementos formais da arte moderna, incorpora na verdade princípios expressivos – em outras plavras, a expressão como forma é aí parcialmente mantida, conservada –, mas lhes conduz a uma abertura à 22. V. Kaufmann, Guy Debord, la révolution au service de la poésie, p. 222. 23. P. Sollers, “La guerre selon Guy Debord” (1989), em La guerre du goût. Paris: Gallimard, 1996, pp. 442 ss.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
147
comunicação, não apenas enquanto programa explicitamente apresentado no texto, mas como estilo textual-imagético.24 Como perspectiva de crítica social, este parler avec significa a afirmação de um sentido forte de comunicação que não se identifica, mas ao contrário se opõe, buscando superála, à experiência social reificada do “intercâmbio”, da “comunicação” que Mallarmé já definia como “em silêncio, uma moeda na mão do outro”. É esta concepção que afasta radicalmente Debord das diversas correntes marxistas, pois ele reconhece a anticomunicação fundada na forma-mercadoria como presente também nas diversas outras formas de hierarquias sociais, nas “teorias” separadas da práxis (que deste modo seriam somente ideologias), na concepção do partido dito “revolucionário”, no sindicalismo e no Estado.25 É, enfim, um parler avec que carrega, com radicalidade, um sentido outro de comunicação que, nomeada metafisicamente de linguagem comum, reapresenta precisamente nestes termos o projeto
24. O significado teórico-filosófico deste procedimento eu o discuto no último subcapítulo do capítulo IV deste livro. 25. Debord e os situacionistas entendiam a relação entre crítica prática e crítica teórica como um mesmo trabalho do negativo. Recusavam, assim, qualquer teoria separada, por mais coerente que fosse; coerência que seria, no modo da separação, apenas ideologia revolucionária, “a coerência do separado da qual o leninismo”, segundo Debord, “constitui o mais alto esforço voluntarista” (SdS, § 105). “Nós não temos nenhuma necessidade”, diz ele em outro contexto, referindo-se à própria experiência da I.S., “de ‘pensadores’ enquanto tais, isto é, de pessoas produzindo teorias fora da vida prática. Na medida em que nossas teorias em formação me parecem tão justas quanto possível, pelo momento e nas condições que encaramos, eu admito que todo desenvolvimento teórico que pode se inscrever na coerência do ‘discurso situacionista’ vem da vida prática, decola desta legitimamente. Mas isto não é, ainda, em nada suficiente. É necessário que as fórmulas teóricas retornem à vida prática, senão elas não valem o esforço de um quarto de hora” (“Rapport de Guy Debord à la VIIe Conférence de l’I.S. à Paris (extraits)” [1966], em La Véritable Scission dans l’Internationale. Paris: Fayard, 1998, pp. 132-133). É esta unidade práxis-teoria, fundada na comunicação e no diálogo práticos, que baseia a concepção debordiana dos Conselhos Operários, compreendidos como órgãos de um poder não mais separado e, neste sentido, dissolutores do Estado e instrumentos de superação da reificação.
148
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
marxiano de uma sociedade sem classes e cuja condição histórica primeira é a superação do domínio fetichista do valor sobre as relações sociais cotidianas. Se Marx se referia ao comunismo, n’O capital, como se constituindo de “relações transparentes e racionais [dos homens] entre si e com a natureza”, 26 é este mesmo horizonte que se reapresenta com Debord na formulação de uma “transparência imediata de uma certa comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo”. 27 Esta reivindicação debordiana da transparência não possui qualquer traço rousseauista, mas sim se refere estritamente às possibilidades sociais do diálogo e da comunicação nas decisões executórias acerca da vida comum dos homens numa sociedade liberada do domínio fetichista das formas-valor. Sem esta última liberação, nenhum diálogo verdadeiro e potente é possível à escala social; mas também nenhuma verdadeira superação da economia autonomizada é p o s s í v e l s e m a p r á x i s c o m u n i c a t i v a revolucionária e anti-hierárquica. É esta juntura entre práxis comunicativa e comunismo que fundamentalmente caracteriza a crítica social de Debord. Para ele, trata-se de opor à sociedade reificada, desde as lutas sociais cotidianas, a busca por “uma comunicação direta [...] que possa, assim, transformar o mundo segundo seu desejo”. 28
26. K. Marx, O capital, I, p. 76. 27. “All the King’s men”, em Internationale Situationniste nº 8, janeiro de 1963, p. 31. 28. Idem, ibidem.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
149
Capítulo IV
Crise e desvio da arte moderna Não se diga que eu nada disse de novo: a maneira de dispor a matéria é nova. [...] Preferiria que me dissessem haver-me eu utilizado palavras antigas. Assim como pensamentos iguais, se dispostos de formas distintas, constituem um corpo de discurso diferente, p a l a v r a s i g u a i s compõem pensamentos diversos, segundo o arranjo que recebam. Arrumadas de maneira diferente, as palavras ganham um sentido diferente; e os sentidos, arrumados de maneira diferente, provocam efeitos diferentes. Pascal, Pensamentos
Pretendendo analisar a experiência da arte moderna como uma totalidade, análise esta baseada no mesmo horizonte de crítica da arte que o dadaísmo e o surrealismo protagonizaram no entreguerras, Debord elabora uma teoria da constituição da arte moderna que é, ao mesmo tempo, uma teoria de sua crise. Em sua reflexão teórica, este movimento único de constituição e definhamento da arte autônoma tem importância. É com base nela que Debord articula um significado prospectivo para a própria experiência histórica pela qual a arte, saída do universo religioso da tradição e produzindo-se a si própria como autônoma, portaria já, ela mesma, um sentido para a autodestruição crítica da linguagem comum, nela ocorrida. É
150
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
precisamente este sentido que, nas condições de expropriação da comunicação no capitalismo c o n t e m p o r â n e o e d e esvaziamento ético-existencial dos novos experimentos estéticos, ele busca compreender e afirmar programaticamente. O que o conceito de crise da arte lhe permite, portanto, é a própria concepção deste sentido, só passível de ser elaborado e, portanto, recebido numa experiência de acabamento, de transição que aquele mesmo conceito de crise encerra. Sendo inseparável de sua natureza autônoma, independente, a crise da arte moderna constitui a situação presente a partir da qual um sentido histórico da totalidade de sua experiência pode ser articulado e assumido prospectivamente. É por isso que a articulação deste sentido histórico prospectivo se ampara esteticamente no conceito de crise da arte e é dele inseparável. Na interpretação desta crise, Debord procura justamente, com fundamento na experiência social e estética presente, liberar da ambigüidade que julga existir na arte moderna um sentido que, dela constitutivo, somente se demonstra enquanto tal para este mesmo presente, concebido como de “decomposição” e, portanto, de “transição”. Deste modo, para concluir a exposição sobre a perspectiva comunicativa que Debord elabora criticamente para a experiência expressiva da arte moderna, procede-se neste capítulo a uma apresentação e uma discussão sobre seu conceito de crise da arte.
4.1 O barroco e a invasão da arte pelo histórico Em A sociedade do espetáculo, a concepção da crise da arte moderna busca fazer convergir uma consideração histórica mais ampla sobre a experiência artística, a partir do barroco, com a atual experiência social do capitalismo contemporâneo, na qual Debord observa uma expropriação da comunicação. O primeiro termo desta análise é fundamental à sua perspectiva quanto à linguagem comunicativa, tal como ele a compreende baseada na experiência artística, pois lhe permite pensá-la com
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
151
fundamento na invasão da arte pelo tempo histórico, algo que é fundamental à sua visão da modernidade. Como pretende – por uma exigência posta por sua afiliação às vanguardas do entreguerras e por sua perspectiva de superação da “arte separada” numa nova comunicação social – afirmar uma tendência autodissolutora da arte moderna, inseparável de sua afirmação como arte autônoma, Debord busca encontrar o princípio desta dissolução na entrada da história no domínio especificamente estético. É aí que ganha importância a experiência do barroco que, segundo ele, expressaria a emergência da sociedade histórica, pela sua ruptura com o mundo mítico-religioso, “na própria esfera da arte”. “O barroco”, diz Debord, “é a arte de um mundo que perdeu seu centro” (SdS, § 189). Esta perda do seu “centro” pelo mundo, Debord a apresenta já antes, no capítulo V de A sociedade do espetáculo , também como uma “invasão” da sociedade pelo “tempo irreversível”, quando da queda da ordem mítico-religiosa da Idade Média. Este processo, diz ele neste momento, “é ressentido, pela consciência presa à antiga ordem, sob a forma de uma obsessão de morte. É a melancolia da dissolução de um mundo, o último em que a segurança do mito equilibrava ainda a história; e para esta melancolia toda coisa terrestre se encaminha unicamente para a corrupção” (SdS, § 138). Em contraste com esta melancolia própria ao fim de um determinado mundo de sentido, o barroco ter-se-ia constituído em “arte da mudança”. Assumindo positivamente a perda da “segurança do mito”, o barroco traz “em si o princípio efêmero que ele descobre no mundo” (SdS, § 189). Citando Eugenio d’Ors, Debord diz ainda que o barroco escolheu “a vida contra a eternidade”. O livro de d’Ors, com o qual Debord dialoga nestas passagens de A sociedade do espetáculo, é uma das últimas grandes obras acadêmicas que, nas primeiras décadas do século passado, retomaram a discussão sobre o barroco. Sua tese central é a de que o barroco não é um gênero específico na
152
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
história da arte, limitada à arquitetura e aos séculos 17 e 18, mas sim um eon, uma “forma” ou “idéia” permanente e transhistórica da arte, cujo princípio é a mobilização daquilo que, sob a civilização e a c u l t u r a , f u n d a n d o - a e ameaçando-a constantemente, se pode nomear de “barbárie”. O princípio do barroco seria o que Goethe chamou de Ewig-weibliche, o “eterno feminino”, ou ainda, a contradição, o a favor e o contra; seria Osíris, “quando Osíris era apenas uma palavra genérica para designar ‘a morte’”. 1 Situado nesta instância metafísica, transhistórica, o eon do barroco tem, contudo, seu desenvolvimento inscrito no tempo; nele, “o permanente tem uma história, a eternidade conhece vicissitudes”. 2 Como eon, o barroco se opõe permanentemente ao classicismo , que seria para d’Ors – reproduzindo um pouco a oposição nietzschena entre o dionisíaco e o apolíneo, ou a freudiana entre Eros e Thânatos – o princípio da civilização, da cultura, da ordem. O que é importante nesta concepção do barroco como um eon oposto ao classicismo, que tampouco seria uma fase da história da arte, é que, com base nela, d’Ors vê o princípio barroco se manifestar ainda uma vez na arte moderna. É precisamente o conceito de eon – com o qual, numa postura muito próxima da que foi também a de Benjamin, ele se opõe ao método histórico-evolucionista de Wölfflin3 – que lhe permite distanciar fenômenos artísticos de uma mesma época e aproximar outros, temporalmente distantes, e, assim, reconhecer uma “analogia entre alguns exemplos de bizarria na literatura do passado e os gostos da arte de vanguarda e, em geral, da produção ultramoderna”. 4 1 . E. d’Ors, Du baroque [1935]. Paris: Gallimard, 2000, p. 30. 2 . Idem, pp. 73-74. 3 . “[...] a afirmação de que o Barroco é um eon (categoria intemporal que se desenvolve no tempo) [...] parece corresponder de muito perto à concepção de Benjamin de que o drama barroco é uma idéia, cuja atualização se dá na história” (S. P. Rouanet, “Apresentação” a W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão. Tr. br. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 26, n. 9). 4 . E. d’Ors, Du baroque, p. 80.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
153
Em Debord, o que se preserva de d’Ors é a concepção de uma fundamental continuidade histórica entre o barroco, compreendido sob o princípio dissolutivo das formas, expressão m e s m a d e s e u elemento “bárbaro”, “carnavalesco”, “desordenado”, e a experiência da arte moderna, na qual se encontra um processo constante de dissolução formal, até mesmo através de transições e conexões dos diversos gêneros entre si. Voltando a situar historicamente o barroco no início da era moderna, Debord não o toma como um eon trans-histórico, tal como o faz d’Ors, mas mantém da sua postura antievolucionista a concepção de permanência, historicamente determinada, de uma tendência barroca na totalidade da experiência artística moderna. Para isso, contudo, pensa a experiência barroca e o princípio que dele permanece na experiência artística que o segue – algo ausente no texto de d’Ors – como constituídos no e pelo movimento histórico de emergência do mundo moderno. É verdade que d’Ors recorre à discussão sobre a importância do luteranismo e da contra-reforma na constituição do espírito barroco moderno e, deste modo, considera-o em sua especificidade histórica. Mas, neste recurso, o que ele busca é identificar a manifestação do próprio princípio supratemporal do barroco no que diz respeito ao seu compromisso com a “natureza”: “A natureza é vida, é atividade, mudança, fluência. A natureza traz em si o movimento, é, ela mesma, movimento”. 5 Com o franciscanismo e o luteranismo, o barroco histórico teria adotado, segundo d’Ors, uma postura de “reconciliação” com a natureza, de “absolvição” dela. É precisamente nesta mesma linha de “reconciliação” e “abolvição” da “natureza”, enquanto assunção do seu princípio autocontraditório, de deperecimento e morte, que se encontrariam o romantismo do século 19, a pintura impressionista (por seu “panteísmo metodológico”), todo o espírito epocal do primeiro pós-guerra de relativização dos valores, da verdade etc. Como eon trans-histórico, o barroco 5 . Idem, p. 103.
154
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
não deixa de se associar precisamente a esta experiência moderna tão própria aos séculos 19 e 20, pois, segundo d’Ors, “o espírito que o dirige é um espírito em estado de ruptura interior, um espírito partido que encerra uma oposição [...] [um] espírito [que] imita os procedimentos da natureza [...] a dualidade, a multiplicidade de intenções coexistentes, a ruptura interior do espírito traduzida pelo antagonismo das formas [...]”. 6 Apesar de seu recurso à experiência histórica do início da era moderna (luteranismo e contra-reforma) e de seu olhar para a experiência presente nas primeiras décadas do século 20 (arte moderna e espírito pós-guerra), entre as quais enxerga a continuidade do mesmo eon barroco, d’Ors não faz delas uma análise histórica concreta, não as situa num mesmo e contínuo processo de ruptura com um determinado mundo histórico de sentido, ruptura a partir do qual a própria cultura moderna emerge consubstanciada pelo “princípio” permanente de “inovação”. Ao contrário, para Debord, o “espírito” barroco de que fala d’Ors nada mais é do que expressão, que lhe é, todavia, essencial, desta experiência moderna de perda da “segurança do mito”, própria à “invasão” do tempo histórico e irreversível tanto na experiência social quanto na artística; expressão permanentemente ínsita, não a qualquer momento da civilização, mas à cultura moderna mesma como um todo, da qual a luta entre a “tradição”, constantemente resposta, e a “inovação” constitui o próprio movimento interno, pois é uma determinação essencial de tudo o que é “histórico”. Neste sentido, a conclusão que Debord tira da análise de d’Ors, determinando-a historicamente, está mais próxima daquela de Benjamin, quando este descobre “conexões” (Zusammenhänge) e “analogias” (Analogien) entre o barroco alemão do século 17 e a literatura expressionista alemã do início do século 20: ambos “não se desenvolvem a partir de uma
6 . Idem, p. 111.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
155
existência comunitária [Gemeinschaftsdasein]”, sendo esta última experiência literária antecedida precisamente pelo “colapso da cultura classicista alemã” (deustche klassizistische Kultur).7 Como Debord, Benjamin concebe como o “núcleo”, o “teor” e o “objeto mais autêntico” do barroco “a própria vida histórica [geschichtliches Leben] como aquela época se a apresentava”. 8 Esta “vida histórica”, tal como concebida pelo barroco alemão, rompe precisamente com a representação estética do “mito”, da “época pré-histórica”, do “passado imemorial”, que eram a base da tragédia grega; e rompe porque, voltado para os “acontecimentos atuais”, “aderindo ao mundo” e à sensação de que ele marcha para a “catástrofe”, o barroco “junta e exalta tudo o que é terreno, antes que ele se entregue à consumação”. 9 Se o barroco é, como Debord assinala, a contraface daquela consciência epocal para a qual “tudo se encaminha para a corrupção” (ou para a “catástrofe”, no dizer de Benjamin), é porque, precisamente como diz este último, o barroco afirma positivamente a “tensão entre o mundo e a transcendência”; rejeitando todo “emanatismo”, ele se assegura na “imanência” terrena e histórica. O que está no centro da concepção de mundo do barroco é, para Benjamin, justamente a assunção do “acontecimento histórico instável, precário” (schwankendes historisches Geschehen), o reconhecimento da “manifestação da história” (Offenbarung der Geschichte) e a consciência de que compõem o destino de todas as criaturas a morte, o sofrimento, o deperecimento. Por isto mesmo, na doutrina de soberania política que lhe era essencial como concepção de mundo, impunha-se a busca puramente mundana e imanente de constituição de uma
7 . W. Benjamin, Origem do drama barroco alemão, p. 77, tr. levemente mod.; Ursprung des deutchen Trauerspiels.Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978, p. 37. 8 . Idem, p. 86; ed. alemã, p. 44. 9 . Idem, p. 90; ed. alemã, p. 48.
156
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
“instância que coíbe as suas [da história] vicissitudes”. 1 0 Encontra-se aí, conforme Benjamin, uma experiência históricoespiritual mais ampla, aquela da saída da civilização européia da Idade Média cristã, cuja concepção de mundo é marcada pela “história da redenção”, para uma outra, assentada na “história empírica”. “Onde a Idade Média expõe a fragilidade, a instabilidade dos acontecimentos do mundo e a fugacidade, a perecibilidade da criatura como estações do caminho sagrado”, diz ele, “o drama barroco alemão enfronha-se inteiramente no desconsolo da condição terrena, mortal. [...] A renúncia à escatologia do [anterior] teatro religioso [espiritual, geistlich] distingue o novo drama na Europa inteira”. 11 Em sua análise, Debord não leva em conta a nova teoria da soberania elaborada no século 17, como o faz Benjamin, mas, como este, tem também em vista, na concepção de mundo do barroco, a dupla face de um olhar para o mundo que o vê numa dinâmica perecedoura e que, aí mesmo, busca inscrever uma instância de estabilidade sabida como essencialmente instável. A centralidade da “paisagem” no barroco, gênero de 10. Idem, pp. 94 e 97; ed. alemã, pp. 52 e 55. 11. Idem, p. 104, tr. lev. mod.; ed. alemã, p. 62. É uma das teses centrais de Benjamin acerca do drama barroco do século 17 a afirmação de que, neste, há a manifestação de uma concepção histórica do mundo. Consubstanciarse pela vida histórica é o que dá ao barroco sua característica “imanente” e “mundana”. Tratar-se-ia, contudo, de uma concepção em que a existência histórica equipara-se à existência natural, o acontecimento histórico ao acontecimento natural, pois a concepção histórica do barroco basear-seia na “condição humana”, na “fragilidade da criatura” situada numa natureza desprovida de Graça, donde justamente a representação da efemeridade de todas as coisas do mundo na idéia barroca da catástrofe. Em outras palavras, a vida histórica é concebida pelo barroco alemão do século 17 com base na mortalidade e na fragilidade corpórea da criatura, em sua condição natural. Por isto mesmo, Benjamin vê aí uma concepção de história baseada na história natural. É a figura do príncipe, precisamente porque ele expressa a efêmera condição humana e o esforço humano contra a efemeridade do mundo humano, o que melhor manifestaria uma concepção histórica baseada na condição natural do homem. O monarca, “primeiro expoente da história”, é aquele que, como qualquer homem, não escapa à morte e, contudo, deve manter o mundo humano a salvo da catástrofe: ele expressa a história, pensada como natureza, e, ao mesmo tempo, a
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
157
representação que remete sempre à natureza, expressa aquela absolvição, aquela assunção positiva da mudança, do movimento, da fluência naturais, de que fala d’Ors. Mas é precisamente a própria paisagem barroca que, na análise de Debord, se expressa como um “centro de unificação” que é “a passagem que está inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica do todo” (SdS, § 189). Como passagem, a paisagem barroca busca unificar, fragilmente equilibrar o que é vivido e concebido como dinâmico, fluido, perecível. O barroco teria sido uma “festa teatral” constituída como paisagem e passagem em “décor de um lugar construído”, no qual a descoberta da passagem irreversível do tempo, despossuído da anterior segurança míticoreligiosa, é figurada e festejada. E, assim, articulada ludicamente com sentido. Na concepção de Debord, a festa teatral barroca seria como o “trabalho de luto” de que nos fala Freud, um trabalho de luto histórico pelo qual toda melancolia é evitada e a sensação de morte e deperecimento é transformada em princípio de vida, “contra a eternidade”. 12 Ao contrário do milenarismo camponês, preso à melancolia, em virtude de uma concepção de mundo que pensa a vida presente em função de uma restauração qualquer (a “realização terrena do paraíso”), o barroco aristocrático do século 17 responde positivamente, no seu trabalho de luto, à emergência do tempo histórico e, diferentemente daquele, expressa a consciência de se saber necessidade de coibi-la. Esta visão benjaminiana do barroco – justamente na medida em que o barroco alemão do século 17 pertence ao nascimento da modernidade – diz respeito a uma ambigüidade e a uma contradição central à modernidade capitalista: a de que nela a vida histórica está aprisionada pelas “forças naturais”, “míticas” do capital (cf. meu já referido artigo, “Imagem onírica e imagem dialética em Walter Benjamin”). É evidente a aproximação desta concepção benjaminiana da modernidade daquela desenvolvida por Debord em A sociedade do espetáculo, tal como a expus no primeiro capítulo. 12. A expressão alemã Trauerspiel (Trauer, “luto”, Spiel, “jogo, brincadeira, representação teatral”) guarda bem este sentido do barroco que Benjamin, também ele, manteve e desenvolveu em sua análise.
158
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
histórico.13 A arte do barroco expressa, pois, a experiência moderna do tempo histórico, irreversível, a experiência temporal assinalada pela “destruição de Deus” (destruction de Dieu, SdS, § 182), pela qual precisamente a moderna cultura separada emerge, tendo em seu âmago a história. Por causa disso, o eon barroco, princípio de mudança e efemeridade, mas determinado historicamente nos termos acima assinalados, por-se-ia, para Debord, como o próprio princípio da cultura e da arte modernas. “Do romantismo ao cubismo”, diz ele, “é finalmente uma arte sempre mais individualizada da negação, se renovando perpetuamente até o despedaçamento e a negação acabados da esfera artística, que seguiu o curso geral do barroco” (SdS, § 189). A experiência do barroco, marcada pelo mundano e histórico e, por isso mesmo, constituída em eon da totalidade da experiência artística moderna, é mais decisiva para a análise debordiana da cultura e da arte modernas do que aquela do “classicismo”, compreendido por Debord numa grande proximidade do eon de d’Ors e ao qual se ligam, segundo diz, “construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”. O “classicismo artístico” – seja aquele do início do século 19, oposto ao romantismo, seja a exigência realista em oposição aos experimentos dissolutores das formas nas vanguardas e na arte moderna – é, em sua natureza normativa, vista por Debord como expressões de uma mesma tendência de aprisionamento do princípio histórico celebrado pelo barroco e por toda a arte moderna que, através do romantismo, lhe dá prosseguimento. A arte moderna, ao contrário de todas as tentativas “classicistas”, se caracteriza essencialmente por esta tendência “barroca” de afirmação da história, enquanto existência vivida e concebida como precária, transitória, passageira, vivência e concepção que 13. O milenarismo camponês é, para Debord, uma “luta de classe revolucionária falando pela última vez a língua da religião, que é já uma tendência revolucionária moderna à qual falta ainda a consciência de somente ser histórica” (SdS, § 138).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
159
se manifestam até mesmo em suas experiências de autodestruição formal. Nas condições do capitalismo contemporâneo, seriam ainda estes dois princípios – “classicista”, um, “barroco”, outro – que mais uma vez se defrontariam, no interior da própria experiência artística, mas numa situação em que esta teria chegado a um certo limite, a uma certa zona de acabamento e transição. Vista através do antagonismo entre o “classicismo”, reposto na manutenção artificial da arte e da cultura separada, e o “barroco”, presente na tendência de superação de ambas, a experiência de crise da arte moderna é pensada por Debord numa contraposição entre aquela situação histórica de constituição da arte barroca, compreendida como eon d a s tendências determinantes da arte moderna, e a atual situação histórica do capitalismo espetacular. O barroco artístico foi um “arte histórica que estava ligada à comunicação interna de uma elite, que tinha sua base social semi-independente nas condições parcialmente lúdicas ainda vividas pelos últimos aristocratas” (SdS, § 189). Ao contrário, o capitalismo contemporâneo é aquele em que “nenhuma comunicação artística não pode mais existir”, pois é marcado pela “perda presente das condições de comunicação em geral” (idem). É precisamente com base nesta linha de continuidade e antagonismo entre estes dois momentos histórico-sociais da experiência artística social que Debord reconhece, no capitalismo contemporâneo, a atualidade acabada da tendência da arte moderna à autodissolução. Partindo da experiência histórica do barroco, ele articula uma teoria da crise da arte moderna com fundamento em um processo – verificado também no interior da própria esfera da arte – no qual se encontra a emergência do tempo histórico na sociedade e se constitui a moderna cultura separada. Neste mesmo processo, concebe uma linha de continuidade do barroco, através do romantismo, nas experiências artísticas posteriores, indo até as de vanguarda. Por fim, situa historicamente esta crise na presente experiência
160
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
social do capitalismo contemporâneo, no qual se dissolveram aquelas condições de comunicação artística vivenciada pela aristocracia no barroco, pois se encontram agora dissolvidas as condições da comunicação em geral. Entre a comunicação artística vivida pela arte histórica do barroco e a atual dissolução da comunicação, tanto artística quanto social, é que se localiza a experiência da arte moderna em sua posição afirmativa da dissolução da antiga “linguagem comum”. Nesta formulação, Debord apresenta apenas as linhasforça do processo histórico de emergência da arte autônoma, sua crítica nas experiências de vanguarda e, tendo como pano de fundo a presente experiência social, um sentido histórico para este processo de dissolução da arte, precisamente, o de que “uma nova linguagem comum deve ser reencontrada”. Por mais questionável, pois abstrata, que seja a validade desta teoria da crise da arte, tal como articulada por Debord, ela tem, contudo, dois momentos fortes: o primeiro, a articulação entre a experiência social da linguagem e a experiência artística ( o barroco, a arte moderna e as vanguardas); o segundo, a concepção de um sentido histórico para a destruição crítica, na e pela arte moderna, da antiga “linguagem comum”, sentido este concebido a partir de uma certa compreensão de crise da arte moderna nas condições do capitalismo contemporâneo, marcadamente anticomunicativo. Esta concepção exposta em A sociedade do espetáculo se apóia, contudo, em análises sobre a experiência artística do pós-guerra que, ausentes na exposição concisa do livro, foram desenvolvidas, durante os anos que o antecederam, na revista Internationale Situationnniste. Em tais análises, a crise da arte moderna é, em conexão com a própria experiência social do capitalismo tardio pensada com base na crise da expressão, compreendida como categoria fundamental da arte moderna presente na “autodestruição crítica” da linguagem, por ela protagonizada.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
161
4.2 A crise da expressão, enquanto crise da arte moderna Na dis solução dos meios artísticos tradicionais pelo modernismo, Debord encontra expressos tanto um radical questionamento da cultura burguesa quanto o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade moderna, base histórica mais ampla desse questionamento. A relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e a emergência da arte moderna – considerando que os “sintomas modernos da arte” são, precisamente, a aparição de “certas obras destrutivas”, mormente nos anos 20 e 3014 – oferece uma determinação histórica mais concreta à sua discussão sobre a destruição da antiga linguagem comum e, por isso mesmo, uma maior aproximação das experiências sociais e artísticas que lhe são contemporâneas. O caráter objetivamente “destrutivo” do desenvolvimento das forças produtivas modernas também já tinha sido observado por Benjamin, no que diz respeito à Erfahrung comunicável, que constituía o conteúdo material da narrativa tradicional; e também à própria arte já liberada da tradição: no século 19, esse desenvolvimento na arquitetura e nas técnicas de construção civil “emancipou, da arte, as formas figurativas” (hat [...] die Gestaltungsformen von der Kunst emanzipiert);15 no século 20, a emergência da informação “leva o romance a uma crise” (den [Roman] einer Krise zuführt ). 16 Neste mesmo horizonte materialista de reflexão e numa mesma perspectiva da crítica d a s vanguardas à “arte”, Debord considera que o desenvolvimento das forças produtivas configura historicamente a pergunta pelo seu uso social, sendo precisamente esta a 14. “Avec et contre le cinéma”, em Internationale Situationniste nº 1, p. 8. 15. W. Benjamin, “Paris, Capitale du XIXe Siècle (Exposé de 1935)”, em Capitale du XIXe. Siècle. Le livre des passages, p. 46; “Paris, die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts”, Passagen-Werk, p. 59. 16. W. Benjamin, O narrador. Tr. br. S. P. Rouanet. Obras escolhidas, t. I, ed. cit., p. 202; Der Erzähler, Gesammelte Schriften, B. II/1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991, p. 444.
162
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
pergunta que a arte moderna tematizou tanto em sua dimensão performativa (estilos, técnicas, enfim, na destruição da linguagem e das formas) quanto no conteúdo socialmente crítico de seus temas. O próprio desenvolvimento da arte moderna, colocando o problema do “sentido da vida” (sens de la vie), se fez radicalmente contemporâneo da experiência histórica e social mais ampla, fundada no desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, pois “a questão do uso da vida é efetivamente posta na margem da liberdade já atingida e, crescentemente, de nossa apropriação da natureza”. 17 Ao tematizar o sentido da vida, a arte moderna, em seus momentos mais ricos, teria sido “a reivindicação de outros ofícios”. Em outras palavras, a arte moderna tanto articula de modo consciente uma questão social que, segundo Debord, se funda no desenvolvimento das forças produtivas, quanto inscreve, precisamente deste modo, a perspectiva de uma ultrapassagem da forma artística separada, perspectiva que se constitui num princípio ético-estético das experiências dissolutoras das formas que caracterizam todo o modernismo. Do ponto de vista formal, isto se teria realizado através da representação poética, que é própria à arte moderna, da experiência temporal no capitalismo: o “esmigalhamento”, o “despedaçamento do tempo” (l’émiettement du temps) que, como observa Debord, “adveio [...] da narrativa romanesca, com Proust e Joyce”. 18 A centração temática na memória, quebrando a unidade imediata do tempo, despedaçando-o, esmigalhandoo, constitui-se no próprio fundamento das transformações técnico-estilísticas altamente destrutivas que a Recherche e o Ulysses introduziram na escrita e na narrativa do século 20. Nestas experiências, tema e forma compõem inseparavelmente uma dissolução formal do romance que, segundo Debord, se
17. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 4. 18. “Le cinéma après Alain Resnais”, Internationale Situationniste nº 3, p. 8.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
163
anuncia precisamente ali. Deste modo, esses autores teriam realizado na escrita “o movimento de autodestruição que domina toda a arte moderna”. Por que? Porque, explicaria Debord, “a memória é forçosamente o tema significativo da aparição da fase de crítica interna de uma arte, de seu questionamento, sua contestação dissolvente [...] [pois] a questão do sentido da memória está sempre ligada à questão do sentido de uma permanência transmitida pela arte”. 1 9 Em outras palavras, Proust e Joyce teriam expressado o significado do desenvolvimento social das forças produtivas no interior da própria arte ao introduzir, na escrita, elementos técnico-estilísticos destrutivos da forma romanesca, apontando a tendência mais geral da arte moderna à dissolução e à transição das formas; e o teriam ao se centrarem tematicamente na questão fundamental da experiência do tempo, essencialmente histórica, moderna: a memória. É esta experiência moderna do tempo, com tudo o que ela traz consigo de destrutivo, que determina a centralidade temática da memória, inseparável e reafirmadora desta mesma experiência de dissolução; e reafirmadora justamente porque, testemunha do processo dissolutordestrutivo da modernidade, busca não um qualquer resgate de algo findado, mas sim construir um significado para este mesmo definhamento. Em outras palavras, a centralidade da memória, na escrita moderna, tem como pressuposto justamente a dissolução do que lembra. Neste sentido, a escrita moderna, ao centrar-se tematicamente na memória, traz consigo os elementos dissolutores-destrutivos dos quais é testemunha, apresentandoos nos próprios elementos estilísticos-formais como experiência da destruição das formas. Na Teoria do romance, o jovem Lukács já expunha a importância da passagem do tempo para a literatura moderna, apresentando-a fundada na “discrepância entre a realidade e a
19. Idem, p. 9.
164
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
idéia”: “[S]ó o romance, a forma do desterro transcendental da idéia, assimila o tempo real, a durée de Bergson, à fileira de seus princípios constitutivos”. 20 E o faz porque, ao contrário da epopéia e das formas do drama, nas quais o tempo nada modifica do destino ou do caráter do herói, a agora ausência de sentido experimentada socialmente (e que, como busca de sentido, ganha forma no romance) se manifesta também, e essencialmente, na experiência do “decurso contínuo e indolente do tempo”. Este decurso se apresenta, ele mesmo, como alheamento à e da subjetividade e, contudo, como condição para a – e lugar da – busca de sentido que caracteriza o romance; por isso mesmo, o tempo se apresenta não apenas como matéria do esforço ético da escrita romanesca, mas também como constitutivo da própria forma. “No romance, separam-se sentido e vida e, portanto, [o] essencial e [o] temporal”, diz Lukács; “quase se pode dizer que toda a ação interna do romance não passa de uma luta contra o tempo”. 21 Tirando conclusões diferentes daquelas com as quais Lukács termina a Teoria do romance, Debord também concebe como central, à escrita moderna, a figuração da passagem do tempo. Para ele, a representação inseparavelmente temática e formal da experiência do tempo constituiria precisamente o problema-limite da arte moderna quanto ao “sentido de uma permanência transmitida”. O significado desta enigmática proposição pode ser aproximativamente esclarecido na discussão, que encontramos em A sociedade do espetáculo, sobre a expressão artística que “fala para outros o que foi vivido sem diálogo real”, que representa, justamente deste modo, um “jogo com o tempo”. Expressando uma concepção dialética da caducidade temporal das coisas, própria ao tempo histórico da sociedade moderna em sua radical distinção do tempo cíclico das sociedades pré-capitalistas, Debord considera que a
20. G. Lukács, Teoria do romance, p. 127. 21. Idem, p. 129.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
165
produção artística moderna é sempre a expressão “[de] um momento da vida [que] envelheceu e [que] não se deixa rejuvenecer com cores resplandescentes, [que] se deixa evocar unicamente na lembrança [em que] a grandeza da arte apenas começa a aparecer no ocaso/na reconsideração [à la retombée] da vida” (SdS, § 188). Que a arte moderna demonstre sua grandeza, segundo estas palavras de Debord, somente como ocaso e reconsideração da vida, tal é o modo sob o qual ela se constitui formal e tematicamente numa denúncia da “insuficiência da vida” presente; e se constitui nisso porque – como memória, lembrança e expressão, “falando a outros o que foi vivido sem comunidade”, “evocando na lembrança um momento envelhecido da vida” – a arte moderna suscita o problema, que é um e o mesmo, da experiência do tempo e da comunicação. Este aspecto formal, que traz em si seu próprio conteúdo social, é inseparável da representação do “despedaçamento do tempo” pela qual a arte moderna introduz como tema o próprio princípio histórico da cultura moderna (a passagem irreversível do tempo, a caducidade de todas as coisas) e, deste modo, expressa o princípio que a funda e que a liga à vida social. A Recherche e o Ulysses manifestariam esta experiência fundamental da arte moderna de consciência da passagem irreversível do tempo ao tematizar a memória (com todas as repercusões desta matéria temática nos aspectos técnicoestilísticos, formais) e, por conseguinte, ao realizar este princípio histórico-dissolutor na própria dissolução-transição da forma; princípio este constituído, no âmbito da própria arte, pelo desenvolvimento das forças produtivas modernas. Em “Le sens du dépérissement de l’art”, Debord toma em consideração essas condições sociais do surgimento da arte moderna, bem como a elaboração de um seu significado histórico, com vistas menos na tematização retrospectiva da experiência modernista do que na reflexão sobre a experiência estética que lhe é contemporânea. “A libertação das formas artísticas
166
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
significou em todo lugar sua redução a nada”, 22 ele constata com relação às experiências estéticas dos anos 50-60. Recusando qualquer solidariedade aos “críticos reacionários” da arte moderna e ao “seu sonho de um retorno às belas maneiras do passado”, Debord busca discutir neste texto principalmente a situação do que julga ser um “naufrágio da expressão como esfera autônoma, como objetivo absoluto”, tendo como pano de fundo, nas condições materiais de existência do capitalismo avançado, “a lenta aparição de outras dimensões da atividade”. Em outras palavras, Debord busca pensar justamente a crise da própria arte moderna, crise que, condicionada pelo mesmo desenvolvimento das forças produtivas que provocaram seu surgimento, que ela assumiu performática e tematicamente na destruição da linguagem tradicional, das formas artísticas e na aspiração a uma nova experiência vital, se manifesta agora na própria categoria que mais fundamentalmente a constitui: a expressão. Desde Baudelaire, de Mallarmé ao surrealismo, a expressão poética – testemunhando nisso as condições sociais que “concernem a todos os outros meios de expressões artísticas” – teria manifestado, segundo Debord, “a sensação profunda da vida e as contradições dos homens avançados de seu tempo”. “Essa sensação e essas contradições”, diz ele, “foram já expressas por toda a arte moderna – e justamente até à destruição da própria expressão”.23 Na análise de Debord, esta destruição da expressão aperece constituída por duas determinações. Em primeiro lugar, pelas possibilidades outras de atividade sociais que, tematizadas na arte moderna, são constituídas pelo desenvolvimento das forças produtivas, o qual determina nas condições do capitalismo contemporâneo, no interior da própria arte, a crise da expressão artística. Em segundo lugar, pela ausência, nas “neovanguardas”, adjetivadas ironicamente de “neodadaístas”, do sentido crítico
22. “Le sens du dépérissement de l’art”, loc. cit., p. 3. 23. Idem, p. 6.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
167
que a expressão refratária à pseudocomunicação teria portado na arte moderna. No que diz respeito a esta segunda determinação, a avaliação de que a categoria estética da expressão está em crise, dando acabamento a uma tendência imanente à sua própria constituição histórica na poesia moderna, é menos um fato a ser “objetivamente” demonstrado do que a manifestação de uma posição – até mesmo valorativa, mas jamais “normativa” – diante da experiência estética do capitalismo do segundo pós-guerra. Mas trata-se de uma valoração que se ampara precisamente numa anterior concepção histórica da arte moderna como um todo, cujo conteúdo crítico Debord opõe ao “neodadaísmo” contemporâneo. Este “neodadaísmo”, ele o verifica não apenas nos diversos pequenos grupos de “neovanguarda”, mas também na “alta cultura”, na qual a persistência de uma linguagem não-comunicativa – com Samuel Becket, Eugène Ionesco, John Cage, Alain Robbe-Grillet – seria admitida, consentida e até mesmo requerida pelo próprio sistema. Repetindo sem cessar o gesto profundamente crítico e historicamente fundado de destruição da linguagem pelo dadaísmo, pelo surrealismo e por toda a arte moderna, porém sem o sentido histórico e crítico destes, as experiências “neodadaístas” afirmariam, segundo Debord, o “nada” (néant) e o “vazio” (vide).24 A natureza acrítica e apologética dessas novas experiências modernistas é explicitada de diversos modos. O principal deles é a constatação de que a feição negativa , destrutiva e até mesmo experimental do gesto dadaísta é reconvertida positivamente num novo cânone estético. O “neodadaísmo”, diz Debord, “redescobre a importância do movimento Dadá como uma positividade formal ainda a explorar”. 25 Os “dadaístas ressuscitados” “exploram com a 24. “L’absence et ses habilleurs”, em Internationale Situationniste nº 2, p. 6. 25. “Communication prioritaire”, em Internationale Situationniste nº 7, abril de 1962, p. 22.
168
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
parcimônia de pequenos rentistas a rejeição da literatura, a própria destruição da escrita, [que] foi a primeira tendência dos vinte ou trinta anos de pesquisa de vanguarda na Europa”. 26 Noutro passo, Debord amplia suas considerações críticas sobre o “neodadaísmo”, opondo-lhe não apenas o dadaísmo do entreguerras, mas o conjunto do que denomina “movimento da arte moderna”, que “exprimia e combatia a incomunicação que se estabeleceu efetivamente em todo lugar na sociedade”. 27 O problema da positivadora reconversão estética, pelo “neodadaísmo” tardio, da crítica negativa das formas pelo dadaísmo histórico é que, para Debord, a “anticomunicação emprestada ao dadaísmo” não porta mais qualquer traço crítico, negativo, pois ocorre justo numa época em que o próprio capitalismo se demonstra completamente anticomunicativo e na qual, por isto mesmo, “a urgência é de criar, no nível mais simples como no mais complexo da prática, uma nova comunicação”. 28 Esta afirmação da necessidade de uma nova comunicação é fundamental à sua crítica das “neovanguradas”, pois é o próprio horizonte de toda a sua valoração negativa delas, inseparável da valoração positiva da arte moderna e das vanguardas do entreguerras. E o é porque a temática da comunicação se constitui no próprio centro de sua reflexão não apenas estética, mas social. Ao contrário de determinadas correntes da sociologia francesa do período, que tratava a “questão da comunicação” c e n t r a l m e n t e c o m o c o n c e r n e n t e a o s mass-media e à “informação”, Debord a compreende – o que se demonstraria precisamente pelos próprios meios massivos de informação – como uma relação social , uma relação “de mão única, os 26. “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 14. Note-se: eles não “exploram” (explorent), como numa pesquisa estética, científica ou numa viagem a um país desconhecido, mas “exploram” (exploitent), como os capitalistas aos proletários, um mineiro a uma mina ou um rentista ao seu capital de crédito. 27. “L’absence et ses habilleurs (suite)”, em Internationale Situationniste nº 9, agosto de 1964, p. 9. 28. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 23.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
169
consumidores de comunicação não tendo nada a responder”. 29 Entendidos nestes termos, a informação e os masss media apenas compõem e reproduzem uma divisão hierárquica mais geral, radicalmente anticomunicativa e essencialmente constitutiva do capitalismo moderno, entre dirigentes e dirigidos, “entre organizadores e consumidores do tempo da sociedade industrial (o qual integra e dá forma ao conjunto do trabalho e dos lazeres)”. 30 Neste contexto, a informação, à qual foi reduzida a comunicação social, não deve ser entendida numa dependência estrita aos mass media, mas sim como parte integrante do completo sistema da passividade e da não-comunicação mercantil. “A expropriação sistemática da comunicação intersubjetiva, a colonização da vida cotidiana por uma mediação autoritária”, escreve Debord em outra situação, “não é um produto necessário do desenvolvimento técnico. É, ao contrário, esta autonomização da potência social que necessita que toda técnica possível seja dobrada a seus fins particulares de autoregulação do existente”. 31 Neste mesmo texto, ele explica a referida autonomização da potência social pelo desenvolvimento das relações mercantis: “o que se chama vagamente ‘crise da comunicação’ na sociedade, e que é ao mesmo tempo a concentração monopolizada da comunicação unilateral (da qual os mass media são apenas uma expressão técnica) e a dissolução de todos os valores comuns e comunicáveis [...] é produzida pela vitória da aniquilação que, no terreno da economia, o valor de troca alcançou sobre o valor de uso”. 32 Em A sociedade do espetáculo, esta reflexão é retomada: a natureza espetacular do capitalismo avançado não se constitui de seus meios técnicos, m a s , a o c o n t r á r i o , o e s p e t á c u l o d á f o r m a social ao
29. 30. 31. 32.
Idem, p. 20. Idem, p. 23. “De l’aliénation: examen de plusiers aspects concrets”, loc. cit., p. 56. Idem, p. 59.
170
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
desenvolvimento técnico da sociedade moderna. Os chamados meios de comunicação são apenas a “manifestação superficial” do espetáculo. São a “instrumentação” que mais propriamente lhe convém, que se lhe impõe como mediação social, como meio de administração e forma de contato entre os homens, apenas porque a experiência comunicativa viabilizada por eles é, como ocorre no conjunto da sociedade, “essencialmente unilateral” (SdS, § 24). Compreendendo deste modo a chamada “crise da comunicação”, parece-lhe inteiramente falsa – e m “Communication prioritaire” – a universalmente afirmada oposição entre os chamados mass media e outras esferas da vida social, as quais também tendem, em conjunto, a “modelar todas as atitudes da vida cotidiana”. Nesta compreensão do caráter universalmente anticomunicativo da sociabilidade tardoburguesa, não haveria para Debord – e aqui reencontramonos com sua crítica das “neovanguardas” – por que se opor à alienação dos chamados mass media recorrendo, como a um contraponto, à “alienação artística” (aliénation artistique). Esta é uma oposição que certamente pareceria justa para quem compreendesse a chamada “crise da comunicação” com base no poder adquirido pelos mass media, produtores da chamada “cultura de massas”, em distinção e até mesmo em contraposição à “alta cultura”, na qual se situam os experimentos estéticos, pretensamente críticos, do “neodadaísmo”. Porém, a existência de uma “cultura de massas”, na qual a “informação” apenas reproduz a passividade da totalidade da experiência social, tem como face complementar a “massificação” da própria “alta cultura”. Também nesta se expressam tanto o fenômeno mais amplo de exclusão das “massas” de toda “ação livre”, exclusão que constitui a própria essência do trabalho assalariado e da passividade mercantil constituidores da chamada “crise da comunicação”, quanto uma repetição sem fim e sem sentido daquela destruição das formas inaugurada pela arte moderna e pelas vanguardas. Sem senso histórico nem feição crítica (pois
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
171
reiteradora da não-comunicação do próprio sistema), esta repetição leva os diversos produtos da “alta cultura” a se imitarem mutuamente, reproduzindo o mesmo fenômeno que, desde o século 19, ocorre na produção de massas dos objetos de consumo: a “falsa novidade” (fausse nouveauté), a repetição degradada e sem sentido do mesmo. Ao contrário da arte moderna do entreguerras, que soube se tornar historicamente contemporânea e crítica de seu próprio tempo, o “neodadaísmo” se faz artificialmente contemporâneo de uma época que não é a sua e, por isso, se torna acrítico diante de sua própria época. É deste modo que cultura moderna (“alta” e “de massa”) deste período se apresenta a Debord como o acabamento, a conclusão da cultura iniciada no barroco; mas uma conclusão e um acabamento cujo sentido histórico lhe permanece inconsciente. Não é novidade que uma posição crítica em face das “neovanguardas” seria comum a outros autores críticos do capitalismo tardio, como Lukács e Adorno; contudo, além da diferença já assinalada, quanto a este último, no que diz respeito à categoria da expressão, há também a diferença maior com relação a ambos, já indicada na introdução, no que diz respeito ao próprio problema da forma. Diferentemente de Lukács e Adorno, Debord critica a s “neovanguardas” (ou o s “neodadaístas”), não em defesa da forma estética, mas sim porque, ao positivarem esteticamente o movimento antes crítico de destruição das formas pelas vanguardas históricas, os “neodadaístas” abandonariam o elemento socialmente crítico que os experimentos modernistas e de vanguardas afirmaram no entreguerras. Trata-se, assim, de afirmar, na perspectiva de Debord, uma relação inseparável entre posição formal (no âmbito estético) e posição temática (no âmbito social). Deste modo justamente, não seria um exagero afirmar que, em sua análise, os “neodadaístas” – ao transformarem em “cânone estético” a anterior destruição das formas – afirmariam uma posição “classiscista”, ou seja, suas obras seriam também “construções artificiais falando a linguagem exterior do Estado”.
172
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Isto porque, ao reintroduzirem a “classicista” positivação estética, as “neovanguardas” se afastariam da tendência histórica fundamental do modernismo e das vanguardas, tanto em termos formais quanto em termos de crítica social. A “expressão” que não nega, mas somente afirma a anticomunicação espetacular, que não nega, mas apenas reafirma uma positividade estética, já não tem mais qualquer relação com a poesia expressiva moderna que, em seu desenvolvimento, manteve inseparáveis a crítica das formas e a da pseudocomunicação na sociedade.33 Na medida em que esta tendência esteticamente positivadora e socialmente conformista se exclui daquele desenvolvimento crítico da expressão poética moderna, resta concluir, com Debord, a crise da arte moderna manifesta na própria crise da categoria da expressão; crise cujo sentido, na elaboração debordiana, é a busca da práxis comunicativa.
4.3 Détournement e comunicação histórica Na elaboração de uma perspectiva comunicativa para a superação das experiências expressivas do dadaísmo, do surrealismo e da arte moderna, experiências que considera terem chegado a um certo limite histórico, encontram-se mobilizados dois aspectos do pensamento de Debord, relacionados à linguagem e à história e que, em sua juntura, constituem uma concepção da dialética. Em A sociedade do espetáculo, esta concepção é apresentada na explicação da linguagem empregada no livro, no qual aparecem modificadas e recontextualizadas palavras, frases e idéias de diversos outros autores. De imediato, observa-se que – nesta linguagem, assim como nas imagens de 33. Não é demais lembrar, mais uma vez, que a obra de P. Bürger – que, no prefácio à segunda edição, se manifesta teoricamente solidária à teoria da “ação comunicativa” de J. Habermas – busca justamente concluir, “após 1968” (!), as categorias estéticas positivas que, passada a ilusão vanguardista de “superação da arte”, se demonstrariam categorias permanentes da arte na sociedade burguesa.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
173
seus filmes – se reapresenta a prática da colagem, da montagem, do dépaysement tão comum em toda a arte moderna, pelo menos desde Lautréamont. Em suas Poésies, este traz ao texto diversos autores, os quais não cita, num jogo de palavras e temas que em muito antecede as colagens dadaístas e surrealistas e a própria exposição de Debord. Lautréamont explica este procedimento do seguinte modo: “As palavras que expressam o mal estão destinadas a vir a ter uma significação de utilidade. As idéias melhoram. O sentido das palavras participa disso. // O plágio é necessário. O progresso implica. Segue de perto a frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma idéia falsa, substitui-a por uma idéia justa. // Uma máxima, para ser bem feita, não precisa ser corrigida. Precisa ser desenvolvida”. 34 Debord, que se apropria de modo desviado de uma parte desta passagem no § 207 de A sociedade do espetáculo , considera que este método é o mesmo que, de formas distintas, foi empregado por Hegel, Feuerbach, Marx e Kierkegaard; e, com base nestes autores, priorizando a ação e a compreensão conscientes da sociedade presente, Debord concebe o método do dépaysement como um duplo movimento de détournement, “desvio”, e de renversement, “desarrajamento”, “reviravolta”, colocação no “reverso” das produções da cultura moderna, incluídas a poesia, a crítica teórica, a psicanálise e, simplesmente, a linguagem cotidiana; détournement e renversement operados segundo uma compreensão crítica das condições e contradições presentes na sociedade. 35 Ora, este método – que, seguindo Debord, se nomeará aqui simplesmente de détournement – pode ser pensado também como central à própria concepção
34. Lautréamont, Poesias [1870], Parte II. Obra completa. Tr. br. C. Willer. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 277. 35. Referindo-se ao desvio das noções oriundas da experiência artística moderna para uma crítica teórica do capitalismo desenvolvido, Debord amplia o seu uso do termo “arte moderna” para o de “cultura” (moderna): “Com a ‘arte moderna’, a gente quer dizer a cultura – da poesia à psicanálise, por exemplo. Mas o conjunto das experiências culturais da época deduz já
174
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
debordiana de um certo acabamento, uma certa conclusão da cultura moderna nas condições sociais e culturais do capitalismo mais desenvolvido. Ao ser observado com mais cuidado, o détournement revela-se não apenas uma técnica estética. Ao recusar a mera repetição acrítica das mesmas coisas, tal como feita pelo “neodadaísmo”, o détournement oferece ao mesmo tempo a resposta à pergunta pelo que se deve fazer dos produtos da cultura no momento de sua crise, bem como a racionalidade imanente a esta mesma resposta. Deste modo, o desvio e a reversão do significado dos produtos da cultura passada e mesmo contemporânea buscam fundamentalmente a crítica consciente do presente, crítica que é inseparável da centralidade teóricoprática deste mesmo presente em face do passado. Numa perspectiva mais ampla, pode-se dizer finalmente que o détournement junta uma concepção histórica do passado com base na crítica do presente a uma concepção histórica da própria linguagem, já que no contexto em que é apresentado em A sociedade do espetáculo este método busca justamente explicar e justificar a “linguagem”, o “estilo” e o “modo de exposição” do livro. Precisamente neste sentido, o détournement aparece em Debord como uma concepção dialética por excelência. Na medida em que contém uma reflexão sobre a linguagem dialética, a concepção do détournement dá seqüência às reflexões de Debord sobre a experiência “lingüística” no capitalismo contemporâneo. “A teoria da informação ignora, logo de cara, o principal poder da linguagem, que é o de se combater e de se ultrapassar, em seu nível poético”, diz ele em “Communication prioritaire”. 36 Em “All the King’s men”, Debord observa que, tarefas políticas (‘política’, tanto quanto‘artística’, sendo finalmente termos de especializações criticáveis)” (cf. carta a Branko Vucicovic, 05.01.1966). Nesta ótica, trata-se de desviar também não apenas a psicanálise, mas o próprio Marx e outros autores “marxistas”, como pode ser observado na própria escrita de A sociedade do espetáculo e na tematização explícita que este livro apresenta sobre o pensamento do autor de O capital nos §§ 79-91. 36. “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 21.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
175
embora as palavras “trabalhem” para a organização dominante da vida e a gente viva na linguagem como no “ar viciado”, as palavras não estão, contudo, “robotizadas”. Usadas pelo poder, “elas [lhe] permanecem por algum lado radicalmente estrangeiras”. A “insubmissão das palavras” manifestada por toda a escrita moderna e até mesmo a possibilidade de uma “contestação completa” em e a partir da linguagem devem-se precisamente à sua dominação pelo poder instituído; mas também, inseparavelmente, ao fato de que as palavras lhe escapam permanentemente. A rigor, o poder não cria o sentido das palavras, mas vive de “receptação” e “furto”: em outras palavras, ele somente o “recupera”. Na constante recuperação, pelo poder, da criação de sentidos pela linguagem, Debord concebe uma potencialidade que a esta é permanentemente ínsita de recriação de sentidos, o que faz dela um campo de batalha entre o poder e a criação histórica (neste texto, nomeada de “poesia”). Contudo, a linguagem é criativa, é “poesia”, não ao ser citada, mas ao “ser desviada, recolocada em jogo”. A recolocação em jogo da poesia, da linguagem, das palavras se deve justamente à sua potencialidade criativa e à sua natureza histórica, testemunhadas em negativo p e l o s “ p e n s a d o r e s d a automatização” justamente quando estes visam à fixação e à eliminação “das variáveis na vida como na linguagem” e de “toda acepção nova de uma palavra, tanto quanto suas ambivalências dialéticas passadas”. 37 Já nestas reflexões de Debord, a concepção histórica do passado com base na crítica do presente está radicalmente ligada à própria concepção histórica da linguagem: “O momento da poesia real, que ‘tem todo o tempo diante dela’, quer sempre reorientar, conforme seus próprios fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. [...] Recoloca em jogo as dívidas não quitadas da história. Fourier e Pancho Villa,
37. “All the King’s men”, em Internationale Situationiste, nº 8, janeiro de 1963, p. 33.
176
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Lautréamont et os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de Kronstadt ou de Kiel e todos aqueles que, no mundo, com e sem nós, se preparam para lutar pela longa revolução, são também os emissários da nova poesia”. 38 Que personagens e movimentos sociais do passado, como Fourier e a rebelião de Kronstadt, sejam mensageiros da “nova poesia”, isto se deve justamente à recolocação em jogo, no presente (e com base nas condições de vida e de luta do presente), de uma “poesia real”. Uma recolocação em jogo que reapresenta, em função e em face do presente, as dívidas não quitadas da história justamente porque, nesta assunção das lutas presentes, a “poesia real” tudo “reorienta segundo seus próprios fins”. Nesta recolocação em jogo, as “ambivalências dialéticas” das palavras ditas, dos gestos realizados e dos desejos expressos no passado são submetidas à relação negativa com o presente, relação esta que unicamente pode retirar da sua anterior ambigüidade um sentido dialético e atual. Ora, o capitalismo espetacular se constituiu historicamente – a partir das derrotas das primeiras tentativas de revolução social no início do século 20, das quais a arte moderna e as vanguardas estéticas foram contemporâneas e solidárias – ao neutralizar e recuperar para o interior de sua própria lógica as demandas críticas que antes se lhe opunham. Ele mantém, de modo invertido, pois incluso em sua própria lógica, o negativo que antes o negava e que, ao ser recuperado, perde sua negatividade. Do mesmo modo, as próprias potencialidades presentes no desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo contemporâneo são realizadas de modo distorcido, invertido, segundo a própria lógica inversora da alienação que é essencial ao espetáculo. “No mundo realmente invertido”, diz Debord, mais uma vez desviando uma fórmula hegeliana, “a verdade é um momento do falso” (SdS, § 9). Nestas condições, 38. Idem, p. 32.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
177
a crítica dialética deve buscar renverser (desarranjar, revirar, reverter) a inversão aí realizada e recolocar em jogo a crítica que as revoluções sociais e, junto a estas, a poesia moderna fizeram à sociedade produtora de mercadorias.39 Mas esta retomada não pode ser feita às custas da pergunta pela sua persistência, não pode seguir aquele movimento rebuscado e sutil do “marxismo ocidental” que buscou e busca o “pensamento genuíno” de Marx; pode apenas, como dito acerca da poesia, ser “desviada, recolocada em jogo”. Antes de tudo, esta retomada da crítica é, em Debord, inseparável do reconhecimento do seu passado como algo deperecido, pertencente a uma outra época e a um outro contexto social; inseparável, portanto, da reflexão sobre suas anteriores derrotas e das necessidades das lutas atuais. A persistência da crítica social deve fazer a pergunta pela sua própria história, pela concepção de sua própria trajetória e, na forma “lingüístico”-teórica de sua apresentação, deve “exprimir a dominação da crítica presente sobre todo seu passado” (SdS, § 206). Em outras palavras, a retomada da crítica anterior guarda a “distância” (distance) histórica, própria à passagem do tempo e ao devir que nele se move; e, assumindo seu caráter ambíguo, a submete a um “desvio”, condição de sua “recolocação em jogo” que é, ipso facto, a “recolocação em jogo das dívidas não quitadas da história”. Na recepção presente da crítica anterior, impõe-se o desvio graças à própria imutabilidade do passado, ao seu caráter de “passado da crítica”. Se ela pode e deve ser retomada no presente, é-o somente com base nas próprias possibilidades presentes do mundo e , portanto, das necessidades atuais da crítica social. 39. Insiste-se nestes múltiplos significados do renversement porque não se trata, para Debord, de uma negação da reificação em vista de uma reposição de uma qualquer situação “natural” e “verdadeira” do homem ou da realidade; não se trata, portanto, de “reinverter” como se houvesse para onde – histórica, ontológica ou antropologicamente – retornar. O mesmo ocorre com a “recolocação em jogo” das lutas do passado: faz-se necessário seu desvio, inseparável de seu renversement.
178
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
O conc eito de détournement traz consigo, deste modo, uma concepção da história em que assumem um lugar central a possibilidade, presente na concepção surrealista da história, e o envelhecimento, o deperecimento da existência, essencial à concepção barroca, segundo a interpreta Debord. 40 Em A sociedade do espetáculo, como já dito, o détournement s e apresenta antes de tudo como resposta à busca da linguagem crítica e dialética, da qual a teoria mesma se constitui: uma crítica “lingüístico”-teórica que deve expressar em seu próprio modo de exposição a negatividade em face dos conceitos existentes, incluindo “a inteligência de sua fluidez reencontrada” e sua “destruição necessária” (SdS, § 205). Em outras palavras, “dialética em sua forma como é em seu conteúdo [...] o modo de exposição da teoria dialética testemunha o espírito negativo que está nela” (SdS, §§ 204/206). Com base nisto, o détournement se articula em duas dimensões indissociáveis. Como crítica do presente, ele expõe, em sua própria linguagem détournée, a “reversão do genitivo” e a “substituição do sujeito pelo predicado”, apresentando “lingüístico”-criticamente o momento verdadeiro que se encontra subsumido na totalidade do falso e, nisto mesmo, a inteligência da possibilidade de sua reversão 40. E poder-se-ia dizer ainda que esta concepção barroca situa-se já no próprio método ducassiano das Poésies: como busca mostrar L. PerroneMoisés, há “fios subterrâneos” que ligam, na obra de Lautréamont, o barroco espanhol, o romantismo e o surrealismo (“Lautréamont e os surrealistas” [1996], em Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 85 ss.). Trata-se, porém, não apenas das “ousadias retóricas do barroco espanhol, verdadeiras prefigurações dos achados surrealistas [e que] poderiam explicar boa parte do pré-surrealismo de Ducasse” (Perrone-Moisés), os quais poderíamos se estender a Debord, mas também da concepção histórica do barroco que se apresenta, em sua recepção por Debord, no próprio método do détournement. Neste sentido é que, como o faz G. Marelli, se pode dizer que “a estética situacionista ... [era] ... barroca e, enquanto tal, enganosa, fugaz, ilimitada e provisória: o ser estático e rígido se transforma em um devir harmônico e plástico entre o sujeito e o objeto” (G. Marelli, La dernière internationale: les situationnistes au-delà de l’art et de la politique. Tr. fr. D. Bosc. Arles: Éditions Sulliver, 2000, p. 56).
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
179
prática. 41 Perseguindo uma consciência histórica que falta à linguagem tornada “espetáculo”, ele busca também “o desvio de todas as aquisições da crítica anterior” (SdS, § 206). Neste gesto, a anterior produção cultural, em seus momentos de verdade (os que, nela, se demonstram verdadeiros para a crítica atual), faz-se presente como “vestígio” (trace) histórico na e da própria crítica do presente. Envelhecido pela passagem do tempo e pela transformação das condições sociais, um aspecto qualquer da cultura e da crítica se transforma em “fragmento arrancado de seu contexto, de seu movimento e, finalmente, de sua época, como referência global, e da opção precisa que era no interior dessa referência, exatamente reconhecida ou errônea” (SdS, § 208). Como fragmento desviado, a crítica passada se apresenta imediatamente, em sua própria linguagem, na linguagem crítica do presente; e a crítica presente contém em seu próprio modo de exposição a persistência e a modificação da crítica passada, mantendo em sua própria linguagem crítica um vestígio histórico de que ela se apropria e torna seu. “O détournement”, diz Debord, “conduz à subversão as conclusões críticas passadas que foram fixadas em verdades respeitáveis, isto é, em mentiras” (SdS, § 206). Ele apanha a própria crítica passada em seu deperecimento, imprimindo-lhe fluidez e a tornando atual. Ao tomar o passado como possibilidade, como ambigüidade e como deperecimento, o détournement busca a persistência modificada da crítica anterior submetendo-a ao presente e, assim, tanto mantém a memória
41. É porque, sob o espetáculo, a aparência social não é inteiramente falsa, mas nela também se apresentam momentos de verdade, como discutido no primeiro capítulo, que Debord pode estender – em seus filmes, em panfletos e cartazes da I.S. por volta de 68 – seu método de détournement até mesmo a frases da publicidade, a imagens de histórias em quadrinhos, revistas pornográficas e a cenas de filmes comerciais. Também elas são ambivalentes e, se bem desviadas, permitem à crítica revelar “atos falhos” na presente consciência social reificada.
180
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
histórica da crítica atual e o domínio sobre o seu próprio passado, em virtude de sua central referência no presente, quanto recusa a fixidez, a coagulação e a manutenção de algo que supostamente não sofreria o deperecimento, a passagem destruidora do tempo e que, por isto mesmo, se tornaria somente numa “mentira” caso usado como “citação” à qual se deveria reconhecer “autoridade”. Para Debord, a crítica social, sendo histórica, pois atada ao presente, deve manter como essencial à sua elaboração e à sua exposição a história da crítica. Ela certamente comete aquela injustiça com o passado que, segundo Nietzsche, é própria a toda ação no presente e ao esquecimento que esta ação exige, pois o método do desvio é “a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar, [ele] não fundou sua causa em nada de exterior à sua própria verdade como crítica presente” (SdS, § 208). Mas também é somente este desvio que, impedindo que a crítica e os produtos culturais do passado se tornem uma “mentira respeitável”, “pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele restitui [renova, volta a trazer, ramène]”. A crítica passada é desviada em seu conteúdo, para fazer-se presente – num outro contexto e noutro significado histórico – através de suas palavras, suas imagens, seus gestos que, ambíguos para este presente, podem nele e em função dele obter “a ação histórica, e a correção histórica que é a sua verdadeira fidelidade” (SdS, § 209). Ao conceber uma perspectiva comunicativa para a experiência expressiva da arte moderna, diante da crítica do capitalismo contemporâneo e da expropriação das possibilidades da comunicação que lhe é essencial, Debord propõe na verdade um détournement da arte e da cultura modernas. Busca uma ação no presente que significa, duplamente, uma confirmação do “núcleo de verdade” e uma “correção histórica” de todo seu conteúdo social crítico. Voltada para o presente, a concepção histórica que funda esta busca é centrada numa visão da permanente possibilidade de recolocação em jogo da poesia e
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
181
d a s dívidas históricas e, ao mesmo tempo, numa visão do movimento de deperecimento de tudo que é histórico, característica essencial à própria cultura moderna em sua natureza barroca. Para Debord, somente o desvio é a “negação real da cultura”, pois “é a única a conservar seu sentido” (SdS, § 210). Por isso, a reversão do horizonte expressivo em horizonte comunicativo significa a reversão e o desvio para a práxis revolucionária da busca poético-expressiva pela “comunidade” que ele julga existir en négatif em toda a experiência da arte moderna. Este modo de superação da arte moderna a “corrige” historicamente e, nisto mesmo, se lhe mantém “fiel”. É uma forma d e correção e fidelidade que, c o n c e b i d a metodologicamente como “modo de exposição” da crítica teórica do capitalismo mais desenvolvido, faz presente em sua própria elaboração e escrita a perspectiva comunicativa: Pascal ao lado de Marx, os niveladores ao lado do Cardeal de Retz, Lautréamont e Nietzsche ao lado de Hegel e Baltazar Gracián. Pode-se dizer que, desta maneira, Debord experimenta em sua própria escrita uma forma de comunicação histórica que, como aquela registrada por Heródoto, deseja estar indissociada de uma comunicação prática no presente. Nesta comunicação histórica ínsita ao modo de exposição da teoria crítica, a dialética se torna, ela mesma, um método por excelência comunicativo.
182
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
183
Considerações finais Mas as teorias somente são feitas para morrer na guerra do tempo: são unidades mais ou menos fortes que é preciso engajar no justo momento no combate e, quaisquer que sejam seus méritos ou suas insuficiências, somente podem ser seguramente empregadas as que estão aí, em momento útil. Assim como as teorias devem ser substituídas, porque suas vitórias decisivas, mais ainda que suas derrotas parciais, produzem seu desgaste, do mesmo modo nenhuma época viva partiu de uma teoria: havia de início um jogo, um conflito, uma viagem. Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni
A interpretação do pensamento de Debord aqui exposta recoloca, a respeito do próprio Debord, a interpretação que este propusera para a experiência da arte moderna e das vanguardas do início do século 20, a saber, que seu centro se constitui numa reflexão social sobre a linguagem. Se, segundo interpreta Debord, todas as vanguardas e a arte moderna se constituíram essencialmente na assunção consciente e crítica da destruição das linguagens tradicionais, tornadas falsas no interior de uma experiência social caracterizada pela destruição acrítica e alienada das anteriores experiências comunicativas, é necessário assumir, como chave de interpretação da própria reflexão de Debord, a persistência e a continuidade desviada desta temática. Debord a recoloca em jogo nas condições reificadas de
184
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
expropriação de toda linguagem comunicativa e de todos os valores comunicáveis do capitalismo contemporâneo. Em outras palavras, busquei nestas páginas trabalho explicitar o que, ao lado de Agamben, Kaufmann e Virno, considero o centro da reflexão de Debord, que é, como já salientado nas considerações introdutórias, uma retomada da crítica da economia política que desenvolve suas categorias no âmbito da experiência social da linguagem. Neste desenvolvimento, opera-se uma juntura entre a crítica teórica das formas-valor e a reflexão sobre a linguagem não apenas na denúncia de que à expropriação da atividade autônoma acompanha uma expropriação das potencialidades comunicativas da sociedade, mas também – e é esta a especificidade do presente livro – na elaboração de uma perspectiva comunista na qual a superação das relações fetichistas e a construção de uma nova comunicação são inseparáveis. Neste horizonte, a categoria metafísica da linguagem comum, que orienta toda a reflexão de Debord sobre a linguagem social, assume um outro significado na concepção debordiana da dialética. Refiro-me justamente à categoria de totalidade. Deve-se observar que esta categoria aparece em seus textos, antes de tudo, na compreensão crítica de que o conjunto das alienações do capitalismo contemporâneo conforma uma totalidade fundada na determinação da forma-mercadoria sobre a inteira vida social, as atividades e as relações entre os indivíduos. A este fenômeno totalizante e totalitário, os situacionistas chamaram de “economização da vida”. É o domínio da economia, entendida no sentido estrito de economia de mercado, que submete as relações humanas à lógica autônoma da tranformação do dinheiro-capital em mais-dinheiro. As relações produzidas e estabelecidas pelos homens ganham vida própria e, assim, passam a dominá-los. Com base nesta hierarquia primeira do valor econômico sobre as atividades humanas e a utilidade das coisas se ergue a hierarquia da economia sobre os homens e suas vidas, e dos especialistas e
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
185
dirigentes da produção mercantil sobre o conjunto da sociedade. Esta hierarquia se demonstra também no Estado e num sistema completo de hierarquias, alienações e expropriações da vida que está pre sente em todo o cotidiano e nas instituições separadas que, desde fora, planejam e controlam a cotidianidade. Sabemos o quanto é problemático, hoje, falar em totalidade. Em geral, este é um conceito que, em determinadas vozes, faz lembrar – para o bem ou para o mal – o velho ideal filosófico de sistema, de saber absoluto. Mas não é disso que se trata para Debord e os situacionistas. Primeiro, porque a teoria não é, para eles, um conhecimento positivo, e não se trata, assim, de constituir um conhecimento do todo, um sistema de saber. A teoria, para Debord, é tão finita e passageira quanto o são as gerações dos homens; produzida no tempo, diz respeito às lutas do tempo e, neste sentido, cumpre uma função estratégica. Assim, longe de um saber total, ele propõe uma crítica total às condições de existência da sociedade dominada pela mercadoria. Somente como crítica de totalidade a negação da atual forma histórica da sociedade pode ser de fato crítica e negativa, protegendo-se da recuperação própria a qualquer crítica “no varejo”. E tal crítica só podia ser total na medida em que, nesta sociedade, uma determinação se fez total: as relações de compra-e-venda, submetendo a si todas as dimensões da vida. Trata-se, portanto, da crítica da má totalidade. Nesta crítica, Debord não lamenta o fato de que a economia tenha dominado tudo, propondo contra isso limitar a economia, mas denuncia a economia como necessariamente totalitária e, contra ela, propõe sua dissolução, que é ao mesmo tempo a dissolução do Estado e de todo o sistema único de alienações e hierarquias.1 1 . A compreensão de que a posição teórica construída por Marx não se constitui em disciplinas científicas modernas (economia política, ciência do direito, filosofia etc.), mas em crítica (da economia política, do direito, da filosofia etc.), é mais um elemento que liga a reflexão de Debord às de Karl Korsch (especificamente, em Marxismo e filosofia) e de Lukács (em História e consciência de classe). Para estes autores, como para Debord, não sendo a tarefa da teoria crítica produzir uma ciência positiva ou um saber positivo
186
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Para além de uma categoria crítica, a totalidade aparece também em seus textos como um telos metafísico inseparável da “nova” linguagem comum e da comunidade histórica. Se a totalidade lhe aparece como “a experiência real, o oxigênio da crítica impiedosa do existente”, 2 ela também é o que falta à experiência reificada da linguagem: “Somente a linguagem que perdeu toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação”. 3 Neste aspecto, a totalidade se apresenta como o que falta ao mundo das separações, do isolamento mútuo dos indívíduos e da radical ausência de comunicação efetiva entre os homens no capitalismo mais desenvolvido. Neste aspecto, Debord se mantém muito próximo dos termos apresentados por Hegel em Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie (1801). Neste texto juvenil, Hegel denuncia a “harmonia dilacerada” (zerrissene Harmonie) e a “cisão” (Entzweiung ) no interior da cultura (Bildung), na qual “a manifestação do absoluto se isolou do absoluto e se fixou como algo autônomo”. 4 Este mundo cindido é, ele mesmo, um “todo” (Ganzes) da multiplicidade de suas limitações. Para Hegel, porém, este todo não é a totalidade, mas apenas uma relação não-viva entre as partes; por isto, a cisão do mundo não é superada no todo, mas nele se encontra expressa e reposta como mundo cindido. Neste todo, a totalidade se encontra “perdida nas partes”. Ao mesmo tempo, a “aspiração da vida” (Bestreben des Lebens), presa nas partes deste todo, se agita sob e contra ele, “para sair dali em busca da liberdade”. Assumindo a forma da Razão – o que, para Hegel, significa da realidade, mas justamente uma crítica do existente, é isto o que capacita a esta mesma teoria crítica poder falar/saber sobre a realidade reificada. Um saber, contudo, que se sabe provisório, pois produzido como momento de uma práxis temporalmente delimitada. 2 . “L’avant-garde de la présence”, loc. cit., p. 17. 3 . Idem, p. 31. 4 . Hegel, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie [1801]. Werke in 20 Bänden, B. II. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1970, p. 19.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
187
superar o ponto de vista classificatório, calculador e enrijecedor do Entendimento – a vida aniquila o todo das limitações e se reencontra como totalidade, assim fazendo desaparecer a cisão. Esta superação da cisão é, para Hegel, a tarefa da filosofia. Preocupado em ir além da oposição própria à filosofia moderna entre a “subjetividade absoluta” e a “objetividade absoluta”, o filósofo alemão expressa, nesta concepção, o cuidado de preservar, como necessidade e fator da própria vida, a existência de inevitáveis cisões. A vida, diz ele, se autoconfigura contrapondo-se perpetuamente (e a “aspiração da vida”, neste sentido, não se constitui numa potência positiva, mas dialética, pois autocontraditória). Destarte, a razão se opõe não à cisão tout court, mas à “fixidez absoluta da cisão”, esta fixidez sendo aquela em que “o poder de unificação desaparece da vida dos homens e os opostos perdem sua viva relação e interação e adquirem autonomia”. 5 Esta frase, citada no § 180 de A sociedade do espetáculo, é desviada por Debord na análise da cultura moderna e na averiguação de uma vocação que lhe seria ínsita de busca da “unidade perdida” (unité perdue), busca na qual justamente “a cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negarse”. Não é o caso aqui de voltar a discutir a teoria debordiana da superação da moderna cultura separada, mas a localização, em seu contexto original, dessa frase hegeliana citada em A sociedade do espetáculo ajuda a compreender o segundo sentido que a categoria da totalidade assume em Debord. Como categoria metafísica prospectiva, que se confunde com a da linguagem comum, a totalidade é a comunidade histórica a vir, na qual a “cisão necessária” (Hegel) não é suprimida, mas posta em relação viva. Longe de uma superação que identifique completamente uma e outra, a oposição entre a subjetividade e a objetividade perde, na totalidade, sua fixidez e, nos termos de Debord, inicia sua existência “histórica”, como relação viva e interação jamais inteiramente consolidada. 5 . Idem, p. 21.
188
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
Por fim, no centro desta perspectiva – e fundando-a – está uma outra categoria hegeliana: justamente a da negatividade. Mantendo como fundamento de sua reflexão a crítica teórica e prática da economia política e, portanto, a consideração sobre as condições sociais e históricas da experiência da linguagem, Debord concebe o projeto de uma nova comunicação como inscrito na negatividade presente na experiência da arte moderna e, contemporaneamente, nas lutas sociais que ocorrem sob (e contra) as condições do capitalismo espetacular. Deste modo, sua crítica social se constitui numa imanência negativa às próprias condições históricas da reificação. Em outras palavras, em seu pensamento, a luta prática e a crítica teórica à reificação só podem ter como base a própria reificação. O conceito de alienação em Debord, mormente no que diz respeito à forma que ela assume como expropriação da potência comunicativa da linguagem, se reencontra tanto com a concepção de autonegação, já suposta em Marx, quanto com a importância da prática crítico-negativa, tomada por Debord como pressuposto da comunicação direta. A concepção de que a arte moderna assumiu consciente e criticamente a destruição da linguagem, destruição esta que, no entanto, é determinada antes de tudo pelo desenvolvimento – ele mesmo, essencialmente destrutivo – das forças produtivas modernas, assinala já uma atenção para a negatividade como potência construtiva, justamente porque a perspectiva de uma nova linguagem comum não é simplesmente concluída do processo “objetivo” do desenvolvimento capitalista, mas antes elaborada como sentido histórico da assunção crítica da destruição da antiga linguagem pela arte moderna. Esta assunção teria desempenhado, segundo Debord, uma posição negativa em face da sociabilidade burguesa e da pseudocomunicação que lhe é essencialmente constitutiva. Na perspectiva da comunicação, Debord concebe sempre o “destrutivo” da modernidade sob o modo dialético do negativo; concebendo-o, pois, como negativo, o “destrut ivo” é, também para ele, inseparável do “criativo” ou “construtivo”.
R EIFICAÇÃO
E
LINGUAGEM
EM
GUY DEBORD
189
No Prefácio à Fenomenologia do Espírito, escrito ao qual Debord faz diversas referências em seus textos, Hegel afirma – aparentemente numa polêmica contra Spinoza e Schelling – que se deve acreditar no “poder do negativo” (Macht des Negativen). Assumindo este horizonte como central à sua reflexão, Debord desvia, para um significado dialético-negativo, as considerações essencialmente positivas de Nietzsche sobre a comunicação. “Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros”, diz Nietzsche; “é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro”. 6 Desviada para uma base dialética, não é outra a concepção de Debord sobre a comunicação: “a comunicação não existe jamais em outro lugar que não seja na ação comum. E os mais surpreendentes exageros da incompreensão estão, assim, ligados ao excesso de não-intervenção”. 7 Aqui, a “ação comum” é compreendida justamente como diálogo prático, crítica prática, negação. Para ele, unicamente a negatividade ínsita à práxis revolucionária – baseada no “destrutivo” das condições modernas de existência e alimentada pela experiência da poesia moderna – constitui a ação comum e, logo, a comunicação das quais pode advir a comunidade realmente histórica. Não podendo recorrer ao passado, tampouco à interioridade subjetiva, Debord ampara sua perspectiva comunista de uma nova comunidade apenas e exclusivamente nas contradições da própria existência presente e na práxis negativa em face delas. Como para o jovem Marx, a negatividade significa, para ele, a única possibilidade de uma reflexão puramente histórica, não metafísica (no sentido tradicional de metafísica) da experiência social dos homens, pois constituída 6 . F. Nietzsche, Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro [1886]. Tr. br. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 268, p. 182. 7 . “Communication prioritaire”, loc. cit., p. 21.
190
JOÃO EMILIANO FORTALEZA
DE
AQUINO
na própria existência social fabricada, produzida pela atividade humana, ainda que (ou: precisamente porque) sob a forma da autonegação. Negando o mundo que os nega, os sujeitos da crítica prática se negam a si mesmos, isto é, negam as formas alienadas em e sob as quais estão constituídos e reinventam a si e ao mundo. É justamente deste modo que Debord concebe o significado histórico dos Conselhos Operários húngaros (1956), as greves com ocupações de fábrica em Maio de 68, na França, e as Assembléias Autônomas nas grandes fábricas italianas e portuguesas, durante os anos 70: como experiências negativas de invenção da “história universal”, baseada na crítica prática e no diálogo anti-hierárquico.
191
Bibliografia I Obras de Debord, publicações da Internacional Letrista e da Internacional Situacionista Debord, G. Oeuvres cinématographiques complètes 1952-1978. Paris: Gallimard, 1994. _____. Guy Debord présente Potlatch (1954-1957) [1985]. Paris: Gallimard, 1996. _____. I situazionisti e le nuove forme de l’azione nella politica e nella’arte [1963]. Tr. it. Chiara Maraghini Garrone. Torino: Nautilus, 1990. _____. La déclin et la chute de l’économie spectaculairemarchande [1966]. Paris: Les Belles Lettres, 1993. _____. La société du spectacle [1967]. Paris: Gallimard, 1998. _____. Die Gesellschaft des Spektakels. Übersetzung aus dem französischen von Jean-Jacques Raspaud. Hamburg: Edition Nautilus, 1978. _____. La véritable scission dans l’Internationale [1972]. Paris: Fayard, 1998. _____. Considérations sur l’assassinat de Gérard Lebovici [1985]. Paris: Gallimard, 1993. _____. Commentaires sur la société du spectacle [1988]; Préface à la quatrième édition italienne de La société du spectacle [1979]. Paris: Gallimard, 1992. _____. A sociedade do espetáculo; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo; Comentários sobre a sociedade
192
do espetáculo. Tr. br. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Debord, G. Panégyrique I [1989]. Paris: Gallimard, 1993. _____. Cette mauvaise réputation. Paris: Gallimard, 1993. _____. Correspondance, 4 vol. Paris: Fayard, 1999, 2001, 2003, 2004. Debord, G. et al. Guy Debord (contro) il cinema, organização de E. Ghezzi e R. Turigliato. Milano: Editrice Il Castoro, 2001. Debord, G., Jorn, A. Fin de Compenhague [1959]. Paris: Éditions Allia, 2001. Debord, G., Canjuers, P. Préliminaires pour une définition de l’unité du programme révolutionaire [1960] /Blanchard, D. Debord dans la cataracte du temps. Paris: Sens & Tonka, 2000. _____. Preliminares para uma definição da unidade do programa revolucionário. Tr. br. Emiliano Aquino e Romain Dunand; revisão de Tomás Rosa Bueno. Fortaleza: Os enraivecidos, 2002; www.geocities.com/debordiana, 2002. Debord, G., Martos, J.-F. Correspondance avec Guy Debord. Paris: Le fin mot de l’Histoire, 1998. Internacional Situacionista. Internationale Situationniste 19581969. Texte intégral des 12 numéros de la révue , édition augmentée. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1997. _____. Baderna situacionista, teoria e prática da revolução. Tr. br. Francis Wuillaume e Léo Vinícius. São Paulo, Conrad, 2002. Internacional Situacionista (seção inglesa). La rivoluzione dell’arte moderna e l’arte moderna della rivoluzione [1967]. Tr. it. Carlos Melis. Torino: Nautilus, 1994. Vaneigem, R. Traité du savoir-vivre à l’usage des jeunes générations [1967]. Paris: Gallimard, 1992. _____. A arte de viver para as novas gerações. Tr. br. Léo Vinícius. São Paulo: Conrad, 2002.
193
Coletivo. Enragés et situationnites dans le mouvement des occupations [1968]. Paris: Gallimard, 1998.
II Bibliografia complementar Adorno, T. Prismas [1969]. Tr. br. Augustin Wernet e Jorge M. B. Almeida. São Paulo: Editora Ática, 1998. _____. Prismen. Gesammelte Schriften, t. 10-1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977. _____. Teoria estética [1970]. Tr. port. Artur Morão. LisboaSão Paulo: Martins Fontes, 1988. _____. Ästhetische Theorie. Gesammelte Schriften, t. VII. Frankfurt am Main: Surkhamp Verlag, 1990. _____. Notes sur la littérature [1958]. Tr. fr. Sibylle Muller. Paris: Flammarion, 1984. _____. T. Noten zur Literatur. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2003. Agamben et al. I situazionisti. Roma: Manifestolibri, 1991. Agamben, G. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. _____. L’uomo senza contenuto. Macerata: Quodlibet, 2000. Amaral, I. “Crítica ao ‘Manifesto contra o trabalho’”, em contraa-corrente, Fortaleza, CE nº 9, setembro/dezembro de 1999 [www2.autistici.org/contraacorrente/]. Apostolidès, J.-M. Les tombeaux de Guy Debord. Paris: Exils Éditeurs, 1999. Aquino, J. E. F. “Anotações sobre A sociedade do espetáculo: apresentação de uma edição pirata”, em Debord, G. A sociedade do espetáculo. Belo Horizonte: Coletivo Acrático Proposta, 2003 [www.rizoma.net/interna.php?id=133&secao=potlatch]. _____. “Imagem onírica e imagem dialética em Walter Benjamin”, em Kalagatos, Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE, Vol. 1, nº 2. Fortaleza: Editora da UECE, 2004, pp. 45-72.
194
Aragon, L. Une vâgue de rêves [1924]. Paris: Seghers, 1990. _____. O camponês de Paris [1926]. Tr. br. Flávia Nascimento, Posfácio de J.-M. Gagnebin. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Arato, A, Breines, P. El joven Lukács y los orígenes del marxismo ocidental [1980]. Tr. mex. J. Aguilar Mora. Ciudad de México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1983. Bandini, M. L’esthétique, le politique: de Cobra à l’Internationale Situationniste. Tr. fr. Claude Galli. Paris: Sulliver, 1998. Bataille, G. Œuvres complètes, t. I-II. Paris: Gallimard, 1972. Baudelaire, C. Œuvres complètes. Paris: Robert Lafont, 1980. Behrens, R. “Rezension der Neuauflage der ‘Gesellschaft des Spektakels’”, em Krisis, disponível on-line em www.magnet.at/ Krisis/karoshi/situ.html). Benjamin, W. Obras escolhidas , 3 vol. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989-1993. _____. Oeuvres, 3 t. Paris : Gallimard, 2000. _____. Correspondance, 2 tomos. Tr. G. Petitdemange. Paris: Aubier Montaigne, 1979. _____. Paris, Capitale du XIXe. Siècle. Le livre des passages. Tr. fr. Jean Lacoste. Paris: Les Édtions du Cerf, 1989. _____. Passagen-Werk. Gesammelte Schriften, V-1/2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982. Blanc, D. L’Internazionale situazionista e il suo tempo. Milano: Colibri, 1998. Blanchard, D. Debord dans le bruit de la cataracte du temps . Paris: Sens & Tonka, 2000. Bonnet, M. André Breton, la naissance de l’aventure surréaliste. Paris : José Corti, 1988. Bourseiller, C. Vie et mort de Guy Debord. Paris: Plon, 1999. Breton, A. Oeuvres complètes, t. I. Paris: Gallimard, 1988. _____. Œuvres complètes, t. II. Paris: Gallimard, 1992.
195
Breton, A. Nadja [1928]. Tr. br. Ivo Barroso. São Paulo: Imago, 1999. Bürger, P. Teoría de la vanguardia [1974]. Tr. esp. Jorge García. Barcelona: Ediciones Península, 1987. Castoriadis, C. Instituição imaginária da sociedade. Tr. br. G. Reynaud. São Paulo: Paz e Terra, 1982. Chatain, J. Georges Bataille. Paris: Éditions Seghers, 1973. Chatelet, F. La naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne en Grèce. Paris: Les Editions de Minuit, 1962. Duarte, R. “Expressão como fundamentação”, em Kriterion, nº 91, janeiro-julho/1995, Departamento de Filosofia FFCH/UFMG. Dufrenne, M. Art et politique. Paris: Union Général d’Éditions, 1974. Eagleton, T. “Capitalismo, modernismo e pós-modernismo”, em Crítica marxista, v. 1, nº 2, São Paulo, Editora Brasiliense, 1995. Fabrini, R. A arte após as vanguardas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002. Feuerbach, L. Princípios da filosofia do futuro. Tr. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002. Freud, S. A interpretação dos sonhos. Obras Psicológicas Completas de Freud, vol. IV. Tr. bras. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987. _____. Die Traumdeutung. Sigmund Freud Studienausgabe, Band II. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1972. _____. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. O b r a s Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume VI. Tr. br. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1987. _____. O futuro de uma ilusão [1927]. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Tr. br. J. O. Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974. _____. Die Zukunft einer Illusion. Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1974.
196
Freud, S. Totem e tabu [1912-13]. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Tr. br. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974. _____. Totem und tabu. Sigmund Freud Studienausgabe, Band IX. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1974. _____. Mal-estar na civilização [1932]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974. _ _ _ _ _ . D a s U n b e h a g e n i n d e r K u l t u r . S i g m u n d Freud Studienausgabe, Bd. IX. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1974. _____. O ego e o id [1923]. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XIX. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _____. Das Ich und das Es. Sigmund Freud Gesammelte Werke, Bd. XIII. London: Imago Publishing, 1947. _ _ _ _ _ . Novas conferências introdutórias [1932/1933]. Conferência XXXI. Obras Completas Psicológicas de Freud, vol. XXII. Tr. br. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _____. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Sigmund Freud Gesammelte Werke, Bd. XV. London: Imago Publishing, 1946. Gagnebin, J.-M. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva-Fapesp, 1994. _____. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. São Paulo: Imago, 1997. Garzia-Roza, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana 2, A interpretação do sonho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Ghezzi, E., Turigliato, R. (org.) Guy Debord (contro) il cinema. Milano: Editrice Il Castoro, 2001. Gombin, R. Les origines du gauchisme. Paris: Éditions Seuil, 1971. Gonzalez, S. Guy Debord ou la beauté du négatif. Paris: Nautilus, 2002.
197
Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade [1985]. Tr. port. de Ana Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. _____. Teoría de la acción comunicativa, I. Tr. esp. M. J. Redondo. Madrid: Taurus, 1987. Hartog, F. A história de Homero a Santo Agostinho . Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. Haug, W. F. “De Nietzsche a Marx”, entrevista com Ernani Chaves e Isabel M. Loureiro, revista Praga, nº 3, setembro de 1997. Hegel, G. Enciclopédia das ciências filosóficas. Tr. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70. _____. Estética, IV. Tr. br. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004. _____. Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Werke in 20 Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1992. _____. Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie [1801]. Werke in 20 Bänden, B. II. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1970. _____. Wissenschaft der Logik, I. Werke in 20 Bänden, B. 5. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1993. Heródoto, Storie. Tr. it. A. I. D’Accini. Milano: RCS Libri, 2000. Jameson, F. A cultura do dinheiro, ensaios sobre a globalização. Tr. br. M. E. Cevasco e M. C. P. Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. Jappe, A. Guy Debord [1993]. Tr. br. Iraci Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. Kaufmann, V. Poétique des groupes littéraires. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. Kaufmann, V. Guy Debord, La révolution au service de la poésie. Paris: Fayard, 2001.
198
Lautréamont, Obra completa. Tr. br, introd. e notas C. Willer. São Paulo: Iluminuras, 1997. Le Goff, J. História e memória. Tr. br. Irene Ferreira et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992. Löwy, M. “Consumé par le feu (Le romantisme de Guy Debord)”, Lignes, nº 31, Paris, Harzan-Lignes, 1997. _____. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo [2002]. Tr. br. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. _____. “Walter Benjamin et le surréalisme” em Europe, Paris, abril de 1996, nº 804. Lukács, G. Teoria do romance [1914-15]. Tr. br. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades – Editora 34, 2000. _____. Realismo crítico hoje [1956]. Tr. br. Nelson Coutinho. Brasília, DF: Editora de Brasília, 1969. _____. Estética, vol. I, “La peculariedad del estetico: Cuestiones preliminares y de principio”. Trad. esp. Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1982. Magazine Littéraire, nº 399, Paris, junho de 2001. Mallarmé, S. Œuvres complètes. Édition établie e annoté par H. Mondor. Paris: Gallimard, 1945. Maquiavel, N. “O príncipe”. Col. Os pensadores. Tr. br. Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural, 1987. _____. Tutte le opere storiche, politiche e letterarie, a cura di Alessandro Capata. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1998. Marelli, G. L’amère victoire du situationnisme. Tr. fr. David Bosc. Paris: Sulliver, 1998. _____. La dernière Internationale, Les situationnistes au-delà de l’art et de la politique. Tr. fr. David Bosc. Paris: Sulliver, 2000. Martos, J.-F. Histoire de l’Internationale Situationniste [1972]. Paris: Éditions Ivrea, 1995.
199
Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos [1844]. Tr. br., apresentação e notas Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. _____. Ökonomisch-philosophisce Manuskripte. Marx & Engels Studienausgabe, Band II – “Politische Ökonomie”. Herausgegeben von Iring Fetscher. Frankfurt am Main: Fischer Bücherei, 1966. _____. O capital: crítica da economia política, livro I, vol. 1. Tr. br. Regis Cardoso e Flávio René Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1985. Marx, K.-Engels, F. Manifesto do partido comunista [1848]. Moscou: Editorial Progresso, 1987. Micheli, M. As vanguardas artísticas. Tr. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1991. Morais, E. R. O corpo impossível. A decomposição da figura humana, de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Fapesp-Editora Iluminuras, 2002. Navarri, R. André Breton: Nadja. Paris: PUF, 1986. Nietzsche, Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida [1873]. Tr. br. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. _____. Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro [1886]. Tr. br. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Ohrt, R. (Her.). Das grosse Spiel: Die situationisten zwischen Politik und Kunst. Hamburg: Verlag Lutz Schulenberg, 1999. d’Ors, E. Du baroque [1935]. Paris: Gallimard, 2000. Ortellado, P. Castoriadis e a questão da práxis: da crítica das relações de produção capitalistas à elucidação do socialhistórico, São Paulo, USP-FFLCH, 2003 (tese de doutorado). Perniola, M. A estética do século XX [1997]. Tr. port. Teresa A. Cardoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
200
Perrone-Moisés, L. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Platão, Crátilo. Tr. br. C. A. Nunes. Belém: UFPA, 1973. _____. Tutte le opere. Edizioni integrali con testo greco a fronte. Roma: Grandi Tascabili Economici Newton, 1996. Políbios, História. Tr. br., introd. e notas de Mário da Gama Kury. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 1985. Ribeiro, R. J. “Feitiçarias do capital”, Folha de São Paulo, 17 de agosto de 1997. Sève, L. Análises marxistas da alienação. Tr. port. Madalena Cunha Matos. Lisboa: Editorial Estampa, 1975. Sollers, P. La guerre du goût. Paris: Gallimard, 1996. Subiratis, E. A penúltima visão do paraíso. Tr. br. Eduardo Brandão. São Paulo: Studio Nobel, 2001. Teles, G. M. (org.) Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982. Vernant, J.-P, Vidal-Naquet, P. La Grèce ancienne. 2. L’espace et le temps. Paris: Éditions Seuil, 1991. Vidal-Naquet, P. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio [2000]. Tr. br. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Wildcat-Zirkular, “Zur Kraft der situationistischen Kritik und ihrer Rezeption in Deutschland” (Nº 62, fev/2002, pp. 32-36, http://www.wildcat-www.de/zirkular/62/z62situa.htm). Wolin, R. Labirintos. Em torno a Benjamin, Habermas, Schmitt, Arendt, Derrida, Marx, Heidegger e outros. Tr. port. M. J. Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. Wollen, “The Situationist International”, in New Left Review, London, March/April 1989.
201
Esta obra foi composta em Batang 10 e Garamond 12 e impressa em papel Soft pólen em outubro de 2006.
Impresso na Gráfica da Universidade de Fortaleza da Fundação Edson Queiroz Av. Washington Soares, 1321 Bairro Edson Queiroz Fone: (0xx85) 3477.3000 Fax: (0xx85) 3477.3055 http://www.unifor.br CEP: 60.811-905 - Fortaleza - Ceará