PaulVeyne
pensamento a pessoa
Raf:ra
Título original: Ftmoou1t, Sa �,
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Tradução: Luís Lima Revido: Gabinete Editorial Texto & Grafia Grafismo: Cristina Leal
Pa�o: Vitor Pedro
© Todos os direitos desta edição reservados para Edições Texto & Grafia, Ldi. Avenida
Óscar Monteiro Torres?
n."
55, 2." Esq.
1000�217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21 797 81 03
texto-grafta@texro.:.gra&.pt www.texto-.gra&.pt E-mail:
rm� acabamento: Papelmunde, SMG, Ldi. e
L" ediçiot Setembro de 2009 ISBN: 978-989-95884�9�3
I)q>OOito Legal n... 297530/09 &ta obra está protegida pcla lei. N"ao pode no
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sem a autorização do Editor.
Qualqu.er �à lá do Direito de Autor será passível de procedimento judícial.
O pmonma du ideiu, do pe.nammto e du trmsformaçôe1 culturais avulta e recorta�se, rico e diverro, na mole de obras e de aconteclmmtos com que a humanidade mi deixando a $111. incllio no corpo irrequieto da
hiltória.
Neste contexto, a colecção PILARES publicari. � que* além do vdo:r intrinseoo, � uma ganmtia de perenidade temática que os possam � no rol de textos fundamentais pan. a articulação e a seu
convenaçio, cada vez mail urgente, dos saberes entre si.
Como lembrança reconhecida dos nossos mestres, Hans-Georg
Pflaum
e Louis Robert
1 Introdução
Não, Foucault não era um pensador estruturalista. Também não foi fruto de um certo «pensamento de 1968»; não era mais relativista do que historicista, nem do género de farejar ideologia por toda a parte. Coisa rara nesse século, ele foi, por confissão própria, um céptico 1; um céptico que acreditava unicamente na verdade dos inúmeros factos históricos que enchem todas as páginas dos seus livros, e nunca na verdade das ideias gerais. Ele não admitia qualquer transcendência fundadora. Mas nem por isso foi um niilista: constatava a existência da liberdade humana (o termo está patente nos seus textos) e não pensava que. a perda de qualq:uer fundamento metafísico ou religioso, mesmo que erguida em doutrina «desencantada», pudesse ter alguma vez desencorajado essa liberdade de ter convicções, esperanças, indignações, revoltas (ele próprio foi disso um exemplo, militou à sua maneira, que era a de um intelectual de um novo tipo; em política foi um nformadcr). No entanto, comiderava falso e inútil pensar nos seus combates, dissert ar sobre as suas indignações, generalizar. «Não utilizem o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade», escreveu 2 ele. Foucault não foi o inimigo do homem e do sujeito humano que se julgou que fosse; considerava, simplesmente, que esse sujeito não podia fazer cair do céu uma verdade absoluta nem agir soberanamente na cons telação das verdades; que só podia reagir contra as verdades e as realidades da sua época ou inovar sobre elas. Como Montaigne, e nos antípodas de Heidegger 3, Foucault considerava que «não temos qualquer comunica ção com o Ser» 4• Todavia, o seu cepticismo não o faz exclamar: «:Ah! l John Rajdlman, Michel Foucault: la libmé de savoir, trad. Durastanti, PUF� 1987,
p. 8. «Foucault é o grande céptico da nossa época. Duvida dos nossos dogmatismos e das
nossas antropologias filosófiCas, cle é o pensador da dispersão e da singularidade». 2 Dits et
Écrits, ed. Defert et Ewald, Gallimard. 1994, 4 vol. (será doravante citado pelas iniciais DE), m. p. 135. 3 Foucault disse o quanto Heidegger contou
para de e evocou
as
mas leituras do
autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modesta opinião, de Heidegger :não teri.lido nada além de Vom Wesen der Wahrhdt e o grande livro sobre Nietzsche - que importou para ele, já que esse livro teve como efeito paradoxal torná�lo nietzschiano e não heideggeriano. 4 Montaignet U, 12, Apologie de
Jla.rmond Sehcnd.
l
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Tudo é duvidoso!». Se preferirmos, este pretenso adepto do Maio de 68 foi um empirista e um filósofo do entendimento, por oposição a uma ambiciosa Razão. Ele formula, de modo quase inconfesso, uma concepção geral da condição humana, da sua liberdade reactiva e da sua respectiva finitude; o foucaultismo é, na verdade, uma antropologia empírica que tem a sua coerência e cuja originalidade reside em ser fundada sobre a crítica histórica. Passemos agora aos pormenores, mas não sem termos, com um objectivo de clareza, enun rimeiro quais serão os nossos dois prin cípios. Primo, o que está em jogo na história humana, para lá mesmo do ·
poder, da economia, etc., é a verdade: que regime económico conceberia confessar a sua falsidade? Este problema da verdade na história não tem nada, rigorosamente nada a ver com duvidar da inocência de Dreyfus ou da realidade das câmaras de gás. Secundo, o conhecimento histórico, por seu lado, se quiser levar a bom termo as análises de uma dada época, terá de atingir, para além da sociedade ou da mentalidade, as verdades gerais nas quais os espíritos dessa época estavam, sem sabert encerrados , " "' ! quats petxes num aquarto. �
Quanto ao céptico, é um ser duplo. Na medida
em
que pensa, em
que se mantém fora do aquário e olha para os peixes que nele andam às voltas. Mas como é preciso viver, dá por si dentro do aquário, também ele peixe, para decidir que candidato receberá o seu voto nas próximas eleições (sem por isso atribuir valor de verdade à sua decisão). O céptico é ao mesmo tempo um observador, fora do aquário de que se distancia, e um dos peixinhos vermelhos. Desdobramento que nada tem de trágico.
Na circunstância, o observador que é o herói deste livro chamava-se
Michel Foucault, essa personagem magra, elegante e incisiva que nada nem ninguém fa:rJa reca u r e cuja esgrima intelectual manejava a escrita como se fosse um sabre. É por isso que eu poderia ter intitulado o livro que vai ler O Samurai e o peixinho vermelho.
Tudo é singular na história universal: I o <
livro; Fou cault mostrava simplesmente, pensava eu, que a concepção da loucur a que tínhamos construído
ao
longo dos séculos havia variado muito; o
que não nos ensinava nada ; já o sabíamos, as realidades humanas traem uma contingência radical (é a conhecida «:arbitrariedade cultural») ou são, pelo menos, diversas e variaveis
·"·
não há nem invariantes histó
ricas, nem essências , nem obje ctos naturais. Os nossos antepassados desenvolveram estranhas ideias sobre
a
loucura, a sexualidade, o
cas
tigo ou o poder. Mas tudo se passava como se admitíssemos que esse tempo do erro estivesse ultrapassado, que fazíamos melhor do que os nossos avós e que conhecíamos a verdade
em
torno da qual eles tinham
girado. «Este texto grego fala do amor de acordo com as concepções da época», dizíamos nós; mas a nossa ideia moderna do amor valia mais que a deles? Não ousaríamos afirmá-lo se essa questão ociosa nos fosse
colo cada;
e
caduca
mas pensaremos nela seriamente, filosoficamente?
Foucault pensou seriamente nela. Eu não tinha compreendido que Foucault tomava partido , sem
o
dizer, num grande debate do pensamento moderno: é ou não a verdade
uma adequação ao seu objecto. parece-se ou não com aquilo que enuncia --como supõe o senso comum? Na verdade , não se vê bem como se
poderia saber se ela é parecida já que não temos qualquer outra fonte de informação que permita confirmá-lo, mas adiante. Para Foucault ,
,
para Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking tantos outros, cada um com a sua própria visão, o conhecimento
como e
não pode ser
o
espelho fiel da realidade. Foucault não acredita mais
do que Richard Rorty 5 nesse espelho, nessa concepção «especular» do saber: segundo ele , o objecto na sua materialidade não pode ser separado dos quadros formais através dos quais o conhecemos e que Foucault, com uma palavra mal escolhida , designa
por «discurso»
.
Está tudo ai.
5 R.
Rorty, Philcscphy and tbe Mirrar rifNatun, Princeton, 1979.
H
1
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Mal compreendida, esta concepção da verdade como não corres pondência com o real fez crer 6 que, segundo Foucault, os loucos não eram loucos e que falar de loucura era ideologia; até mesmo um Raymond Aron não compreendia diferentemente a História da Loucura e dizia-mo sem rodeios: a loucura não é senão demasiado real, hasta ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão; o próprio Foucault professava que a loucura, por não ser aquilo que dela disse, diz e dirá o respectivo discurso, nem por isso «era nada» 7• O que entende então Foucault por discurso? Algo bastante simples:
é a descrição mais precisa, a mais cerrada de uma formação histórica na sua nudez, é o pôr em dia da sua última diferença individual8• Ir assim
até à difjerentia ultima de uma singularidade datada exige um esforço íntele<.'tual de apercepção: há que despojar o acontecimento da roupagem
demasiado ampla que o banaliza e racionaliza. As consequências vão longe, como se poderá ver. No seu primeiro livro, o ponto de partida heurístico de Foucault foi o esclarecimento do discurso daquilo a que chamamos loucura (a desrazão, dizia o discurso de outrora); os livros seguintes exempli ficaram através de outros assuntos a filosofia céptica que ele tinha retirado dessa experiência de pormenor; mas ele próprio nunca expôs dos pés à cabeça a sua doutrina, deixou essa temível tarefa para os seus comentadores 9• Vou tentar aqui explicar o pensamento daquele que foi um grande amigo e que me parece ser um grande espírito.
6 DE, IV, p. 726: .:Fizeram-me dizer que a loucura não existia, quando o problema era absolutamente inveno.» Ver também NaiSSdnce de la biqpolitique. Cours au Collêne de
France 1978-1919, Hautes Études-GalHmard-Seuil, 2004, p. 5. 7 Sécurité, unitmn, pcpulaticn, ed. Ewald, Fontana, Sendlart, ool. Hautes Études
·Gallimard-Seuil, 2004, p. 122: «Pode sem dúvida dizer-se que a loucura nio existe, mas isso não signifi<..'a que ela nio seja nado.
8 Eis um exemplo. Em Homero, oomo ao longo de toda a Antiguidade, escreve M. L Finley,
«as
mulheres eram t idas oomo naturalmente inferiores e o seu pape] limitava
-se por conseguinte à procriação e à execução das tarefas domé'>tiCM» {Le Monde d'Ulysses,
1983, p. 159), Hélêne Monsacré, num :recorte parte de masculinidade que reside a alteridade profunda da rm:�lher» (Ln Larmes d'Achille: le béros, Iaftmrne et la sof!ifrance daru la poésie d'Homm, Albin Michdt 1984, p. 200). trad. Vernant-Blaru.: e Alexandre, Maspero,
mais fino, escreve: «É
na
impossibilidade de integrar verdadeiramente uma
9 Como constata Daniel Defert, «De la violence entre pouvoirs chez Foucault»,
em
et
ínterprétations
De la viclence, Séminaire de Françoise Hhitier, OdHe Jacob,
p. 105. Foucault raramente explicitou
os
grandes temas da
ma
filosofia.
2005, voL I,
L TUDO
É SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL:
O «DISCURSO»
I ! l
Citarei abundantemente os seus Ditos e Escritos porque ele aí evoca os fundamentos da sua doutrina com mais fre quência do que o faz nas suas obras principais. Antes de nos aventurarmos por essa via, p artamos de um exemplo. Suponhamos que empreendíamos escrever uma história do amor ou da �e:xualidade ao longo dos tempos. Poderíamos estar satisfeitos com o � trabalho quando o tivéssemos levado até ao ponto em que o leitor pudesse le:r quais as variações que os pagãos ou os cristãos, nas suas Kl(!�as e práticas, haviam modulado sobre o tema bem conhecido que é o �e:xo. Mas suponhamos que, che a esse ponto, algo nos inquietava que julgávamos dever levar a análise mais longe; teríamos sentido, exemplo, que determinado modo de expressão de um dado autor ou medieval, tal palavra, tal c ontorno de uma frase deixavam, a nossa análise, um resíduo, uma nuance que implicava algo que víramos E que, em vez de ignorar esse resíduo como nio passando uma expressão desajeitada, um mais ou menos, uma parte morta do texto, fazíamos mais um esfo rço para explicitar o que ele parecia implicar e o consegu1amos. Então a venda cai-nos dos olhos: uma vez explicada a variação até ao fim, o tema eterno esbate-se e, no seu lugar, só restam variações mcessivas, diferentes umas das outras a que chamamos os <<prazeres» da Antiguidade, a «carne» medieval e a «sexualidade» dos modernos. Estas três ideias gerais que os homens sucessivamente tiveram sobre o núcleo incontestavelmente real, provavelmente trans-histórico e inaces lfvel, que se encontra por detrás delas. Inacessível, ou antes, impossível discernir: dele fatalmente faríamos um discurso. Suponhamos que, graças ao «programa» de u ma ciência, se aprende verdadeiro> cientlficot sobre a homossexualidade (para Foucau l t a ciência não era uma palavra vã); por exemplo (suposição gratuita da minha parte) que os gostos homossexuais são de origem genética. Seja, e daí? And then what? O que é a homossexualidade? O que faremos desse pedaço, grande ou pequeno, de v erdade? Foucault desejava que se fizesse o discurso de um detalhe insignificante que s6 dissesse respeito à anato mia e à fmologia e não à identidade dos indivíduos; enfim, um detalhe de que só se falaria na cama ou com o médico: �uc,..
aw•nn
.
f
,
Preci samos realmente de um sexo verdadeiro? [é ele quem sublinha, ironicamente] Com uma constância que roça a teimosia, as socieda des do Ocidente moderno responderam afirm ativamente. Puseram obstinadamente em jogo esta questão do «verdadeiro sexo» numa
I
!
FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA
ordem de coisas em que
se
poderia imaginar que apenas contam a
realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres w. O amor da Antiguidade constituiu
um
discurso dos <<prazeres»
afrodisfacos, e insuspeitos, e do seu controlo ético e cívico; que incluía os gestos amorosos da época, tão tímida quanto sem pecado, em que, durante a noite, só um libertino fazia amor�· não às escuras, mas à luz de uma lamparina -, em que uma moral cívica fazia menos distinção entre os sexos do que entre os papéis activo e passivo, onde o ideal do domínio de si fazia com que um Don Juan pudesse ser tomado por efeminado, onde a reprovação obsessiva da cunilíngua (que nem por isso era menos ..
praticada) constituía o derrubar de uma hierarquia dos sexost
em
que o
pederasta fazia sorrir porque levava o gosto pelos prazeres ao ponto de ter um coração de manteiga> etc. Tomemos outro exemplo, menos amável do que o amor: o direito penal através dos tempos. Não basta dizer que, no Antigo Regime, os castigos eram atrozes, o que demonstra a rudeza dos costumes. Nos suplícios pavorosos dessa época, a soberania real «Cai com toda a força» sobre o súbdito rebeldet para dar a medida aos olhos de todos da enor midade da malfeitoria e da desproporção de forças entre o rebelde e o seu rei- que o suplício vinga com cerimonial. Com a Idade das Luzes, o castigo, infligido por um aparelho administrativo especializado, torna -se preventivo e correctivo; a prisão será uma técnica coercitiva de adestramento, para i nstalar novos hábitos no cidadão que não respeitou uma lei 11• Este é um progresso humanitário, seguramente, mas há que compreender> aliás> que é algo diferente de um melhoramento: é uma mudança de parte em parte. Quinze séculos antes, nas arenas do Império Romano, a morte era preparada para o condenado numa encenação mitológica; vestiam-lhe o traje de Hércules a suicidar-se pelo fogo e depois era queimado vivo: cristãs houve que foram trajadas de Danaides, logo p::re"iamente violadas, ou então de Diree e, assim, amarradas aos cornos de um touro. Estas ,
encenações eram um sarcasmo, um ludibrium; o corpo cívico, com o qual o culpado acreditara poder rivalizar, despreza-o agora, ri-se na cara dele para lhe mostrar que não é o mais forte. Cada um destes sucessivos discursos reencontra-se nas leis penais, gestos, instituições} poderes, 10 DE, IV, p. 116. 11 Simplifico aqui a anáHse mais aprofundada que foucault faz em Surveillcr et: punir:
TJai.ssancc
de la priwn, GalHmard, 1975, pp. B3�B4.
I. TUDO
É SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL: O «DISCURSO»
l
costumes e até edifícios que lhe dão expressão e que formam aquilo a que Foucault chama dispositivo. Como se vê, partimos, sem ideia preconcebida, do detalhe dos «factos concretos» 12; descobrimos então variações tão originais que cada uma delas é só por si um tema. Eu falava de tema e de variações, Foucault disse as coisas; em 1979, anotava no seu caderno: «Não passar os universais pelo ralador da história, mas fazer passar a história por um fio de pensamento que recusa os universais». 13 Ontologicamente falando, só existem variações, sendo o tema trans-histórico um mero
nome vazio de sentido: Foucault é nominalista como Max Weber e como qualquer bom historiador. Heuristicamente, mais vale partir do detalhe das práticas, daquilo que se fazia e dizia, e fazer o esforço intelectual de se lhes explicitar o discurso; é mais fecundo (mas mais difícil para o historiador e também para os seus leitores 14) do que partir de uma ideia geral e bem conhecida, porque se corre o risco de se ficar preso a ela, sem nos apercebermos das diferenças últimas e decisivas que a reduziriam a nada. Esqueçamos os suplícios e voltemos antes aos prazeres. Pudemos facilmente distinguir os prazeres pagãos da «carne» cristã (esse discurso da ·carne pecadora e da natureza inspiradora, por ser criação divina).
Sucederam-se outros discursos ainda, o do «sexo» dos modernos 15, para o qual contribuíram a psicologia, a medicina e a psiquiatria; e talvez o sender pós-moderno, com o feminismo e a permissividade, ou antes, o direito subjectivo de ser si próprio e de dizê-lo (a psicanálise não sobreviveria aqui, diria Didier Éribon). Além disso, adivinha-se que cada «:discurso» põe em jogo, em torno do amor, uma infinidade de elementos dispostos em seu redor: costumes, palavras, saberes, normas, leis, instituições;
12 Cf. DE, IV, p. 635: «Dirigir-se como domínio de análise às práticas, abordar o estudo por via do que se fazia.» 13 DE, I, p. 56. 1+ Os livros de Foucaultt incontestavelmente dif.íceis, puderam desconcertar his toriadores de formação mais tradídona1 que arriscaram, porém, criticá-los (penso, por exemplo,
nas gargalhadas despropositadamente dirigidas contra a sua interpretação de Clé
des sonoes de Artemidoro de Daldis).
15 Cf. DE, III, pp. 31 t-312; Arnold I. Davidson, TbeEmergence efSu.uabty, Harvard,
2001; trad. Dauzat, L'Émergcnce de la sexualité: épístémolOfJie historique etformation des concept.ç, Albin Michel, 2005, pp. 79-80.
15
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
por isso valerá mais falar de práticas discursivas ou ainda, de um termo 16•
carregad o de sentido ao qual voltaremos, dispositivos Retomemos: em vez da banalidade que é o amor tinham-nos assim aparecido vários pequenos objectos «de época», bizarros, nunca antes vistos. Acabávamos,
com
efeito, de trazer à luz a parte imersa do amor
na época considerada. A parte visível, que unicamente emergia aos nossos olhos, tinha uma aparência afinal de contas familiar; em contrapartida, assim que se conseguiu explicitar a parte não 'risível, não consciente, apareceu um outro objecto «lacunar e retalhado �7» cujos contornos estapafúrdios não correspondem a nada de sensato e não preenchem já o amplo e nobre drapejado com que esta\ratn revestidos; fazem antes pensar nas fronteiras históricas das nações, traçadas em ziguezague pelos acasos da história, e não
em
fronteiras naturais.
É certo que a ideia que temos da sexualidade ou da loucura (ideia que o discurso inconsciente, implícito, encerra e do qual diz a sin gularidade e a bizarria que nós não vemos) remete seguramente para uma «coisa em si» (diria eu, abusando do vocabulário kantiano), para uma realidade que pretende representar. A sexualidade, a loucura, tudo isso existe mesmo, não são invenções ideológicas. Poder-se-ia até especular infinitamente, prevalece o facto que o homem
é um
animal sexuado, a fisiologia e o instinto sexual provam-no. Tudo o que se pensou do amor ou da loucura através dos séculos assinala a existência e como que a localização de coisas em si. Todavia, não possuímos uma verdade adequada das coisas, porque só alcançamos uma coisa e m si através da ideia que d ela construímos em cada época (ideia cujo discurso é a formulação última, a difforentia ultima). Não a alcançamos, pois, senão enquanto «fenómeno»� porque não podemos separar a coisa em si do «discursO>> no qual ela se encontra contida para nós. «Assoreada», gostava de dizer Foucault. Nada poderia ser conhecido na ausência dessas espécies de pressupostos; se não tivesse havido discursos, o objecto X no qual se acreditou ver sucessivamente uma possessão divina, a loucura, a desrazio, a demência, etc., nem por isso existiria menos, mas, no nosso espírito, nada haveria sobre a sua localização. Ora, todos os fenómenos são singulares, qualquer facto histórico ou sociológico é uma singularidade; Foucault pensa que não existem
palavra «dispositivo» permite a Foucault nio empregar o termo «estrutura» e evitar qualquer confwão com essa ideia, então na moda e muito confusa. 17 L'An:héolcgie du Savoir, Gallimard. 1969, p. 157. 16 A
L
verdades
TUDO É SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL: O «DISCURSO»
geraiB}
l
trans-históricas, porque os factos hum anos , actos ou
palavras, não provêem de uma natureza, de uma razão que seriam a 8Wl origem, nem reflectem fielmente o objecto para o qual remetem. Além da sua generalidade enganadora ou da sua respectiva funcionali: dade suposta, esta singularidade é a do seu bizarro discurso. Rest.dta acasos do devir, da concatenação complicada das causalidades que se encontram. Porque a história da humanidade nio está apoiada pelo pelo racional, pelo funcional> nem por qualquer dialéctica .
É
�ci�o «locali�ar a mngillaridade dos acontecimentos fora de toda a &aalidade monótona Hl»t de qualquer funcionalismo. A sugestão tácita e aos historiadores (paralelamente a ele, Foucault dá aos sodó q�mrs punham-na em prática por u próprios) 19 conriste em levar o 1ux�� possível a análise das formações históricas ou sociais, até a nu a sua estranheza singu lar.
A cada época
e
o seu
aquário
Foucault, cujo pensamento só se precisou com o passar dos anos cujo vocabulário técnico foi durante muito tempo flutuante, invo-
estas singularidades através dos termos «:discurso», mas também «práticas dis cur si vas » , «pressupostos»� «episteme», «dispositivo:>> ... Em vez de nos determos nestes diferentes vocábulos, melhor será atermo-nos ao principal: pensamos'
as coisas
huma nas através de
18 DE, II, p. 136. 19
É por �emplo,
na
minha opinião, o
liA JBt!fit:atioot GalHmard, 1991, ou de
caso
de L Boltmski e L. Thévenot, De
P. Rosmvallon. Este ú.ltimo, para �eriDr o � método, ootava em 2001 que apreendia u «iddac das qoos escrevia a lmtórla como �praentaçijes activaS' que demucam o campo dos possíveis pelo do penúvd», a fu:n de «ukrapaSHr a cisão vulgarmente admitida entre a ordem dos factos e a du representa çij9»; aae�centava ainda que a história do politico «nio pode limitar-�e à wli�e e ao mmentário das grandes obras»: reencontraremos a mesma convicção em .Foucault. Em &mealf.i!Jia dos Bárbaros (Odtle Jacob, 2007), R.-P. Droit mostra os deslocamentos com mures da «fronteira histórica» - que é o discurso - que separa os bárbaros daqueles que
se reclamem tod� de Fouc:ault; precuio subtil das fC$pedlVU análises, que nio recorre a universaii e que incide �unumente na realidade, fu penm; i maneira de Foocault.
o não são. Nio pretendo certamente flUe 9tC$ autores mas
a
17
I
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
ideias gerais que julgamos adequadas, quando nada do que é humano é adequado, racional ou universal. E isto su rpreende e i nqu ieta o nosso bom senso. Assim, uma ilusão tranquilizante faz�nos vislumbrar os discursos através de ideias gerais, de tal modo que desconhecemos a sua diversi dade e a respectiva sing ula ridade de cada um. Pensamos vulgarmente ades, e é po:r isso que os discursos através de estereótipos, permanecem «inconscientes» para nós, escapam aos nossos olhares. As crianças chamam a todos os homens Papá e a todas as mulheres Mamã, diz a primeira frase da Meuiflsico. de Aristóteles. É preciso um trabalho a ou genealogia (não entrarei histórico que Foucault chama de a� em pormenores) para trazer à luz o discurso. O:ra, esta a rqueologia é um balanço desmistificador. Po rque cada vez que se atinge essa difforentio. ultima do fenómeno que consiste no discurso que o descreve, descohre�se infalivelmente que o fenómeno é bizarro, arbitrário, gratuito (comparávamo-lo ma.is acima ao traçado das fronteiras históricas). Balanço: quando se f oi assim até ao fun do de um certo número de fenómenos co nsta ta s e a singularidade de cada um e a arbitrariedade de todos e daí se conclui, por indução, uma crítica filosófica do conhecimento, a constatação de que as coisas humanas são sem fundamento e ainda um cepticismo sobre as ideias gerais (mas unicamente sobre elas: não sobre singula ridades tais como a inocência de Dreyfus ou a data exacta da batalha de Teutoburgo). Seguramente os livros de história e de física, que não falam por meio de ideias gerais, estão cheios de verdades. Ainda assim, o homem, o sujeito de que os filósofos falam, não é sujeito soberano: não domina o tempo nem a verdade. «:Cada um só pode pensar como se pensa no seu tempo», escreve um condiscípulo de Foucault na École No:rmale e na «agrega ção » 20 de filosofia, Jean d 'O:rmesson, que está, neste e ponto> de acordo com o nosso autor; «:Aristóteles, Santo até Bossuet não são capazes de se e rguerem até à condenação da escra vatura; séculos mais tarde, esta surge como uma evidência». Para parafrasear Marx, a humani da de levanta os problemas no momento em que os :resolve. já que, quando se desmorona a escravatura e todo al e mental que a sustentava, desmorona-se também o dispositivo a sua «verdade>>. -
20 A «ag�gation» é um concurso público para professores do ensino secundário ou
universitário ingressarem na carreira docente nas instituições do Estado. (N. do T..)
L TUDO
em
i; SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL: o «DISCURSO»
I
Em cada época, os contemporâneos encontram-se assim fechados
discursos como em aquários falsamente transparentes, ignoram
€fUais são e até que existe u m aquário. As falsas generalidades e os discursos variam através do tempo; mas, em cada época, passam por verdadeiros. De tal modo que a verdade é reduzida a dizer a verdade, a falar conforme o que se admite ser verdade e que fará sorrir um
léculo mais tarde.
de da �es3uisa foucaultiana está em trabalhar sobre a
A
,.cõmecemõs.?Or"ilii8tx:ir.istõ"côm"iO'd.ã aingenúi
por detrás da obra de Foucault- como por detrás da de Heidegger- está
emboscado um não-dito truístico e esmagador: () humanidade é apenas um vasto cemitério de ·"""''"'"'"·''''' ' ''�••.C<«
um
milénio; durante a mesma longa duração, a grande filosofia pensou porém em muitas outras coisas além desta verdade primeira- cada pensador,
Comte, Husserl, esperava ter vindo encerrar pessoalmente a idade errândas. Foucault, em contrapartida, atirou-se a esse ema do : a �tério e fê-lo num ângulo de investigação pessoal e ine pesquisa em profundidade do «discurso», a explicitação das diferenças
últimas entre formações históricas e, por essa via, o fi m das derradeiras
ideia gerais. Para dizê-lo de outra forma, a maior parte das filosofias baseia -se na relação do filósofo, ou dos homens, com o Ser, com o mundo, oom Deus. Por seu lado, Foucault parte daquilo que os diferentes homens fazem e dizem como sendo evidente, considerando-o verdade; ou
antes, como os homens estio na sua imensa maioria mortos, ele de tudo
o
que possam ter feito e dito em diversas épocas. Em
suma, ele parte da história, da qual recolhe amostras (a loucura, a
punição, o sexo ... ) para lhe explicitar o discurso e inferir dela uma antropologia empírica. Explicitar um discurso, uma prática discursiva, consistirá em inter pretar
o
que as pessoas faziam ou diziam, em compreender aquilo que
supô� os seus gestos,
palavras, instituições,. coisa que fazemos a cada
minuto que passa: compreendemo-nos entre nós. Logo, o instrumento
de Foucault será uma prática quotidiana, a hermenêutica, a elucidação sentido 21; esta prática quotidiana escapa ao cepticismo sob o jugo
21 A relação de um espírito humano com outro, vivo ou morto, feita de iniciativa de recepção (quer esse es pirlto seja ttaduzido por palavras, por acto$ ou até mesmo por um «espírito objectivo», costume, instituição, doutrina, prática com a significação dessu
e
19
II FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA caem
as ideias gerais. A sua hermenêutica, que compreende o sentido dos actos e das palavras de outrem, restringe ao máximo esse sentido, longe de :reencontrar o eterno Eros no amo:r da Antiguidade ou de contaminar esse E:ros com psicanálises ou com uma antropologia filosófica. Compreender aquilo que outrem diz ou faz é um ofício de comediante que se «põe na pele» da sua personagem para compreendê do qual
-la; se esse comediante for um historiador) precisará, além disso, de se
tornar dramaturgo para compor o texto do seu papel e encontrar palavras (conceitos) para poder dizê*lo. Acrescentemos :rapidamente que essa hermenêutica" que não faz, mais do que delimitar a positividade de dados empíricos, estava nos antípodas do linguistic tum dos anos 1960, ao qual
acontecia
fazer desvanecer em
infindas interpretações {«o sentido de um texto muda
com
o tempo e o
intérprete») as sólidas positividades carns a Foucault �1• U, já não sei onde, uma vitupernçio contra uma certa «corrente pós-moderna, amplamente oriunda dos discípulos dele, que equivale a relativizar tudo, a afirmar que tudo é uma questão de interpretação». No que concerne aos discípulos não sei, mas no que diz respeito
ao
próprio Foucault nada é mais falso:
persuadido de que um texto nio é a sua respectiva interpretação, o método fund amental de Foucault consiste em com reender o mais exac.'tamente e o ncontra-se nele, com efeito, uma espécie de positivismo herme nêutico: não podemos conhecer nada de seguro sobre o eu, o mundo e o Bem,
mas
compreendemo-nos entre nós, vivos ou mortos. Se nos
compreendemos bem
ou
mal é outra conversa (uma boa compreensão
supõe que se esteja inscrito numa tradição ou que se esteja impregnado
por uma trnd içio estrangeira; não se improvisa ser helenista), mas, enfimt podemos acabar por compreendermo�nos.
práticas), essa relação de compreensão, correcta ou errb:rt,t•Ãl é um facto primeiro da
ccm
dição humana. irredutível a algo anterior. É este meto que toma possívcl o co:nheci�to histórico. Em contrapartida, não se «rompreen.dem» (ou. julga compreender, claro está) os fenómenos natu.r.Us, sobretudo se forem extraordinários, se� acreditando que são obrn do.-ç Espíritos oo que são Espíritos. 22 Sim, ada um pode interpretar mas sohrn o próprio texto, que não é a
um texto de acordo com o seu capricho pessoal,
sua
interpretação respect:i"'a. Contra o linguistic
ver R. Chartier, Au bord de laJálaise, l'hiswire mtl'e ccrtitwie u tnçwh:a
tum e Gadamer,
2000, pp. 99-118; E. Fbig, «Kinderkrmkheiten der neun Kwturgesclrichte», em &chtrnis wriscbes, 18, 1999, pp. 458�476.
L TUDO
É SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL: o «DISCURSO»
I
É uma hermenêutica por causa do «princípio de irredutibilidade do �ento» (não esqueçamos aqui que a consciência não está na raiz do
�ento) ; «nada de experiência que não seja um modo de pensar». � factos históricos «podem bem não ser independentes das detenni� -��s concretas da história social», o homem não pode, no entanto,
isperimentar estas últimas senão «através do pensamento>>. O interesse le classe ou ainda as relações de produção económicas podem ser «estruuniversais>>, as forças de produção, a máquina a vapor, podem ser �rminações concretas da existência sodal» 23; nem por isso devem .-!!ftt� passar pelo pensamento para serem vividos, para constituírem MDntecimento. O que justifica de algum modo o termo «discurso>>, _já fiW:: o pensamento está ainda assim mais próximo da palavra que de uma kx:omotiva. O método dessa hermenêutica é este: em_ vez de partir dos uni ·�ru:IS como grelha de inteligibilidade das «práticas concretas», que
pensadas e compreendidas, mesmo que se pratiquem em silêncio, dessas práticas e do discurso singular e bizarro que elas «para passar de certa forma os universais pela grelha dessas descobre-se então a verdade verdadeira do passado e a
s
�&existência dos universais» 24• Para citar as suas próprias palavras,
�Fto da dedsão, ao mesmo tempo teórica e metodológica, que consiste •n dizer: suponhamos que os universais não existem»; por exemplo1 �nhamos que a loucura não existe, ou antes, que não passa de um
·�
conceito (mesmo se uma realidade lhe corresponde). «Desde qual é pois a história que se pode fazer desses diferentes aconte
dessas diferentes práticas que, aparentemente, se ordenam esse algo suposto que é a loucura?» 25 E que fazem com que ela mt.oe por existir como loucura verdadeira aos nossos olhos, em vez de permanecer algo perfeitamente real, mas desconhecido, desapercebido, ladeterminado e sem nome. Ou desconhecida, ou não reconhecida: a 23 DE, IV, p. 580. Cf. I, p. 571. «:Marx não interpreta a história das relações de produção, interpreta uma relação dada já como interpretação, uma vez que se apresenta
�o
natureza.:» 24 Nais.sancc Jc la biopolitJque, ed. EwaJd, Fontana, SeneUard, Hautes-Études
-G�mard-Seuil, 2004, p. .S.
25 lbid, p. 5, eu. lhe
com
a nota 4, p. 26. Aqui ainda , Foucault,rectiftca provavelmente o
havia feito dizer
em
1978. Cf também DE, IV, p. 634: «recusar o univenal da
�ra, da delinquência ou da sexualidade não quer dizer que aquilo a que estas noções se wd'ttem seja nada» ou que nio passam de ideologias interesseiras e enganadoras.
21
l I
FOUCAULT. o PENSAMENTO, A PESSOA
loucura e todas as cosi as humanas não têm outra alternativa, a menos que sejam singularidades. Singularidade , dizíamos nós: os discursos dos fenómenos são singulares nos dois sentidos do termo; são estranhos e não entram numa generalidade, sendo cada um único na sua espécie. Logo, para os libertar, partamos dos detal hes e façamos uma regressão 26 a partir das práticas concretas do poder, dos seus procedimentos, dos
seus instrumentos, etc. Pode então expl icitar-se ��E:� � - um conjunto de P!'�t�cas reais- que toma forma acabada no século XVIII, que Foucault descreve com o nome «governamentalidade>> e que
vm
{
'
'
'
"'
Clifere do discurso medieval do tstâ
u
Estado administrativo do Renascimento. Outra regressão, quando, em Visiar
e
Punir, e le farejava menos uma continuidade penal do que
uma d iferença tácita entre os castigos do Antigo Regime, em que o soberano «Se abatia com toda a sua força>> sobre o su pliciado, e o nosso sistema carce rário . Usando ou abusando de uma analogia freudiana, Foucault diz ter «tentado libertar um domínio autónomo que seria o do inconsciente do saber», «reencontrar na história da ciência, dos conhecimentos e do saber humano algo que seria como que o seu inconsciente>> 27• «A consciência nunca está presente numa tal descrição» 28 dos discursos; os discursos «permaneceram invisíveis» , são «O inconsciente, não do sujeito falante, mas da coisa dita» (sou eu quem subli nha), «Um inconsciente positivo do saber, um nível que escapava à consciência» dos agentes, que eles utilizavam «sem que dele tivessem consciência>> 29• O termo «inconsciente>> não é senão uma metonímia: só existe inconsciente, freudia no ou outro, nos nossos cérebros; em vez de «inconsciente», leiam «implícito». Para dar o exemplo mais básico, Luís XIV e:ra glorificado como sendo um grande conquistador. O que supõe que na sua época importavam o prestígio e o poder de um soberano, medido pela extensão das suas possessões, que era próprio da realeza aumentar através de guerras. Após a queda de
Napoleão, Benjamin Constant diria que esse <<espírito de conquista »
estava ultrapassado.
26
N� de .la biopolitiqWJ, pp. 4-5.
27 DE, l, p.
28 lbid.,
665.
pp. 707-708.
29 DE, n, pp. 9-10.
22
t TUDO
F. SINGULAR NA HISTÓRIA UNIVERSAL: o «DISCURSO»
I
O discurso mal nomeado, essa espécie de inconsciente, é justamente .,nlo que não é dito e que permanece implícito. Acrescentemos, com R(}ger�Pol Droit, que os limites entre o consciente e o inconsciente <
�do de nmoos
uma fronteira histórica: datam desta última, são oontempo do acontecimento singular que apenas delimitam, não saem do
�ente enquanto estrutura permanente da psique. O discurso é aquela parte invisível} aquele pensamento impensado se singulariza cada acontecimento da história. Algumas linhas farão �e�tttr
em
que consiste o esforço de apercepção dos discursos:
O enunciado bem pode não estar escondido, nem por isso é visível; não se oferece à percepção como o portador manifesto dos seus limites e caracteres. É necessária uma certa conversão do olhar e da atitude para poder reconhecê-lo e concebê-lo em si mesmo. Talvez seja esse demasiado conhecido que se esquiva sem cessar, talvez seja [uma) transparência demasiado familiar. ·31 é preciso um olhar mais penetrante para vislumbrar isso, e é
,_.., asa razão que o progresso tecnológico que é a escrita histórica de �ult é igualmente um avanço da arte que a história também é; u m � em acuidade, em precisão, que faz pensar no progresso do
..... na arte florentina do Renascimento.
Uma arte de ca tar a individualidade a o os ester s As da aventur mana parecem-nos balizadas por grandes palavras tantos outros estereótipos: u niversalismo, individualismo 32,
R.-P. Droit, Michel Fcucault,
mtretiemt
Odile Jaoob. 2004, p. 34.
t'Ardtéologie Ju Saroir, p. 145. Sooci
sm,
Gallimard, 1984,
p. 56. Aliás,
dizer tudo:
R!�io presa por um indivídoo à sua pessoa� oomo que a exemplificar a condição
�ma-a� Uma prioridade ontológica ou ainda uma primazia ética do indmdoo sobre a �ade ou sobre o Estado? Um não� conformismo, um desdêm pelas normas comuns? Jtam�u suas virtualidades pessoais a título de obra-prima entre os humanos. nem que
-.. ��de amoralismo? A vontade de se realizar mais do que permanecer na sua fileira? Z'tam:B'-2 diferente
dos outros e desprezar os modelos sociais?
Querer dispor de uma zona
-�privadas contra os poderes (co mo no século XVIII, segundo Charles Taylor)?
�publieamente a esoolha que se faz de si mesmo? Ter uma :relação pessoal- não �pelos poderes ou por
um
grupo - com o absoluto religioso
(oomo no tempo
13
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
identidade 33, desencanto do mundo 3\ racionalização, monoteísmo ... Sob cada uma destas palavras podem ser colocadas muitas coisas, já que nio existe racionalização em geral35; a Polit.ica Retirada da Escrita Santa 36 de Bossuet é, à sua maneira , tão racional quanto o Contrato Social de Rousseau - o racismo hitleriano formou-se sobre a racionalidade do da.rwinismo social. No trabalho histórico, é preciso exercer um «cepti
cismo sistemático a respeito de todos os universais antropológicos» e só
da Reforma, diz tam�.m Charles Taylor), ou ética? Enriqu� a
sua
personalidade ao
multiplicar as experiências e ao transformá�las em romciência?
33 O
vago t ermo «identidade» recobre realidades múltiplas . Ser muçulmano é
pertencer a uma <.'Omunidade de crentes, a uma causa santa, que é multi�émica e politi camente dividida) frequentemente conflitual; no entanto, contra os Infiéis, os Crentes de todas as nacionalidades formam ou: deveriam formar um
grupo solidário, <.-ujos mem
bros deve m ou deveriam prestar-se mutuamente a.uxl1io. O
sentimento
de identidade é
múltiplo; pode dizer-se que se é muçulmano a título pessoal, ou então como membro da comunidade dos Crentes,
ou:
então árabe (ou então mooro, iraniano ,
etc.), de nadona
Hdade marroquina ou ainda fiel súbdito do sultão de Marrocos. Logo. o sentimento de identidade exprime-se ora em termos religiosos, ora nacionais. O
q ue o Islão ser ve de «:oobertun ideológica» religiões de estarem demu.iadas
vezes
que arrisca fàzer
crer
para a política, e não se deixará de acu.ur as
na origem de fanatismos gúe:rreiros . Na realidade,
quando um ootillito se encarna numa facção religiosa ou herética, a religião não I! nem
a sua origem nem a sua cobertura ideológica, mas sim a sua expressão solene; tal oomo
no Ocidente, onde esta se exprimirá através de uma teoria político-sodal. Cf. Bernard
pp. 108, 125-126, 212. Há uma idade das religiões e uma idade das doutrinas; Nietzsche dizia que as guerras por
Lewis, LesAm� àans l'histcire, trad. Canal, Flammarion, 1996, vir seriam.. filosóficas.
34 O Entzaube:rung de Max Weber não é o «desencanto» de u m mundo sem Deus
nem deuses, mas mtes a «d esmagi ficaçi.<>» da esfera técnica. A magia procura
evitar peri
gos (quimérioos) ou let�it.muJr uma d ecisão (os o:rdálios, o Julgamento de Deus); opõe-se à racionalidade
tecnidsta que procura resultados prát icos, e também a uma certa radonalidade
jurídica. Weber fala dela a propósito da China, onde a oo.nsiderável importância da magia, da geomanda, da astrologia, etc., constituiu uma barreira para o pensamento tecnológiCQ.
Não
se
trata minimamente de religiQsidade, de saber se um mundo sem deuses é triste e
desencantado e se o século XXI sen religioso.
35 Contra a ideia demasiado geral de «racioualizaçào», creio que se possa falar de mdonalizaçãc absoluto e sem.
em
ver
DE. IV,
p. 26: «Não
si sem, por um lado, supor um valor-razão
por ootro, <.:orrer o risco de oolocar de tudo um pouco na. :rubrica das
radQnalizações.»
36 Tradução literal do tíml<J da obra de Bossuet. O original
Politique w:ée de l'Ê.anure smnte. (N. d11 T.)
24
surge romo segue:
L
TUDO É SINGULAR NA HISTÓRL-\ UNIVERSAL:
o «DISCURSO»
I
.lmitir a existência de u m invariante em último recurso, depois de ter Rntado tudo para resolvê-lo; «não se deve admitir nada dessa ordem que seja rigorosamente indispensável» 37• Diga-se de passagem que os discursos, essa s d iferenças últimas de formação histórica, de cada disciplina, de cada prática, os discur� dizia eu, não têm nada a ver com um estilo de pensamento comum
toda um a época, oom um Zeitoem; Foucault) que troçava da «história tmtalizadora» e do «espírito de um século» 38, não tem nada a ver com
�
Spengler. «Talvez», dir-se-á,
«mas
o cepticismo foucaultiano é apenas uma
ideologia idealista que suprime as realidades. O interesse de classe e a a.. ferocidade existem efectivamente!» Peço perdão! Não se deve porém
equecer que esse interesse era em cada época uma singularidade; o da �e governante r omana, ou classe senatorial , era mais politico do que ea:mómioo e não era o da classe dominante do capitalismo moderno. O im'FrP·��p de classe tem, como todas as coisas, as �ua historicidade, o seu •discurso"». Esse interesse «:material» passa irredutivelmente pelo pensamento, uxno se viu, e pela li berdade , como se verá, se bem que haja jogo, &tuação: uma classe capitalista defende o seu interesse de modo m ais ou menos feroz ou flexível e encontra-se frequentemente divi dida sobre �. J�ti· ca a seguir no seu próprio interesse 39; porque é c omposta por �ens de carne e osso, não por marionetas ao serviço de um esquema �ático. O que não quer dizer que esse interesse seja «:desprovido de .-Iquer forma universal», a saber, a própria noção de interesse de classe, cmas que a jogada dessas formas universais é, ela mesma, histórica[...]. é o que se poderia chamar princípio de singularidade» 40, que faz � que a história seja uma sucessão de rupturas. A tarefa de um historiador foucaultiano consiste em distinguir essas rupt uras por baixo das continuidades enganadoras; se estudar a �ória da democracia presumirá, como fez Jean-Pierre Vernant, que a democracia ateniense só tem o nome em <.,-omum oom a democracia
37 DE.
IV, p.
634.
38 L'Ardé
pp. 193-194, 207, 261; DE, I, p. 676.
39 Jovem oomun:ist:u. tendo ainda muito por descobrir. ficlmos surpreendidos,
saber que o grande patronato estava -��:ta de Defesa (a CED). w
40 DE,
IV, p.
dividido sobre
o
em
projecto de Comunidade
580.
25
I
I FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
moderna. A hermenêutica dos discursos leva assim ao seu termo uma das vias empregues pela investigação histórica desde há uns bons dois séculos: não apagar a cor local, ou melhor, temporal (seria necessário remontar até Chateauhriand e à surpresa que provocaram os Relatos dos Tempos Merov1naios41 de Augustin Thierry, onde Clóvis tornava a ser
Chlodovig). Foucault continua aquilo que desde o Romantismo 42 foi
grande esforço dos historiadores: explicitar a originalidade de uma formação histórica sem ai pro<.-unr naturalidade s ou razoabilidades, de o
com a nossa tendência demasiado humana para a banalização, arriscando mesmo o anacronismo. Mais ainda, o filósofo Foucault não faz mais do que praticar o método
acordo
de qualquer historiador que
consiste em
abordar cada q uestão histórica
em si mesma e nunca como um caso particular de um problema e menos ainda de uma questão filosófica. De tal modo que os livro s de ,
Foucault constituem uma critica que visa menos o método dos historia dores do que a própria fuosof:m, cujos grandes problemas se dissolvem de acordo com ele, em questões de história, porque «:todos os conceitos ,
devieram» 43•
41 Tradução literal do titulo da obra citada originalmente como segue: IWcits du
temps mmwingiem. (N. de T.)
42 Lu Mots et les Cbom,
pp. 381-382: o que singulariD a história como a escreve
o século XIX não é procurar as leis do devir
pelo contrário, a «preocupação de
mas,
historiclzar tudo».
Fragments posthwnes, vol. 2, trad. Haar e de Launay, Gallimard, 1982, pp. 345-34-6, n. 38 {14) Mp 16, I a: «Não 4-3 Nietzsche,
CEuntS ph:ilosophiquu ccmpletes:,
vol. XI,
=
cremos mais em conceitos eternos. em formas eternas, e a .filosofia é, para nós, unica mente a extensão mais am.pla da noção de história.» A etimologia e a história da linguagem ensinaram-nos a considerar todos os conceitos
como
deviru:lcs
se reconheceu a multiplicidade das qualidades distintas num o nosso exemplo: a distinção
26
entre
•••
Só
com
mesmo
extrema lentidão
ohje<::t o (retomemos
os prazeres, a carne, o sexo e o eender).
Todo
o a
priori é histórico
Foocault esperava assim .�las;
ver
a escola histórica francesa abrir-se às
depos itava todas as suas esperanças nela: não era essa, afinal,
de espírito aberto e de reputação internacional? Não estariam os
... membros preparados para admi tir que tudo era hist órico, até m esmo ? .Que não e xistiam invariantes trans-históricas? Infelizmente esses historiadores estavam então o cupados com o seu próprio que consistia em explicar a História rep ortando - a à sociedade; livros de Foucault, não encontravam as realidades que tinham por ··
·
procurar numa sociedade e descobriam neles problemas que não
seus, como o do discurso, o de uma história da verdade . historiadores tinham já o seu p io método; não estavam atma abrir-se a um outro questionamento, que era o de um filósofo, éaaeon�J que compreendiam mal e que eram , com efeito, aind a mais difí eles do que para out ros leitores, já que não podiam lê-las senão -as à sua própria grelha metodológica. O que Foucault escrevia um tecido de abstracções estranhas à prática histórica. As que encontravam nos seus livros não eram aquelas a que estava m e que lhes par eciam ser a Única moeda corrente do historia �a-lhes que Foucault lhes p agava em papel-moeda filosófico; &lavam, julgavam eles, de realidade s. Nenhum com era que, . �tidamente, a sua própria escrita produzia conceptualização e que, -- os
rópr
preend
fundo,
suas noções eram tão abstractas quanto as dele. Como falar realidade, contar uma intriga e descrever-lhe as personagens sem
Wli.Drn� a
as
noções? Escrever a História é conceptualizar.
Se pensarmos na
---• da Bastilha (revolta?, revolução?) já estamos a conceptualizar. Seja como for, a decepção de Foucaul t suscitou-lhe uma reacção
••�ta. Eis os termos insolentes em que ele resumiu a evolução da escola
•M.a'ia dos Anais du rante três quartos de século:
Há alguns anos, os historiadores ficaram muito orgulhosos por des cobrirem que podiam fazer não só a história das batalhas, dos :reis
das instituições, como ainda a da economia. Ei-los agora deslum brados porque os mais espertos de entre eles di sseram que também
e
�e
podia fazer a história dos sentimentos, dos comportamentos,
, dos
corpos.
Em bre ve
compreenderão que a história
do Ocidente
l
!
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
é indissociável da maneira como a verdade é produzida e inscreve os seus efeitos. 44 Decididamente, tinha começado mal... Um colóquio que reuniu em torno dele alguns historiadores,
em
1978, resulta numa zaragata 45; devo renunciar- infelizmente! -a narrar em pormenor um conflito tão capital e tão apaixonante para o público dos leitores. Foucault, decepcionado, amargo, pôs-me a par das suas queixas: a explicação causal, da qual, ao ouvi-lo, «:os historiadores tinham a superstição», não era a única forma de inteligibilidade, o nec plus ultra da análise histórica 46• «:Há que despir-se do preconceito segundo o qual uma história sem causalidade já não seria história» 47; pode :racionalizar -se toda uma parte de passado sem ser preciso estabelecer relações de causalidade 4s. Talvez a pensar num célebre estudo de Heidegger, acrescentou: «Eles só têm em mente a Sociedade, que é para eles o que a Physis era para os gregos>> 49; segundo ele, os historiadores franceses faziam da sociedade o «horizonte geral da sua análise» 50• A teoria deles derivava, suponho eu, de Durkheim e de Marx. Fazer uma história da literatura, por exemplo, ou da arte, que fosse científica consistia em reportar a arte à sociedade, ensinava-se nos anos 1950, em alguns seminários de investigação; Foucau1t aprendera, pelo contrário, junto do compositor Jean Barraqué, que as formas não eram transitivas para a sociedade ou para uma totalidade (o espírito do tempo, por exemplo) 51• Se nem tudo
44 DE, JH,
pp.
257-258.
45 DE, IV, pp. 20-35. 46 DE} I, p. 583. 47 DE, I, p. 607.
48 DE, I, p. 824. 49 Tentei desenvolver esta rápida indicação de
devmu cbrétim, Albin Midtel, 2007, pp. 59-60,
n.
Foucault em Qyand notre monde est 1, e apêndice, pp. 317-318 (Q.yando o
nosso mundo se tomou cristão, t:rad. port. Artur Morio, Edições Texto & Grafta. Lisboa, 2009). 50 DE, IV,
pp.
15. 33
e
651. retomado de L'Impomble l'ri$(71l. &c:he:rcbes mr le spteme
pén.itenttaire au XIX"siêcle ntmies par Michelle Purot, Seuil, 1980,
pp. 34 e
35.
51 Confidência de Foucault. Roger·Pol Droit, Michel Foucaalt, mtrmens, Odile
Jat"' . b, 2004, p. 82. A arte ou a literatura são intransitivos, «:foi possível acabar
oom
a
ideia de que a literatura era o lugar de todos os trânsitos, a expressão das totalidades:».
28
H. TODO O A P1U01tl �
sociedade, pelo menos tudo para
HISTÓRICO
convergia; a sociedade ra��no tempo uma mat:riz e o recepticulo final de todas as coi um foucaultiano, pelo contrário, a sociedade, longe d e ser o oo o desfecho de toda a explicação, precisa, ela própria, de ser Longe de se encontrar no término, é antes aquilo que dela aula época todos O! discursO! e 08 dispo!itivO! dos quais ela como
lá
:receptáculo.
verdade, Foucault nio estava tio ''''"--seu modo de escrever a história
marginalizado quanto queria despertava mmpatia naqueles �vam daquilo a que se chamava história das mentalidades; próximo do historiador Philippe Ariês do que dos Anais , Arlette Farge 53, Geo:rges Duby apreciavam os seus , o ressentimento de Foucault em relação à corporação dos permaneceu intacto. se que esta tempestade num copo de água nasceu da ambição de Foucault e da reacção de defesa por parte de historiadores permanecer eles próprios. Posso atirar a minha acha para a Julgo que seria bom para um historiador explicitar, em primeiro possível, a identidade singular (o discurso) das personagens e tóricas que a história irá narrar 54, antes d e por em cena heróis (porque tudo é intriga no nosso mundo suhlunar, um motor principal e soberano, económico ou outro) e -� opo:rquê da sua tragédia1 deslindar o que foram essas intrigas. -·os conselhos só servem para os outros, tentei uma vez fazê-lo, grande sucesso, dado que o méto do foucaultiano ultrapassa as capacidades de abstracção. entanto, pode sonhar-se, pode imaginar-se um jovem histolflam , ado pela leitura de um livro de Foucault. Por ex , � lrmtr, ou o curso sobre a governamentalidade, sobre as formas ��� dos poderes na época moderna. Só o amor pela História me ·
·
TU1MI!I�� !h pal�vra «inttansitiro», irmbitual neste �tido, é, oomo aoontece frequen cmn
René Char,
Pa� fcrmd, U:V. Um é oomo ttm verbo intransitivo que, direm os gnmátioos, � o� que o -·�; &z me pela arte.
:•.a�
Fwcauk, uma dtaçio impUdta de
Ver DE, IV, p. 651. farge eM. Fwcault, !e Im«dnn �Bmw, 1982. L'Al'CbJclcgi� du S<.tvmr,
d:ufomilks:
letms de �t de l<J
Jamlle,
p. 213.
29
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
faz falar assim. Quando éramos estudantes, no início da década de 1950, líamos com paixão Marc Bloch� Lucien Febvre, Marcel Mauss também , e escutávamos o que dizia Jacques le Goff> que era apenas alguns anos mais velho que nós. Sonhávamos escrever u m dia a História como eles a escreviam. Sonho hoje com jovens historiadores que sonhem escrevê-la como Foucault. Isso não seria a negação dos nossos predecessores mas sim a continuação das suas escavações, desse processo incessante dos métodos históricos desde há quase dois séculos. A propósito, pediram-me al.gum.as vezes que contasse como se tinham passado os momentos de colaboração que tive com Foucault quando ele trabalhava o tema do amor na Antiguidade. «Paul Veyne ajudou-me constantemente no decorrer desses
anos»,
escreve ele 55• Qual tinha
sido pois a minha contribuição? Coisa pouca, digo-o com toda a simpli cidade 56: por que razão exporia eu falsa modéstia? As ideias eram dele (como o arco de Ulisses, a análise abstracta era uma arma que só ele tinha a força de esticar). Quanto aos factos e às fontes, Foucault �inha o dom de se informar sozinho sobre uma cultura ou uma disciplina em escassos meses, à imagem desses poliglotas que nos surpreendem ao aprenderem as semanas mais uma língua (nem que seja esquecendo-a em apenas de seguida para aprender outra). De maneira que o meu papel resumiu-se a duas coisas, conf'lrmar algumas vezes a sua informação e dar-lhe reconforto. Ele conta\�a-me à noite o que tinha elaborado durante o dia, para ver se eu protestava em nome da erudição. E, sobretudo, sendo eu um historiador entre tantos outros, reconfortava-o pela minha atitude simpatizante e não negativa relativamente ao seu método. Numa altura em que ele sofreu mais do que se julga com a não-recepção que lhe fora demonstrada po:r alguns dos meus colegas em quem ele tinha depositado mais esperança do que no� seus próprio colegas f'llósofos. Esqueçamos a crónica caduca das más :relações de Foucault com os historiadores do seu tempo, demasiado ocupados a escrever a história à maneira deles para estarem disponíveis para uma outra maneira. O método que permaneceu
como
unicamente de Foucault consiste em levar
55 DE. IV. p. 543. 56 Eis um demento de comparação muito simples: qitaooo começou a trabalhar o am.or
da Antiguidade. Foucault veio escutar uma comllllk:ação que eu proferia no �mi
nário de Georges Duby; o text<> dessa comunicação foi retomado na minha Sooété romaineJ Seuil1 1991, pp. 88-130. Cada um pode aí verificar o que de me deve e, sobretudo. o que não me deve.
30
II. TODO O A P!UOIU É HISTÓRICO
mais longe possível a p esquisa das diferenças entre acontecimentos que , parecem formar uma mesma espécie. o
Onde seria tentador referir�se a uma
cons
tante histórica ou a um
traço antropológico ime diato ou ainda a uma evidência que se impõe da mesma maneira a todos trata-se de fazer surgir uma singularidade. Mostrar que não era assi m tão evidente. [ J ,
,
...
Não era assim tão evidente
que os loucos fossem rec onhecid os como
doentes mentais; não era assim tão evidente que a única coisa a fazer
um delinquente fosse prendê-lo. Não era assim tão evidente que as causas da doença tivessem de ser pro curadas no exame individual do corpo 57• com
Por volta de 1800� pode ler-se em O Nascimento da Clinica, através de uma transformação na observação médica e uma mudança do discurso da
matomia ' ica, deixou-se de «ler>> apenas alguns «sinais>> nos corpos �cados, tidos exclusivamente como pertinentes e considerados como a� �Significantes do significado «doença>> ; então Laenne c pôde ter em ��i,� aquilo que antes dele passava por vãos pormenores, e foi o primeiro homem a então
a consistência tão particular de um fígado cirrótico 58, que via sem se ver.
ver se
Um sujeito soberano, um ser menos finito do que o homem, menos prisioneiro dos discursos do seu tempo, tê-lo-ia visto desde sempre ou, pelo menos, poderia vê-lo em qualquer época: infelizn1ente, «não se pensar não importa o quê não impo rta quando » 59• A observação microscópica, nascida no século XVII, só no século XIX deixou de ser
riosidade anedótica, própria a desviar o observador da realidade
mna cu
(Bichat e até mesmo Laennec limitavam-se ao visível e recusavam o microscópio) 60• O discurso do visível permaneceu tanto tempo <
57 DE,
IV. p. 23.
58 Naissance de la din.ique, pp. 173-174-. 59
L"Arch�oJouie du Savoit) p. 61, çf.
P. 156.
60 Nawan.ce de la clinique, pp. 169-171.
e que a moda anprega a contra-senso para designar o que é necessário ter visto ou lido se se quiser viver wm o seu tempo, quando este adjectivo designa em Foucault, pelo c ontrário, aquilo 61 No sentido primeiro des te adjectivo, posto na moda por Foucault
nos enche infe1izmente a vista de outra coisa e torna impossível ir noutra direcção:
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
e opaco quanto o ácaro foi durante muito tempo o mais pequeno dos animais; ninguém concebia a possibilidade de animais ainda mais peque nos, tio pequenos que seriam invisíveis. Em direcção ao outro infinito também não se pensava que pudessem existir planetas insuficientemente lurnírloSlospru:-a os nossos
olhos.
Existe uma sensibilidade metafísica tácita na pintura de história fou caultiana. Não se podendo pensar qualquer coisa em
er
momento,
só pensamos dentro das fronteiras do discurSlO do momento. Tudo o que julgamos saber está limitado sem que o saibamos, não lhe vemos os limites e ignoramos até que existam. De carro, quando o homo viator conduz à noite, não pode ver nada para além do alcance dos faróis e aliás, frequentemente, não distingue até onde vai esse alcance e não vê que não vê. Para mudar de metáfora, estamos sempre presos num aquário de cujas paredes nem nos apercebemos; sendo os discursos incontornáveis, não se pode por graça especial, avistar a verdade verdadeira nem sequer uma futura verdade ou pretensa como tal. ,
É certo que um discurso, com o seu dispositivo institucional e
social, é um statu quo que só se impõe enquanto a conjuntura histórica e a liberdade humana não o substituem por outro; saímos da nossa redoma provisória sob a pressão dos novos acontecimentos do momento ou ainda
porque um homem inventou um discurso e teve sucesso 62• Mas estamos apenas a mudar de redoma para nos situarmos numa nova redoma. Essa redoma em que o discurSlO é «O que poderíamos chamar de a priori his tórico» 63• É certo que esse a priori, longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano 64, é cambiante, e nós mesmos acabamos por mudar com ele. Mas é inconsciente: os contemporâneos ignoraram sempre onde estão os seus próprios limites e nós próprios não podemos vislumbrar os nossos.
incontornável, é o discurso que :nos força a viver no nosso tempo. Contta�senso revelador, de resto, da cegueira do senso comum. exemplo,
cri� religiosas que tiveram o imenso sucesso que conhecemos e cujos disct:tnos respectivO$, que não me arriscarei a 62 Por
tentar
o cxiati.anismo e o islão, essas
explicitar, são seguramente muito diferentes dos do paganismo greco-romano* du
religiões
oom
iniciação ou Mistérios e dos cultos pre-islâmioos da Aribia.
63 DE, IV, p. 632. 64
I
32 i
l'Arm�logie du Sawir, pp.
167-169
e
269.
II. TODO O A PRIORI É
Três erros
a
HISTÓRICO
não cometer
No ponto em que nos encontramos, convém prevenir duas ou três possíveis confusões. O discurso não é uma infra-estrutura e também não é um outro nome para a ideologia, seria antes o seu contrário, apesar daquilo que se lê e ouve todos os dias. Pôde ler-se recentemente
que o conhecido livro de Edward Said sobre o orientalismo denunciaria
ciência como sendo apenas um «discurso» que legitima o imperia lismo ocidental65• Não e não: a palavra discurso é imprópria aqui e o orientalismo não é uma ideologia. Os discursos são os óculos através dos quais, em cada época> os homens tiveram a percepção de todas as essa
coisas, pensaram e agiram; impõem-se aos dominantes tanto quanto aos
dominados, não são mentiras inventadas por aqueles para enganar estes e justificar a sua dominação. <<Ü regime da verdade não é simplesmente
ideológico ou super-estrutural; ele foi uma condição de formação e de �envolvimento do capitalismo.» 66 O próprio Foucault devia estar provavelmente a pensar no livro de que fez um grande alarido, quando escreveu: «Todos sabem que a
etnologia nasceu da colonização, o que não quer dizer que seja uma ciên
imperialista.» 67 Explicitar as diferenças singulares não é denunciar �sujeição dos intelectuais, sujeição que seria a função preenchida pelas ideologias 68; desde que esta «função» funcione realmente e que o homem um ser assaz cartesiano, intelectual quanto baste para que possa ser a sua inteligência a ditar-lhe o comportamento e que só obedeça aos seus mestres se lhe forem fornecidas razões, boas ou más, para fazê-lo. 69 �'"""" "'
de serem ideologias enganadoras, os discursos cartografam aquilo
65 Sobre E. Said e sobre a condenação do orientalismo por mentes que visivelmente desconfiam da existência de uma curiosidade desinteressada, gratuita, como era já a um
Heródoto, ver B. Lewis, Islam, Gallimard., coL Quarto, 2007, pp. 1054�1073.
66 DE, UI, p. 160. 67 DE, IV, p.
828.
68 Sobre a formação eventual de coberturas ideol6gicas a partir dos discursos, ver
hua.ult, «fljàut difendre la société». Cours au College de France, Hautes Études-GaUimard �leuil, 1997, pp. 29-30. 69 Para uma critica da noção de ideologia, permito-me remeter para P. Veyne, � notre monde est devenu chrétien, op. cit., pp. 225-248 (Qgando o nosso mundo se t.ornuu -J-,
trad. port. Artur Morio, Edições Texto &
Grafia, Lisboa, 2009).
33
II FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA que as pessoas fazem e pensam realmente, e sem o saberem. Foucault nunca estabeleceu uma relação de causa e efeito num sentido ou no outro entre os discursos e o resto da realidade 70; o dispositivo e as intrigas que daí decorrem, estão num mesmo plano. Segunda confusão, considerar o discurso como uma infra-estrutura no sentido marxista do termo. Vimo-lo mais acima, o discurso, que desempenhou, antes de mais, uma função heurística, é uma noção por assim dizer negativa: parte de uma constatação segundo a qual, a maioria das vezes, não se leva suficientemente longe a descrição de um acontecimento ou de um processo, . não se atinge a sua singu laridade, a sua bizarria - como as crianças chamam Papá a todos os homens. O termo discurso é um convite a ir mais fundo e descobrir a singularidade do acontecimento, até delimitar essa singularidade, em última análise. Todavia, quando surgiram As Palavras e as Coisas, alguns leitores tomaram a entidade que foucault designava por discurso por uma instância material, uma infra-estrutura comparável às forças e relações de produção que, em Marx, determinam as super-estruturas políticas e culturais. Um crítico escreveu, inquieto, que submeter assim o devir histórico a estruturas ou a discursos era subtraí-lo à acção humana. Desconhecia que o discurso não é de todo uma instância distinta que determinaria a evolução histórica; é simplesmente o facto que cada facto histórico se revela ser uma singularidade aos olhos do historiador penetrante, é si ar, nos dois sentidos do termo- porque tem uma forma bizarra, a de
um
território cujas <
universal. O discurso é a forma que essa singularidade tem, logo, faz parte desse objecto singular, é-lhe imanente, não é mais do que o traçado das «[ronteiras históricas» de um acontecimento. E, tal como a palavra paisagem designa tanto uma realidade da natureza quanto o quadro em que um pintor retraça essa realidade, do mesmo modo a palavra discurso pode comodamente designar a página onde um historiador retraça esse acontecimento
na
sua singularidade. Nos dois casos, o termo discurso
designa não uma instância mas uma abstracção, designadamente o facto do acontecimento ser singular; da mesma maneira que o funcionamento de um motor não é uma das peças desse motor, é a ideia abstracta de que o motor funciona. Uma outra crítica, mais tocante, foi feita ao nosso autor; numa só penada, acusava a crítica do discurso de ser errónea e de desencorajar a 70 Como ob.�rva Ulrich J. Sch:ncider, Michel Foucault, Darmstadt, 2004, p. 145.
II. TODO O A PR101U É HISTÓRICO
.humanidade ao fazer da história um processo anónimo, irresponsável e desesperante. Efectivamente, gosta-se de pensar que só aquilo que é enco npdor pode ser verdadeiro, «como se a fome provasse que um alimento apera por ela>> 71• Condena-se por vezes uma filosofia por não fazer mais do que descrever o mundo como ele é, sem ser útil, sem nos insuflar um ideal e valores. Como diz Jean-Marie Schaeffer, esse amor pelos valores é motivado «pela preocupação de tranquilizar os homens quanto à plenitude ser, plenitude que, julgam eles, lhes é devida» 72• Compreende-se então que alguns leitores tenham sentido uma verda deira repulsa relativamente ao cepticismo foucaultiano, que é resoluto ao ponto de parecer agressivo e de fazer figura de esquerdista. Erradamente, porque, na prática, a mais desmoralizante das teorias nunca desmoralizou ninguém, nem sequer o seu autor: há que viver, Schopenhauer viveu até wdho
e
Foucault, como bom nietzschiano, amava a vida e fala da irre
pdmível liberdade humana. Não irei ao ponto de fazer do seu cepticismo uma filosofia de happy end edificante (ele próprio escolhera servir-se dela oomo de uma crítica), mas enfnn veremos que a filosofia deste lutador Kaba de uma maneira roborativa. Esqueçamos a arte do sermão e voltemos às coisas positivas. Eis ao falar do discurso da loucura, Foucault escreve que
o
discurso
desrazão no século XVII punha em jogo todo um dispositivo, isto é, acreve ele, um conjunto resolutamente heterogéneo, comportando discursos, instituições, ar ranjos arquitecturais, decisões regulamentares , leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filo sóficas, morais, filantrópicas, abreviando: do dito tanto como do não-dito. 73 Este «dispositivo» são, portanto, as leis, actos, palavras ou práticas que constituem uma formação histórica, quer seja a ciência, o hospital, o amor sexual ou o exército. O próprio discurso é imanente ao dispositivo que se molda nele (só se faz o amor e a guerra do seu tem po1 a menos
71 Reconhereu-se uma citação de Nietzsche. q: DE, II, p. 1258: «Nós precisamos [sou eu quem sublinha], dizem os grandes :intelectuais, de uma visão do mundo.»
72 Jean-Marie Schaeffer, Adiea à l'Esthétique,
College International de Philosophie,
PUFt 2000, p. 4. 73 DE, III, p. 299.
35
l
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
que se seja inventivo) e que o incarna na sociedade; o discurso faz a sin gularidade, a estranheza de época, a cor local do dispositivo. Nos dispositivos, um historiador reconhece logo essas formações nas
quais está habituado a procurar a rede de causalidades entrecruza
das que fazem com que haja devir. A mudança perpétua, a diversidade, a variabilidade devem-se à concatenatio causarum, ao entrelaçamento de inovações, de revoltas (apesar do mimetismo e do gregarismo), de rela ções mútuas com o meio ambiente, de descobertas, de rivalidades dos reb anhos humanos entre si, etc. Mas, escreve Foucault ao evocar os anos 1950, as explicações da mudança «que se propunham nessa época, que me censuraram por não ter utíli74do, não me satisfaziam. Não é por se fazer referência às rela ções de produção ou à ideologia de uma classe dominante que se pode resolver esse problema» 74 que accionava as diversas componentes do dispositivo 75• Fui informado de que
hoj�
em dia alguns médicos (um
dos quais membro do nosso Comité de Etica), que se inquietam sobre o devir da sua arte, trazem constantemente na boca as palavras saber, poder ou dispositivo, noções estas que, segundo eles, funcionariam muito bem para analisar as ameaças actuais. Essas ameaças não provêm já da psiqui atria nem da psicanálise , mas do recuo do exame clínico perante as máquinas, scanners ou IRM, e sobretudo da genética e de um eugenismo possíveL Porque tal é o <
e
todo um dispositivo de leis,
de direitos, de regulamentos, de práticas, e institucionaliza o todo como sendo a própria verdade. Saber, pocler, verdade: estes três vocábulos impressionaram os leitores de Foucault. Tentemos precisar as suas relações mútuas. Em princípio, o saber é desinteressado, isento de qualquer poder; o Sábio está nos antípodas do Político, por quem nutre apenas desprezo. Na realidade, o saber é frequentemente utilizado pelo poder, que muitas vezes lhe presta auxílio. Evidentemente, não se trata de erigir o Saber e o Poder numa espécie de casal infernal mas antes de precisar, em cada caso, quais foram as suas relações e, antes de mais, se as tiveram, e por que vias. Quando se relacionam, efectivamente, encontram-se num mesmo dispositivo onde
eajudam, sendo o poder sábio na sua área, o que confere poder a certos saberes. se entr
74 DE, III, p. 583. 75 Teremos disso Ulll exemplo Sécurité, tcrritoire, populatíon, p. 244.
.36
cm
«llfaut difendre la société», pp. 28-30,
ou em
II. TODO O A PRIORI É HISTÓRICO
Desde o século XVI que se multiplicaram os conse1hos ao príncipe e toda uma literatura cogitada sobre a arte de governar. O que é O Príncipe de Maquiavel? A primeira filosofia lúcida e amoral do Poder? Não, nada mais do que um manual que pretende ensinar a todo o príncipe como
não p erder o poder que possui sobre o seu principado 76• Desde há três séculos ou mais, as técnicas militares de treino disciplinar são um saber que é preciso aprender e que se transmite. Nos nossos dias, governar tornou-se uma autêntica ciência; o príncipe moderno tem de saber eco nomia e consulta economistas e até sociólogos. A racionalidade ocidental (racionalidade dos meios e não dos fins, entenda-se) utiliza saberes e conhecimentos técnicos. Esses saberes e essas técnicas são evidentemente
tidos como fiáveis e verídicos pelos seus utilizadores e, excepto em caso de revolta, pelos súbditos. Entre as componentes de um dispositivo figura então a própria verdade. Em suma, diz-nos Foucault, a
verdade pertence a este mundo; é produzida nele graças a cons
trangimentos múltiplos. E detém efeitos regulados de poder. Cada
socieda de tem o seu regime de verdade, a sua política geral da verdade. 77 Poder-se-ia então escrever uma história das concepções da própria
verdade 78• História que asse nta bem no domínio jurídico. Pensemos, por exemplo, nos ordálios medievais, que só desapareceriam no século XII: conforme se fosse capaz (ou se aceitasse ou não) de segurar num ferro incandescente durante nove passos ou de retirar um objecto do fundo de
76 DE, III, pp. 636-642. 77 DE, UI, p. 158.
Cf. DE, III, pp. 257-258. Entre as compont'ntes de um dispositivo, figura, de f�, a própria verdade. Já não a verdade das concepções que os diferentes séculos pude ram ter acerca do sexo, do poder, do direito e de todas as coisas (neste ponto, o céptico professa, como sabemos, que nenhuma destas ideias gerais é mais verdadeit"a do que outra e que todas elas se eq uivalem); desta vez, estamos antes a pensar na concepção da verdade q_ue cada época fez para si neste ou naquele domínio. Por exemplo, no Antigo Testamento, m deuses dos povos estrangeiros são deuses «mentirosos», mas quem mente neste caso? .Nan esses próprios deust�" �. que não existem (ou, mais precisamente, que «nada são»), M:m os seus adoradores; é que, muito sitnplesmente, quando se tentava definir a verdade acabava-se por representá-la romo o contrário da mentira. Pode-se também, imagino eu, �itar t�m determinadas coisas sem dizer e.xpressamente que «são verdadeiras», do mesmo modo que não costumamos vislumbrar mentiras nas verdades dos outros. 78
37
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
um caldeirão cheio de água a ferver, ter-se-ia dito a verdade ou mentido perante a justiça 79• O problema histórico consistiria em demonstrar <
e
até filosofias, a instituições,
a práticas sociais, económicas, etc. 82• O discurso i mpregna tudo isto. Conhecemos já as suas formas bizarras, as suas fron tei ras mais históricas do que naturais: esta entidade de época tem a forma de um caco, de um calhau mais do que de um raciocínio formado. O usaremos, pois, falar, em
termos estóicos, de uma materialidade dos incorporais 83• Sentimo-nos felizes ao ver Foucault, escapando aos equívocos do
linauistic turn 84 dos anos 1960, alargar a sua doutrina à sociedade
79 Remetamos,sobre este assunto, para o que escreveu um grande amigo d e Fou
cault, Peter Brown, Society and the Holy in the Late Antiquif:_Y, University of Ca1ifornia Pre ss ,
1982, pp. 306-317 (trad. Rousselle, Des Tra'\<"llUX, 1985, pp. 248-255).
La Socihé et le sacré dans l'Antiquité tardire, Senil, coll.
80 DE,II,p. 541. 81 DE, li, pp. 538-553. e
82
L'Archéolosie du Saroír, p. 214. Sobre as relações de causalidade entre factos sociais
factos mentais, ver DE, II, p. 161 (crítica da causalidade marxista como expressão: o
darwinismo
«exprimir i a»
os interesses da hurguesia).
83 L'Ord:re du disccurs, Gallímard, 1971, p. 60. Não sendo o produto de um sujeito transcendental que o anima,
o
enunciado impõe-se ao sujcito conhecedor na modalidade de
uma coisa bruta, e o seu recorte hizarro, absurdo como as formas do acaso, não é evidente
mente fruto de um Ego intemporal ou de uma liberdade hcide ggeriana de ver o verdadeiro
ser descoberto; cf. la «matérialité répétable» de L'Archéologie du Saroi:r, p. 134.
84 A análise de um discurso, por exemplo o da melancolia, não é o estudo lexical dos sentidos da palavra melancolia (l'archéologie du Savoir, pp. 65-66). Porquê este termo
«discurso»? Duas ou três explicações são simultaneamente verdadeiras. Uma é heurística:
Foucau lt trabalhou antes de mais e sobretudo os textos (tratados medicais relativos à. loucura); não soube de antemão para onde iria, deverá ter acredi tado prímeiramente que
o seu problema era linguístk'O e quis manter-se o mais próximo p ossível dos factos, que
eram factos escritos. Para mais, não queria ser trazido de volta a um dos grandes prob1emas
consagrados da filosofia; não por capricho, mas porque o seu profundo positivísmo lhe fazia
temer tudo o que pudesse parecer metafísico. Utilizou, portanto, um vocabulário seu, não
recorrendo a te r mos técnicos da filosofia. Uma outra explicação reside no facto de de ter
38
II. TODO O-� PltJOIU E��
(«eu, nos meus livros, não posso dispensar a sociedade», dizia-me e a
toda a realidade histórica. Desde há muito tempo, é verdade,
o
pensamento de uma época não ocupava já, para Foucault, um lugar de eleição, nas suas formas desdobradas, na filosofia; a simples história das ideias, em si, estava longe de ocupar o seu poleiro electivo nos
textos canónicos, na filosofia; um regulamento administrativo podia ser mais revelador85 que o Discurso do Jfétodo. O terror nuclear e a domina�ão moderna do mundo pela técnica (pelo Gestell heidegge riano) não saíram de uma proposição desastrada de Descartes sobre a
dominação do mundo pelo homem. Eis-nos longe de uma história
do Ser segundo Heidegger86• A uma origem transcendental do pensamento segundo Kant e Husserl,
Foucault oporá uma origem empírica e contextuai: o pensamento, esse
procurado, para ser era
compreendido
e adoptado, situar-se no problema do momento, que
linguístico («A Arqueologia do Saber», livro escrito demasiado depressa, mostra-o
bem). O que levou ao engano muitos leitores. Um título incómodo, «As Palavras Coisa.'!», aumentou a confusão: julgou-se que o problema de Foucault
era
e
as
a relação dos
vocábulos com os seus referentes . Foucault viu-se forçado a tentar dissi par a confusão,
DE, I, p. 776: no século XVII, escreve ele, os naturalistas multiplicaram as descrições de plantas e de animais. É tradição «fazer a história dessa.� descris.Xies de duas maneiras. Ou se parte das coisas para se d ize r : sendo os ani mais aquilo que são, sendo as pl antas tais como as vemos, como é que as pessoas como fez em L:-üchéologie Ju Savoir, p. 66 e cm
do século xvn os viram
e
descreveram? o que observaram eles, o que omitiram? o que
viram eles, o que não viram? Ou então, faz-se a anàlise no sentido inverso: vemos quais as
palavras e conceitos de que a dênda da época dispunha
e, a
par tir daí, vê-se qual a
grelha que era colocada sobre o conjunto das plantas e dos animais». Foucault, quanto a
ele, apercebe-se de que, sem o saberem, os naturalistas pensavam através de um «discurso» que não era nem os objectos reais netn o campo semântk'O com os seus conceitos, mas que estava situado, por assim dizer, para além e que regulava correlativamente a formação dos
objectos, por um lado, e dos conceitos, por outro. O discurso é um terceiro elemento, um tertiurn quid que, na ignorância dos interessados, explica o porquê de «tal coisa ser vista ou omitida , que seja concebida
com
tal aspecto e analisada a tal n ív el,
e
que determinada
palavra seja empregue com tal significação».
85 DE, I, p. 548, c:f. P. 499; II, pp. 282-284. Ver, por exemplo, Histoire de laJólie à L'âge
dassíque,
Gallimard, coll. Tel, 1976, p. 471.
86 Estas altas especulações ultrapassam-me, d iz ironicamente Foucault: «O mate rial absolutamente humilde que eu ma nipulo não permite um tratamento tão realengo»; seria difícil fazer a história de uma formação histórica qualquer sem ter em conta, por exemplo, os efeitos de poder e até, frequentemente, o discurso do poder central nessa época
(DE, II, pp. 409-410).
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
incorporal, forma-se no interior de todo um dispositivo que ele próprio impregna, para depois se impor através do dispositivo - porque o dis curso não é somente apoiado pela consciência mas pelas classes sociais, os interesses económicos, as normas, as instituições e regulamentos. O aparecimento do discurso psiquiátrico no século XIX comportava ideias psicológicas e jurídicas, instituições judiciárias, medicais, policiais, hos pitalares, normas familiares ou profissionais .
Mas, pensando nisso, o discurso de que fala Foucault parece estar próximo de uma noção que se tornou clássica em sociologia e em his tória, a de um ideal-tipo, forjada por Max Weber, essa esquematização de uma formação histórica na sua e speci ficidade . Em que diferiria dela o discurso? O que é a descrição ou discurso dos <<prazeres>> amorosos na Grécia? O que é a «governamentalidade» do Antigo Regime? Foucault constrói efectivamente um ideal-tipo quando escreve que antes do século
XVIII governar os homens consistia em reconduzir até no comportamento dos sujeitos as regras impostas por Deus ao homem, ou tornadas necessárias pela sua má natureza>>; depois, com a era das Luzes e os Fisiocratas, governar consistiu em
dominar os fluxos naturais (demografia, moeda, livre circulação das
sementes ...) e, quanto ao resto, <
87•
at
Estes são ideais-tipo particularmente aprofundados, que procuram
ingir a difforentia ultima. Mas, em Foucault como em Weber, tratou-se de distinguir as componentes de uma qualquer formação histórica de um dispositivot de mostrar as ligações entre essas componentes e fazer surgir a singularidade do todo. Por que razão Foucault se defendeu por todos os meios 88 da aproximação a Weber? Porque não reencontrava em Weber o princípio de singularidade, e porque acreditava que Weber procurava reencontrar essências. Ele tinha, temo, uma ideia inexacta de vVeber89; descon hecia que era tão nominalista quanto ele próprio, que tinha lido Nietzsche, que partilhava com este o seu cepticismo altivo e que via o céu dos homens << rasgado entre os deuses», entre os valores.
87
Securité, territoire, population, pp. 48-50.
88 DE, IV, 89
pp. 26-30.
Foucault parece acreditar que a ideia principal de Weber era a racionalização
através das idades e que o ideal-tipo era uma construção que permitia «retomar uma essência» para «compreendê-la.», partindo de «princípios gerais»
4-0
(DE, IV,
pp.
26-27).
H. TODO O A PRIOJH É
Finalmente, porque o discurso é imanente aos fac'tos históricos,
a
todo o dispositivo de que ele não é senão a formação última, não arrasta a,
história, é antes arrastado por ela na companhia do seu inseparável
dispositivo. Tal é a resposta a uma pergunta frequentemente ouvida: de onde saiu essa determinação pretensamente cega que é o discurso? O que o produz? De onde vêm as mutações misteriosas do discurso através dos séculos? Provêm muito simplesmente da causalidade histórica vul gar e bem conhedda, que incessantemente acarreta e modifica práticas, pensamentos, costumes, instituições, enfim, todo o dispositivo, com os discursos que nada mais fazem além de lhes delimitarem as fronteiras. Fizemos alusão
ao
discurso dos «prazeres.>> pagãos, depois ao da «carne»
cristã; o platonismo, o estoicismo enquanto doutrina «boa em todos os aspectos>> (o que
a
tornava recomendável à classe dos notáveis e diri
gentes), o civismo democrático ou oligárquico da cidade antiga e o seu dever interessado de auto-domínio, a ideia de physis, de natureza, tornada LTiação divina, etc. Tudo aí tem lugar, imagino eu. Ora, o dispositivo, lembramo-nos, tem, na sua finitude, como limites as
fronteiras históricas de um discurso. Deverá concluir-se que aquilo
que o nosso pensador céptico diz sobre a história dos saberes também se aplica à história em geral: A história da ciência, a história dos conhecimentos não obedece simplesmente à lei geral do progresso da razão, não é a consciência humana, não é a razão humana quem, de certa maneira, detém as leis da sua história.
90
E como os discursos não se sucedem segundo a lógica de uma dia léctica, também não se suplantam por boas razões e não são julgados entre si por um tribunal transcendental, só mantêm entre si relações de facto, não de direito; suplantam-se um ao outro, as suas relações são as de uns estranhos, uns rivais. O combate, e não a razão, é uma relação essencial do pensamento. 91
90 DE, I, pp. 665-666. onde Foucault fala também de «Um inconsciente que teria as suas próprias regras, como
o
inconsciente do índivíduo humano tem também ele as
suas regras e as suas determinações».
91 R.-P. Droit, ,"Hichel Foucault, entreticns, pp. 22 e 135. É uma ideia de Nietzsche.
1
I
!
I
I
j O cepticismo de Foucault Ora, quando se consegue explicitar esses acontecimentos datados e
explicáveis que são as últimas diferenças chamadas «discurso>>, leva-se
os
leitores a conclusões críticas. Produtos de uma história e reflexos não
adequados do seu objecto, os sucessivos discursos são diversos consoante os
séculos, o que basta para mostrar a sua inadequação. Assim que se
explicita um discurso,
a
sua arbitrariedade e os seus limites aparecem.
Sobre essa amostra, sobre esse julgamento numericamente singular, pre sumimos, num julgamento <> (geral, senão mesmo universal),
que assim deverá ser com qualquer discurso. A explicitação de algumas singularidades conduz assim, por indução, a uma crítica do conhecimento e
do mundo tal como é.
Eu não disse à neaação das verdade emplricas (aí voltaremos). Em con trapartida, quando se consegue explicitar essas singularidades datadas que
são os discursos, chega-se, sem dizê-lo, a conclusões filosóficas. Foucault também dizia não ser historiador; mas como deixava cuidadosamente na sombra essas conclusões implícitas, também não se dizia filósofo. No ano da sua morte definia os seus livros como «uma história crítica do pensamento 92»; história porque não procede de modo philosophico
-
«Uma
busca empírica, um ligeiro trabalho de história 93» atribuir-se-á <.
O cepticismo de Foucault é, pois, uma crítica nos dois sentidos do termo. No sentido que a palavra tem em Kant, é uma crítica do conhecimento, que aqui funciona na base de uma hermenêutica histó rica e não na da física newtoniana como no caso de Kant. Esta crítica
interessa o filósofo e o historiador e funciona sobre aquilo que o autor
de Salammbô, em 1859, chamava «sentido histórico»; esse sentido <<é novíssimo», escreve ele numa carta, e «é a glória do nosso século 94:>>.
92 DE, IV, p. 632. 93 L'Arcb.éoloaie du Savoir, p. 265. 94 Flaubert, cartas de 18 de Fevereiro de 1859 R..evue des Deux Mondes, Rerum escrevia pare<.-em-me in.stadas
a
estas
e
3 de Julho de 1860. Em 1858, na
linhas programáticas: «As cíêndas históricas
substituir a filosofia abstracta da escola na solução dos problemas
que nos nossos dias preocupam gravemente o espírito humano. Sem pretender recusar ao homem a faculdade de ultrapassa r pela intuição o campo do conhecimento experimental,
43
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Mas esta crítica histórica pode também concernir ao homem e ao cidadão
e servir-lhes de crítica política (esta é, de acordo com o nosso autor, uma
pura questão de escolha pessoal porque em nome de que Razão, de que
Bem ou de que Sentido da história se prescreveria essa escolha?) e essa crítica serve a acção, se a opção for a militância.
Por exemplo, se se criticar historicamente a ideia de Poder em geral, constata-se que na verdade os homens puderam, segundo as épocas, ser cidadãos em que cada um era um militante CÍvico e um pequeno governador da sua cidade 9.s; ou então pertencer a uma fauna humana que povoava
os domínios do príncipe, fauna que este podia esfolar, mas da qual tinha
de saber permanecer dono, escutando os conselhos de Maquiavel96; ou
formar uma população que o poder empreende gerir, da mesma maneira que um conservador das águas e florestas regula e canaliza os fluxos das águas e da flora; ou ser embarcadiço a bordo de um navio de cruzeiro
através de mares por vezes tempestuosos, ficando o poder- a olhar pelo we!fare dos passageiros.
Uma crítica suave, li'\'Tesca, contemplativa, faz assim duvidar da
verdade das generalidades sobre o Poder ou sobre o Amor, com maiúscu
las. Pode então passar-se para uma crítica activa que, tendo em conta as realidades tão cambiante� dessas generalidades enganadoras, lhes conteste a legitimidade política. É também possível, como Montaigne, escolher a
conclusão inversa: vale a pena mudar de governo? Querer-se-á mudá-lo por
decisão pessoal, repito-o, já que a novidade escolhida será tão arbitrária
quanto a precedente; mas esta consideração nunca deteve ninguém. E assim vai a vida, com ou sem niilismo.
pode reconhecer-se, ao que parece� que s6 existem ciências, as ciências da natureza e
as
sente-se, percebe-se, revela-se, mas não dizer
a
realmente
para ele duas ordens de
ciências sociais: tudo aquilo que está para além se
demonstra minimamente. A história, quero
hist6ria da mente humana, é nesse sentido a verdadeira filosofia do nosso tempo.
Toda a questão hodierna degenera forçosamente num debate histórico; toda a exposição de príndpios torna-se uma aula de história.»
95
:é
na
qualidade de governador da sua cidade que Sócrates recusa evadir-se
entrega à morte: não é o simples dócil cidadão de um governo pedaço da cidade que assenta sobre o respeito pela
Lei. Ele
ilegal e
e se
tirânico, mas um
não quer dar um exemplo
de desobediência às Leis. Um resistente de 1940-4-1, em contrapartida, considerava-se submetido a um governo ilegal ou ilegítimo.
96 Tal é o verdadeiro assunto, o tema exíguo do Príncipe de Maquiavel: ensinar ao
príncipe como c onservar
4-4-
o poder sobre o seu principado.
III. O CEPTlCISMO DE FOUCAULT
Foucault, para quem o passado era o cemitério das verdades, não tirava a amarga conclusão da vacuidade de todas as coisas mas antes a da positividade do devir: com que direito julgá-lo? Ele nunca condenou, nem com uma só palavra, a mais absurda das doutrinas, expõe-nas todas com uma serenidade e uma abundância que são uma forma de respeito. Nada é vão, as produções do espírito humano nada têm que não seja positivo,
porque elas existiram; são interessantes e tão notáveis quanto as produções da Natureza, as flores, os animais, que mostram aquilo de que aquela é capaz. Ainda oiço Foucault falar·me, com prazer, simpatia e estima admirativa, de Santo Agostinho e do seu perpétuo jorrar de ideias; ideias claramente estimáveis já que, dificilmente credíveis, mostram aquilo de que o espírito humano é capaz. Não residia nele um estetismo ligeiro, mas antes uma atitude fun dada. Também não era amoralismo; o abominável suplício de Damiens fora um horror, sem comentários, a exposição dos factos fala por si. Do mesmo modo, a objectividade flaubertiana perante dos horrores
cartagineses condena-os por preterição; e a de Jonathan Littel, em As Benevolentes, é um Caravaggio. Por detrás do silêncio retórico da escrita,
adivinha-se uma amargura que, na conversação, encontrava em Foucault as mesmas palavras que nos vêm à boca diante das atrocidades de que a nossa espec1e e capaz 97 " f
•
,
.
Foucault não era mais niilista do que subjectivista, relativista ou historicista: de confissão própria, era céptico. Evoco uma citação decisiva. Vinte e cinco dias antes da sua morte, Foucault resumiu o seu pensamento numa única palavra. Um entrevistador acutilante perguntava-lhe: «Na medida cm que não afirma qualquer verdade universal, você é um cép tico? - Naturalmente», respondeu ele 98• Eis o ponto fulcral: Foucault duvida de qualquer verdade demasiado geral e de todas as nossas gran des verdades intemporais, nada mais, nada menos. Tal como escreve no começo de Nascimento da Biopolitíca, os universais não existem, só existem singularidades. Uma noite em que falávamos do mito, ele dizia-me que a grande questão, para Heidegger, era saber qual era o fundo da verdade; para Wittg enstein, era saber o que se dizia quando se dizia a verdade; «:mas, na minha opinião, a questão é: o que faz com que a verdade seja 97 Relato feito uma noite por Foucault: <<Esses massacres espantam-no? Mas, sabia que, na véspera da Batalha de Wagram foi dito a Napoleão: "Senhor, esta batalha será inútil, para quê deitar à morte cem mil homens em vão?" Resposta de Napoleão: "Um homem como eu está-se nas tintas para a morte de cem mil homens".»
98 DE, IV, pp. 706-707.
45
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
tão pouco verdadeira?»; a verdade ou, pelo menos, as verdades de cada epoca. '
Em Viaiar e Punir, Foucault não insinua que o nosso sistema carcerário não vale mais do que os suplícios atrozes do Antigo Regime; não tem o cinismo de quem coloca tudo no mesmo saco (militou contra a pena de morte), mas quer mostrar que esses dois sistemas penais são heterogéneos e que visam, um e outro, atingir objectivos singulares e arbitrários. Desde logo, farejara aqui uma estranheza, tinha imediatamente entrevisto uma diferença. Uma diferença em relação a quê? A outros discursos ou ao nosso próprio discurso penal. Em relação a que outra coisa poderíamos nós aferir uma diferença? Não existe já prontinha nem pode existir uma tipologia dos procedimentos humanos à qual bastaria reportar-se. De todos os discursos e sucessivos dispositivos da loucura através da história, é impossível extrair o que é a loucura em si mesma; em con trapartidat esses discursos e dispositivos constituem outros tantos factos históricos dos quais se pode falar rigorosamente, enquanto historiador. Ousarei evocar Espinosa, para quem cada corpo, cada alma e cada pen samento são um produto singular da concatenação universal
e
não entra
numa espécie e num género? Ou antes, só parece neles entrar para a nossa imaginação abusada por semelhanças superficiais 99 (Espinosa falava, é certo, dos modos da substância Natureza, isto é, de vós e de mim, e não, como Foucault, das entidades que os discursos são). As consequências são pesadas: não podemos já decretar qual é a verdadeira via da humanidade, o sentido da sua história, e precisamos de nos habituar à ideia de que
as
nossas caras convicções de hoje não
serão as de amanhã. Temos de renunciar às verdades gerais e definitivas; a metafísica, a antropologia filosófica ou a filosofia moral e política são outras tantas vãs especulações. O absoluto não está ao nosso alcance
100,
99 Sobre a negação dos universais em Espinosa, M. Gueroult, Spinoza, Aubier, 1968
e 1974, I, pp. 156, 413, 443; II, p. 339; e as matizes que G. Deleuze expõe, Spinoza ct le probleme de l'exptession, Minuit, 1968, pp. 256-257.
100 De modo que tudo é possível; talvez Heidegger tenha razão! Talvez o intelecto agente de Aristóteles exista. Talvez Gcorg Simmel tenha razão em supor que a alma não é uma substância mas uma função que permanecerá a mesma em condições de realidade
inteiramente diferentes (G. Simmel, «Lebensanschauung», em Gesamtauseabe, vol. XVI, Suhrkamp, 1999, pp. 209-425). A questão não reside aí: trata-se de nada podermos saber sobre isso. Mas o pavor que provoca a «natureza», a visão de uma árvore ou de um insecto, quando se pensa na sua inverosímil arquitectura interna ... A «natureza» sabe tudo sobre
a
46
física e a química. Então, depois disso, o darwinismo ...
UI. O CEPTICISMO DE FOUCAULT
�
pelo menos, por enquanto. Um dia, talvez, <<saberemos tudo: a campa é feita para saber» (Hugo). Para um céptico , não é impossivel que o mundo seja muito diferente daquilo que dele vemos. Apressemo -nos a tranquilizar o leitor: este cepticismo não incide sobre a realidade dos factos históricos , mas sobre as grandes questões, <
que é a verdadeira democracia?», por exemplo. E o que nos importa
saber o que é a verdadeira democracia? Saibamos antes como a queremos (de qualquer forma, a maioria de entre nós provavelmente não deixará
.
de acreditar que é verdadeiramente aquilo que queremos que ela seja). Criticar as ideias gerais não é negar toda a verdade e atentar contra a honra dos historiadores , como alguns temeram. As consequências nem por isso são menos pesadas; levemos o lei tor até à mais densa de entre elas, evocando o escândalo levantado por foucault no dia em que afirmou (assim se julgou, pelo menos) que o homem, a humanidade, a figura humana só servia para ser apagada dos nossos cérebros e que não se deveria falar mais nela. Não era porém mais do que uma tempestade num copo de água clara. A verdade dos factos empíricos é-nos acessível, dizíamos nós, construímos uma lin guística , uma economia política, so ciologia e até mesmo psicologia e ciências cognitiv as; em contrapartida, não se saberia construir uma a
ntropologia filosófica. Pronto, está tudo dito; julgo que o leitor adi
vinhou o que se vai seguir.
Céptico, mas não inimigo da humanidade! O que se poderá dizer do homem em geral, senão ban alidades ? Nos universais antropológicos nunca se
nsegue encontrar aquilo que um
co
epistemólogo anglo-saxão designou com a expressão o duro do mole: tudo verga sob o peso da mão. Perguntais-vos de onde vem o desenvolvimento do saber, da ciência? Invocai ad libitum, a curiosidade, a necessidade de dominar ou de nos apossarmos do mundo pelo conhecimento, a angústia diante do desconhecido, as reacções perante a ameaça do indiferenciado
101•
Donde uma das teses principais de Foucault : «é preciso fazer-se a econo mia do homem ou da natureza humana, se se quiser analisar o sistema da
101 DE, II, p. 242.
47
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
sociedade e do homem» 102; é preciso estudar a história, a economia, a sociedade, a linguística e todo o dispositivo que fez dele aquilo que é em dado momento. Enquanto o pensamento antropológico pressupõe que além dos factos reside uma generalidade humana, as ciências humanas, a linguística, a economia, a etnologia estudam cada uma um domínio especifico, sem por aí pretenderem contribuir para uma concepção geral do homem
103•
Há Inuito a dizer sobre as positividades que formam os homens em dado momento, sobre o homo reconomicus, o homo fober, o homo loquens, mas o que dizer de instrutivo sobre o homo simplesmente? Que o riso lhe é próprio? Que não é totalmente bom nem totalmente mau? Que é um tema maravilhosamente diverso e ondulante e que é desaconselhável fazer sobre ele um julgamento constante e uniforme? Neste homem reduzido a si próprio não se encontrará natureza, ele reduz-se aos dispositivos nos quais se encontra momentaneamente enredado. Predigamos, pois, que brevemente se deixará de tomar a natureza humana como objecto de estudo e que «O homem se apagará, como um rosto de areia no limite do mar». Reconheceu-se a frase fatal, a frase que termina As PalalTas
e as
Coisas e lembramo-nos do concerto
no
charco de
rãs que acolheu essa conclusão tornada tão compreensível quanto inocente pelo seu contexto. Quantas indignações virtuosas provocou esta frase que valeu a Foucault a reputação de inimigo da espécie humana, essa espécie à qual pertenciam tantos dos seus leitores! O tempo que passa fez esquecer que nesses anos longínquos,
com
o despertar do mundo sobre
os horrores da guerra, toda a gente era humanista; havia os humanismos clássico, progressista, cristão, marxista, personalista, existencialista, tomista e até estalinista. Na frase tão censurada, o leitor de boa fé adivinha menos uma blasfémia do que, num traçado elegante energicamente cinzelado, o sen timento metafísico da tragicidade da vida. Há três séculos, esta imagem de um rosto traçado na areia e apagado pelo mar teria sido sentida como uma alegoria das <> e não passava de um provocador. A palavra fora mal escolhida, porque Foucault não era um ser de provocação mas sim de desafio lançado ao erro ou ao disparate. Recorre-se com demasiada facilidade à psicologia 102 DE, II, p. 103. «Não é necessário passar pelo sujeito, pelo homem enquanto sujeito, para analisar
a
história do conhecimento» (DE, I, p. 775).
103 Ulrich J. Schneider, Michel Foucault, Darmstadt, 2004, p. 79.
48
Ill. O CEPTICISMO DE FOUCAULT
da provocação . Seria mais fácil fazer a psicologia da ingénua crença na
provocação; crença ingénua ou vaidosa, porque o burguês de 1925 sentia-se
l isonjeado ao pensar que os «pintores cubistas» se preocupavam o bastante com ele para não terem outra preocp u ação que não fosse agradar -lhe . Com efeito, fosse quem fosse a julgar-se provocado não era,
ipso Jacto,
digno de sê-lo.
A frase fatal de Foucault significava simplesmente que se podia dizer
de que era Jeito 104 o homem, mas não interrogar o «Ser do homem>>
como Heidegger (qual é o lugar do homem no Todo e no tempo ?) , ou a
sua interioridade, como Sartre (que boa fe, que má fé nele?) . Foucault
tinha ainda mais razão do que pensava em 1971 porque) como viria a
descobri-lo, por volta de 1980,
no decorrer da sua história, os homens nunca deixaram de se construir
a si próprios, isto é, de deslocar continuamente a sua subjectividade,
de se constituir numa série inflnita e múltipla de subjectividades
diferentes que nunca terão fim e nunca nos co lo carão frente a algo que seja o homem.
105
Doravante, no lugar sempre vazio desse herói de numerosos pro
vérbios- o homem - , Foucault colocará o processo de co nstituiçã o ou,
por vezes, de auto-estilização de um Sujeito humano, livre, senão todo
-poderoso; aí voltaremos.
No entanto, adivinha-se o porquê deste pequeno escândalo: a frase
fatal tinha presa a si a luz negra de uma desconfiança que o respectivo estilo de escrita e atitu de de escritor haviam atraído sobre Foucault. Os seus livros incisivos não são os de um revoltado mas também não
se dirigem ao bom partido, nem são escritos para reunir em seu redor leitores de todos os géneros como em torno do calor de uma lareira.
Não são comunicativos, não são próprios para elevar o tónico vital dos
seus leitores. Foram escritos à espada, ao sabre por um samurai, seco como um sílex, cujo sangue frio e reserva não tinham limites. São eles
próprios espadas cujo manejamento supõe um leitor possuindo por si o 104 L'Arcbéoloeie du S11.voir, p. 172. DE, IV, p. 75; III, p. 469: «Não somos coisa
alguma além do que foi dito.» Cf. DE, I, p. 503,
e
L'Archéoloaie du Savoir, p. 275: <
palavras, os escritos nascem do dispositivo e não de uma natureza humana; de tal maneira
que, onde existe signo não pode existir
o
homem; onde se faz falar os signos, é preciso
que o homem se cale.» 105 DE, IV, p. 75.
49
I I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
tónico vital em questão. A virtuosidade deste estilo de esgrimista rego zijava o leitor que permaneceu jovem e fez o sucesso dos seus livros, quer fossem ou não compreendidos; mas, compreendidos ou não, colo cavam outros leitores numa posição de desconfiança, de defesa ou até de repulsa quando pressentiam, através do estilo, com que homem e com que atitudes lidavam. Um samurai, dizia eu (devo o termo a Jean-Claude Passeron, palavra que traduz bem a esguia e elegante silhueta do nosso herói, até a alegria das suas gargalhadas); ora um samurai, um guerreiro, não é «o espírito que sempre nega». Foucault não era desses pessimistas amargurados que sonham dinamitar o planeta. E ele acusava de fácil e suspeita a literatura dos ensaístas ou sociólogos que cultivam o género literário da sátira latina e se atiram aos vícios do tempo: panem et circenses, sociedade do espectáculo, sociedade de consumo e mercantil - insipidez dificilmente evitável, já que é quase impossível fazer seriamente uma antropologia do presente. O que fora ardente nos surrealistas não passa já de um prato requen tado. Como historiador, Foucault desdenhava esses queixumes amplifi cados. O nietzschiano que ele era suspeitava de um sintoma de pouca saúde nessas deplorações complacentes; pelo seu lado, não conhecia nem saciedade, nem desgosto, nem lassitude, nem declínio
(é o que significa o
mito nietzschiano do Eterno Retorno: «:Estou disposto a reviver o mundo actual as vezes que se quisen>).
Os limites desse cepticismo Apressemo-nos agora a responder a uma objecção bem diferente, com a qual nos enchem os ouvidos, e que não passa de um aadoet sofístico. Foucault, diz-se, contradizer-se-ia ao afirmar que
a
verdade é que não há
verdade: o seu cepticismo seria excessivo e o resultado seria duvidar da dúvida. Não: porque o seu cepticismo não duvida de tudo por princípio, o que é suficiente para destruir esta objecção que confunde sofisticamente um julgamento universal com o julgamento colectivo que toma os factos um por um. Quando u m pensador põe em dúvida as ideias gerais, não fa� por essa via um julgamento universal (em que se incluiria a si mesmo na sua própria condenação), mas um julgamento numericamente colectivo: ele não sabe de antemão, por princípio, que não existem verdades gerais,
so
I
I
Ill. O CEPTICISMO DE FOUCAULT l
mas fez um balanço crítico da loja das verdades e constatou que todas �
amostras que examinara eram criticáveis; conclui assim que tudo era
criticável nessa loja. Ora, constatar que os elementos de um balançot considerados um a um, são ruinosos, como faz Foucault, não arruína esse mesmo balanço sombrio; antes pelo contrário, isto confirma-o, sendo o
balanço e a loja duas coisas diferentes, e sendo esse balanço ruinoso,
não há qualquer dúvida._ Também não é contradizer-se, depois de ter negado as verdades gerais, exercer assim uma críti.ca geral : esta crítica sem ilusões não pretende conhecer adequadamente qualquer
objecto
determinado; precisa apenas
de noções vazias, como as de discurso, objecto, referente, princípio, julgamento colectivo, singu l aridades ou universais. Essas conchas vazias, meros auxiliares do pensamento, não são nem adequadas nem inadequa das
106,
porque não
rre sp ondem a nenhum objecto determinado que
co
seria inseparável de um discurso; mas prestam-se, à vez, a uma infinidade de referentes singulares o
toi,
cuja crítica ge nealógica explicita o «discurso»,
que conduz ao balanço desmistificador que acabámos de ver. Paz aos pequenos factos, guerra às generalidades . Não tendo Foucault , I
positivista inesperado, dito mais do que isto, tentemos a nossa sorte. E claro que os factos históricos não existem já prontos, são construções , escreve Marc Bloch , mas são construídos sobre discursos inofensivos para a sua verdade. O facto minúsculo de, em determinadas épocas e em determinados lugares , um corte de cabelo ser pago ao cabeleireiro com uma dúzia de ovos
e
não com uma moeda tornou-se, no século XX, um
facto e conómico, digno do discurso histórico . A ressurreição de Lázaro e o sabat das bruxas deixaram, no século XVII, de ser acontecimentos naturais dignos de fé (em contrapartida, temos a prova , graças ao céle� bre
clínico
Pierre Janet 108, que a estigmatização, por exemplo a de São
Francisco de Assis, não será lendária). Um julgamento sobre os factos empíricos pode ser verídico: o genocídio cambojano teve lugar, Jesus de Nazaré existiu realmente, mas terá verdadeiramente caminhado sobre as águas? Alguma vez se verificou milagre algum? Em contrapartid a , para que o genocídio hitleriano pudesse ser uma mera lenda, como pretendeu um punhado de perversos, seria preciso todo um discurso segundo o qual o nosso mundo (como outrora o dos
106 Testemunho oral de Foucault respondendo a uma objecção da minha parte.
1 07
Comparar M. Gueroult, Spinoza, op. cit, I, pp.
108 P.
Janet, De l'anaoisse à l'ex.tase,
Alcan,
413-419.
1926 (1976).
51
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
g nósticos) estivesse dominado e abusado por potências engana doras , imperialismo , capitalismo ou conluio judeu, que tivessem interesse em
fabricar essa lenda. Seis milhões de judeus assassina dos, o facto está aí,
e os factos são obstinados , retorquia Foucault a propósito dos crimes estalinistas 109• Em compensação, os números do Antigo Testamento são fabulosamente engrossados, cem mil inimigos mortos, sem conta r com as mulheres e as criancinhas; mas já não vivemos na era das lendas e da hip érbole numérica.
As interpretações do genoddio são passíveis de discussão (univer
sal banalidade do mal? Consequência trágica de uma Sonderweg alemã ?
Docilidade cívica e militar à autoridade e à dem asiado famosa Obriokeit?).
Tudo isto será cientificamente discutido na elaboração de ideais-tipo, como veremos: mas o facto do genocíd io está aí, dia após dia, e só um discurso g nóstico poderia contestá-lo. Ora tudo se esclarece aqui, eis-nos no termo ou no princípio do nosso problema: não fizemos mais do que dar continuidade a uma das grandes correntes do pensamento grego. Por um lado, existem os factos,
os pequenos factos da vida quotidiana , os únicos de que os cépticos gregos
não duvidavam o que revela que a vida é a mais forte (Pyrrho, o primeiro 110); por dos cépticos , tinha medo de cães: sabia-os capazes de morder ,
outro lado, há t udo o resto, a imensa inflação das <
ciências ditas físicas e para os ideais- tipo dos historiadores e so ciólogos , tal como o céptico Sextus Empiricus reservava um para a medicina empírica . Com efeito, descobertas e ideai s-tipo assentam em factos iguais àqueles
cuja realidade sentimo s a toda a hora quando agimos e somos afe ctados ; esses factos pelos quais os animais e nós temos de sair de apuros.
As inferências fundadas nesses factos perm item nos conhecer a �
existência de outros
já passados e prever mais ou menos o futuro. Os aconte cimento s «históricos>>, por muito pomposos que sej am reduzem-se ,
,
para a crítica, a factos e gestos quotidianos desse mesmo géner o (Water
loo visto por Fabrice dei Dongo perguntando se os
ep
isódios g uerreiros
em que tinha participado eram uma batalha). Pode pois estabelecer-se a realidade material daquilo que se passava e do que era feito em torno da s 109 «Fomos tomados pela ira dos factos», contra os defensores irenicos do estalinismo
(DE, lll,
p. 277). Sobre este episódio,
ver
D.
Éribon, Michel Foucault
et
ses contemporains,
Fayard, 1994, p. 344.
1 tO Diogene Laerce, F!e
et
doctrine des philosophes illustres, IX, 66, a consultar na
edição Goulet-Cazé, Le Livre de Poche, 1999.
52
III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT
câmaras de gás. Aliás, mal ou bem, compreendemo-nos entre humanos há ligação hermenêutica. É por isso que, à falta de ex 1icações metafísica p da Razão, é veridicamente possível decifrar a natureza, contar a história e descrever a so ciedade Hume teria aprovado, p ode crer-set esta filosofia do simples entendimento. Dito isto, estes pequenos factos indubitáveis só se atingem porém segundo um ponto de vista e através de um discurso; é a fatalídade que recai sobre o con hecimento humano 111• O herbívoro procura erva, esse objecto singular que se repete indefinidamente - porque uma coisa singular nem por isso é numericamente irrepetível112 -, mas essa erva não é a própria Erva, em si mesma, independentemente de qualquer ponto de vista: aos olhos do animal, trata-se de caules verdes e delgados que saem da terra. Tal é, na perspectiva bovina, o discurso da erva, que
�
.
é diferente daquele, não menos parcial e parcelar, de u m botânico ou de um passeante. O que a Erva é em si, fora de qualquer p erspectiva, nunca o saberemos (essas palavras nem sequer têm sentido para nós, só
uma inteligência divina pode ver o geometral da erva); o discurso dos botânicos que julgam «tudo saber» sobre a erva não tem correspondência o discurso do herbívoro. Não podemos saber o que ser iam a erva, o poder ou o sexo não revestidos por um discurso; é-nos impossível soltar com
(desencalhar) os factos do invólucro dos seus discursos. Não se trata de
relativismo nem de historicismo, é perspectivismo. Ou ainda, para citar aquí o que Foucault escreveu não me recordo onde: em lado nenhum se encontra sexualidade <
-�
esse efémero
f
a
priori histórico-- é imanente. E evidente que
aqui não se trata de algo do género das formas
priori da sensibilidade em Kant! Estou apenas a tentar sugerir, o melhor possível, que não se pode ver uma coisa sem «:dela se ter uma ideia»; perante um recém-chegado, a criança diz «é um papá>> tal é o seu discurso antropol ógico Nunca a
,
.
111 Comparar a análise fCita por Jean Laporte, Le Probleme de l'abstraction, :\Jean, 1940. O conhecimento que o herbívoro tem da erva, a ideia abstracta e geral q ue dela tem, é guíada pela sua «:tendência» (era esse o termo de Laporte) a alimentar-se de erva. 112 Porque
um
objecto singular (em termos de compreensão) pode ser geral (em
extensão), repetir-se em número;
o
círculo, o número 37 são <
termos cartesianos (37 é diferente de 36 ou de 38),
mas
encontram-se em toda a parte
em que os reencontramos; há 37 pessoas nesta sala, fulano possui 37livros.
«É a erva em
geral que atrai o herbívoro», escreve Bergson.
53
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
estamos perante a «experiência pr imitiva , fundamental , surda, minima mente articulada 113» de um. objecto anterior a qualquer discurso, de um
referente pré-discursivo; essa silhueta enigmática tomaria automaticamente um sentido, um nome, nem que fosse o do Enigma. Suponho assim, erradamente ou não ll4, que , de acordo com Foucault, interpretamo s sempre as coisas, que o fazemos de i mprovi so e durante pouco tempo da mesma maneira 115; o macho adulto é imediatamente interpre tado como um papá, mas durante poucos
meses. Uma procura
do objecto nu, do referente pré-discursivo, talvez não seja impossível116, mas não levaria longe: os homens nunca têm de lidar com o referente nu. O fenómeno que se inscreve na sociedade e na história, tal como é vivido, sofrido, tolerado, incensando, institucionalizado, foi sempre interpre tado de improviso, para se inscrever em todo um dispositivo que ele mesmo informa no seu sentido próprio. Só um deus saberia o que é a loucura pré-discursiva ou a Erva em si 117• Como bem quis escrever-me o penetrante «O
Jean-Marie Scha effer,
que é o conhecimento senão uma interacção entre duas realidades
espácio-temporais, o indiv íduo e o seu meio, isto é, rico
e
um processo empí
não um espelho?». Só poderia ser essa adequação verídica, esse
espelho, essa luz pura se um fundamento transcendental ou transcen dente (a garantia dada pela existência de Deus) viesse miraculosamente garantir-lhe o sucesso. Milagre no qual a filosofia acreditou até Niet zsche (poderíamos também evocar o cepti cism o antigo e Carneades).
113 L'Archéologie du Savoir, p. 64.
114 Uma frase de Foucault deixa-me embaraçado: «Sem dúvida que tal história do referente é possível; não se exdui à partida o esforço para desencalhar e libertar do tex to essas ex periência s pré-discursivas» (L:4rchéologie du Savoir, pp. 64-65). Não estará
aqui Foucault a tentar não parecer incisivo , dogmático? Não se vê bem de que modo o
acesso a um referente pré-discursivo pode ser possível, como poderá uma descrição ser
neutra. Desde logo, a simples delimitação do objecto supõe uma tomada de parti do, um
discurso; até onde vai a sexualidade? O nu artístico é casto? Um transe religioso é uma lufada de loucura?
115 Naissance de la clinique, pref., p. XV: «:0 que conta nas coisas dita s pelos homens [nos discursos], não é o que estes terão pensado aquém ou além delas, mas o que a ssis te
matiza à partida, tornando-as, para o resto do tempo, indefinidamente acessíveis a novos discursos e abertas à tarefa de serem transformadas.» 116 L'Archéologie du Savoir, p. 64.
117 Cf. NietY..sche ,
lEuvre.ç philosophiques complêtes, vol. XII, Fra oments posthumcs,
vol. 3, trad. Hervier, Gallimard, 1979, p. 143
54
::::
Cadernos W I 8, 2 [154].
III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT
l
Infelizmente, nenhum discurso pode des empe nha r esse pap el sublime
porque, «Sendo os discursos equipotentes», prossegue Schaeffer, <<sÓ uma ordem de discurso superior, incomensurável con1 os discursos
humanos, poderia operar tal subtracção».
E, uma vez mais, Jean-Marie Schaeffer escreve-me o seguinte:
A postura epistemol óg ica de Foucault não consistia em reduzir o
real ao discurso, n1as em relembrar que, desde que um real é enun
ciado, está sempre desde logo discursivamente estruturado. Neste
sentido, a afinnação da irredutível diversidade das discursividades não
implicava qualquer idealismo redutor da realidade ao pensamento, nenhum relativismo ontológico.
Pelo contrário, direi eu, o historiador tem acesso aos acontecimen tos e
o
físico alcança aplicações técnicas e predições. Mas nada mais,
porque <
S e nte se perfeitamente ao avaliar um discurso, que peso de reali -
,
118 que este envolve (e talvez também dade comporta o núcleo escuro
que po der tem sobre nós o dispositivo social, institucional, costumeiro,
teórico, etc., onde o discurso é imanente); mas é-nos impossível separ ar
o
trigo do joio, porque o discurso recorta e modela sobre si mesmo esse
núcleo que con stitui o seu objecto. Tudo vai depender do discurso que a vontade de saber questionar. Devem distinguir se três casos: -
as
ciências
sociais na medida em que aspiram a extrair o ideal-tipo de uma série de
casos singulares, as ciências físicas, que descobriram regularidades e, por fim, a pretensão teórica em manej ar generalidades, que muito abraçam
e pouco ape r tam
.
A história do pensamento não revela em si nenhum momento trans
cendentaln9, tal como a história política e social não revela sentido
118 Esse núcleo existe indubitavelmente. Para dar um exemplo, as frequências estatísticas desiguais de certos traços humanos constantes
atravé s
da hist6ria universal
mostram que há um núcleo de realidade para lá dos discursos. Mas que real é esse? Constata-se, por exemplo, que através dos séculos a homossexualidade é menos frequente do que a heterosst:�xualidade, mas este é um façto bruto desprovido de qualquer sentido enquanto um discurso não lhe der um, e que não autoriza nenhuma conclusão que não seja discursiva, logo arbitrária.
119 L'Archévlosie du Savoir, p. 265, onde se trata efeçtivamente do transcendental kantiano e não de uma transcendência.
55
I I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
i manente da história.
É
legítimo 110 divertirmo-nos um pouco e imagi
narmos um Foucault que. hipótese impossível, tivesse sido metafísico; não teria tomado como substância o deus-natureza necessário de Espinosa, mas antes o caos, esse «caos da precisão» de que fala Renê Char; o caos teria produzido unicamente res sinaulares e nenhum universal, de maneira que Foucault não concede ao espírito humano a capacidade de verdades gerais, as quais só podem ser ocas. E se Foucault tivesse sido antólogo; o ser reduzir-se-ia para ele à sucessão das práticas discursivas do saber, dos dispositivos de poder e das formas de subjectivação, <
um
facto
ou
uma graça que não precisam de provas,
enquanto o descrente, se for um céptico, não pode raciocinar nem a favor nem contra Deus. Montaigne concluía, no interesse da paz pública, que bastava continuar a acreditar como dantes. Regressemos à terra. Na natureza física escrutinada pelas ciências exactas, os objectos do discurso científico apresentam regularidades, como cada um sabe. Em contrapartida, nas coisas humanas só existem
e só podem existir singularidades de um momento (os prazeres, depois
a carne, etc.), porque o devir da humanidade é sem fundamento, sem vocação ou dialéctica que o possam ordenar; em cada época é apenas um caos de singularidades arbitrárias, saídas da concatenação caótica prece dente. A frase que acabamos de ler representa, imagino eu, o princípio do qual decorre o foucau]tismo. Eis por que Foucault podia responder ao seu entrevistador que, no domínio humano, não afirmava nenhuma verdade universal: só existiam verdades de pormenor. Mas Foucault nunca se reclamou desse princípio, porque o importante aos seus olhos não era este truísmo, mas os factos que dele decorriam. Ele queria assinalar que a sua pesquisa partia desses factos e não de um prindpio filosófico do
120 Legitimamente, porque o próprio Foucault na pele do Deleuze de
Dúflrence et répétition (PUF,
(DE, H,
p. 97) se diverte a entrar
1968), para fingir uma metafísica do
«todo do acaso», do
56
III. O CEPTICISMO DE FOUCAULT
qual não tinha vontade alguma de discutir filosoficamente, já que não acreditava na fi]osofia. Em compensação,
as
singularidades empíricas pareciam-lhe de direito
dignas de fé. São a sorte do historiador, do jornalista ou do investigador; o seu questionamento recai precisamente sobre o desenrolar singular de um acontecimento. Então o discurso que esses questionadores lançam sobre os factos para poder capturá-los, e que os remodela, traz à sua trama uma resposta remodelada que responde à pergunta feita: qual é a verdade sobre este facto singular, qual foi a sua realidade? (Na verdade, a pergunta deles também exige que o facto não seja sobrenatural e que se tenha passado no nosso espaço e na nossa temporalidade, não no Olimpo, ao mesmo tempo céu e cume, nem no espaço-tempo mítico). Antes de mais , onde e quando ocorreu o facto? Como mostrou Ber
nard Williams 121, a nossa ciência histórica começa com Tucídides, com quem todo o acontecimento passa a ter um lugar
e
uma data, illic et tum:,
tornando-se o passado histórico homogéneo ao presente 113, não sendo já o tempo mítico ou aquele em que os animais falavam. Após o que, os
historiadores colocarão talvez questões mais gerais e mais espinhosas, o papel da luta de classes, a economia corno motor primeiro, o conflito das civiHzações, mas este é outro assunto. Estas questões de <<sÍntese» histórica podem mudar, é certo, o sentido que o historiador atribuirá a um acontecimento, mas não devem nunca atentar à rea1idade do facto E há mais:
ao
colocar a questão do illic
et
.
tunc, tornamo-nos mais
historiadores do que teóricos, crentes cândidos ou militantes cegos; há aqui urna «constituição correlativa do sujeito e do objecto 124». Porque, se um sujeito conhecedor colocar ao passado a pergunta certa, esse sujeito torna-se por essa via historiador ou jornalista de investígação. O discurso questionador, o objecto que ele encalha e modela e o próprio sujeito conhecedor nascem os três de
um
mesmo questionamento. Cada
um escolhe livremente (voltaremos a este advérbio que pod e inquietar os sociólogos) a sua via, a sua subjectivação. Lemhrar-nos-emos no momento certo, mas voltemos ao princípio tácito de Foucault. Se tudo corre bem com as singularidades empíricas,
122 J1énté et •·trodté. F:.SSai de aénéalogie, trad. Lelaidier, Gallimard, col. Essais, 2006. 123 Cícero, que nada crê em deuses nem mitos, pergunta perfidamente
como
é
possível que nos nossos dias os deus jâ não tenham filhos, que já não se anuncie nenhum nascimento divino, quando outrora os deus tinham crianças?
124 DE, IV, p. 635.
57
I I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
em contrapartida, e em vir tude do mesmo princípio, uma ideia geral que sobrevoa e pretende subsumir várias realidades singulares que confunde em si mesma só pode ser superficial e enganadora. Se se procuram gene ralidades nas coisas humanas, conceitos, uma essência que seja comum a uma dessas «pluralidades emaranhada de objectos
125»,
só se atingem
ideias falsas, vagas, (muita extensão, pouca compreensão), demasiado amplas, frequentemente nobres, por vezes pomposas e edificantes. Vere mos, porém, como Foucault pôde, sem contradição, militar a favor de convicções ou antes indignações.
125 L'Arclléologie du Savotr, p. 66.
I
! I
58
l
1 A Arqueologia
As origens raramente são belas, porque os pensamentos não ascendem
a um sujeito fundador da verdade ou a uma cumplicidade primeira com a fresca realidade do mundo: devem-se a acontecimentos do acaso - daí o 126 «princípio de singularidade da história do pensamento ». O poder, a
luta de classes, o monoteísmo, o Bem, o liberalismo, o socialismo, todas as
grandes ideias em que acreditamos ou acreditámos são produtos do
nosso passado; existem, são reais , no sentido em que algumas delas se impuseram entre nós como merecedoras de crédito e obediência; mas nem por isso são fundadas na verdade . O nosso autor junta-se ao nominalismo
espontâneo dos historiadores 127 ou de Max Weber.
Façamos tábua rasa do conceito. Foucault tem em mente a palavra
de Nietzsche <
sua constituição histórica 128>>, vasculhar nos arqu ivos da humanidade para aí encontrar as origens complicadas
e
humildes das nossas elevadas
convicções. Por detrás do termo genealogia, pedido por empréstimo a Nietzsche, foi isso que os seus livros fizeram: o Nascimento da Prisão de um fazendo eco da Genealoaia da Moral do outro. Se os conceitos devieram, as realidades também elas devieram; provêm do mesmo caos humano. Não derivam, assim, de uma origem, tendo-se antes for mado por epigénese, através de adições e modificações e não segundo uma pré-formação; não possuem crescimento natural como as plantas, não desenvolvem o que teria pré-existido num germe, tendo-se constituído ao longo do tempo em graus imprevisíveis, bifur cações, a cidentes , encontros com outras séries de acasos, rumo a um desenla ce não menos imprevisto 129• A causalidade histórica está sem 126 Ver o precioso comentário que François Gros faz sobre este tema na edição de L'Herméneutique du sujet. Cours au Collene de France, 1981-1982. Hautes -Seuil, 2001, pp. 23-24, n. 32.
Étud.es-Gallimard
127 DE, IV, p. 34. 128 DE, IV, p. 634. 129 M. Foucault, Sérurité, territoire, population, p. 244: em vez de «exibir a fOnte Úníca» de uma realidade humana, é preciso ver «a
multiplicidade de processos extraordinariamente diver SOS» que foram reunidos por «fenómenos de coagulação, de apoio, de reforço recíproco».
59
!
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
primeiro motor 130 (a economia não é a causa suprema que comandaria tudo o resto; a sociedade também não); tudo age sobre tudo, tudo reage contra tudo. Consequência destas descontinuidades, as questões que colocamos à realidade diferem tanto, de uma época para outra, quanto as respostas que lhes damos. A perguntas diferentes respondem discursos diferen tes; apreendemos cada vez um real que não é o mesmo; o objecto do conhecimento não permanece aquilo que é através dos discursos sucessi vos 13l. Para citar Rorty, estaria Aristóteles enganado quando distinguia na natureza duas espécies de movimentos, um natural (o dos astros, por exemplo) e o outro violento (o lançamento de um dardo)? «Terá Newton respondido correctamente às perguntas a que Arist6teles respondera de través? Ou colocar-se-iam ambos perguntas diferentes?
132»
Da mesma
maneira, é ridículo e pouco filosófico sorrir das ilusões amorosas dos apaixonados, porque o objecto amado, visto pelos olhos do amor, não é o mesmo quando visto por olhos indiferentes.
De maneira que <>
133•
Estarei errado por alegar aqui Wittgenstein?
Foucault e ele têm em comum acreditarem unicamente em singulari dades, de recusar a verdade como adaequatio mentis et rei e de estarem persuadidos de que algo em nós (o «discurso>> ou, segundo Wittgenstein, a linguagem) pensa mais fundo no nosso lugar do que n6s próprios. Para Wittgenstein, a vida mantém-se através de jogos de linguagem dos quais é prisioneira; pensamos através de palavras, códigos de conduta (relações sociais, políticas, magia, atitude perante as artes, etc.) 134• Cada jogo de linguagem tem a sua «verdade», isto é, releva de uma norma que permite distinguir o que é admitido ou não dizer dela; cada época vive sobre as suas ideias recebidas (mais vale dizer sobre as suas frases recebidas) e a nossa não é excepção m.
130 DE, IV, pp. 277 e 283: nuncaháfenómen os fundamentais, primazia de um factor sobre outro, existem apenas relações recíprocas e desfasamentos perpétuos entre elas. 131 Na.issance de la clinique, p. 139. 132 R. Rorty, Philosophy and the 1l1irror oj'Nature, p. 266. 133 DE, IV, p. 632.
134 Cf. DE, IJ, p. 539. 135 Um exemplo bastará, revelador de que todas as frases recebidas em qualquer época se equivalem: «Houve homens a julgar que um rei poderia fazer cho ver; hoje julga -se que a rádio é um meío de aproximação entre os povos» (Wittgenstein, De la certitude,
60
IV.
A ARQUEOLOGIA
Uma mesma coisa pode ser visada por diversos jogos onde surge como diferente; há diversos modos de objectivação possíveis. A árvore de que fala um mito grego que conta como Apolo metamorfoseou Dafne em loureiro não e a mesma que um loureiro de um botânico e esse também não é o mesmo loureiro de que os horticultores gregos falavam e culti vavam. O narrador do mito de Dafne não estava sequer consciente de que a sua linguagem era diferente da de um agricultor e que o loureiro do mito não
era
um loureiro igual aos outros 136• Em 1984, no ano da
sua morte, Foucault, para se diferenciar de Wittgenstein, definia a sua obra como um estudo daquilo a que chamava, não jogos de linguagem, mas jogos de verdade t·n. No entanto, para ele como para Wittgenstein, o loureiro, objecto do conhecimento, e o tema, mitológico ou agrícola,
não são os mesmos «conforme o conhecimento em questão tenha a forma da exegese de um texto sagrado ou de uma observação de história natural138». Apesar do desejo de sermos «objectivos», toda a mudança de saber,
por muita vontade que se tenha de fazer as coisas bem feitas, acarreta a
modificação do seu objecto, faz-se à custa de um novo discurso do seu objecto
139•
O leitor lembra-se, Laennec viu
um
corpo humano diferente
daquele em que os st�us predecessores viam um engrimanço de signos. Para criar a gramática comparada do indo-europeu ou das línguas romanas, não bastou constatar que o grego mêter, o latim mater, o alemão mutter e o indo-iraniano matar eram muito pan�cidos: foi necessário dar importância
escrito pouco
antes
da Segunda Guerra mundial; Gallimard, CoL Tel, 1987, p. 132).
Wittgens tein troça aqui de Sir James Prazer e das suas especulações sobre os reis fazedores
de chuva e sobre o fundamento mágico do seu poder. Para quê ir buscar a mentalid ade
primitiva, o pensamento mítico , etc.? Os primitivos pensam como nós, ou melhor, não pensamos melhor do que eles.
136 Do mesmo modo, a «pedra-doença» liano do <."'Orpo de
um
ex tr aída
por um medicine man austr a
doente só tem o nome em comum com
uma
pedra do caminho.
Igualmente, ouvir vozes sobrenaturais não será a mesma coisa que ouvir vozes reais: no primeiro caso, é obvio que só o destinatário as ouve, as outras pessoas presentes não as ouvem (Wittgenstein, Fiches, Gallimard, 1971,
n.
717).
137 DE, IV, p. 632, cf. pp. 634, 709, 713, 718. «Jogo» no sentido do inglês aame:
«jo go de regra do jogm•, donde <<procedimento», «normas de produç:ãm>. Sobre as relações entre jogos de poder e jogos de verdade (relações que são variáveis, contingentes e sintéticas, não analíticas: não se deve dizer
«O
saber, é poden>) , cf. DE, IV, pp. 676
e
724-726.
138 DE, IV, p. 632.
139 DE, I, p. 711. L'archéologíe du Savoir, p. 166.
61
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
à matéria das palavras, às suas vogais e consoantes. Foi preciso admitir que as palavras não se reduziam ao seu sentido, à função de serem espelhos: a sua matéria sonora era mais do que um detalhe, mais do que um grão espesso na fotografia verbal das coisas. Daí em diante uma ciência consistiu em encontrar quais as leis que haviam transformado os sons de uma mesma palavra sânscrita nos de uma palavra grega cujo sentido podia ser diferente, ou em precisar através de que etapas o latim aqua pudera ter-se tornado água. Melhor ainda, descobrira-se no mesmo lance que no meio do caos universal um certo aspecto das palavras os seus fonemas - apresentava constantes e a possibilidade de formular leis; efectivamente, <
contínuas têm cada uma, dentro de certos limites, a sua regularidade.
14"0>>
A física fizera uma descoberta análoga com Galileu e Newton.
Tornaram-se pueris as etimologias avançadas no Crátilo com uma soberba despreocupação 141• O nascimento da gramática comparada não consistiu apenas num melhor conhecimento do seu objecto, implicou também que, no fundo, já não se estivesse a falar da mesma 142•
coisa, tendo «a parte da coisa considerada pertinente» mudado Como o mesmo núce l o objectivo tem sido considerado, de cada vez, parcial e diferentemente, nunca completamente nem na sua nudez, o seu conhecimento tem por carácter a raridade, no sentido latino do termo: encontra-se furado, disseminado, nunca vê aquilo que poderia ver. «Ü meu problema», escreve Foucault, <<poderia enunciar-se assim: como é possível que em determinada época isto pudesse ter sido dito e nunca o ter sido? 143>>. O que em dada época, num dado domínio, podia ser pensado, dito e visto é raro, é um ilhéu informe no meio de um vazio infinito. O homem não pode ter acesso a toda a verdade, que não existe em
parte nenhuma. Não temos o poder de receber a palavra de um qualquer
140 L'Ordre du discours, p. 61. 141 Enquanto o material sonoro não foi tido em conta, a etimologia consistiu em aproximar palavras segundo o seu significado, à custa de trocadilhos, como faz o Crátilo; ou em dizer qual
a
palavra francesa que sucedeu a uma palavra latina para significar a
mesma coisa, sem justificar a passagem fonética. Voltaire, diz-se, glosava nestes termos os etimologistas do seu tempo: cherai veio do latim equus, porque o e transformou-se em
che e quus tornou-se vai. 142 DE, IV, p. 632. 143 DE, I, p. 787.
62
I
1
IV. A
ARQUEOLOGIA
imenso Discurso definitivo, total, que se dispusesse a ser escutado 144 e que esperaria o seu momento no vazio que nos rodeia- tal como o discurso dos excluídos, de acordo com a opinião caridosa de Michel de Certeau, em Maio de 1968; o vazio à nossa volta não está povoado daquilo que teríamos rejeitado 145• Não encontraríamos nele um natural expulso que quisesse voltar a galope; não existe qualquer trabalho de parto hege liano do negado, do negativo, que aos poucos pudesse conduzir à verdade total e ao fim da história. Posto noutros termos, não existe dialéctica, diálogo guerreiro perpétuo entre as ideias recebidas e as ideias excluídas, não há um regresso do recalcado 146• No imenso vazio, o nosso pequeno pensamento aparece rarefeito, tem uma forma muito vulgar, lacunas surpreendentes, não preenche harmoniosamente uma circularidade ideal e muitos outros pensamentos diferentes seriam tão concebíveis quanto ele, cuja necessidade não se impõe mais do que a deles.
14-4- L'Ordre du discours, p.
54.
145 Como primeiramente pensou Foucault; ver o prefacio da primeira edição da Histoire de lafolie, Plon, 1961, p. III: «Esses gestos obscuros através dos quais uma cultura
rejeita algo que para ela será o Exterior.» Foi por isso que Foucault suprimiu esse prefácio da reedição do seu livro na Gallimard. Se o vazio não fosse vazio, se os seres e
as
coisas
rejeitadas viessem bater à por ta , existiria um Todo original e uma destinação ideal , a totalidade. Nada disso: não há negativo, tudo é positivo, nada está em falta, a França não tem de crescer para finalmente preencher fronteiras naturais.
146 Há precisamente dois séculos que a dialéctica hegeliana tem sido o grande meio, num mundo do qual a ideia de Deus se afasta, de conciliar apesar de tudo a esperança de um mundo melhor com a
este.s,
cons tatação
que nos nossos dias a Verdade e o Bem não reinam :
apesar de excluídos e negados, não deixarão de fazer pressão e, no esforço e na dor,
acabarão por irromper no nosso mundo para um bappy end. De acordo com uma frase famosa de Hegel em 1807, a ideia de Deus «Caí até à base na insipidez quando lhe faltam a seriedade, o sofrimento, a paciência e o trabalho do negativo» (pbânomenolosie, Leipzig,
1949, p. 20; Pbénoménolosie de tesprit, trad. Hyppolite, Aubier, 1949, vol. I, p.
18).
63
I
I
jI UDiversa . 1·Ismo, universais, . eptgenese: . 1 os primórdios do cristianismo .
'
Em suma, a verdade nunca cairá do céu. Por outro lado, lembramo-nos de que é preciso desconfiar dos universais antropológicos, dos palavrões
como individualismo ou até universalismo. Vem-me à ideia um exem plo: os primórdios do cristianismo - sobre os quais me será permitido demorar-me, já que, no decurso desta exposição, encontraremos outros problemas de método.
É sabido
que esta religião, originária do judaísmo
--- que era a religião exclusiva do único Povo eleito -, se tornou univer sal, abrindo as suas fileiras às imensas multidões pagãs que a cercavam. Convencionou-se ver nela uma das grandes etapas da história universal, um avanço geral do Espírito.
Abertura ao universal, mas em que sentido? Esta palavra pode desig nar tantas coisas é
a
...
No caso em presença, significa que a religião cristã
única verdadeira e que deve ser pregada a todos os homens, para a
sua salvação, porque todos têm uma alma imortaL Estados Unidos, antes de 1865, I
os
É
por isso que, nos
proprietários de escravos baptizavam
os seus pretos chegados de Africa: o seu estreito universalismo da alma não era o dos direitos humanos. Também não pensavam que a espécie humana era uma só e que os negros eram homens como eles, donos dos seus corpos, e que possuíam capacidades mentais virtualmente iguais às dos brancos, sendo a diferença unicamente baseada nos hábitos culturais e
SOCiaiS.
Posto isto, não se poderia esperar pelo menos que através de uma abertura estreitamente religiosa tivesse entrado neste mundo, com Cristo, uma grande ideia? Não) não foi uma intrusão do Espírito, um Ereianís, um Acontecimento
no
qual Heidegger (que era pouco evangélico) não
pensou; foi uma reacção humana, vinda de baixo, imanente à nossa con
dição quotidiana. Os primeiros cristãos tornaram-se universalistas num sentido estreito do termo e sem tê-lo deliberadamente desejado. De onde vem então o proselitismo cristão? De onde vem o facto da Boa Nova ter sido pregada ao mundo inteiro? Jesus cla Na7.,aré não foi, porém, mais do que um profeta judeu e ignoramos o que ele teria pensado do cristianismo, que só se formou após a sua morte. O profeta Jesus não foi herói de si próprio (ele falava em nome de. seu Pai celestial); mas, fascinados pelo seu carisma, os seus discípulos e pregadores, entre os anos 40 e 100, edificaram uma religião da qual ele seria o herói.
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Cada um fê-lo pelo seu lado; o-cristianismo foi a criação colectiva de todos eles. A prova está em que cada discípulo exaltava Cristo à sua maneira: era Jesus um Messias? Primeiro nado de todas as criaturas? Incriado? Divino desde sempre ou tornado Filho de Deus pela suaRes surreição (São Paulo ensinava ambas as doutrinas)? No Quarto evangelho, Jesus era a encarnação de uma abstracção personificada e divinizada, o Verbo eterno de Deus, um ser divino, logo, «Um>> deus, ao lado de Deus em pessoa. Ainda por volta de 140, para os numerosos leitores de Hermas, Jesus era o Espírito Santo revestido de um corpo humano. Todos estavam de acordo num ponto: Cristo, que se apresentara aos apóstolos como o profeta do Fim dos Tempos, tinha recebido de seu Pai um papel cósmico e regressaria brevemente às nuvens para julgar os vivos e os mortos. Ora, no seu desgosto, os apóstolos ampliaram até às estrelas a relação desigual, mas mútua, de amor apaixonado que os havia unido a esse ser cósmico. Pensou-se também que, na cruz, ele «dera a
vida para resgatar muitos 147»; o seu lamentável fim ganhava então
algum sentido. O cristianismo será assim uma religião que não se parece com mais nenhuma e que não entra numa tipologia. Classificá-lo entre as «religiões de salvação>> é pouco instrutivo; como
a
inventividade literária, a inven
tividade religiosa é capaz de criações Únicas. O golpe de génio foi essa invenção de um homem-Deus, de um homem como nós, real, datado, um guru, um Doutor, que era também a divindade, a verdadeira, e não uma qualquer figura mitológica. O cristianismo torna-se então um comovente romance metafísico de amor onde a divindade e a humanidade se apaixonam uma pela outra, sendo o nó da intriga o sacrifício voluntário de um ser celestial para resgatar a queles que acreditaram nele (mais tarde, falar-se-á de resgatar todos
os homens). Este ser será incessantemente majorado; Jesus acaba por
147 Foi uma Palavra isolada (Joaion) atribuída a Jesus que Marcos, X, 45, seguido de Mateus, XX, 28, integrou num contexto com o qual não tem relação. Deve compreender-se que Jesus morreu como vítima propiciat6ria ou expiatória e que assim arrancou a Satanás aqueles que nele acreditaram? Que com a sua morte terá dado a Satanás uma caução para libertar
os
seus discípulos? Será preciso esperar pelo século seguinte para que Cristo
resgate já não «muitos homens» mas a humanidade inteira, O papel exacto do Redentor só dará azo a reflexão teológica depois do Ano Mil (as especulações teológicas dos pri meiros séculos re caem antes de mais sobres as relações entre a humanidade e a divindade em Jesus, que é,
em
primeira instância, Doutor
aparece nas artes figuradas antes dos anos 400.
!
I
66 !
e
Pastor). A figura do crucificado não
V. UNIVERSALISMO, UNIVERSAIS, EPIGÉNESE: OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO
ser tão deus quanto o próprio Deus, sem ser esse Deus em pessoa. No decorrer dos anos 150-250, nu merar- se - á a Trindade, o Deus único em três Pessoas divinas, onde Cristo poderá encontrar o seu lugar.
Ora, gra ças a um outro golpe de génio, o próprio Jesus da Nazaré,
dirigindo-se, todavia, apenas aos judeus, pregara-lhes, não a observância do sabat e dos outros mandamentos da sua Lei, mas uma ética da interio ridade, uma moral da maneira de pensar (quando se cobiça se cretam en te a mulher do próximo comete-se logo adultério no próprio coração); uma
ética assim podia ser a de qualquer homem. Contra o espírito de casta
dos padres e dos escribas, ancorados na observância da Lei judia, era proposta uma moral própria das pessoas simples. O que parece ser uma moral para todos os homens. Porém, não era essa a intenção de Jesus, que destinava
o
seu ensinamento unicamente
às gentes do seu povo; a sua linguagem elevada parece-nos universalista porque se colocava acima do legal ismo judeu
148•
Mas quando Jesus
falava numa língua menos elevada voltava a ser o profeta judeu que era. «Fui unicamente enviado aos cordeiros perdidos da. casa de Israel», dizia
HS Mesma pluralidade de modos (de «nÍveis») da verdade no que concerne a vida futura.Jesus enviava os seus doze ap6stolos unicamente em direcção a Israel. Em contrapar tida ,
«Veio para dar a vida a troco da de muitos» (Mateus, XX, 28; Marc os , X,
45) e esses
«muitos» devem incluir pagãos, Gentios, gentes das Nações; eles, ou dentre eles os Justos
(segundo os termos da justiça de antes da Ali ança, no tempo em que os povos ainda não
e stavam divididos), terão acesso à salvação aquando do Banquete final no Reino dos céus
(cf. John P. Mder, Jesus,
a Marginal Jew: rethinking the Historical Jesus, 200 l; trad. Degorce
Ehlinger e Lucas, Un certain]uy; Jesus. Les données de l'hístoire, ed. Le Cerf, 2005; aqui vol. 2, p. 264). Universalismo, seguramente, mas qual, ou antes quais? O deus no qual Jesus pensa quando envia os Doze unicamente na direcção de Israel é
o
da Aliança com o povo de Israel. O
et
vio dos Doze passa-se hic
en
Deus do Sinai, o deus nunc
e diz respeito ao
Deus ciumento do Sinai. Em comparação, o Reino celestial ocorrerá numa temporalidade que não é a nossa, que é sobrenatural, comparável àquela em que os deuses do paganismo ainda tinham filhos. E, sob a sua comum identidade, os dois deuses dessas duas tempora lidades não são os mesmos. Aquele pelo qual os Doze são enviados em missão para Israel é o deus do Israel actual, hic et
nunc,
o Deus ciumento da Aliança. Em compensação, o
deus do Reino sobrenatural será o Deus c6smico, aquele que, outrora, in illo tempore, fez o céu e a terra e não distinguia entre os (futuros) povos, tendo fabricado o homem, isto
é, todos os homens. Ou seja, temos aq ui a mesma distinção modal que aparece entre o
loureiro dos camponeses, s egun do Wittgenstein. Sobre a distinção implícita entre estas duas modalidades do deus venerado em Israel, o criador de tudo e o loureiro de Dafne e
o
deus ciumento e unicamente de Israel , permito -me remeter para o meu livro, Qyando o nosso mundo se tomou cristão, onde evoco este dualismo bem conhecido.
67
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
ele) e «não está certo tirar o pão às crianças (de Israel) e deitá-lo aos cães 149», a pagãos.
Foi, no entanto, a mensagem elevada, a mais popular e a mais nova,
a dos evangelhos sinópticos que, depois da sua morte, os discípulos de
Jesus pregaram aos seus compatriotas judeus. Esta mensagem podia tornar rica e preciosa a mais humilde existência, através de uma elevação da
temperatura da alma 150• Esses pregadores eram apaixonados pelo seu Senhor e por uma mensagem que, de forma vaga> sentiam ser também
obra deles. Alguns estavam satisfeitos por possuir a verdadeira fé
e
por
partilhá-la com um pequeno grupo de fiéis, enquanto outros, mais ambi
ciosos, tinham vontade de «vendê-la» amplamente. Era tentador dar a
conhecer por toda a parte o Deus que herdara de Israel o privilégio de
ser o Único verdadeiro e cujo ensinamento, apesar de exclusivamente
destinado aos circuncidados, era suficientemente espiritual para ser
recebido por todos os homens.
Se houvesse pagãos que, atraídos por esta religião superior, pedis
sem o baptismo, ser-lhes-ia recusado? São Pedro foi o primeiro a ceder à tentação: baptizou um não-circunciso, o centurião Cornélia. Foi um
beliscão nos princípios: o zelo devoto, se for ambicioso e impulsivo, nem sempre se revela escrupuloso. Pode também ser condescendente: o Deus dos Judeus c ristãos, que valia mais do que todos os outros deuses, era dado a um pagão como uma lição
151
e uma esmola
152•
Dever-se-á considerar o proselitísmo como uma inclinação natural e
como um universal antropológico? Não, é uma questão de temperamento
e de circunstância; na alma de cada discípulo travou-se
um
combate
inconsciente entre a ambição, a preguiça e o apego à Lei do seu povo;
ora foi isto, ora foi aquilo que levou a melhor. Porque em pano de fundo
da L'Onsciência e das suas razões elevadas, há pulsões em acção.
149 Evangelho segundo Mateus, XV, 24-26. Para tudo o que se segue, cf. John P. Meier,
op.
cit.,
vol. 2
e
3 passim; por ex., vol. 3, pp. 123, 164-165, 190, 553.
150 Nietzsche, CEuvres philoscphiques completes, vol. XIII, op.
cit.,
p. 197.
151 Desde há oito séculos, os profetas e os salmos ensinavam que um dia viria
em
que os outros povos rumariam a Jerusalém para se inclinarem diante do deus de Israel ao qual os outros deuses, nos céus, recor1heciam a superioridade. 152 A Jesus que lhe diz que não irá dar a cães pagãos o pão das crianças de Israel, a Cananeia responde:
«OS
cães gostam de comer as migalhas que caem da mesa dos donos»
(Mateus, XV, 27). Não consta que este episódio seja autêntico h istórico (John P. Meier, op. pagãos.
cit.,
e
que provenha do Jesus
vol. 3, p. 374); devia justificar a abertura da Igreja aos
V. UNIVERSALISMO, UNIVERSAIS, EPIGÉNESE: OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO
I
I
Nem toda a gente é prosélita; entre os pagãos, alguns convencidos, filósofos ou padres de deuses estrangeiros, não aspiram ao monopólio para as suas lojas e contentam-se tranquilamente em «esperar pelo cliente». Não menos frequente é não ter loja e considerar a doutrina da qual se tem a chave como o privilégio de uma elite. Ora, salvo excepção, os filósofos só poderiam nascer na classe social dos notáveis letrados. Consoante os casos, alguns indivíduos experimentam um sentimento de aumento de si próprios se fizerem parte da rara elite dos sábios que não são «insensatos», «medíocres>>
(phauloi,
diziam os pensadores gregos).
Outros, pelo contrário, de origens modestas ou membros de uma Igreja organizada e autoritária, só experimentam esse sentimento se tiverem convencido ou constrangido outrem, para seu bem, a pensar como eles e se reencontrarem a sua imagem por toda a parte. O universalismo não foi introduzido no cristianismo por uma intru são da Razão ou do Espírito; foi um deslize em alguns temperamentos ambiciosos e não elitistas, uma deriva que, dejacto, se tornou costume.
O caso de São Paulo é diferente; apóstolo auto-proclamado, quando não tinha ouvido nem conhecido Jesus, este agitador ousou erigir em dou
trina, de jure, a ultrapassagem do judaísmo 153• Mas Paulo foi apenas um
missionário entre tantos outros que fizeram conversões em províncias orientais onde ele nunca esteve. O baptismo de Cornélio por Pedro provocara um relativo escândalo, mas alguns discípulos descobriram o que não tinham premeditado: este feliz contratempo abria-lhes o <<mercado» potencial do Império pagão,
enquanto os seus compatriotas os massacravam, os expulsavam da comuni dade judia 154• O próprio Jesus predissera que iria haver o maior número de convidados no próximo Banquete celestial 155• Alguns discípulos viram nisso um convite para escapar ao isolamento a que o judaísmo estava votado entre as nações; o seu proselitismo, em vez de ir unicamente ao 153 Sobre o pormenor complicado da doutrina de São Paulo, garantida sobre o fundo e flutuante nas suas formulações e audácias, ver: E. P. Sanders, Paul, Oxford University Press, 1991, pp. 84-100 e 122-128. 154 Joseph Rat'Zinger em
Offinbaruny und Oberli�ferung,
Quaestiones dísputatae,
Fríburgo-BasileiaNiena, 1965; trad., Révélation et tradition, Desdée de Brouwer, 1972,
p. 64: «Foi apenas uma série de obstáculos históricos - entre os quais deve sobretudo mencionar-se a exe<-"'Uçâo de Estêvão, a de Tiago, tal como, por fim e de modo decisivo, a prisão de Pedro e a sua fuga-, que levou a criar a Igreja em vez do Reino [celestial}.» 155 Mat eu s, XXII, 1-10; Lucas, XIV, 15-24 (onde se pode ler o famoso compelle
intrare).
69
I
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
encontro de Israel, como Jesus lhes ordenara que fizessem , orientou-se para o imenso «mercado» dos pagãos, das «nações», e fê-los entrar em
Igrejas organ izadas, disciplinadas e hierarquizadas . O que, graças a eles , se tinha encarnado não era um puro ideal mas sim um projecto concreto,
com os seus móbiles interessados e o seu dispositivo; projecto tão sublime quanto se quiser mas preciso e estreito no seu dis(.,'Urso. Em três décadas, a admissão de não-judeus no judaísmo cristianizado resultou num divórcio entre seitas étnicas de judeo-cristãos circuncisos e essa religião nova que se dirigia a todos. A metafísica platón ica e também superstições pagãs (ex-voto, preces peJa chuva...) ou novas (relíquias) con tribuiriam para a formação da doutri na cristã e das suas práticas devotas. As orige ns raramente são belas; as realidades e as verdades constroem -se aos poucos, por epigénese, e não estão pré-formadas num germe. Falar das raízes cristãs da Europa não é um erro, é sem sentido: nada é pré-formado na história. A Europa tem, quando muito, um patrimÓnio cristão; vive numa casa antiga onde se podem
ver
pendurados nas paredes
velhos quadros religiosos. Não fa]emos mais de raízes, mas antes de património. O Ocidente actual possui um vasto
e
precioso património arquitectónico, artístico,
literário , musical e até fraseológico que é amplamente cristão, mas a sua moral e os
seus valores já nada têm de cristão. Se alguma vez teve
raízes cristãs, foram há muito tempo arrancadas. O ascetismo? Saiu-nos do espírito. O amor ao próximo? Os escravos cristãos de outrora tinham o dever de amar o seu dono e de Jhe obedecer, e o dono cristão amava os seus escravos, eis tudo. Em 1870 ainda
a
modernidade era alheia ou
.contrária ao catolicismo. Nos nossos dias, a minoria dos crentes tem a mesma moral prática que a maioria não-crente (nem todas as famílias cristãs têm seis fi lhos). Ora os valores actuais (como a liberdade sexual,
a igualdade entre os sexos) são alheios ao cristianismo, ora foram-lhe impostos pela lei (como a liberdade de consciência), tendo-se este adap
tado (à laicidade, à democracia) e adoptado valores modernos (como a redução das desigualdades sociais): a partir da encíclica de 1891 sobre
a condição operária , é o cristianismo que tem. raízes modernas ... E a histór ia hi-milenar dos dogmas, da devoção e da exegese dos Livros sagrados mostra que o cristianismo nunca parou, por epigénese, de se construir
70
e
adaptar.
I
I
I Apesar de Heidegger,
j o homem é um animal inteligente Tenho a cabeça a andar à roda, há que parar por um instante. Pois,
afinal, �nde estamos? Haverá na nossa caminhada alguma verdade, algo sólido a que nos possamos agarrar? Ficamos felizes na montanha ao sentir os grampos morderem o gelo nas encostas onde a camada de neve desliza. Claro que sim, há uma frieza sólida num Montaigne ou num Hume (bem podem enviar às urtigas as hesitações do jovem Veyne e dos seus Gregos crentes nos mitos 156): a metafísica é inacessível à inteligência humana, as ideia gerais são falsas porque vazias; em contrapartida, acedemos ao saber empírico de coisas singulares. Porque só existem e só podem existir, aos nossos olhos, singularidades, que são parcialmente repetíveis, donde, entre outras, as ciências exactas mas também as práticas e saberes da nossa vida quotidiana e da nossa mútua compreensão; assim aprendemos que o sol se levanta novamente todos os dias. Foucault e Hume, o mesmo combate 157
•••
Jean-Marie Schaeffer disse-no-lo, o conhecimento é uma interacção entre duas realidades espácio-temporais, o indivíduo e o seu meio; é um processo empírico e não um espelho celestial. As coisas em si, libertas dos nossos «discursos:» que as recortam e modelam à sua imagem, só seriam
156 Estou a referir-me ao meu livro de juventude, já velhinho, à
leurs mythes?, ed.
Les Grecs ont-ils cru
Seuil, col., Des Travaux, 1983, onde muitas árvores são verdadeiras e
a f loresta é uma mera elucubração. Partilho agora sobre este livro a opinião de Bernard Williams, Jférité «Um
et
véracité, trad. Lelaidier, Gallimard, 2006, p. 354-,
n.
25, que fala de
relativismo extravagante a respeito da verdade, senão pior» e acrescenta, caridosa
mente: «as muitas ideias interessantes deste livro são independentes desta retórica». Está visto em que género de embaraço pode, à falta de cultura filosófica, cair um historiador quando encontra no seu ofício problemas como o mito, que têm uma dimensão filosófica inevitável; quero com isto dizer que são problemas muito abstractos. De facto, misturei duas questões, a da pluralidade das «:modalidades de crença» (como Raymond Aron
me
ensinara a di1..er) e a da verdade no tempo (sobre a qual Foucault me dissera duas pala vras), e elucubrei sobre esta última. Se tivesse lido \\littgensteín ou melhor compreendido Foucault, ter-me-ia saído melhor.
157 Efectivamente, Hume não teria acreditado (retroactivamente ...), em nome do seu empirismo, na fàculdade kantiana de formar julgamentos sintéticos
a
priori;
Foucault também não acreditava e via nisso aquilo a que chamava de «dobrete empírico -transcendental» (ai voltaremos).
71
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
acessíveis a uma inteligência mais do que humana. Para dar a palavra a Alexandre de Koyré, o homem é capaz de conceber a ideia da verdade, mas é provavelmente incapaz de atingir a própria Verdade. O homem não é o pastor do Ser de que fala Heidegger, a humanidade
é uma espécie animal entre outras. Assim falava Nietzsche:
Num qualquer recanto dos confins deste cosmos que se espalha em esplendores de inumeráveis sistemas solares, era uma vez um astro sobre o qual animais astuciosos inventaram o conhecimento ...
Houve eternidades durante as quais a inteligência não era e, quando
novamente tornar
a
sert não se terá passado nada, porque essa inte
ligência não tem missão mais ampla, missão que ultrapasse a vida humana.
158
Os cépticos sempre acreditaram na alma dos bichos, e Foucault fazia o elogio da inteligência do gato que visitava os apartamentos do número 285 da rua de Vaugirard: «ele compreende tudoh>. Tendo deixado de
estar no centro do mundo, com Copérnico, tornada espécie viva com Darwin 159, a humanidade perde, com Nietzsche, qualquer vocação
e justificação meta-empírica; o seu romance filosófico de educação já não tem conclusão por que esperar (tranquilizemo-nos, não vai parar de fervilhar por tão pouco: o espírito nunca é destruído e a história da humanidade não depende da história da filosofia). Nada está mais afastado de Foucault, escrevera-me, de resto, Jean -Marie Schaeffer, do que
<
pathos messiânico de Heidegger» ou do que a
convicção que ele tinha de uma «historialidade destinah> do homem, do Da.sein. Historialidade, porque - se compreendo um po uco esse pensador
difícil e, por
outro
lad.o, obscuro (não é a mesma coisa)�, Heidegger está
imbuído, tanto quanto pode estar um Foucault, do sentimento do devir e das descontinuidades, pelo menos desde a sua famosa «viragem» de pensa mento. Os seus admiradores concedem, com um sorriso, que a linguagem de Heidegger é por vezes mística; Dominique Janicaud acrescenta que a
158 Nietzsche, Pbilosophenbuch, começo de Vbité et menscnae d'un point de vue extra -moral. 159 Sobre a humanidade enquanto espécie biológica e para uma crítica da oposição natureza/ cultura, ver J .-M. Schaeffer, La Finde l'exception humaine, Gallimard, 2007. Este é, a meu ver, um livro pessoal, aprofundado, reflectido e muito informado em filosofia e etologia.
n
VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM
É UM ANIMAL INTELIGENTE
sua historialidade resulta numa atitude de profeta por parte de uma elite, do «deus que aí vem 161».
160
e na espera solitária,
Em boa hora! Tendo enfiado o meu colete à prova de bala, sugiro que esse pensador original quis voltar a dar a uma época esquecida de toda e qualquer transcendência, um equivalente, suficientemente refi nado para ser aceitável, do que outrora se chamava Espírito. Heidegger propõe a uma época céptica uma Verdade que se desvenda sem deixar de raciocinar: não é necessária uma dialéctica para a alcançar, chega+se lá l6 «dando um salto 1». A uma época descrente, ele devolve um Absoluto que não é o Ser da metafísica nem o Deus das religiões;
um
Absoluto
que «SÓ se mostra escondendo-se», que imediatamente se venda depois de se ter desvendado, presente-ausente bastante para poder continuar credíveL A uma época em que história e verdade se opõem, ele propõe um Absoluto cujas aparições repentinas e inopinadas fazem «época» e são «historiais»
na
sua descontinuidade.
O heideggerianismo é uma imensa paisagem histórica iluminada por relâmpagos que são outros tantos «acontecimentos», Erei9nisse 160 D. Janicaud, L'Ombre de
cette
163•
pensée: Heidegger et la question politique, Jérôme
MiHon, 1990, p. 152. Sobre a tempestuosa questão do nazismo e da impenitêocia final de Heidegger, ver Emmanuel Faye, Heidegger: l'intraduction Ju nazisme dans la phi.lasophie, Albin Michel, 2005. 161 D. Janicaud, L'Ombre Jecetu pensée, cp. dt., pp. 97-108. Critica mais interessante ainda, uma
vez
que Janicaud, que conheci um pouco e que era um nobre carácter, era ele
próprio um nostálgico do Espírito e admirava profundamente Heidegger. 162 Heidegger, Identité et d!fférence, être, em Qyestions sem nomeá-lo,
a
em
Qyestions I, trad. Préau, p. 266; Temps et
IV. trad. Fédicr. A página 343 de l.es 1Wots et les
Choses visa Heidegger,
propósito do «dobrete» histórico-original.
163 Acontecimentos tais como o pensamento grego ou a filosofia germânica, que acarretavam consigo toda uma cultura, porque a filosofia é a chave (ou a metonímia ...) de toda a época histórica. Antes de 1945, se bem que despreocupado com o homem quotidiano e histórico, Heidegger estendia à raça ariana ou ao povo alemão esse privilégio de entrever a verdade graças ao seu Dasein. Depois de 1945, Heidegger não tornat"'á evidentemente a falar nisso e permanecerá numa espede de apolitismo e de espera, sem uma palavra de penit�.ncia sobre o seu passado na:rJ. O Acontecimento, que «modifica a essência da verdade» (escreve Heidegger no
seu
belo livro sobre Nietzsche), ocorre «subitamente e
de improviso», jiih und untWSehens, dizem os Holzwege, p. 311. Este Mistério «envia-nos» através das épocas a sua visibilidade invisível nas suas sucessivas aparições que foram a Physis grega, o Logos, as Ideias platónicas, o Um neo-platónico, a Substância espinosiana, a Vontade segundo Schopenhauer e, em último lugar, a vontade de potência nietzschiana. Heidegger soube dizer o que esse mistério realmente é: uma entidade tão diferente de
73
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
A história é o reino de uma mesma origem que se inicia de múltiplas maneiras 164• A cada um desses relâmpagos, que, aliás, se furtam à nossa visão, torna-se-nos presente uma época nova, com as suas comunidades humanas, as suas obras, a sua cultura (a nossa é técnica), as suas crenças religiosas. Estes acontecimentos, na sua dispersão,
na
sua diversidade,
têm todos uma origem comum e essa origem é um Absoluto, que nos impõe, não a verdade propriamente dita, mas a sua irrecusável Presença, se nos soubermos abrir a ela em vez de raciocinar cientificamente sobre os pormenores. Heidegger tentou escapar ao Uno platónico e dar à his tória o seu lugar, que é imenso, mas sem cair no relativismo: todos esses relâmpagos de invisíveis verdades têm a mesma origem. Será suficiente para escapar ao relativismo? Será um golpe de génio filosófico ou uma solução apenas verbal? Aí voltaremos. O erro fundamental do homem consiste, demasiadas vezes, em
esquecer a Presença numa espécie de inautêntico divertimento pascaliano. O homem heideggeriano é, antes de mais, um ser que possui uma vida
interior: lançado a este mundo, conhece o Cuidado, é ser-para-a-morte, é autêntico ou não, mas não tem corpo, ignora o desejo, a necessidade, o trabalho, a deliberação política. Este homem ou, pelo menos, o seu Dasein, reduz-se àquilo que no homem se pode tornar uma espécie de homo reli9iosus ou fracassar em vir a sê-lo; ousemos pronunciar o termo: o
Dasein é uma alma. Essa alma será autêntica se não esquecer a relação
mútua e imediata que tem com o Ser, inautêntica se a esquecer para se dissipar na multiplicidade quotidiana ou dentista dos entes. Esta gnose de alto voo é, pois, uma teologia sem Deus 165, uma teologia negativa da coincidência dos opostos e do Abismo sem fundo, ao mesmo tempo inal cançável e presente nos seus Ereignisse, que são outras tantas teofanias.
tudo que da mesma é a própria Diferença; de tal maneira que, com ele, chegou ao fim a metafísica, que desconhecia a Diferença
e
procurava o Ser ou Deus.
164 Segundo uma fórmula de Jean Be.aufret, citado por Françoise Dastur na sua luminosa nota sobre Heidegger, na Histoire de la phi!osophíe (vol. lU) da Enc:yrclopédie de la
Pléiade. t 65 O Ser do último Heidegger já nada tem de comum com o dos filósofos ou das religiões, é antes
como
uma pessoa que interpela, que
se
recusa, que se esquiva e que será
«o último deus» para alguns Zukiitiftiae, alguns «homeJls por vir». Ver L Oeíng -HanholT em Historisches ft'&terbuch des PhiJosopbie, vol. V, na entrada «Metaphysik», col. 1272; R. Malter,
vol. lX, na entrada «:Sein, Seiendes», coL 219. O pens amento de Heidegger é um esforço desesperado para continuar por outros meios uma sensibilidade reli gios a (e até cristã, porque os diversos paganismos nada oferecem de análogo).
74
VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM
É UM ANIMAL
INTELIGENTE
O homem não é uma espécie viva entre outras. O que faz a su a especificidade é que a Verdade pode advir nele ; não advém aos animais. Esta Verdade não consiste em dois e dois serem quatro e outras pequenas verdades que temos em mente: não está nele, é o homem que está na verdade. Ela advém-lhe, desvenda-se-lhe, se pelo menos ele renunciar a uma pretensa objectivid ade. Só esta i mplantação (pela qual se desvenda ao homem o próprio facto de estar originariamente implantado na Ver
dade) faz dele um homem digno desse nome 166, que sabe que o Ser e o homem se pertencem mutuamente (Zu-einander-nehoren). Idêntica Verdade
nsiste em saber que se está na Verdade. Não se trata aqui
co
de um julgamento; pelo
ontrário , os nossos inúmeros julg amentos só
c
podem ser verdadeiros ou falsos graças à abertura originária do homem ao verdadeiro
167 •
Isto não s e demonstra lógica nem factualmente , é uma
Verdade propriamente filosófica, escreve Heidegger: advém através de 168
um acto, o da sua impla ntação nela • Heidegger não é daqueles para quem o horizonte do visível cons titui o limite daquilo de que é permitido falar. Era uma dessas almas que possuem o sentimento de algo e1evado, oceânico, azul, para lá do
verificável. Este pressentimento exp1ica que Heidegger conte com parti dários tão fervorosos e co mbativos Muitos homens, uma maioria prova .
velmente, possuem em algum grau esse pressentimento de um céu azul para lá do nosso céu. Ninguém é obriga
ridículo condená-los (antes lhes invejaríamos essa riqueza). Ora, com a descristianização, não sabem já como ali menta r o seu desejo de céu azul. Se se sentirem tentados a dar-lhe o heicleggeri anismo como alimento, é bom que saibam que o p reço a pagar será elevado: deverão resignar-se
a um fatalismo, já não poderão d ist inguir entre o verdadeiro e o falso nos entes (nem sequer apreciar a boa pintura)
e
deverão crer
166 O homem deve mostrar-se digno da sua situação perante não se perder inautenticamente em vãs curiosidades
o
no
Ser e
Ser, ser autêntico,
(Sein und Zeit, p.
170), em metafí
sicas, em técnicas e crer que a ciência das coisas, dos entes, é a última palavra de tudo.
O Eterno é o meu pastor, diz o Antigo Testamento; de acordo com
as
próprias palavras
de Heidegger, o homem é, pelo contrário, o pastor do Ser, que tem o dever de não o esquecer, de não se distrair com as coisas, na intuição dos simples «entes». 167 Heidegger, Sein und Zeit, p. 226. Sobre a indistinção heideggeriana entre origem e essência, ver mais adiante. 168 Parafraseio aqui as páginas 75-78 do seminário de Heidegger sobre a essência verda de
(Gesamwusaabe, 11. Klostermann, 1988).
da
Abteiluno: Vorlesuneen. Band 34: Wom Wesen der Wahrheit,
I I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
no Acontecimento por um acto de fé - como habitualmente exigem as religiões mais do que as filosofias. Porque o intelecto não intervém na relação do Dasein com o Ser, Heidegger não alega minimamente qualquer intuição intelectual e fala mais de uma vez da <<nossa crença», escreveu-me Emmanuel Faye. E se não acreditarmos, seremos inautênticos. Mas por que razão deveríamos nós fazer fe nesse sublime romance metafisico? Nenhuma: o leitor lembra -se, é preciso dar um salto para tal. E, uma vez que Heidegger afirmou o reino do Absoluto, da Origem que se esconde e se revela, tudo o resto, que é a nossa espessa realidade humana, parece não mais existir aos seus olhos. De modo que a sua doutrina implica uma humanidade simplificada, amputada, que é alheia à realidade.
Tal parece ser o caso da sua célebre teoria da verdade como desven damento. Em parte, ele tem razão, é certo: fenomenologicamente falando, «vemos>> previamente as coisas, «acreditamos nelas>> imediatamente, sem precisar de julgá-las verdadeiras, de alinhar um julgamento no traçado da sensação, como diz �1erleau-Ponty. E o que se desvenda diante de nós são as próprias coisas que «vemos»: não consultamos a fotografia, que seria a representação delas. O que permite a Heidegger falar de presença mais do que de evidência. Mas a presença não é tudo: é a mera condição de possibilidade da verdade, a sua origem; se nada «VÍssemos>>, nenhuma realidade seria possível. �ias será que tudo aquilo que «Vemos» é por isso verdadeiro? Não basta fiar-se na origem, porque, para citar Koyré
169,
a origem da verdade e a essência da verdade não são a mesma coisa. Ao restringir-se à origem, Heidegger negou-se, se bem compreendo, a pos sibilidade de distinguir a verdade do erro. O que vejo neste momento é uma percepção ou uma alucinação? Presença ou não, toda a realidade deste mundo terreno é passível de um exame crítico, porque a verdade tem uma essência, que é a da correspondência com o seu objecto. Talvez a «simplicidade do olhar e do acolhimento» seja suficiente para tornar vãs todas as ideologias do Século XX, como Heidegger teve a frontalidade de dizer
170,
mas, além dessa bela simplicidade, um pouco de exercício
crítico ter-lhe-ia sido útil contra a ideologia nazi. Idêntica telescopia da origem e da essência em matéria de arte. Sim, as Sainte-Victoire de Cezanne são Ícones da deusa que o pintor de Aix-en -Provence adorava intimamente, mas, sem essa qualidade puramente 169 Alexandre Ko:yré, «l'h·olution de Heidegger», nos seus Études d'h.istoire de la pensée philosophique, Gallimard, 1971, p. 288.
170 D. Janicaud, La Puissance du rationnel, Gallimard, 1985, p. 281.
76
VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM
É
UM ANIMAL INTELIGENTE
pictural que é a essência da pintura, não seriam ícones, mas vulgares camadas coloridas. Idêntica telescopia em política, que resulta numa espécie de fatalismo: a origem destinai (a missão histórico-mundial da Alemanha ou então a Gestell) basta para ditar qual a política a seguir, sem que a essência específica do político seja tida em consideração. Mas suponhamos, por exemplo, que essa essência consista em fazer viver os homens em paz entre si? Não estou a dizer que esta é a única boa resposta, mas que é preciso responder qualquer coisa e não deter-se numa presu mida origem destinai. Se o Gestell, a técnica, é o nosso destino actual, pelo Envio do Ereigniss, teremos de resignar-nos e esperar com fatalismo que isto termine com. o Envio seguinte? Não, porque, como escreveu Dominique Janicaud (que,
no
mesmo lance, deixou de acreditar na gnose
heídeggeriana da sua juventude)
171,
o pacote não chega de uma só vez,
mas sim por etapas, ao longo do tempo vivido, o que dá aos homens a possibilidade de reagir politicamente; e os homens têm, precisamente, uma inteligência crítica, uma razão, ou, pelo menos, um entendimento, e podem tentar uma parada, se acharem por bem 172•
Diferentemente de Heidegger, do qual lera alguns textos 173 (veremos brevemente a prova disso), Foucault é pouco místico e também não gosta de falar do homem em geral. Fê-lo, porém, uma vez; «a vida>>, escreve ele «resultou, com o homem, num vivente que nunca está completamente
aano 174>>; é Foucault quem sublinha. Enganar-se, no sentido em que o discurso só dá a conhecer o empírico, o fenomenal, e que, porém, o homem faz fé em
no seu lugar, um vivente eternamente votado ao erro e ao
ideias gerais ou meta-empíricas;
errar,
en
porque tudo aquilo que os homens
pensam e fazem, as suas sociedades, as suas culturas, é arbitrário e muda de uma época para a outra, porque nada de transcendente ou sequer transcendental guia o devir imprevisível da humanidade. A frase de Foucault, que acabo de citar, é quase textualmente decal cada de Heidegger, modificando-lhe, porém, o sentido de uma ponta à outra. Num livro célebre sobre a Essência da verdade, o p ensador alemão fala da errâncía (Jr:re) humana, para significar que o homem (digamo-lo
171 Idem., L'Ombre de cette pensée, op. cit., pp. 102-134. Simon Critch1ey, em DominiqueJanicaud, l'inteliiaence du partage. Textos reunidos por Françoise Dastur, Belin, 2006, p. 168. 172 D.
Janicaud, La Puissance du rationnel, passim.
173 DE, lV, p. 703. 174 DE, IV, p. 77+.
É
Foucault quem sublinha.
77
FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA
em
termos demasiado simples) passa quase sempre ao lado do Absoluto e segue o caminho banal das verdades quotidianas ou científicas m; <
época da história universal é uma época de errância 176>>, porque esquece
que a essência autêntica do homem (o famoso Dasein) deveria consistir em abrir-se
ao
Mistério do Todo. No entanto> em lugar de vivermos sempre
dispersos no nosso conhecimento das coisas, ocorre-nos por vezes pensar
no próprio Jacto
de conhecermos, esse privilégio Único que as plantas
e
os animais não têm. Isto faz do homem um ser vivo diferente de todos os outros. Se pensar nisso, se escutar o que todo o comércio
com
as coisas
�
Dasein que há
em si� descobrirá
com as ideias, com as percepções
- só é possível para um ser tal como ele, que transcende a natureza e que está
em
contacto com o Ser, com o Absoluto. Tal deveria ser a base
de qualquer filosofia. Para um empirista como Foucault, este Ser é um fantasma verbal, suscitado, imagino eu, por uma pretensa intuição intelectual à qual se faz dizer aquilo que se pretende. O facto de conhecermos coisas não passa de uma realidade deste mundo terreno e toda a verdade é passível de ser criticada. Se o homem se engana constantemente, é porque nunca acede à verdade em si mesma e que só a recebe atolada em «discursos>> que nunca são os mesmos de época para época. Regressemos, pois, ao nosso herói e à sua concepção do homem. Mas o que acabara ele de dizer, ao falar da nossa errância perpétua e dos nossos erros! Acabava de enunciar uma ideia geral e até mesmo uma tese de antropologia filosófica! Para aonde tinha ido o seu cepticismo? Pois bem, este último acabava de atingir o seu limite: a frase que lemos diz uma verdade verdadeira que é o ponto fulcral da condição humana; existe uma verdade última e é essa, por muito decepcionante que seja. Vimo-lo acima, um balanço ruinoso não se arruína a si mesmo, a dúvida não se arrasta a si própria; de acordo, tudo é relativo, mas a afirmação de que tudo é relativo não é relativa. Por detrás desta frase, em torno desta frase, podemos imaginar por toda a parte, antes de nós, longe de nós, depois de nós num tempo por vir, mil variações humanas possíveis, mil «verdades» passadas, futuras ou
exóticas, verdades de um tempo limitado e de um dado lugar. Nenhuma dessas «verdades» será mais verdadeira do que as nossas, mas o que acabo de escrever aqui é verdadeiro. Desses homens de outrora ou de amanhã,
175 Heidegger, Vem Wesen der Wahrheit, parte 7: «La non-vêrité comme 176 Idem, Holzu-"Cee, p. 31 0.
errance:».
VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM É UM ANIMAL INTELIGENTE
talvez nada saibamos, mas sabemos pelo menos que são homens como nós, prisioneiros de um discurso e de um dispositivo, e livres pela metade; são nossos irmãos. Ter curiosidade por outrem, não o julgar, não é isto humanismo? Preferiríeis mais dogmatismo edificante? Foucault acaba, pois, de escrever uma frase de antropologia geraL Esta antropologia é empírica, porque não provém da reflexão de um qualquer sujeito transcendental que deteria as chaves do mundo, e porque Foucault a escreveu depois de ter meditado sobre factos históricos. E é também uma antropologia filosófica , porque essa frase eleva-nos acima de nós próprios, faz-nos sair do nosso tempo e do nosso lugar, das nossas pequenas verdades e, numa palavra, da nossa redoma: olhamos, abaixo de nós e
como
se eles já não fossem nós, para os bichos que giram na
sua redoma. Conclusão: o homem não é um anjo caído que se lembra do céu, nem um Pastor do Ser segundo Heidegger, mas um animal errático do qual nada mais há que saber do que a sua história, que é uma perpétua positividade, sem o recurso exterior de uma negatividade que, intrusão após intrusão, acabaria por conduzi-lo à totalidade. Se, consequentemente, não existe para nós nenhuma verdade ver dadeira que não seja empírica e singular, é porque um acontecimento físico
ou
mental é o produto de encontros entre séries causais diferentes,
encontros que são apenas um outro nome para o acaso, como cada um sabe. Assim, o devir existe, não se repete e muda incessantemente de direcção da maneira mais inesperada. Além dos erros de facto que lhe acontece cometer, a humanidade crê em ideias gerais que se fazem obedecer (o verdadeiro impõe-se às nossas condutas) e que, em cada época, passam socialmente por verdadeiras. A maior parte das vezes, quando se fala da verdade, são estas verdades as designadas. «Por verdade, não quero dizer o conjunto das coisas verda deiras que está por descobrir ou por fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se deslinda o verdadeiro do falso e se atribui
ao verdadeiro efeitos específicos de poder 177», escreve Foucault. E Wittgenstein teria aprovado esta outra frase da Arqueoloaia do Saber: os discursos, as regras,
as
normas «impõem-se segundo uma espécie de
anonimato uniforme a todos os indivíduos que empreendem falar num campo discursivo»
178•
177 DE, UI, p. 159. 178 L'Archéologie du Savoir, pp. 83-84.
79
I
i
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Estamos rodeados, comprimidos, cercados por verdades. «Porque, afinal, a verdade existeh>, ouve-se protestar, e a maior parte das vezes essa não é uma verdade. Sim, eu sei, uma sociedade não pode existir sem convenções, sem preconceitos, mas é este o lugar certo para relembrá-lo? Retórica edificante e filosofia são duas coisas distintas , ora, a filosofia não gosta de se apressar, quer saber a quantas anda e levar o seu tempo para dizer onde está o preconceito. Há, portanto, de
um
lado, singularidades que comparámos ousa
damente aos modos espinosistas e, do outro, os conceitos ou discursos demasiado amplos e enganadores de que as revestimos: «a>> religião, <
como
móna
das: diremos então que as diferentes religiões, as diferentes formas de democracia ou as morais dos diferentes povos são outras tantas mónadas, outras expressões imperfeitas e parciais da <> democracia, da <>. Aceitaremos nós o desfasamento entre o ideal e o real ou retiraremos antes daí consequências políticas?
É assunto que só diz respeito a cada
um de nós. Diremos, à direita, que, sendo tudo o ref lexo imperfeito da sua Ideia, mais vale deixar as coisas como estão. Em contrapartida, para Foucault, nada é reflexo de um ideal; toda a política não é mais do que o
produto de uma concatenação de causas; não possui totalidade exterior
à sua disposição, não exprime nada mais elevado que ela própria, apesar de afogarmos a sua singularidade em nobres generalidades. Mas, desse
reza],
179 Em Espinosa, escreve Leíbniz, «tudo, fora Deus [isto é, fora da própria Natu é passageiro e desvanece-se em simples acidentes e modificações». 180 G. Deleuze, Spinoza et le probiême de l'expression, op.
cit.,
p. 306.
VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM É UM ANIMAL INTELJGENTE
modo, Foucault torna impossível o velho pensamento «de esquerda» que aspira à verdadeira democracia, ao fim da história. Torna impossível o intelectual generalista, Sartre ou Bourdieu, que toma posição em vir tude de um ideal da sociedade ou de um sentido da história. Foucault considera-se um intelectual especializado, que se indigna com certas singularidàdes que conheceu ao acaso da sua existência ou no exercício do seu ofício
181•
É o intelectual de um novo tipo, o intelectual específico
de que se falava por volta de 1980. Não entremos em pânico com a ideia de não nos podermos esconder debaixo da saia das verdades adequadas. A nossa faculdade de conhecer vale largamente a dos animais, que podem, como nós, enganar-se, mas que se desenvencilham a maioria das vezes nos detalhes das suas existências. Não vivemos no mundo dos gnósticos da política, um mundo alucinado e manipulado por ideologias, conhecemos pequenas ·verdades, singularidades empíricas, agimos sobre as séries de fenómenos e podemos estudá-las
e
manipulá-las. Alcançamos resultados práticos e até científicos, tanto nas ciências exactas quanto nas ciências humanas. Podemos reconhecer os nossos erros e a nossa errância. Nem por isso essa errância terminará, o que não impede de viver, porque se vive na actualidade.
181 Ver, por exemplo, DE, III, pp. 154, 268, 594, 528-531: «Zola é
o caso
tip�{Xfr.
Não escreveu Germinal enquanto mineiro.» Foucault informava"se e, para isso, aet}Ut��a�
-lhe participar num et}lóquio, não de professores de fnooofia, mas de enfermeir��
l
I I
I
I Ciências físicas
e
humanas: 1 o programa de Foucault Sobram alguns grandes problemas. Se tudo é duvidoso, ou quase, excepto a realidade quotidiana (diriam os cépticos gregos 182), como
é possível que as ciências exactas obtenham resultados indubitáveis? O que valem, pelo seu lado, as ciências das singularidades humanas, his
tória, sociologia, economia? Serão possíveis 183? E o próprio Foucault, grande céptico que era, duvidaria ele da ·veracidade e do futuro da sua
própria empresa? Creio bem que não, mas falemos antes das ciências humanas. Entre estas ciências e as ciências exactas, o conflito, flagrante ou larvar, é centenário: em relação às ciências «duras», qual é o estatuto
epistemológico e o grau de rigor das ciências humanas? Um grau muito
baixo, pretendem alguns <>- "Nós também encontraremos leis da história e da sociedade, ou, pelo menos, constr uiremos modelos", respondiam-lhes algumas das suas vítimas. "- Terão de encontrá-las,
como os economistas, senão estão perdidos", avisava-os Gilles-Gaston Granger. Teve lugar, em 1991, uma intervenção do sociólogo e filósofo Jean
-Claude Passeron que o simples historiador que eu sou julga decisiva para a
epistemologia tanto do conhecimento sociológico como do histórico.
Melhor que o próprio Max Weber com os seus ideais-tipo, Passeron, ao deslocar a posição demasiado cientista do problema, mostrou onde
encontrar uma cientificidade para as ciências humanas: não na imitação
das ciências exactas, no estabelecimento de leis ou de modelos, sem falar de sistemas hipotético-dedutivos, mas na elaboração daquilo a que poderíamos chamar semi-nomes próprios.
Ora, esta teoria epistemológica e metodológica dos semi-nomes
próprios está em concordância com aquilo que supus ser o princípio
182 Ver a defesa e ilustração do «cepticismo empírico» por Victor Brochard, Les Sceptíques orecs, 1887; reimprimido ed. Le Livre de poche, 2002, pp. 34-4-391. Filho e neto de médicos, Foucault tem um antepassado longínquo num médico grego da seita filosófica céptica, Sextus Empiricus, que julgava inacessíveis as coisas escondidas, mas nem por isso era menos empírico e médico da seita «metódica». 183 DE, IV, p. 577. A ideia não está muito desenvolvida, os problemas das dências humanas interessam pouco a Foucault.
83
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
ontológico do foucaultismo ou princípio de singularidade. Supõe tacita
mente que, em qualquer época, o universo histórico é apenas um caos de
singularidades, oriundas do caos precedente. Um pouco ultrapassado por estes altos pensamentos, vou, à falta de melhor, expô-los em linguagem corrente e tentar discretamente fazer melhor em nota Consideremos uma pessoa si n gu lar
-�
184•
o actual presidente da nossa
república ou então a vossa própria irmã -, essa pessoa é singular, digo eu, p or isso é desig n ada por um nome próprio. O significado desse nome próprio só é
co m pr ee n di do
se eu conhecer essa pessoa, se tiver lido ou
ouvido declarações sobre ela, se a tiver visto. Senão, será para mim uma
desconhecida, não saberei de quem estão a falar-me e o seu nome «não me dirá nada». Loira, nariz mediano, testa mediana, maçãs do rosto salien tes... Descrevê-la m ai s demoradamente? Não teria fim (todos os logicistas modernos vo-lo dirão); valeria mais uma fo togra fi a tipo passe.
184 Em Le Raisonnement sociologique: un espace non poppérien de l'argumentation, nova edição revista e aumentada, Albin Michel, 2006, pp. 361-384, J.-Cl. Passeron substitui a noção de indexação (em Peirce) à noção ''veberiana de estilização. Da sua análise resulta que todo o conceito sociológico é um «semi-nome próprio» e que todo o raciocínio histórico está pejado de deicticos. O ideal- tipo não é, pois , o instrumento ap roximativo de uma ciência molel uma forma fraca da indução, como é geralmente comentado: é um semi-nome pr6prio cujo sentido
(Sinn) é
defin ido por uma descrição sempre par dal que
enumera algumas propriedades genéricas cuja denotação (Bedeutung) é fei ta por «indexa ção» numa série ab erta de referentes, que são outros tantos casos singulares
(a sociedade
medieval no Ocidente, o Japão antes dos Tokugawa e até o Império Bizantino que era feudal, segundo
Évelyne
Pat1agean) e que possuem a comum analogia de apresentar estas
propriedades genéricas. A definição limita-se a uma série de traços (a feudalidade reúne dois traços: posse do solo, governo dos homens), mas a descrição completa dos referentes será indefinida. Por isso, à falta de uma descrição simultaneamente finita e completa,
dpníção histórica não pode ser separada dos seus referentes;
uma
não podem ser esquecidos, porque só eles
permitem saber do que se trata, do que estamos a falar
c,
logo, como se raciocina sobre
eles. Esta não é uma escolha de metodologia , é um fundamento sobre uma epistemologia do conhecimento histórico e da historicidade: a lista dos casos indexados é aberta porque só existem singularidades, e a definição é parcial porque se limita às analogias que apre sentam os casos considerados. Este é um rigor bem diferente do das ciências físicas, mas é ainda assim um rigor: não se pode dizer não importa o quê. Um tal ideal-tipo opõe-se à quimera cientista que seria um
mo
delo trans-hist6rico,
não indexado em casos sortidos de
coordenadas espãcio-temporais. A linguagem do historiador não utiliza universais, o seu raciocínio também não; até os advérbios («sempre») e as provas de causalidade permanecem indexados numa série finita de casos : o «sempre» e o <<porque>> dos casos de feodalidade não têm o mesmo alcance que os das sociedades regulamentares.
84
VII. CIÊNCIAS FÍSICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT
Acontece o mesmo com alguns nomes comuns dos quais os livros de história estão cheios e que designam acontecimentos ou processos:
cest\l'opapismo, ieoua\idatl.e, re\igião, iormação da unidade naciona\. São) na realidade, uma espécie de nomes próprios, porque as mais longas
paráfrases seriam incapazes
de dar a compreender exactamente o que é
uma religião a um ser que nunca tivesse encontrado nenhuma; seria pre ciso, para que ele pudesse compreender, dar-lhe a «ver>> uma. Os nomes próprios funcionam num regime de «descrição indefinida»: poderíamos enumerar os traços dos seus referentes, mas essa descrição nunca estaria
concluída, completa. Igualmente, nas ciências sociais, os conceitos que recusem remeter para as singularidades individuais ou colectivas «não podem encerrar-se numa descrição definida nem expandir-se na uni versalidade das leis>> 185• Logo, quando se quer colocar feodalidade ou cesaropapismo num livro, deixa-se-lhe um pouco do seu solo histórico, tal como se deixa um pouco de terra às raízes quando se quer colocar uma planta num vaso. Efectivamente, como os indivíduos, os acontecimentos são
<
que
nunca veremos duas vezes», diz o poeta; como os acidentes de automó vel, são sempre devidos a encontros entre séries causais. Diferentemente das plantas e dos animais, também não são situáveis numa tipologia ou classificação em géneros e espécies; não são passíveis de identificação sem confusão possível graças a um número limitado de marcas de identidade, enquanto que os corpos químicos, chumbo, urânio 235 ou cloreto de sódio, são-no pela sua fórmula química ou pelo seu peso atómico na tabela periódica dos elementos. Os historiadores escrevem a história por outras vias; os semi-nomes próprios que utilizam podem ter, também, o seu rigor científico, um rigor próprio ao domínio humano. Alcançam esse rigor identitário ao <:<densifican> a descrição do semi-nome próprio à maneira de um romancista realista ou de
um
repórter, ao multiplicar os pormenores probantes, os traços
pertinentes que precisam o retrato do referente e pennitem distingui-lo de acontecimentos que tenham com ele uma parecença enganadora 186•
185 J.-Cl. Passeron, Le Raisonnement socioloaique, op.
cit.,
p. 349.
186 Üc.'Orre-me, neste instante, um exemplo: Míreille Corbier acaba de descrever, melhor do que fizera Momnuen no seu Drait public romain,
o que foi a
monarquia imperial
romana, essa monarquia muito particular que era de uma certa maneira hereditária e de outra não. Para isso, a
autora
multiplicou as referências identitárias e os pequenos deta-.
lhes probantes. Ver M. Corbier, «Parenté
pêen (J.-Ph.
euro
et
pouvoir à Rome»,
em Rome
et l'Etat modeme
Genet ed), École française de Rome, 2007, pp. 173-192.
85
I I
fOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
Graças a essa densificação, a esse entrecruzamento de pequenos factos verdadeiros, evita-se cair em sumários artefactos essencialistas tais como a raça, o génio nacional, etc. Quanto às ciências ditas exactas, nasceram da descoberta, mais afor tunada do que caída do céu
187,
de uma boa chave para a abertura dos
fenómenos físicos; estes, diferentemente do devir humano, apresentam regularidades repetitivas. O que permite alcançar aplicações técnicas, previsões que se verificam exactas e verificações experimentais: quantas coisas na natureza são numeráveis e calculáveis! Destes sucessos espectacu lares, destas verdades experimentalmente demonstráveis e empiricamente aplicáveis, não concluamos pela existência de uma harmonia preestabe lecida entre o nosso espírito e a natureza;
os
físicos constroem modelos
que permitem prever e gerir a realidade, sem que possamos saber se a representam adequadamente. Eu sei pôr a funcionar com sucesso um automóvel ao utilizar correctamente os comandos, mas confesso ignorar o
que se passa debaixo da capota fechado do
carro.
Efectivamente, as ciências físicas esbarram na finitude da nossa facul dade de conhecer
188
,
na nossa incapacidade de atingir o Ser sem passar
por pressupostos. Têm por base pressupostos teóricos, «paradigmas:>> (que, de resto, são sempre passíveis de revisão ou refutação). Através do termo discurso, Foucault denotava, na acção e no pensamento humanos, aquilo que, pelo seu lado, os actuais historiadores e teóricos da ciência denotam na evolução das ciências físicas através do termo «paradigma:>>
187 Alexandre Ko yre mostrou que as espec ulações filosóficas mais famosas contri buíram, no Renascimento, para as origens da física experi mental e quantificada. 188 Uma
vez
nossa .inteligência,
e
que hà finitude, uma pergunta divertida coloca-se: a dos limites da se essa inteligência nos permite perceber os seus prôprios limites. O
meu gato, que se desem'encilha muito bem na sua existência, arranha por ciúme o livro que me absorve, compreende que não penso nele o suficiente, mas não desconfia do que possa ser um livro. Colin McGinn colocou-se a questão dos limites num raciocínio rigoroso em Problems in Philosophx: tbe Limits tif lnquir_v, Blackwell, 1993, part. p. 154, onde supõe _
com graça que, sem dúvida, «talentosos marcianos detêm de modo natural as so luções
para os nossos problemas». Kant em pessoa levantou a questão em plena Critica da Razão
Pu.ra, secções 3
e
8 da Estética Transcendental, como assinala Thierry Marchaisse: «É-nos
impossível julgar as intuições que podem
ter outros
seres pensantes e saber se estão ligadas
às mesmas condições (de espaço e tle tempo} que limitam as nossas intuições e que são para n6s universalmente válidas[
...
]. Sb conhecemos o nosso modo porque as apreendemos,
modo que nos é particular, mas que pode bem não apesar de sê-lo para todos o homens».
ser
necessário para todos os seres,
VII.
em
CitNCIAS FÍSICAS E
HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT
Thomas S. Kuhn, <<programas de investigação» em Imre Lakatos
189,
«estilos de pensamento» (ou de raciocínio) científico em Alistai r C. Crombie e Ian Hacking. O que Hacking escreve sobre os «estilos de raciocínio» poderia ser igualmente dito dos «discursos» foucaultianos: cada um destes ou daqueles
introduz uma nova espécie de objecto; os critérios de existência dos objectos do novo tipo são dados pelo próprio estilo de raciocínio. Um estilo de raciocínio não é responsável diante de qualquer outra instância: é ele mesmo, com efeito, quem define os critérios de verdade no seu domínio.
190
Aquilo que garantiu a estas ciências os seus numerosos sucessos, os quais precisaram da continuação ininterrupta do seu projecto, foi e é um dispositivo foucaultiano. Consideremos a física. Esta ciência apresenta a continuidade de uma empresa que, ao longo do tempo e à custa d� incessantes correcções, obteve resultados provisórios mas indubitáveis. E ,
como o sucesso de uma firma que permanece fiel a boas receitas que lhe garantem um sucesso duradouro; não está fundada numa vocação caída do céu, mas sim numa tradi ção experimentada. Não concluamos por isso na existência de uma harmonia entre o nosso espírito e a natureza: os físicos constroem modelos coerentes que não pretendem representar adequadamente
a
realidade, mas permitem prever e gerir efeitos.
Husserl queria resolver este mistério enraizando a ciência num Eu transcendental191 que tivesse a vocação da verdade que, por sua vez, seria a condição de possibilidade de um empreendimento tão obstinado. Se, em vez disso, raciocinarmos
e
Spitz,
PUF,
1994. 190 I. Hacking expondo a sua própria doutrina no Annuaire du Colléae de Fro.nce, 2003, pp. 544-546.
É
igualmente Hackíng quem cita os episttmai de Foucault
quadro de pensamento do mesmo tipo. 191 DE, li, p. 165
ou
I, p. 675.
como
um
FOUCAULT, O .PENSAMENTO, A PESSOA
tradição institucionalizada, fundada sobre o sucesso, que poderia ter sido interrompida e não o foi. Acrescentemos que as verdades da ciência física são perpetuamente provisórias; a Newton sucede Einstein. Com elas não se pode fazer a economia de uma relação com a verdade e da oposição do verdadeiro e do falso, mas tamhém não se pode considerar essas verdades como definitivamente adquiridas 192• O erro não é radicalmente diferente da verdade, não passa de uma hipótese refutada pela experimentação; não existe evidência racional. Contudo, se Newton não viu toda a realidade, nem por isso estava «fora da verdade>>. Ora, esse estado provisório da verdade, bem como a perpetuação da física como empresa bem fundada, irão permitir-nos responder a uma outra questão que colocáramos: como poderá Foucault ter acreditado, porque acreditava, na verdade e na duração da sua própria doutrina, da qual atribuía todo o mérito a Nietzsche (a certos aspectos escolhidos de Nietzsche, lido na rua d�Ulm, em 1952-1953, e também de Heidegger 193)? Toda a sua obra supõe a finitude humana no tempo, ora, a relação do homem com o tempo parece insuperável. O homem é simultaneamente objecto de conhecimento e sujeito que conhecet o conhe cimento histórico está prisioneiro da sua própria história que é, sobretudo, a das suas variações e errâncias. Como pode um historiador julgar ter-se fixado numa rocha que o tempo em breve não leve consigo 194? Assim, Foucault parece não estar seguro de si mesmo; «sei perfeita mente que me encontro inserido num contexto», escreve 195• Porém, não se pode duvidar, julgo, da grande esperança silenciosa que o empolgava por vezes. O Nietzsche que ele escolhera para si era, independentemente do que dele tenha dito Heidegger, o autor do grande corte com a tradição metafísica e platónica. E pôde parecer, por volta de 1960, que o mundo pós-moderno, por seu lado, se iria desprender da ilusão de um fundamento transcendente, de uma luz mais do que humana que lhe permitia ver a verdade adequada em todas as coisas e lhe indicava a sua verdadeira via. A <<morte de Deus>>, entendida como fim da era de todas as transcendências,
192 DE, IV, p. 769. 193 Ibid., p. 703. 194 Les 1Hots et les Choses, p. 382, cf. p. 383: «:Ao descobrir a lei do tempo como limite externo das ciência..� humanas, a História mostra que tudo o que está a ser pensado continuará a sê-lo por um pensamento que ainda não viu
195 DE, I, p. 611.
o
d ia .»
'
!
VII. CI�NCIAS FÍSICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT I
iria pe rmitir à humanidade desfazer-se das suas ilusões e ver-se tal como era, na sua nudez e solidão. A modéstia e a prudência proíbem a um pensador revelar as suas esperanças; no entanto, um belo dia, Foucault sugeriu, imprudentemente, que na nossa época a humanidade começava a aprender que podia viver sem mitos, sem religião e sem filosofia 196,
sem verdades gerais sobre si própria. Tal era a revolução nietzschiana, da qual Foucault estimava ser um continuador. A seus olhos, a crítica genealógica tal como ele a praticava tinha, como a física galilaica, a cientificidade de um empreendimento empíric o 197 bem fundado. Acontecera-lhe enganar-se, assinalava erros teóricos que tinha cometido em História da Loucura e em Nascimento da Clinica mas, enfim,
a sua empresa estava <<dentro da verdade 198». O tom de voz resoluto, o de uma profissão de fé, com o qual me dizia um dia que a hermenêutica nieu..schiana tinha operado um corte decisivo na história do conhecimento,
mostrava bem que ele acreditava nisso, que tinha esperança. Não esquecera que nenhum homem seria capaz de ter um juízo prévio sobre o seu eventual destino póstumo: ele concebia uma possi
bilidade mais empírica. Quando dizia e repeti a que os seus livros não eram mais do que «caixas de ferramentas)>, não era para modestamente convir que não continham tesouros; Foucault entendia por estas palavras
que desej ava ter a]unos (d i ri a ele, num estilo universitário), e convidava
os
seus leitores de boa vontade a utilizarem os seus métodos e a darem
continuidade à sua empresa, tal como um físico tem alunos que são seus continuadores.
Relativismo, historicismo, spenglerismo? Não! A questão do tempo e da verdade contínua, todavia, por resolver. Para Foucault, ao que parece, a resposta assentar em duas convicções: a
história genealógica não é uma filosofia., estuda fenómenos empíricos
199
e não pretende descobrir qualquer verdade total. Tem <
ver
L'Ordre du discours, p. 16.
199 Lítrchtoloaie du Savoir, p. 160
c
seguintes.
89
í FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
ciências, com análises de tipo científico ou com teorias que respondem a critérios de rigor200»; alcança conclusões de pormenor, sobre o amor na antiguidade, sobre a loucura ou a prisão--- que são ao mesmo tempo
cientificamente estabelecidas e perpetuamente provisórias e passíveis de
revisão, como acontece com as descobertas das outras ciências. Num
i aremos dia longínquo ou próximo far-se-á melhor do que Foucault, fc
surpreendidos com a sua miopia; basta-lhe, porém, ter contribuído para dissipar as quatro ilusões que, a seus olhos, são a adequação, o universal, o racional e o transcendental.
O foucaultismo não está empol eirado em cima de uma rocha, não
domina a totalidade porque não constitui
a
priori o seu objecto. Desco
nhece qual seria o seu próprio lugar num mapa da totalidade e o que 201• Mas será absolutamente necessá poderia existir para lá dos limites
rio filosofar? «Uma actividade científica pode perfeitamente deixar essa questão de lado nos limites no interior dos quais se exerce. 202» Pode
objectar-se «que é inevitável ser-se filósofo no sentido em que é inevitável pensar a totalidade 203». Mas será inevitável? Pensar a totalidade é apenas
uma das formas daquilo a que se chama filosofia, sendo-o sobretudo com Hegel104; Husserl terá sido o último totalizador 20 5• Pode até conceber
-se que uma filosofia se restrinja <
206;
pergunto-me
então o que poderia ser essa filosofia ao mesmo tempo relativa
e
rigo
rosa, senão uma ciência em progresso perpetuamente provisório ou, no mínimo, o programa dessa ciência (suponho que A Arqueoloaia do Saber,
se não tivesse sido escrita demasiado cedo e demasiado à pressaJ seria esse programa}.
O historiador genealogista não deveria esconder de si próprio que
a sua exegese do discurso do amor antigo irá provavelmente um dia ser
substituída por uma melhor. Nem por isso fica paralisado (es ta é uma faceta reveladora da psicologia do sábio: u m físico que acaba de descobrir
uma lei não se gaba da sua descoberta ser definitiva, não pensa e nem
sequer se preocupa com isso). Se a arqueologia genealógica for uma ciência, 200 Ibidem, p. 269. 201 DE, IV, p. 575. 202 DE, I, p. 611. 203 Ibidem. 204 Ibidem, p. 611-612 205 DE, I, p. 612. 206 fbidem_
VII.
CIÊNCIAS FÍSICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT
uma empresa de sucesso, cada uma das suas conclusões, tomadas uma a uma, possuirá uma verdade, não relativa, mas provisória. A arqueolo gia não ignora que tudo o que é por ela pensado «sê-lo-á ainda por um
pensamento que ainda não viu o dia 107>>. Um físico também não pode antecipar o cumprimento da sua ciência; os sábios não
se
preocupam em
reconciliar a finitude com o infinito, mas, como toda a gente, vivem na actualidade sem pensarem demasiado nisso e o resto da humanidade faz como eles.
Infelizmente (e Foucault reconhece-o
com
uma persistência quase
obsessiva), a impossibilidade de dominar o pensamento faz com que o pensador mais revolucionário não saiba sair do seu pequeno mundo do discurso; as verdades da genealogia, a arqueologia, são vistas na «pers pectiva 208» de um momento. «De onde pretendeis estar a falar, vós que quereis descrever, de tão alto e de tão longe, o discurso dos outros>>t
pergunta-se ao genealogista 209; ele responde humildemente que é a
partir do seu próprio discurso. Analisa discursos de ontem a partir de um discurso que é o seu 210 e que o limita. Quando se empenha em dar
à luz esse «pensamento prévio ao pensamento livre» que é um discurso, está ele próprio a pensar a partir de um <>. Ao ganhar algum recuo relativamente a esse espaço de onde falava, o genealogista coloca -se ipso Jacto num outro discurso que desconhece 211 «e que recuará à medida que for descoberto :m».
O mal-estar testemunhado nestas citações é o do pensamento moderno
desde há dois séculos. Estará ele mais seguro da sua crença nos direitos do homem do que esteve ao acreditar em Júpiter? Também aqui a nossa atitude é dupla, como perante o loureiro de Dafne: estamos persuadidos de que as nossas convicções são verdadeiras e ficaríamos indignados viessem pôr em causa a existência da verdade; mas
,
ao
se
mesmo tempo,
não deixamos de sentir um ligeiro mal-estar quando reflectimos naquilo que os homens do futuro poderão pensar acerca das nossas cogitações (do mesmo modo, no tempo da Europa das pátrias, um patriota avisado não 207 l.es Mots et les Choses, p. 383. 208 lbidem, p. 384. 209 DE, I, p. 710 210 L:4rchéo1ogie du Savoir, p. 267. 211 DE, 1, p. 710. 212 lbidem, p. 515.
!
I
91
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
podia pensar sem mal-estar no que seriam as suas próprias convicções se tivesse nascido do outro lado dos Pirenéus ou do Reno; por isso, esse mal-estar ficava mergulhado no silêncio). Os costumes e as crenças variam de acordo com o tempo e os luga res, sabemo-lo desde há vinte e cinco séculos mas, escreve Foucault
zu,
enquanto Deus estava vivo) isso nada tinha de alarmante: verdade aquém Pirenéus, erro para lá dessas montanhas mas, para Pascal, a verdade verdadeira nem por isso deixava de existir, pois era ensinada e garantida por Deus. As variações humanas eram outros tantos erros devidos à fra queza do homem, face à qua l Deus erguia a verdade. A viragem trágica consistiu e
na
descoberta das culturas e religiões exóticas no século XIX
no apagamento do Deus infinito; a finitude humana tinha perdido
o
garante da verdade e ficou só face às suas errâncias; a verdade e o tempo tornaram-se inimigos. Daí Spengler, daí o relativismo segundo o qual cada época tem a sua verdade, daí também a tentativa sublime ou verbal de Heídegger para reencontrar o absoluto apesar do tempo. Pelo menos, diferentemente de Spengler, Foucault não poderia ser e não foi relativista porque, à falta de totalidade e de verdades adequa das de coisas em si, ele pretendia, apesar de tudo, alcançar uma certa ,
cientificidade e atingir verdades empíricas perpetuamente provisórias. O relativismo -- se alguma vez existiu como algo mais que uma couraça a rasgar - era, apesar do nome, uma doutrina que aspirava, ingenuamente,
à verdade total. Isto distinguia-o do historicismo 214, para o qual a ver dade importava menos do que a riqueza e a diversidade da Vida, contava 213 Sobre esta «finitude sem infinito>>, cf. Les ,ltots et les Choses, pp. 327-329. 214 Cf. I.es Mots
et
les Choses, p. 384. Pode dizer-se) julgo eu, que o historícismo
erigia em atitude filosófica a épcchê espontânea dos historiadores, a sua neutralidade axio lógica, que dá conta das crenças do passado sem as julgar. Por exemplo, G. Símmel, cuja posição é próxima desta. O que lhe interessa é a t•ida, cuja riqueza e variedade transbordam os conceitos demasiado estreitos (o amor é bem mais do que aquilo a que é reduzido no
Banquete),
a vida que é demasiado ampla para que se possa ir censurar os gregos de terem
acreditado
nos
seus mitos. Para Simme1,
com
o seu pensamento tão acolhedor e a sua
grande riqueza de pormenores, será a filosofia ainda uma busca da verdade? Ela possui a sua verdade vital, ou antes; a sua riqueza: ela, ou melhor, o filósofo. Simmel saúda, neste tipo humano, uma outra sensibilídade diferente da do sábio empirista, uma outra dimensão humana, o sentido da totalidade. Por isso, escreve: «será ingénuo julgar·se conclusões filosóficas como se julgam os resultados das dências experimentais». Será pelo menos necessário perguntar-se se uma filosofia é verdadeira ou falsa? De acordo com Simmel, é obrigatório constatar que as diversas doutrinas se contradizem: é porque cada uma delas (ou, pelo menos, as mais completas) encarna um ponto de vista humano
92
VII.
CitNCIAS FÍSICAS E H UMA NAS : O
PROGRAMA DE
FOUCAULT
menos do que essa <<.solenidade do devir» de que fala Simmel - para es te
priori psicológico , da a priori histórico; cada tipo de espír ito engendrava uma certa visão do mundo. O relativismo, esse, era muito diferente. Só se atirava aos extre mos quando acreditava encontrar nele s a solidez da Verdade: «já que o
p ensador tão simpático e sugestivo, existia um mesma maneira que, para Foucault, ex i stia um
a
tempo histórico que passa arruína toda a verdade , tomemos por base essa mesma caducidade
e
admit amos essa contradi ç ão trágica: a Verdade I
é uma e muitas, cada época sua verda de>> . E perm itido questionar se
esta asserção tem algum sentido: engendra paradoxo s comparáveis aos da máquina do tempo . O relativismo supõe a verdade verdadei ra , já que afirma que ao possuir a sua verdade cada época possuiu a verdade (mas que só era verdadeira para ela) e n ão somente as crenças. Aspira tanto
à verdade total apesar do tempo que está disposto a tudo, até mesmo a fragmentá- la em verdades de época, para a poder conservar, nem que seja aos pedaços, sendo de esperar que cada um desses pedaços forme uma totalidade parcia l , se é possível arriscar este oximoro. A existir um relativismo digno dess e nome, é
seg undo ele, as verdades
<< epo cais>>
o
de Heidegger:
que nos envia sucessivamente a Ori
gem são todas igualmente verdadeiras , apesar de inconciliáveis: Heid egger
arbi trário da Orig em, que nos aparece, pois, tão inalcançável quanto os seus decretos incompreensíveis . A mesma coisa
inclina-se pera nte
o
com Descartes: «:as verdades matemáticas� que nomeais e ternas, foram est abelecidas a partir de Deus e dele dependem inteiramente 215». Para Fou cault , ao co ntrário , as ideias gerais que a humanidade adquiriu ao longo dos séculos são todas falsas, porque são inconciliáveis. Retomemos o fio do nosso propó sito , que nos conduzirá às ideias de Foucault que mais interessaram aos seus leitores: o saber, o poder, a formação do homem como sujeito e também a liberdade. A ciência, dizíamos nós, mantém-se e permanece sem a ajuda do céu das ideias, que não existe. É porque se elabora, escreve Foucault, sob o constrangimento
de uma instituição - a da investig ação universitária - e sob a reg ra de se conformar a um determinado programa de rigor, sob pena de passar por
possível, da mesma maneira que a natureza
diferentes que são igualmente viáveis. 215 D escartes , carta de 15 de
comporta
Abril de 1630.
blema semelhante: a Lei divina mudou, aquela que
um
grande número de seres vi vo s
Santo Agostinho encontrou um pro
D eus deu a Moisés admitia a poligamia,
enquanto que a nova Lei proíbe-a. A razão reside no facto da Provid�ncia ter pro porcionado
as suas exigências ao nível de educação atingido em cada época pela humanidade.
93
I
I
l FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
não dizer a verdade 216• Assenta num dispositivo que, como já sabemos, é feito de regras, de tradições, de ensinamentos, de edifícios especiais,
de instituições, de poderes, etc., e que consagra e perpetua a receita da ciência,
«as
regras de formação dos enunciados que são aceites como
cientificamente verdadeiras .:m>>, o «jogo da verdade» científica, o dos sucessos adquiridos , dos erros rectificáveis e rectificados. Este dispositivo forma, ao mesmo tempo, o objecto «ciência» e os indivíduos que só reconhecerão verdade àquilo que for dito conforme as regras de uma ciência exacta. Esses indivíduos revestem-se daquilo que alguns sociólogos designariam por tipo social, o papel de sábios. Interio rizam esse papel, moldam-se a ele, e tornam-se os sujeitos correlativas ao
objecto «ciência». Objectivação e subjectivação «não são independentes uma da outra; é do seu desenvolvimento mútuo e do seu elo recíproco que nascem ml» os «jogos de
verdade>>,
que filtram as afirmações repu
tadas científicas. Sim , um desenvolvimento com desfasamentos 219 entre sujeitos e objectos que «não cessam de se modificar» um em relação ao outro220- porque acontece que um sujeito possa ser o autor de uma modificação das regras do falar-verdade no interior do dispositivo ou, se preferirmos, junto da comunidade científica. A genealogia da ciência não se reduz à simples história das grandes descobertas ou das teorias científicas 221; ela não é mais do que essa génese recíproca do sujeito da ciência e do objecto do conhecimento
222
de que o dispositivo é a
interface. O sábio faz a ciência, e ela retribui-lhe. Uma vez que o
tipo social do sábio
é de origem empírica, é neces
sário que ele seja constituído, produzido pelo dispositivo. Mesmo se a sua liberdade de investigador se opuser um dia a esse dispositivo, esse investigador é o produto do que designaremos uma subjectivação. Porquê ter assim acrescentado ao objecto constituído esta subjectivação com
que emparelha? Não para submeter o sujeito humano, o seu pensamento
216 DE, III, p. 158. 217 DE, II, p. 143-144; cl. III, p. 402: «A que regra se é obrigado a obedecer, em dada época, quando se quer ter um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a economia política?»
218 DE, IV, p. 632. 219 lbiclem, p. 277. 220 lbidem, p. 634. 221 lbiclem, p. 635. 222 lbidem, p. 54-55.
!
94
I
1
VIL CIÊNCIAS pjslCAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT
l
e a sua liberdade à tirania do dispositivo mas sim para pôr fim à ficção segundo a qual
o
sujeito, o eu, seria anterior aos seus papéis- pois não
existe sujeito «no estado selvagem », anterior às subjectivações; um tal sujeito não seria original mas sim vazio. Na história, não se encontra em lado nenhum uma forma universal do puro sujeito
223•
O dispositivo e o sábio têm poder um sobre o outro e a ciência tem poder sobre a sociedade porque tem a reputação de d i zer a verdade; dis� positivo, sujeito, poder e verdade estão assim ligados . O poder do saber é p articularmente potente nas sociedades o cidentalizadas , mas não nos
enganemos: ele não se exerce apenas sobre o compl exo militar-industrial
ou na comissão da e nergia atómica! O poder médico não assenta na lei , mas
num saber; purga-se, sangra-se porque se sabe e porque o paciente deixa fazer. Depois de a Facu ldade se ter pronun ciado , há que i nclinar-se . Mas o poder não se reduz a saberes especializados e a instituições de poder normativo, à medicina e ao seu ministério da saúde, à psiquiatria ,
à psicanálise, às ciências humanas 224• Por todo o mundo, aquilo que é conside rado verdadeiro num dispositi vo tem o poder de se fazer obede cer e forma os sujeitos humanos à obed iência; é verdade que o poder do príncipe é legítimo, é verdade que se tem de obedecer ao príncipe, do
qual nos tornamos fiéis <<súbditos », nos dois sentidos do termo .
Todo o poder, toda a autoridade prática ou espiritual, toda a mora lidade se reclama da verdade, supõe-na e é respeitada como fundada sobre ela ;
<
problema político mais geral é o da verdade». Ora o me stre
ou os seus conselheiros i nventam uma nova maneira de governar, que imediatamente se torna verdade, o que engendra uma nova partilha do verdadeiro e do falso; ora é uma nova partilha que é i nventada , o que ,pod e convencer o mestre a gover nar de uma nova maneira· - :. .
Retomemos a capella. A verdade existe em dois sentidos . O que dela diz o pensador céptico (e que estamos aqui a ler), designadamente que as verdades gerais não são verdadeiras , é absolutamente verdade; mas, quantitativament e , essa verdade verdadeira representa muito pouca coisa. A imensa maioria das verdades nas di ferentes épocas não são absol uta mente verdadeiras � mas nem por isso são menos existentes; elas são «deste mundo». E até se dirá que existem em excesso, porque são « produzidas
223 DE, IV, p. 733; cf. p. 718. 224- Ver o comentário de V. Marchetti e A. Salomoni em M. Foucault, Les Anormaux, Hautes Études-Gallimard-Scuil, 1999, p. 316. 225 L'lmpossible Prison, p. 51; DE, p. 30.
i
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
graças a múltiplos constrangimentos»; tidas assim como verdadeiras, essas verdades dos discursos possuem verdadeiros»
2 16
«OS
efeitos próprios aos discursos
porque são imanentes a dispositivos institucionais, costumeiros, didácticos, legais, etc. São bem mais do que ideologias e -
super-estruturas! Foram elas que suscitaram, justificaram, desenvolveram a economia socialista na URSS e nos países satélites 217• Resumamos em três frases: a imensa maioria das verdades deve-se a «um conjunto de procedimentos regulados para a sua produção, o seu estabelecimento, a sua colocação em circulação e em funcionamento:>>. Estas verdades encontram-se <>. Acrescentemos que o papel da ver dade é particularmente grande nas sociedade ocidentais, produtoras de um saber científico perpetuamente provisório e de valor universal, que faz parte integrante da história do Ocidente 229• Eis uma pista a seguir,
seguramente... Vai notar-se que a poção tem um travo amargo. Se considerar mos que qualquer verdade é boa para se dizer e que é preciso salvar os valores, como fizeram os gansos do Capitólío (o que parte de um bom sentimento), então rompamos imediatamente: não temos mais nada a dizer-nos.
É este o antigo debate entre a filosofia (se não for platónica)
que quer dizer a verdade, nem que seja à custa da vida e do mundo tal como está; e a retórica, ou seja, a propaganda, que, para melhor con vencer, se apoia em patranhas que as pessoas têm em mente, segundo a definição irónica de Aristóteles. Se preferirmos Aristóteles, ponhamos os olhos em frente aos bura cos, como se diz na minha terra: o que vemos nós quando olhamos para sociedades de outrora ou de outro lugar? Culturas, civilizações inteiras que eram outras tantas verdades maciças sob as quais todos se vergavam. Nós, que temos sobre esse passado a superioridade dos cães vivos sobre os leões mortos, faríamos bem em escarnecer amargamente de tantos pre conceitos. O Sol gira à volta da Terra, a escravatura é natural, o racismo
226 DE, III, p. 158, para tudo
o
227 Ibidem, p. 160 228 lbidem. 229 DE, IV, p. 30
96
I
e
III, p. 258.
que precede.
I �
I
VII. CI�NCIAS FISICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT !
fguat"mente, Júpiter é um deus; foram queimadas bruxas 230 na Europa até 1801. Depois, cansamo-nos do escárnio, que é sempre a mesma coisa: tudo isto existiu de facto, impôs-se aos melhores espíritos, a Descartes, a Leibniz. Para rotular tudo isto de erro ou ilusão seria preciso que nós próprios fossemos capazes de fazer melhor: é certo que tudo assentava em
nada, a não ser nos respectivos discurso e dispositivo, mas estaremos
nós mais bem servidos? Será mais instrutivo mostrar por que genealogia o nada se tornou a realidade do seu tempo, como o é do nosso. Mas então , o que somos nós próprios, nós os modernos? Quais são os nossos discursos sobre os diversos objectos que compõem a nossa actualidade? Apenas o saberão aqueles que, um dia, nos considerarem diferentes deles: saberão o que terá sido a nossa modernidade - nós próprios não podemos prever <>. Porém, podemos vislumbrar, senão aquilo que somos, ao menos aquilo que acabámos de deixar de ser 231; alguns preconceitos estão a começar a apagar-se, tal como a homofobia: reconhecemos a arbitrariedade dessa mentalidade (a materialidade desse incorporal). Mas não teremos nós outros preconceitos? Quais? Os nossos sobrinhos-netos saberão, depois· do nosso desaparecimento, quando se tiverem tornado diferentes de nós. Enfim, apenas conhecemos e nunca conheceremos mais do que diferenças.
2.30 As últimas bruxas a serem queimadas vivas foram-no em Espanha, em 1799 e no cantão suíço de Uri,
em
1801.
231 L'Archéoloeie du Savoir, p. 172.
I I
97
I
I Uma história sociológica das verdades: I saber, poder, dispositivo Com a morte de tantas dife renças, com o nascimento de novas ver
dades nas quais não seremos obrigados a acreditar e que estão votadas à
rejeição,
alguns concluíram que nada de ver dadeiro existiria�
meu problema é inverso 232». Trata-se de certa
«q uand o
o
de que modo uma
discernir
definição de loucura entrou num dispositiv o que fez dela uma rea
lidade, designadamente a doença mental tal como era concebida nessa ,
época, com todas as consequências bem reais que foram as maneiras de tratar os loucos. Uma citação textual dirá tudo: A política e a economia não são nem coisas que existem, nem err o s
,
nem ilusões, nem ideologias. São algo que não existe e que, porém, está inscrito no real, derivando de um
regime
de verdade que par
tilha o verdadeiro e o falso. :m Foucault constata esta fabricação social e institucional de verdades recebidas. Diferentemente de Nietzsche, abstém-se de acrescentar que a não-verdade é uma das e também não
c o ndições
faz metafísica,
da existência humana. Não generaliz a,
nem sequer a da vontade de potência.
Um certo regime de verdade e certas práticas formam assim um dispositivo de saber-poder que inscreve no real aquilo que não existe, submetendo o todavia à partilha entre verdadeiro e falso. Daí uma das -
teses favoritas do nosso autor: uma vez constituído pela concatenatio causarum, pela causalidade do devir histórico, o discurso impõe-se como
um a priori histórico234; e, aos olhos dos contemporâneos, só se con
siderará que dizem a verdade, unicamente serão recebidos <<no jogo do verdadeiro e do falso 235» aqueles que falarem em conformidade com o discurso do momento; enquanto, do outro lado, as práticas discursivas serão aplicadas como coisas evidentes.
É isto uma civilização.
Advinha-se
232 DE, IV, p. 726. 233 Naissance de la biopolitique, pp. 21-22. 234 Foucault retomará ainda 235 lbidem, p. 634.
É o que
esta
expressão em 1984,
em
DE, IV, p. 632.
Foucault designará por problematização.
99
FOUCAULT. O PENSAMENTO, A PESSOA
o que devemos pensar da nossa. Foucault não fazia uma teoria lógica ou filosófica da verdade, mas sim uma critica empírica e quase sociológica do dizer verdade, ou seja das «regras» da veridicção, das regras do Wahr saaen 216• Nietzsche, dizia-me ele, não era um filósofo da verdade, mas do dizer verdade.
A verdade não é porém uma palavra vã. Porque,
<<se
nos
c
oloc ar
mos ao nível da proposição, no interior de um discurso, a divisão entre o verdadeiro e
o
falso não será nem arbitrária nem modificável, nem
institucional nem violenta 237». Mas é apenas verdade a este nível e,
como diz o saudoso Dominique Janicaud, temos a escolha de uma outra
escala 238, a da genealogia das realidades de uma certa época, escala
à qual nada resiste. Nada , excepto, repitamo -lo , os factos singulares, empíricos, de que nunca céptico algum duvidou
(a inocência de Dreyfus,
à cabeça); excepto, também, tudo o que acabámos de ler, designada mente a genealogia, esse balanço verídico de discursos e dispositivos que assentam, eles, no vazio. Verídico porque, se as verdades estão suj eitas à critica nietzschiana, a verdade nem por isso deixa de ser a condição de possibilidade dessa crítica.
O que está em jogo em todo o meu trabalho, dizia ele em 1978, é «mostrar como o acoplamento entre uma série de práticas e um regime de verdade forma um dispositivo de saber -poder 23'\>. O que é tido como verdadeiro faz-se obedecer. Voltemos a esse poder: o que vem ele fazer para aqui? Vem porque o discurs o se inscreve na realidade e que, na realidade, o poder está em toda a parte, come se irá ver: o que se considera ser verdadeiro faz-se obedecer. O poder vai muito mais longe do que o saber psiquiát rico ou que o uso militar da ciência. O que eu faço na minha vida amorosa ou noutra situação t o que fazem
as
pessoas,
o que faz o governo, está bem ou está mal, isto é, está em conformidade com uma certa divisão entre o verdadeiro e o falso?
É um facto que,
sem que q ualqu er violência seja exercida sobre elas,
as pessoas conformam-se com regras, seguem costumes que lhes parecem
236 DE, IV, p. 445. 237 L'Ordre du discours, p. 16. 238 Quer se queira quer não, Nietzsche nunca pretendeu que nenhuma realidade existia; ver o que esçreveu Dominique Jankaud
na
compilação iWichel Fcucault philosophe:
rencontre internaticnale, Seuil, 1989, pp. 331-353, cf. p. 346, e em À nouveau la philosophie, op.
cit.,
p. 75.
239 Naissance de la biopolitique, p. 22.
I wol
VIII.
UMA
HISTÓRIA SOCIOLÓ GICA DAS VERDADES:
I l l
SABER, PODER, DISPOSITIVO
evidentes. Se deixarmos de ter uma ideia demasiado exígua ou fantasma górica do poder, se não o reduzirmos ao Estado, ao poder central, esse monstro frio que, dizem alguns� não pára de engordart saberemos vê-lo em todo o lado. O que é pois o poder, do qual Foucault não tinha uma ideia diabólica 240? Tra cemos dele um i
escala. É
a
capacidade de conduzir não fisicamente as condutas de outrem, fazê-las caminhar sem lhes pôr, com a mão, os pés e as pernas na posição ade quada.
É
a coisa mais quotidiana e a mais bem partilhada; há poder na
família, entre dois amantes, no escritório, no atelier e nas ruas de sentido único. Milhões de pequenos poderes formam a trama da sociedade da
qual os indivíduos constituem o liça. Daí decorre que haja liberdade em toda a parte, porque há poder em todo o lado241: constata-se que alguns respingam, enquanto outros deixam andar.
A filosofia políti ca tem demasiada tendência para redu zir
o
poder
unicamente ao poder central, ao Leviatã, besta do Apocalipse. Mas o poder não decorre por inteiro de um pólo de detestação, «é
veiculado
por uma rede capilar tão estreita que nos perguntamos onde poderá não
existir poder242». O mecânico dos caminhos-de-ferro d e Auschwitz obedecia ao Monstro porque a mulher e os filhos tinham o poder de exigir do pai de família que trouxesse um salário para casa. O que faz mexer ou bloqueia uma sociedade, são os inumeráveis poderzinhos tanto quanto a acção do poder central 243• O Leviatã seria impotente sem a multidão dos pequenos poderes liliputianos; não porque todo o poder derive do centro nem porque esteja em toda a parte, mas porque não teria debaixo dele nada senão uma areia impossível de reter nas mãos. Há que lançar algumas rochas à areia , dizia Napoleão ao criar
a
Legião
de Honra e o seu regime de notáveis. Em parte alguma nos é possível escapar às relações de poder; em contrapartida, podemos sempre e em toda a parte modificá-las; porque
o poder é uma relação bilateral; faz par com. a obediência, que somos livres (sim, livres) de conceder com mais ou menos resistência 244• Mas,
240 DE, IV, pp. 727
e
740.
241 DE, IV, p. 720 242 Entrevista de Foucault por R.-P. Droit, op. 243 Ver DE, IV, p. 450
e,
no i'ndíce de
cit.,
Dits et Écríts,
p. 129. na entrada Pouvoir,
numerosos
outros textos, frequentemente detalhados.
244 DE, IV, pp. 225-226, 740
e nou tros
pontos ainda (ver, no índice, a entrada
Résistance).
101
!
1
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
é claro, essa liberdade não flutua no vazio e não pode querer não importa
o quê numa época qualquer; a liberdade pode ultrapassar o dispositivo do
momento presente, mas é esse mesmo dispositivo mental e social que ela
ultrapassa; não se pode exigir do cristianismo antigo que tivesse pensado em abolir a escravatura. O dispositivo é menos o determinismo que nos produz que o obstá culo contra o qual reagem ou não reagem o nosso pensamento e a nossa liberdade. Estas activam-se contra ele porque o dispositivo é ele próprio activo; é um «instrumento que tem a sua eficácia, os seus resultados, que
produz algo na sociedade, que está destinado a ter um efeito 24\>. Não se limita a informar o objecto de conhecimento: age sobre os indivíduos e
a
sociedade; ora, quem diz acção, diz reacção. O discurso comanda,
reprime, persuade, organiza; é o «ponto de contacto, de fricção, eventu almente de conflito» entre as regras e os indivíduos 246• Os seus efeitos
sobre o conhecimento podem assim ser efeitos de poder. Não que os jogos de verdade não sejam mais do que o disfarce dos jogos de poder 247, mas alguns saberes, em determinadas épocas, como na nossa, podem contrair relações com certos poderes. Na Antiguidade, o (bom) saber era como a antítese do (mau) poder; nos nossos dias, o poder utiliza certas ciências e, de modo geral, quer-se racional, informado 248•
A liberdade é um problema filosófico tão confuso que é preciso ter
sobre o assunto uma linguagem concreta e tomar o termo num determi
nado sentido: <. Há por toda a parte poder, pensamento e liberdade; no interior da comunidade científica poderão estalar conflitos entre um jovem investigador e «as regras de formação dos enunciados que são aceites como cientificamente verdadeiros 250». O sujeito não é constituinte, é constituído como o é o seu objecto, mas nem por isso é
245 DE, II, p. 636. 246 Ibidem, p. 723. 247 DE, IV, pp. 724-725
e
676. Cf. p. 726.
248 Entrevista a Foucault feita por R.-P. Droit, op.
ctt. ,
p. 128.
249 DE, IV, p. 782. 250 DE, III, p. 143; cf. lll, p. 4-02: «A que regra se é obrigado
à
época, quando se quer ter um discurso científico sobre a vida, sobre sobre
102 !
a
economia política?»
obedecer, em dada à
história natura),
Vm. UMA HISTÓRIA SOCIOLÓ GJGA DAS VERDADES: SABER, PODER, DISPOSITrVO
menos livre de reagir graças à sua liberdade e de ganhar recuo graças ao pensamento. O dispositivo é menos um limite posto à iniciativa dos sujeitos do que o obstáculo contra o qual esta se manifesta 251• Concepção da liberdade que pode parecer próxima daquela que,
na
Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty defende contra Sartre e a sua liberdade vazia, sem obstáculos. Avancemos um pouco mais: o homem não pára de inventar, de criar novidade. Sejam quais forem os motivos ou móbiles, sociais ou individuais, que o <> a fazê-lo, como se costuma dizer, é preciso
que tenha a liberdade de se «deixar levar» a fazer a novidade, em vez de ficar prisioneiro da sua redoma discursiva.
Aliás, nunca o indivíduo e a sua liberdade poderão ser aniquilados, sobreviverão sempre, nem que seja tornando-se o contrário de sí mesmos. Foucault não o disse nem escreveu mas é possível que a sua doutrina o suponha. <>, escrevia Nietzsche 252 em
1885, «nada renuncia à sua potência própria, e o comando comporta sempre alguma concessão». Efectivamente, escrevia ele também, as liberdades «lutam pelo poder e não pela existência; o vencido não é ani quilado, mas é reprimido ou subordinado; nada é aniquilado na ordem
do espírito (es gíbt im Geistiaen keine Vernichtune) 253». Cada indivíduo é o centro de uma energia que só pode ser vitoriosa ou vencida; no segundo caso, torna-se ressentimento ou, pelo contrário, fiel dedicação ao ven cedor, ou as duas coisas ao mesmo tempo, mas esta vontade de potência nunca é neutralizada nem abolida. Torna-se
«O
contrário de si mesma desde que permaneça», como
o
amor-próprio, segundo La Rochefoucauld, que diz que um tonto não tem força suficiente para ser bom. Do mesmo modo, pode acrescentar-se, quando se está em posição de rivalidade com algo mais forte, não há escolha: fica-se a admirá-lo ou fica-se invejoso. A menos que se tenha recuado perante
o
confronto; nesse caso, não se deixará de sentir desdém por todo esse vão debate e pelos dois rivais. Igualmente, por fim, ter suportado uma infeli cidade, atravessado anos dolorosos sem se furtar ao sofrimento, gera, além de pesar densamente, o sentimento positivo de um acréscimo de si mesmo. Altruísmo e egoísmo, felicidade e infelicidade não são dados últimos.
251 Dtrchétlloníe du Savoir, p. 272, 252 Cito as velhas publicações que tenho à mão: Nietzsche, Umwerwng aller Jterte, ediç..ão Würzbach
(1995), p. 249,
n.
(1977),
"
91
e
n.
"
85,
p. 290,
e
n."
p. 302,
n.0
190; La Volonté de Puissance, trad. Bianquis
196.
253 Cf. <Euvres philosophiques completes, vol. XII, P. 302, FR. 7
[53).
103
FOUCAULT, O PENSAMENTO. A PESSOA
Foucault declara-se «pasmado>> 254 que se possa ter visto nele «a
determinismo ao qual não se pode escapar». Não se cansa de empregar a palavra estratégia, entendo por ela o fim escolhido allrmação de
um
numa luta onde é questão de vencer 255• Com efeito, o <
que é u m combate, como estamos recordados, tem a liberdade de ganhar um recuo crítico sobre a sua própria constituição, retirando âs coisas à sua enganadora <. Daí a sua crítica de um certo socio logismo; está entendido, a sociedade encerra-nos, determina-nos, mas, escreve ele:
É preciso libertar-se da sacralização do social como única instân cia do real e deixar de considerar
como
se vento fosse essa coisa
essencial na vida humana e nas relações humanas, quero dizer o pensamento 258• De maneira que contestar um discurso, «desqualificar enunciados 259>>,
pode ajudar a derrubar o
dispositivo que os apoia.
Coisa caricata, fez-se a este partidário da liberdade
260
a afronta
que ele próprio fazia ao sociologismo, a de ser determinista; com efeito, Foucault passava então por estruturalista; ele encadeava, é certo, os homens ao dispositivo, «Condenara ao conformismo a menor das suas inovações 261». Os acusadores estavam tanto mais indignados quanto partilhavam pela metade, temo, a opinião que atribuíam ao acusado; porque a nossa cultura, composta por uma mistura de humanismo e de sociologismo, ora nos faz enaltecer a liberdade do homem, ora lamentá-lo por ser a vítima das condições sociais que
o
determinam
262•
254 DE IV, p. 693. ,
255 Por exemplo, DE, H, pp. 305, 632, 638. 256 Ver sobretudo DE, IV, p. 597.
257 DE, IV, p. 597. cf. p. 180. 258 lbidem, p. 180.
259 Entrevista a Foucault feita por R.-P. Droit, Junho de 1975, publicada no Dossier
sobre Foucault distribuláo no jornal le .«onde de 19 e 20 de Setembro de 2004. 260 Ver por exemplo DE, IV, p. 693. 261 L'Archéologie du Savoir, p. 271.
262 Interpreto livremente DE, IV, p. 205. Cf. também I, p. 608 e Les Mots et les
Choses, p. 333 e seguintes. Para filosofias que não são as de Foucault, mas que eram as da sua época, o homem, esse dohrete empírico-transcendental, era ao mesmo tempo objecto
VIU. UMA FHSTÓRIA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES: SABER, PODER, DlSPOSlTIVO
Uma variante da mesma afronta (ou do mesmo mérito, de acordo com outros) consistiu em ver em Foucault um estrutu ralista , um negador do sujeito humano. Foi um efeito da moda, ou antes, da actualidade: aq uilo a que então se chamava estruturalismo e de que se fazia grande alarido
supunha essa negação do sujeito. O que,
de
surpree nde r;
no
caso de Foucault, não deixa
além do facto de o term o estrutura não se ler em lado
nenhum nos seus escritos, ele acreditava, como se viu, na liberdade dos sujeitos. Protestou com violência 263 contra
a
sua assimilação ao estru
turalismo, mas não adiantou nada: a juventude das escolas tratava-o de estruturalista para o honrar, tal como, um quarto de século antes , havia inopinadamente honrado Sartre com o vocábulo do momento, <<exis
tencialista>>, ao qual o interessado acabou por se resignar, como contou
Simone de Be auvoi r. Havia, poré m , alguma razão para esta assimilação de Foucault ao estrutura lismo , bem como para a voga estruturalista em si: serviu de incubadora para ideias novas. Fou cault acreditava na hist oricidade do di zer
verdade, na singularidade e na «rarida de » ; através destes três traços, tinha em
comum com o estruturalismo o facto de admitir que o pen samento
não nasce inteiramente por si e que d e ve ser explicado através de coisa que ele próprio - pelo discurso e o dispositivo,
com
ou tra
Fo u cault , pelas
estruturas, com os estruturalistas. As duas doutrinas, de facto, só tinham em comum as suas negações. Uma e outra afirmavam que entre as coisas e a
cons ci ência
havia um
tertium quid que escapava à soberania do sujeito, uma opacidade que ia mais longe do que a má fé e a ambiguidade, que eram caras à subtil e za sartriana. Passava facilmente por estruturalista todo o pensamento que se
separava do mar xismo, da fenom en ologia e das filosofias da consciência; por exemplo, por razões diferentes, o estruturalismo e Foucault contes
tavam a oposição entre explicar e c ompreender 264• Com o nosso autor, empírico a conhecer e sujeito que funda a possibilidade desse conhecimento; ao mesmo tempo
objecto
e
fundador da sua história.
263 DE, I, pp. 816-817.
É precíso
di zer, para <Íesculpar esta viol ên ci a , que o seu
interlocutor era um marxista cujo dogmatismo tão bruta} quanto limitado faz hoje sorrir. Uma tradição oral pretende que Foucault terá atirado um osso para aguçar o apetjte dos jovens admiradores que julgavam incensá-lo dizendo dele que era estruturalista: mesmo no fim da sua lição inaugural no College de Francc, terá lanç.ado ao público estas pala vras desdenhosas: «se estiverem virados para esse lado, será questão, nas minhas aulas, de
estruturalismo». A frase não figura no texto impre ss o da
lição.
264 DE, I, pp. 126-127 e 446.
105
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
o
a
priori histórico , que é dispersã o mais do que estrutura, impõe - se a
nós sem que o
compre endamos
ou divisemos.
Quando o estruturalismo era fecundo ... Ao falar do estruturalismo, fiz mal ao pronunciar as palavras voga e moda; é vão fazer a sátira bimilenar dos caprichos do século e, qual novo Juvenal, estigmatizar a loucura do momento presente; e é desajei tado julgar u m movimento intelectual a partir do v ocábulo com o qual o masc aram os e condená-lo em nome dos grandes p rincípios . A coberto ou sob o engodo desse vocábulo nascem na recente ger açã o ideias novas. Tal é, muitas vezes, a fecundidade das <<modas» intelectuais, mesmo que sej a m
erradas ou confusas nos seus princípios ; os jovens cérebros só podem abrir
novos caminhos através de moitas tão jovens quanto eles próprios. As estruturas e o discurso não eram nem Husserl, nem 1\.iarx, nem humanismo; era o bastante para serem mal vistas, por volta de 1970, pelos historiadores da sociedade e pelos filósofos da consciência e do sujeito ; Foucault e o est ruturalismo , a mesma heresia. Mas, para outros, a mesma excitação por ver despontar novidade.
O estruturalismo foi, para alguns, um choque fecundante; permitam -me evocar, a propósito , velhas recordações, porque a micro-história dos indivíduos permi te tactear a text ura dos efeitos do agregado colectivo.
Há um bom meio-século, sendo eu assistente de história anti ga , recebia as confidências de um estud ante então comunista, mas leitor de O Ser
e
Nada, que s e tornou desde então um orientalista de renome. As suas convicções sartre-marxistas viram-se postas em causa, em 1955, por um o
texto de Claude Lévi�Strauss que analisava o sistema das pinturas cor porais numa tribo amazónica ; aí se via, com imagens de suporte, como uma espécie de combinatória estrutural era suficiente para diversidade de
um
ex
pli c ar a
plano de realidade.
Foi um rasgo de luz: afinal nem tudo remetia para a sociedade ou para a consciência ; existia um terceiro patife, um tertium quid. O e struturalismo terá permitid o no seu tempo um escape para o sempiterno frente-a-frente
entre o sujeito e o objecto, sem contudo cair no sociologismo.
Deslizando peJ a fenda (minúscula, é cer to, mas a juventude vive com pouco) entre marxismo e sart rismo, o meu confidente, que me dava que pensar, pôs-se a encontrar em toda a parte outros exemplos deste tertium.
j
106 ;
VIII. UMA HISTÓRIA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES: SABER, PODER, DISPOSITIVO
Por que motivo, por exemplo, não seria a linguística estruturalista? O arbitrários dos signos e das es tr uturas gramaticais impunha-se ao sujeito, dizia-me ele; nenhuma consciência intencional e husserliana anima o facto
de a água se chamar aqui áaua e ali wasser. Como escreveram José Estaline e Raymon d Queneau, quem teria interesse em que a água não se chamasse
mais água? Nem tudo deve ser ridículo no estruturalismo! Havia que convir o seguinte , a diferen ça de classes e
a
opressão eram
uma constante na história, mas não a luta de classes: os oprimidos, com dema siada frequência , não vislumbravam a sua opressão e não luta ram ;
não se ver, em qualquer época, o que salta aos olhos, era incompreensível,
havia ali, dizia-me ele na sua linguagem, um facto bruto e absurdo, uma
materialidade que era contrária ao materialismo se gundo Marx (uma coisa
é certa: pressagia
a
materialidade dos inc or porais em Foucault).
O meu candidato à licenciatura em letras pôs-se depois a escarne
cer do seu professor de gramática comparada, que os seus condiscípulos admiravam pelo engenho com que o mestre lhes explicav a os desvios da
sintaxe latina pela psicologia dos locutores. Passando à fonética, negou que as mudanças fossem
o
resu lt a do de uma busca, bastante compreensí
vel, do menor esforço para os músculos da boca, como lhe ensinavam: a
passagem de um som a outro numa língua pode produzi r -se em s entid o inverso numa outra língua. O meu jovem estava maduro para ler Trou
betskol e Henri Martinet.
Por fim, aprendeu que na arte egípcia reinava uma convenção segundo
a qual a figura humana era sempre representada de p e rfil , excepto os
ombros e o busto, que surgiam de face265; aperce beu-s e , ao folhear Mal raux, que as outras civilizações (arte africana, maia ...) tinham cada uma a sua i magem convencional do corpo humano e que essa arbitrariedade
do signo plástico não exprimia as intenções do ar tista ou a ment a lidade da sociedade; era um mero facto de l í ngua onde não havia nada a com
pre ender. Estava maduro para ler Wolfllin.
Vê-se que o sentido da analogia tinha levado o meu confidente a
aplicar um mesmo processo heurístico, a procura do tertium quid, a várias
disciplinas diferentes; compreende-se então como, no século XVIII, um mesmo discurso, de acordo com As Palavras e as Coisas, pôde encontrar-se na história natural, na gramática e na economia política . O Zeit9eist e
265
É,
desde H.
Schaeffer (1930),
a chamada «imagem concep tual» do corpo
humano. No Egipto, é muito raro que um rosto seja representado de frente ou em três quartos numa pintura ou num baixo�relevo; as excepções concernem sub-homens sioneiros de guerra,
(pri
escravas dançarinas).
107
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Spengler nada tinham a ver com isso, o espírito da época não foi mais do que esse contágio analógico que por vezes se produz. Vimos recentemente o mesmo contágio com o lineuistic turn. Abramos um parêntesis. E, uma vez que já pronunciei o nome dele, houve outrora um estruturalista que não tinha consciência de o ser
e
cujo nome é pouco referido, Heinrich Wõlff lin. <>, sugeri uma noite ao principal interessado. Porque Wõlff lin, também ele, tinha descoberto um objecto científico novo, tão omnipresente e evidente nas obras de arte que nem sequer se via; eram os factos, não de estilo nem de expressão, mas de lfnaua plástica que são os de toda uma época ou de todo um grupo de «locutores». Entre as obras de arte, por um lado, e, por outro, as intenções e expressões do artista (ou, através deste, as da sociedade), há um tertium quid que é «a forma plástica geral de uma época» e que se situa <
166•
As suas transformações fazem passar formas humanas pintadas
em vasos gregos do século VII às do século V, a plástica greco-romana à da Idade Média, a do Renascimento italiano à do Barroco: novas ima gens do corpo humano, passagem da forma fechada à forma aberta, do linear ao pictural, etc., e outros factos da língua plástica que trazem à luz as análises brilhantes dos Conceitosfundamentais da história da arte e do Renascimento e Barroco. Aqui está «uma evolução específica das formas:>:) 267•
É preciso
distinguir entre <
época para explicar a fisionomia de uma obra de arte, não se deve por isso esquecer que a imaginação criadora de formas tem uma vida e uma evolução que lhe são próprias». De maneira que «não se deve interpretar tudo uniformemente no sentido da expressão; a história da arte não é pura e simplesmente idêntica à história da civilização». Wõlfflin escreve, quase com as mesmas palavras que Foucault: «Tudo não é possível em
todos os tempos» 268• Acusou-se Wõlffiin de «eliminar o sujeito, a per sonalidade»
e
de reduzir a história da arte a um processo impessoal, a
266 H. Wõlffiin,
Aiflexit:ms
sur
267 Réflex:ions, pp. 43-44, 268
108
e,
J'histoirc de l'art, trad. Rochlitz, 1982 (1997), p. 43. para
o
que se segue, pp. 29, 35, 79, 198.
Prindpesjcudamentaux de J'hismire de l'art, trad.
Raymond, 1929, p. 215.
VIII. UMA HISTÓRIA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES: SABER,
PODER, DISPOSITIVO
uma «história sem nomes próprios» 269• A mesma censura será feita a Foucault, praticamente nos mesmos termos.
Sim, Foucault acredita no sujeito que é o homem
E, no entanto, Foucault,
na
sua doutrina, não riscava os nomes
próprios. «Eu não neguei, longe disso», escreve ele, «a possibilidade de mudar o discurso; retirei o direito exclusivo e instantâneo de o fazer à soberania do sujeito» no. Porque, longe de ser soberano, o livre sujeito
é constituído, processo que Foucault baptizou de subjectivação: o sujeito
não é <
A questão do sujeito, dizia-me Foucault, fez correr mais sangue no século XVI do que a luta de classes no século XIX; de acordo com Lucien Febvre, precisou ele,
o
que, para os protestantes, estava em jogo nas
guerras de Religião, era a sua constituição como sujeitos religiosos que, para aceder a Deus, já não tivessem de passar pela mediação da Igreja, dos padres, dos confessores. Foi por volta de 1980, como se viu, que Foucault descobriu o terceiro painel da sua problemática 271; ao saber verdadeiro e ao poder soma-se a constituição do sujeito humano como devendo comportar-se eticamente desta ou daquela maneira, como fiel vassalo, como cidadão, etc.
A constituição do sujeito acompanha a das suas maneiras: comportamo -nos e vemo-nos como fiel vassalo, súbdito leal, bom cidadão, etc. Um mesmo dispositivo que constitua os seus objectos -loucura, carne, sexo, ciências físicas� governamentalidade -, faz do
eu
de cada um, um certo
sujeito. A física faz o físico. Tal como, sem um discurso, não haveria para nós objecto conhecido, sem uma subjectivação não existiria sujeito humano. Engendrado pelo dispositivo da sua época, o sujeito não é soberano mas sim filho do seu tempo; não nos podemos tornar num sujeito qualquer
269 Réflexions, pp. 43-44.
270 L'Archéoloaie du Saroir, p. 272; DE, I, p. 788. 271 Ele disse-o diversas
vezes,
por exemplo
cm
DE, IV, p. 393. O problema tinha
sido confusamente vislumbrado em 1970 (DE, II, p. 12).
109
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
num momento qualquer. Em contrapartida, podemos reagir contra os objectos e, graças ao pensamento, ganhar recuo em relação a eles e à religião enquanto Igreja e clero, por exemplo. De maneira que o homem nunca cessou «de se constituir na série infinita e múltipla de subjectividades diferentes e que nunca terão fim», sem que nunca estejamos «face a algo que seja o hometn. [... ]Ao falar da morte do homem 172 de modo confuso, simplificadora, era isto que eu queria dizer 273>>. A noção de subjectivação serve para eliminar a metafí sica, o dobn�te empírico-transcendental que retira do sujeito constituído o fantasma de um sujeito soberano.
Os sociólogos professam, à sua maneira, a mesma doutrina: só existe
indivíduo socializado. A subjectivação segundo Foucault ocupa a mesma localização na sociedade que, em Bourdieu, a noção de habitus
·�
esse par
de conversão entre o social e o individual -; ou que a noção sociológica de papel, sobre a qual é necessário determo-nos. Por volta de 1940, Linton ou Merton descreveram, com a designação "papéis", um conjunto de posições na sociedade, tendo cada uma um estatuto, direitos, deveres, posições essas que vão incessantemente ser ocupadas por indivíduos que se
revezam. A utilidade sociológica desta ideia é inegável, mas é sintomático que esses sociólogos tenham recorrido ao termo "papel", o que outros lhes censuraram, porque parece supor que o indivíduo fica à distancia da sua posição e não faz mais do que prestar-se a uma comedia social com a qual não se identifica. l\.1as o termo é revelador da nossa tendência para separar o sujeito, o
eu,
do seu conteúdo para fazer dele uma forma vazia,
pronta a ser erguida em dobrete transcendental do sujeito empírico. Da subjectivação, essa espécie de socialização, é preciso distinguir,
na
minha opinião, um processo diferente a que Foucault chamava "esteti
zação", entendendo por isso, já não a constituição do sujeito nem qualquer estetismo de dand)', mas a iniciativa de uma <274• Foucault constata, com efeito, por volta de 1980, que além
das técnicas aplicadas às coisas e as que são dirigidas aos outros, algumas sociedades, entre as quais as da Antiguidade greco-romana, conheceram técnicas que trabalham sobre o eu 275• Falar de estetização servia-lhe para sublinhar, imagino eu, a espontaneidade dessa iniciativa, espontaneidade
272 Na famosa última frase deLes Mots
et
les Choses.
273 DE, IV, p. 75. 274 DE, IV, p. 535: «Por estetismo, entendo a transformação de si». 275 DE, IV, pp. 171, 213, 576, 706, 719, 729, 731 e, em particular, p. 785.
t
110
1
VHI. UMA HISTÓRIA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES: SABER, PODER, DISPOSITIVO
que é o oposto da subjectivação. Esta teoria do trabalho de si sobre si ag radou bastante, porque se julgou que Foucault pretendia dar�nos uma moral para a nossa época; ora, assim que é questão de moral , muitas pessoas pres tam atenção. Seria verdadeiramente o propósito inicial de Foucault? Andaria a jogar aos gurus? Veremos isso mais tarde, tratemos primeiro do mais urgente.
Como
a
revolta ou a submissão, a
estet iza
ção em questão é uma
iniciativa da liberdade. Tipos humanos, estilos de vida como o estoicismo,
o monaquismo, o pur i tanismo ou a militância são, im agino, outras tantas estetizações. Não são maneiras de ser impostas pelo dispositivo pelas ,
objectivações do meio ambiente; ou, pelo menos, <
de c ausa a este tização segundo Foucault daquilo a que Max Weber cha ,
mava, depois de Nietzsche, ethos276• Todavia, com este termo, Weber
designava ao me smo tempo estetizações livres e subjectivações sofridas. O seu célebre texto sobre as origens do capitalismo não ensina que a r eli g ião
influenciou a econom ia n1ais do que o seu i nverso mas antes que um ,
ethos, o do puritano laborioso, p oupado ascético e leal nos negócios, foi ,
inventado a partir do que chamamos u m engo do, o calvinismo. Depoi s ,
esse ethos, esse estilo pessoal, alargou-s e como norma pelo mundo dos negócios sob uma forma abreviada, reduzida a uma atitude «racional em finalidade» e menos ascética; ela já não se bastava como fim em si, estava agora centrada na busca do rendimento e do lucro -
dado que o
sucesso nos negócios era um sinal da eleição junto do Senhor. Nas Caves do Vaticano, de Gide, um dos heróis, um negociante protestante, chama - se Profitendieu 277• Este estilo de vida que se revelara útil, da estetização que era passou a simples subjectivação como
correlato
do
<
(ou economia
empresarial de acordo com Schumpeter) , onde duas realidades se chamam
mutuamente: os agentes da nova economia e essa economia «capitalista»
276 P. Pasquino, «Mooerne Suhjekt und der Wille che nach Michel Foucault
zum
Wissen», Anschliisse: Versu
(G. Dane ed.), Tühinge.n, 1985, p. 39; W. Esshach, «Durkheim,
Weber, Foucault; Religion, Ethos und Lehensführung », em L'Éthique protestante de Max Weber et l'esprit de la modemtté, Max Webers protestantische Ethik uná der Geist der Modeme,
Maison des Sciences de l'Homme, 1997, p. 261. 277 Em português, o apelido da personagem do romance de André
Gide seria algo
como Lucrendeus. (N. do T.)
Hl
I
I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
para a eclosão da qual o ethos puritano - involuntariamente ou até contra a vontade178 �·contribuiu. Não deixemos de citar os próprios termos de Weber: < [é a subjectivação engendrada e exigida pela economia empresarial]; é a nossa standí9e Lebeniführung 279, «a moral do nosso estatutO>>. Acrescentemos que um sujeito que se estetiza livremente, activamente, através de práticas de si, é ainda filho do seu tempo: essas práticas não são «algo que o indivíduo inventa por si mesmo, são esquemas que encontra na sua cultura» 280, o calvinismo, por exemplo.
É evidente que não se atribuirá a Foucault, grande leitor de Séneca,
o projecto de popularizar uma estetização renovada dos estóicos gregos. Na derradeira entrevista que a vida lhe permitiu conceder, ele exprimiu -se muito claramente: nunca se encontra a solução para um problema actual numa resposta de outra época, porque essa será necessariamente a resposta a uma pergunta diferente. Não existem problemas que atra vessem os séculos, o eterno retorno é também uma eterna partida (ele apreciava estas palavras de Renê Char). A afinidade entre Foucault e a moral da Antiguidade está num Único detalhe: o trabalho de si sobre si, o «estilo». Este termo não significa aqui distinção, dandismo: «estilo» deve ser entendido no sentido dos gregos, para quem um artista era antes de mais um artesão. A ideia de estilo de existência e, logo, de trabalho de si sobre si, desempenhou um grande papel nas conversas e sem dúvida na vida interior de Foucault durante os últimos meses de uma vida que só ele sabia ameaçada. Lançando-se ele próprio sobre si mesmo, enquanto obra a trabalhar, o sujeito dar-se-ia uma moral que já nem Deus, nem a tradição, nem a razão sustentam. Esta teoria da subjectivação e da estetização revela bem o que foi a iniciativa de Foucault: «problematizar>> um objecto, perguntar-se como terá sido pensado, numa dada época, um ser (é a tarefa daquilo a que chamava arqueologia), e analisar (trabalho da genealogia, no sentido niet zschiano do termo) e descrever as diversas práticas sociais, científicas, éticas, punitivas, medicais, etc., que tiveram como correlato o facto de
278 M. Weber, Gesammelte Ar.ifúitze zur P.eliaionssoziolooie, Tiibingen, Mohr, 1920 (1963), vol. I, p. 524: «:durchaus gegen seincn Willen». 279 lbidem, vol. I, pp. 203 e 408, cf. p. 485 (onde o termo ethos é retomado sob a forma
Lebenifiihruna).
280 DE, IV, p. 719.
112
VIII.
UMA HlSTÓRIA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES:
SABER, PODER, DISPOSITIVO
o ser ter sido pensado assim 281• A arqueologia não procura resgatar estruturas nniversais ou universalizáveis. E
a
a
priori, mas reduzir tudo a acontecimentos não
genealogia faz descender tudo de uma conjuntura
empírica: a contingência sempre nos fez ser aquilo que fomos ou somos. «Ü que é nem sempre foi; ou seja, é sempre na conf luência de encontros� de acasos, no decorrer de uma história frágil, precária, que se formam as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes» 282•
Problema transcendente e transcendental: Husserl
Eis-nos no centro do problema. A crítica genealógica proc:ura o nas cimento empírico e não a origem ou o fundamento.
283
<
a história do pensamento da sua sujeição transcendental» 284• Será um sujeito husserliano, trans-histórico, capaz de dar conta da historicidade da razão? Para um leitor de Nietzsche, o sujeito, a razão e até a verdade possuem uma história e não são o desdobramento de uma origem 285•
Ora, d e acordo com o nosso autor, a filosofia do tempo da sua
juventude pretendia fazer do homem empírico, histórico, «O fundamento da sua própria finitude». Como se viu, as positividades dos discursos, todas datadas e circnnscritas numa certa época, tàzem do homem um ser finito, circunscrito pelo tempo histórico. O sofisma da metafísica está em acreditar que a mesma finitude torna possível essa mesma historiei'
dade. E erigir
em
condição de possibilidade transcendental a finitude,
que é o carácter imanente da condição empírica do homem. Está aqui uma «repetição do positivo no f undamental», <
ou de uma essência autêntica nas coisas humanas """' reconhecemos o Ego transcendental, a liberdade heideggeriana de ver o verdadeiro, a origem husserliana da geometria... 281 L'Usaae des plaisits, pp. 17-18. 282 DE, IV, p. 449 283 Ibidem, p. 574. 284 L'Archéolonie du Savoir, p. 264. 285 DE, IV, p. 436.
113
I! FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Ora, segundo Foucault, que n�o recua perante a blasfémia, estas ilus tres doutrinas são uma «tautologia>> pura e simples,·um «paralogismo» 286 saldo da análise ref lexiva; esta coloca condições de possibilidade demasiado gerais, correndo atrás de ilusões, enquanto Foucault, em bom positivista, procura as condições particulares de realidade, designadamente os discur sos e o seu dispositivo. Apenas existe o facto empírico, histórico, ou pelo menos nada nos autoriza a afirmar que também exista o transcendente, 28 ou sequer o transcendental 7• O jovem filósofo pretendia «libertar a história do pensamento da sua sujeição transcendental» 288; por esta via, rompia com a sua corporação de origem e, como diz Passeron, tornava-se órfão de qualquer pai filosófico para permanecer fiel ao seu amor pelas singularidades. O jovem órfão não queria partir de uma teoria do sujeito, «como se podia fazer na fenomenologia ou no existencialismo», nem, partindo dessa teoria, inferir de que modo. <<por exemplo, tal forma de conhecimento poderia ser possível». O que ele queria era, pelo contrário, mostrar de que maneira o sujeito era constituído «:através de um certo número de 289». práticas que eram jogos de verdade, práticas de poder, etc. Foucault admite que o homem tome iniciativas, mas nega que o faça graças à presença nele do loaos
e
que a sua iniciativa possa resultar no
fim da história ou na pura verdade. As descobertas dos físicos não são
286 L'Archtologie du Savoir, p. 265; DE, I, p. 774-775. Se objecção for feita defen dendo que essa crítica histórica é um positivismo cego à dimensão transcendental ou
(Arch., p. 267), Foucault replicará com a crítica do «dobrete (Arch., p. 268; DE, I, p. 675) ou «paralogismo» (DE, I, p. 452) que tenta fazer valer o homem da economia , da dência, da linguagem, etc. «como fundamento da sua própria fmítude» (Les Mots et les Choses, p. 352),
à origem metempírica
histórico-transcendental.» ( cf . Arch., p. 159), «tautologia»
através de uma «repetição do positivo no fundamental» (p. 326). Tod a s circunscritas numa época,
as
positividades
históricas fozcm
com
q u e o ho mem seja um ser finito, enquanto
a finitude passa por tornar possit•el a historicidade como a sua condição de possibilidade a
priori (p.
383).
287 Reenviemos novamente à segunda parte deLes 1Jiots et Jes
Cboses. Ver o estudo
de G. Lebrun sobre Foucault crítico de Husserl, em Micbel Foucault philosophe, Rencontte internationale, Se uil, critique,
1989, pp. 33-53. Para o que se segue, Renan, Essais de morale et de
1860, pp. 82-83; retomado em G!uvres completes, edição definitiva, Calmann-Lévy,
1948, voL II, pp. 73-74. 288 L'Archéologie du Savoir, p. 264.
289 DE, IV, p. 718.
! 114
1
VIII. UMA HISTÓRlA SOCIOLÓGICA DAS VERDADES: SABER, PODER, DISPOSITIVO
inspiradas por uma teleologia da ciência 290, a linguagem e a etimologia das palavras gregas ou alemãs não desvendam a verdade do Ser, Napoleão não era o furriel do Espírito, o revoltado não é movido por um apelo à desalienação que lhe enviaria a sua essência nativa 291; nada é transcen dente, nem sequer, no sentido kantiano, transcendental. Também não há qualquer escatologia acessível, nem a revolução de Marx nem a era positiva de Augusto Comte 292; é por isso que «O trabalho da liberdade é indefinido 293». O sujeito não é uma «dobra>> maior no Ser 294; o leitor viu que o indivíduo possui uma liberdade que não domina tudo de cima, uma «liberdade concreta 295» que só pode reagir contra o seu contexto
momentâneo: há que renunciar à esperança de alguma vez aceder a um
ponto de vista que nos poderia dar acesso ao conhecimento completo e definitivo dos nossos limites históricos. Aqui está um modo de pensamento que nos é familiar desde os anos
1860, quando
começou,
espírito histórico,
as
é de acreditar, a nossa modernidade- com o
descobertas sensacionais do orientalismo e a história
crítica das origens do cristianismo que tocaram no âmago a ideia que tínhamos de nós próprios.
É certo que sempre se soube que a verdade
variava, mas era sobretudo geograficamente: verdade aquém dos Pirenéus ou do rio Halys, erro para lá deles. A diversidade das leis e dos costumes 290 L'Archéologie du Savoir, p. 262. 291 DE, IV, p. 74. Quem quer que esteja inserido, activa ou passivamente numa
relação de poder grand e ou pequena, isto é, t oda a gente, pode aceitar ou revoltar-se (DE, IV, p. 93); mas essa revolta não será um regresso do recalcado, o retomo de uma .
liberdade original, de uma verdadeira natureza do homem desalienado (IV, pp. 74 ou 710).
As nossas passagens dos limites são elas próprias limitadas; melhor ainda, não podemos
desdobrar sobre elas um conhecimento total, é-nos impossível saber completa e deflniti
vamente onde estão os nossos limites 292 Les Mots 293
DE,
et
(IV, p. 757).
les Cboses, p. 331.
IV, p. 574.
294 Não acredito numa dobra onde Foucau1t tivesse descoberto o Sujeito; Deleuze, nobre carácte r e pensador original, fala aqui não na qualidade de grande historiador da filosofia, que ele foi, margem do de
mas
outrem
como pensador pessoal que sonha o
(o que ele fazia de bom grado, segundo
atribuindo-lho. Cf. DE, IV, p. +45. 29.5 Cf.
seu
próprio pensamento em
a
sua prl>pria confissão),
DE, IV, p. 44-9: o diagnóstico consiste em seguir a linhas de fragilidade
de hoje para captar por onde e como aquilo que é poderia já não ser, porque essa linha ,
de fractura virtual abre «Um espaço de liberdade, entendido como espaço de liberdade
concreta, isto é, de transformação possível» do discurso.
115
t
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
é o argumento ancestral do cepticismo; Sextus Empiricus acrescentava� -lhe a das crenças e das filosofias, as quais opunha umas às outras. O argumento é banal desde Montaigne. Só que, a partir dos anos 1860, o passado, transbordando imensamente o quadro sumário do Discurso sobre a História Natural, tornou-se uma parte enorme do nosso saber colectivo. Albert Thibaudet, agregado
em
filosofia, era bom profeta ao escrever,
em 1931: Um espírito critico de historiador é um espírito neutralizado para a procura da verdade, e que, aliás, ganha em não ser prolongado por um espírito de filósofo crítico que colocaria a pergunta: O que é
a verdade ?
296
Esta pergunta, longe de ser original - tem já mais de um século -, mas continuava para nós a ser simplesmente familiar; as doutrinas rei nantes (marxismo, fenomenologia, filosofias do conhecimento) tinham uma preocupação totalmente diversa: a busca do absoluto. A pergunta ganhou acuidade com os «discursos» foucaultianos e talvez mais ainda c.um os «dispositivos»: através desses dispositivos, aquilo a que chama mos sociedade dita, num dado tempo e num dado lugar, o que é dizer a verdade e o que é dizer falso 297• Contas feitas , a obra de Foucault é toda ela uma continuação da Genealoaia da A-foral nietzschiana: procura mostrar que qualquer concepção que se julgue eterna tem uma história, «deveio>>, e que as suas origens nada têm de sublime. Posto isto, como poderia Foucault não ter reivindicado o cepticismo? Nas suas notas Íntimas, Nietzsche desejou um dia ter discípulos como ele próprio 298•
296 A. Thibaudet,
Rijlexions sur la litté:rature,
ed. Compagnon et Pradeau, Gallimard,
coll. Quarto, 2007, p. 1416. 297 Cf. Malebranche, Aechur:he de la vérité, II,
3, cap. 5: «É por causa da união que
temos com todos os homens que vivemos de opinião». 298 Nietzsche, f.Euvres phílosophiques completes, vol. XI p. 198
I
116 I
=
Cahiers N VII
1.34 [147).
(trad. Haar
e de
Launay),
!
l I i Foucault corrompe a juventude? I Desespera Billancourt? I
Para muitas mentes que têm as suas razões para não serem nietzschia nas (nos anos noventa fizeram passar um mau bocado ao estruturalismo), esta visão do mundo é falsa e repugnante. Alguns temem que o fim das transcendências seja um dissolvente niilista que corrompa a juventude. De maneira que existem, entre as tribos filosóficas, duas espécies parti culares e inimigas: aquela que, na ordem do pensamento, se deleita em divulgar verdades raramente edificantes; e aquela que defende, contra a precedente, a vida tal como ela vai -por julgá-la realmente em perigo ou por estar indignada. Um dia em que um dos espíritos desta última espécie pretendia dar uma lição ao seu colega Foucault, membro da primeira, viu-se chamado de «chui»; Foucault soltou uma espécie de citação e fez voluptuosamente vibrar, entre dentes, esse monossílabo agudo, cujo eco foi. considerável nas paredes do College de France, que o ouviam pela primeira vez. Mas haverá realmente perigo? Não vou discutir a repugnância, mas sugiro que há quem faça tempestades
num
copo de água. Nenhuma das
nossas opiniões sobre a verdade, o bem ou o normal pode ser fundada, mas isso não nos impede de viver a vida e nem sequer de acreditar no normal, no bem ou na verdade. A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade. Sabe-se qual o pathos que o último Nietzsche, tornado profeta, empregou contra o niilismo "'"" essa «recusa de um valor e de um sentido» (ao arrepio do seu naturalismo elitista)
299-
e sobre a verdade
299 É divertido constatar que Nietzsche, tão hábil a des codifica r
os valores e fins
de outrem, não tenha percebido a arbitrariedade dos seus, que consis tiam em secundar
«OS esforços da nature-La (ele refere noutro lugar o termo biologia] para pro duzir u m t ip o humano superior»
((Euvres philorophiques completes, voL XII, p. 325; XIIl,
pp. 19, 55,
etc.). Este grande incrédulo nunca duvidou que «O destino da humanidade dependesse
do sucesso do seu modelo»
(X,
p.
192) nem
que fosse necessário
da evolução natural, da Vontade de potência,
como
col ocar
"
s e no sentido
outros se colocaram no sentido da
história. E deplora em inúmeros lugares o igualitarismo e a misericórdia, essas «aberra ções da humanidade em relação aos seus instintos fundamentais»
(XIII, p. 277
e
336).
Empreend eu a sua revolução filosófica como um profeta para «:levar o tipo homem
ao
224); para perm itir a vinda de «alguns (X, p. 314), ou antes, que não se preocupariam sequer em sê-lo (XIII, p. 86)- «Os mestres da terra, uma nova
seu esplendor e à sua maior pot�..ncia»
(XII,
p.
home"..ns superiores» que seriam «OS mestres dos outros homens»
H7
I
I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
que mata 300; no entanto, ninguém morreu, e os pensadores cépticos, no momento de votar, não hesitam entre Ségolene e Sarkozy. Quando Nietzsche exaltava apaixonadamente a vida, a inocência do devir e a
sua aceitação, atrocidades e tragédias incluídas. estava a prescrever um remédio cavalar contra uma doença imaginária; as suas tiradas contra o niilismo, mais do que à realidade, pertencem à ordem oratória. Só poderiam inquietar-se professores que exagerassem a importân cia do que é dito nas cátedras e ensaístas satíricos que gostariam de se assustar. O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive, dizia Gaston Bachelard. O fim da era em que se acreditava em transcendências
é um acontecimento que se acantona nos intelectos e que nada tem de catastrófico. Tê-lo-ia sido se o homem fosse um ser totalmente intelec tual que se governasse de acordo com razões 301; se, por exemplo, os
casta reinante. Nascendo deles, aqui e ali,
o
Super-homem» (XI, p. 270). Ao ponto de
«sacrificar o desenvolvimento da humanidade», reduzida à escravatura, «para permitir que uma espécie superior ao homem exista» (XII, p. 274). Mas enfim, objectaremos, se
a
Vontade de potência é verdadeiramente mestra em toda a parte, será quanto basta
para esta tarefa, sem que tenhamos de nos envolver -- e por que motivo teríamos nós o direito de nos envolver? E mais, o que poderíamos nós acrescentar à gravitação universal,
e porquê acrescentar? Digamos depressa que Nietzsche não pensa na Alemanha, pela qual só sente desdém (XI, p. 444, etc.; ele preferia Os
judeus e
os eslavos); desdém que só é
ultrapassado pelo seu desprezo para com «a corja anti-semita» (XI, pp. 225, 228; XII, p. 310; XIII, pp. 65, 73, etc.; Par-delà le Bien et le Mal, § 251), para com a <
ser
poderia mesmo implicar que se morra de conhecer a verdade intei ra»
.
301 Não façamos uma ideia demasiado esquemática do homem, pois ele também aprecia atribuir-se razões, ou antes, ter os seus sonhos, que preza, e nos quais acredita.
Professar um ideal religioso ou cívico é para ele uma satisfação platónica e esse sonho pode ser auto-suficiente. Porém, é preciso distinguir entre a moral assim professada e a
moral praticada, que, sem hipocrisia, podem ser bastante diferentes- senão a diferença
nem se vislumbra. O cristianismo, escreve alg u r es Simmel, ofereceu às massas, pela
primeira vez
na
história, um sentido acabado da e.xistência. Talvez, mas o que resultou
de1e nas condutas? Terão os dogmas cristãos suficientemente modelado, de modo amplo e quotidiano. as sociedades europeias para merecerem o estatuto de raízes de um conti nente? Terão eles, por
exemplo,
mudado alguma roisa na atitude humana face à morte?
Repitamo-lo, o mundo em q ue se pensa não é o mundo em que se vive.
118
I
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT? I
sujeitos ou cidadãos obedecessem ao rei ou ao Estado persuadidos por urna religião ou uma ideologia. Assim, estou em condições de garantir que Foucault não era o diabo, corn'o julgaram alguns, e não dos mais insignificantes 302• Acreditaram que o cepticismo de Foucault abalava o Bem e o normal e que ele não tinha outro objectivo senão arruinar toda a moral e toda a normalidade. Não era nada disso: não fez mais do que propor reformas de pormenor na ordem estabelecida (como a supressão da pena de morte), e não ensi nava a anarquia e a devassidão. Mas adivinha-se de onde vem o erro: de acordo com a crença mais espalhada, só se respeitam os valores que temos por verdadeiros, só se obedece àquilo que se julga verdadeiro. Ora) essa crença não é partilhada por todos: um espírito filosófico, se for céptico, pode perfeitamente passar sem a ilusão de um fundamento verídico e viver sem matar nem furtar, e até sem ensinar o assassínio e o roubo -porque, para tal, precisaria primeiro de acreditar nisso ... Hume afirmava, justamente, que o cepticismo não devia acompanhar -nos na vida quotidiana e que, aliás, não conseguiria; continuaremos a jogar às cartas, a gostar de conversar e a acreditar que o Sol se levantará amanhã, visto a natureza ser a mais forte. Só um estóico poderia imagi nar que, à força de se imbuir da ideia de que o amor não é mais do que a fricção de duas epidermes {corno diz Marco Aurélio, em termos mais crus), se poderia tornar dono da libido. A natureza leva a melhor, ima gino eu, até na escolha das nossas leituras: deixamos de duvidar para ler os .filósofos- que são tão interessantes e inteligentes (Santo Agostinho, entre outros, o leitor talvez se lembre). <<Ü trabalho monumental de Gueroult desencorajou as pessoas de se interessarem por Fichte», dizia uma noite Foucault,
«no
entanto, ainda deve haver coisas interessantes
para descobrir em Fichte». Por se ser céptico não se é menos homem; ora, segundo o próprio Husserl, os instintos fundamentais do homem são
o gregarismo, a conservação e também a curiosidade 303•
302 O filósofo Jules Vuillemin, muito ligado a Foucault, cuja eleição no College de France propôs e apoiou, nem por isso deixou de expor, no seu elogio fúnebre, pronunciado no College em 1984, que a filosofia do defunto consistia em negar aquilo em que sempre se acreditara, designadamente, a verdade, a normalidade e a moralidade.
303 A. Diemer, Edmund Husserl, Versuch einet systematischen Darstellung der Phiino menologie, Meisenheim, 1965, p. 101. O interesse, esse objecto da curiosidade, é uma
motivação na qual se pensa demasiado pouco.
É
porém uma motivação espedfíca e tão
importante como qualquer outra; não se confunde com nenhuma outra e o seu papel na história é grande (o povo romano interessava-se tanto pelos jogos do circo que esquecia,
H9
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Os homens são mais quotidianos do que metafísicas (não, esta não é uma proposição de antropologia geral, esse saber a que chamei vão, mas sim um provérbio, ou um aspirante ao posto de provérbio). Ser céptico é estar dividido na sua cabeça, mas vive-se bastante bem assim e só é perigoso no papel.
É
possível não ter ilusões e ser-se ainda mais
resoluto, como era o caso do meu herói. Que nos importa o que o futuro vier a pensar de nós? A nossa temporalidade é feita da nossa actuali dade. Olhem para os estudantes; estudam Platão, mas entusiasmam-se sobretudo com os filósofos vivos, com os do seu tempo; olhem para os artistas, fazem todos a mesma coisa ao mesmo tempo, designadamente o que se faz agora. Diga-se, a propósito, que o papel de pivô da actualidade, mais decisivo na temporalidade humana do que o passado e o futuro ( pode pensar-se que Heidegger, Gadamer e Sartre não estariam completa mente de acordo com este julgamento) funciona também em matéria de moral. Pensemos no fim da escravatura ou da colonização 304: por volta de 1850, e nos anos 1950, houve na sua localização uma mudança de redoma. A antiga redoma, o antigo discurso dos escravos e das coló� nias tornou-se caduco na actualidade e apareceu retrospectivamente tão antiquado quanto as lamparinas a óleo e a navegação à vela; enquanto,
pretende Juvenal, a alta política). A filosofia, as corridas no circo,
o
futebol e a <.'Ultura
em geral, tudo isto é interessante (o prazer da mÍlsica ou da poesia são outra coisa, apesar
das artes, noutros aspectos, serem também interessantes). do futebol por oposição ao rugby, mas não subsiste menos por causa disso.
a
É lícito pormenorizar os sabores
especificidade do interesse que engloba ambos,
É por ser interes sa nte logo, apaixonante, respeitável, ,
educado, que o futebol pode servir paixões públicas, como a religião também o pode fazer, permanecendo igual a si própria, esquivando-se
a
qualquer redudonismo. Não se
pode pretender, excepto por dandismo, que a guerra ou o amor são i nteressantes, que é
interessante ganhar dinheiro ou governar povos: são outras paixões. Também não se pode dizer que assistir à missa seja «interessante». O jogo é outra coisa mais, ao que consta; as emoções do futebolista não são as dos espectadores do encontro, tal como as emoções do romancista não são as dos seus leitores. As proe:z..as, o sabor do perigo e gosto de «superar-se a si mesmo», navegação ou alpinismo, são ainda outra coisa. A especificidade
do interesse permanece intacta. 304 Foi muitas vezes referido que as cruzadas étkcas contra os escândalos da sua
época
(a escravatura, o colonialismo) só se iniciam ou multiplicam quando esses escândalos
estão votados a uma abolição próxima, ou quando os oprimidos começam a revoltar-se.
Não que os cruzados voem para garantir a vitória, mas sentem indistintamente que e�1:es são escândalos herança de um passado bárbaro, que estão condenados pela história e são
indignos «da nossa época».
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT?
de pleno direito, escravatura e colónias surgiam na nova redoma como
contrárias a toda a equidade. Por volta de 1960, a colonização da Argé
lia tornara-se caduca e utópica aos olhos de De Gaulle e de Raymond Aron (as «colónias>> com os seus «indígenas>>! Estas palavras estavam tão
ultrapassadas quando a própria coisa); aos olhos das gentes de esquerda
era pura e simplesmente intolerável. As mudanças de discurso podem
assim segregar a ilusão do progresso de uma imperiosa e intemporal consciência ética.
Pode a humanidade passar sem mitos como os desta consciência
e deste progresso? Não sei, mas não a vemos dispensá-los, como não
dispensa a religiosidade nem a curiosidade filosófica. Apesar de todos
os Nietzsche e os Foucault deste mundo, gosta de invocar a Verdade e
considera verdadeiro aquilo em que quer acreditar. «Mitos» é um termo demasiado carregado de sentidos múltiplos, falemos antes de engodos.
O calvinismo foi o engodo da economia capitalista. O termo engodo surgiu ocasionalmente pela pena de Foucault, e sentimo-nos tentados a
dizer que é a gratuidade primeira das estetizações; estas não respondem
a uma necessidade (criando-a antes) e não visam qualquer fim- aqueles que pretendem perseguir são pretextos, como a salvação, a tranquilidade
da alma, o nir vana, etc. A sua energia provém da sua liberdade, de uma
pulsão do eu, da misteriosa «:caixa negra» Íntima, mais do que de qualquer
doutrina persuasiva: esta serve unicamente de engodo, de racionalização
e de campo de treino.
Em 1968, Foucault, professor em Tunes, assistiu e participou
num movimento estudantil que se reclamava do mar xismo; uma greve
geral foi seguida de uma repressão policial (Foucault foi severamente maltratado) e de detenções em massa. Um dos adolescentes foi con
denado a catorze anos de prisão. Este episódio atingiu profundamente
Foucault, que dele falava com emoção e que nele discerniu «a evidência da necessidade do mito, de uma espiritualidade» que dá «gosto, capa
cidade e possibilidade de um sacrifício absoluto, sem que nisso possa ser surpreendida a menor ambição
ou
o mais pequeno desejo de poder
ou de lucro 305». Efe.ctivamente, «a formação marxista dos estudantes
tunisinos não era muito profunda nem pretendia sê-lo 306>>; a precisão da teoria e o seu carácter científico eram para eles «questões totalmente
secundárias que funcionavam mais como um engodo do que como
305 DE, IV, p. 79. 306 lbidem.
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
princípio de conduta». Um engodo é, por exemplo, as más razões (mas poderão existir boas?) que damos para justificar o que desejamos fazer; quando uma velha senhora condena a pena de morte por ingénuas e más razões, não deixa de ter razão no sentido 307: ela sabe o que quer. No terreno prático da acção, o irracionalismo foucaultiano resulta num decisionismo individual.
Em política, decida-se o que se quiser, mas não se disserte Porque, ao lado do historiador genealogista de que falámos até agora, havia em permanência, em Foucault, um militante (cujo programa não era minimamente o do activista de 1960 que consta da lenda). Nas nossas cabeças de modernos, dizíamos nós, enredam-se a tristeza historiadora do cemitério das certezas defuntas e a imperiosa continuação da vida. Foucault resolveu esta contradição cortando pura e simplesmente o nó górdio; lembremos a regra que ele propôs: <> 308•
O decisionismo dispensava Foucault de fundar as suas acções militan tes na verdade, em doutrinas. E o sábio que ele era não pregava qualquer política aos seus ouvintes nem nos seus livros; as suas próprias escolhas políticas nem sempre estavam em sintonia com os seus livros ou com o respectivo ensino. Sucede que a história genealógica põe a nu a arbitra riedade de todas as instituições e a gratuidade de todas as certezas, de maneira que os leitores e ouvintes do sábio podiam aí sorver motivos para militarem nalgum ponto contra a ordem estabelecida. sábio tenha sentido tacitamente alguma satisfação.
É
possível que o
Do mesmo modo, à regra que acabo de enunciar segue-se imedia tamente uma segunda; <
307 lbidem, p. 756. 308 DE, III, p. 135.
122
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT?
I i
políticas 309 e não deve, pois, ser desdenhada 310• Segundo o testemunho de Passeron, <<ele nunca escondeu aos seus amigos mais analíticos que as suas revoltas políticas eram antes de mais ataques de desejo , nem aos
polemistas profissionais que os seus ataques de ira tinham origem numa
i nt er rogação filosófica».
«A crítica é aqui entendida como a análise das c o n dições históricas
seg undo as quais se constituem relações com a verdade, com a regra
e consigo própri o» m. O foucaultismo é uma crítica da ac t uali da de
que se abstém de ditar prescrições para a acção, mas que lhe fornece
conhecimentos. O que, no ano da sua morte, o levou a propor uma
nova concepção da filosofia cuja paternidade ele atribui a Kan t (mas
pensava nisso havia já qu inze anos, como demonstra uma página hesi tante da Arqueoloaia do Saber312). Num opúsculo intitulado Qg'est-ce que les Lumiêres?, o filósofo alemão da época das Luzes procurava caracterizar
o seu próprio tempo. O Atifklarüne aí se designa a si mesmo Atifklarüng;
os homen s de um certo século, o XVIII, puderam dizer «nÓs outros,
homens do século X Vlll e das Luzes», e sentiram-se diferentes dos seus a ntepassa do s . Kant não procura caracterizar a época em que viveu em si mesma: ele <<procura uma diferença : que diferença
hoje
i n tr od uz em
relação a ontem? 313>>. Segundo Foucault, o que entendemos por filosofia poderia, doravante, não consistír já em fazer cientificamente a exegese do passado nem em pensar a totalidade ou o futuro, mas em dizer a actualidade e, à falta
caracterizá-la negativamente, «diagnosticar o presente, dizer presente, dizer em que é que o nosso presente é diferente e
de mel hor,
o que é o
309 J.-CL Passeron,
ltinéraire d'un socioloaue:
trames,
bijurcations,
rencontres, ed. La
Découverte, 2008.
310 Como acontece frequentemente que o seja pelos poHticos e, nomeadamente, dizia-me Foucault por volta de 1982, pelos socialistas (subentendido: «apesar de um pensador crítico como ele
dos
conservadores»).
poder naturalmente parecer mais próximo da esquerda do que
311 DE, IV, p. 580. 312 L:4rchéologie du Savoir, pp. 171-172: Ao relembrar que os nossos próprios pres supostos permanecem irreconhedveis e incontornáveis para
nós mesmos, Foucau1t hesita;
a arqueologia deverá estudar preferencialmente o passado mais longínquo? Mas pode ela remm dar
a conhecer-se a si própria, e a estudar portanto o passado imediato, para nos
dd'inir pela nossa diferença mais próxima?
313 DE, IV, pp. 564
e
680-681, e ainda UI, p 783.
123
I
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
absolutamente diferente de tudo aquilo que não é ele 314». O nosso autor já não conc ebe outra filosofia possível além desta crítica histórica; fora dela não há nada que valha na noss a época: «Ü que é, pois, a filosofia hoje
-
quero dizer a actividade filosófica
�,
se não for o trabalho crítico
do pens amento sobre si próprio 315?». Como já
se
viu, pensamos, em cada momento , no interior de um
discurso que não se p ode conhecer a si próprio , mas que permite pelo
menos constatar que pensamos diferentemente do que pensaram os homens de outrora. Melhor ainda, bastará que se forme o projecto de uma genealogi a ou de uma arque ologia e que se mani feste a possibili dade desse recuo, para que nos reenc ontremos à distância de nós mesmos e do nosso hoje
316•
Este proj ecto escava debaixo de nós um abismo: «nÓs somos
diferença» e não sabemos mais do que isso 317• Semelhante iniciativa de diferenciação é mais do que história, merece o nome de filosofia porque é, negativamente, uma reflexão sobre nós mesmos e também porque
incita a reagir. Efectivamente, a história arqueológica s eme ia a dúvida;
doravante uma fissura, uma «fractura virtual318>>, listrará o nosso eu bem como as nossas evidências : não lhes toqueis, estão quebradas. Ou, pelo contrário, tocai-lhes, se decidis fazê-lo: a nova filosofia em questão é «a história indispensável à política 319>>.
Esta nova filosofia fàz com palavras aquilo que a li berd ade pode c umprir
diariamente: pensar, reagir, problematizar 320 activamente a
nossa posição tal como o dispositivo a fez 321• A
ontologia
diferencial
de nós próprios é uma exegese histórica dos nossos limites que torna
possível a supera ção deles 322• Pensar a sua própria história é «libertar o
pens amento daquilo que ele pensa silenciosamente e permitir-lhe
pensar diferentemente, em vez de legitimar aquilo que já se s abe 32\>,
314 Ver sobretudo DE, I, p. 665 e IV, p. 568; cf. I, pp. 580 e 613; IJI, p. 266. 315 DE, IV, p. 543. 316 DE, I, p 710. 317 L'Archéologie du Savoir, p. 172. 318 DE, IV, p. 449. 319 DE, III, p. 266.
320 Sobre a noção de problemati::r.ação, DE, IV, pp. 670 e 612. 321 DE, IV, p. 597. 322 Ibidcm, p. 575 e 577.
323 L'llsage des plaisirs, p. 15
l 124
1
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT?
como fazia com demasiada frequência a antiga filosofia. A genealogia da racionalidade faz vacilar as certezas e os dogmatismos melhor do que fariam raciocínios 314: Foucault é ávido em «escamar algumas evidên cias», mostrar que aquilo que é nem sempre foi, poderia não ser e é um mero produto de determinados acasos e de uma história precaria 325• A filosofia torna-se uma «crítica permanente do nosso ser histórico» para relançar «o trabalho indefinido da liberdade 316», essa historicidade que não conduz a nenhum fim da história. Podemos conhecer cientificamente
o
percurso passado da espécie
humana, podemos pôr em dúvida o nosso presente, mas não teremos ciência positiva da humanidade, do seu destino, da sua errância. E essa negatividade sem totalidade talvez se deva ao próprio ser do homem, animal erratico do qual nada mais ha a saber do que a sua história. Esse F oucault é um longínquo continuador das Luzes e um discípulo mais próximo do Nietzsche voltairiano, da Aurora ou da Gaia Ciência; derrama sobre os erros, ilusões e logros, uma claridade susceptível de os matar. Mas, como pensador, não irá mais longe, não acabará com eles com as próprias mãos. Como homem, como militante, Foucault não era mais partidário de 68 do que foi estruturalista; não acreditava nem em Marx, nem em Freud, nem na Revolução nem em Mao- escarnecia em privado dos bons sentimentos progressistas, e não lhe conheci qualquer posição de princípio sobre os grandes problemas, como o terceiro mundo, a
sociedade de consumo, o capitalismo ou o imperialismo americano.
Porque, também aqui, a finitude é devastadora, separa irremediavelmente o sábio e o partidário. Uma surpresa espera-nos porém: Foucault opunha -se tacitamente a Raymond Aron, mas o mais radical dos dois não era .I
aquele que podemos imaginar; Aron não acreditava que o corte entre o sábio e o político fosse tão profundo quanto pensava Max Weber (que era demasiado nominalista a seus olhos)-- era o pretenso extremista de Vincennes que achava irremediável esse abismo. Uma vez que todas as coisas foram feitas, escreve Foucault, também «podem ser desfeitas, na condição de se saber como foram feitas>>. Mas as «descrições>> genealógicas que o professor Foucault traçava perante os
324 DE, IV, p. 160. Cf. IV, p. 779: «Todas as minhas análises vão contra a ideia de necessidades universais na existência humana. Elas sublinham o carácter arbitrário das instituições.»
325 lbidem� pp. 30
e
449.
326 DE, IV, pp. 571, 574, 680.
125
!
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
seus numerosos ouvintes <
que têm de fa:r.er. Com que direito o faria?» 328; é <
passado, mas recuso-me
a
dizer: "eis o que deveis fazer", ou ainda, "isto
>> 330
é bom, aquilo não''.
Se o genealogista não pode querer no lugar dos outros, pode, em contrapartida, «ensinar às pessoas o que não sabem sobre a sua própria situação, sobre as suas condições de trabalho, sobre a sua exploração»;
este jogo de verdade opor-se-á ao jogo de verdade dos exploradores
Hl_
No início de outro curso 332, ele declarava, substancialmente: Não vos direi: �'eis o combate que devemos travar", porque não vejo nenhum fundamento para poder dizê-lo, exceptuando talvez o éritério estético (isto é, sem razão, sem qualquer justificação possível além do prazer, o qual não se discute mais do que os gostos ou
as
cores).
Em contrapartida, vou descrever-vos um certo discurso actual do poder, como se desdobrasse diante de vós uma carta e stratégica . Se quiserdes combater, e consoante o combate que escolherdes, aí vereis onde se encontram os focos de resistência, onde estão
as
passagens passiveis. I
•
Com os seus ouvintes, Foucault tinha a relação do príncipe e do
seu conselheiro. O príncipe disse: "Quero a felicidade do meu povo"; o sábio conselheiro diz-lhe então, "Se tal é a vossa decisão, eis os meios que devereis adoptar para alcançar os vossos fms". A reflexão política não é totalmente impossível; mas uma vez escolhidos os fins, por livre escolha ou até por real capricho, a r eflex ão só pode recair sobre a racionalidade
327 lbiclem, p. ++9. 328 DE, IV, p. 676. 329 L'Usaee des plaisirs, p. 15. 330 DE, lU, p. 634. 331 DE, IV, p. 724. 332 Séro.rité, territoire, population. C,ours au Colleee deFrance 1977-1978, Hautes Études -Gallimard-Seuil, 2004, p. 5.
126
1
1
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT?
I
dos meios e não sobre uma impossível racionalidade dos fins em si. E isto não se deve a que os julgamentos de facto («isto é racismo») sejam distintos dos julgamentos de valor («é mau ser racista>>) e de não se poder retirar nenhum dever ser daquilo que é: deve-se, sim, à finitude. Cada um tem a tarefa de querer e saber aquilo que quer, sem poder sacudir esse cuidado para cima das Tábuas da Lei ou sobre um dos seus sucedâneos -natureza, tradição, autoridade, ideal, utilidade, carácter inato, simpatia, imperativo categórico, sentido da história. Foucault limitava-se a dizer que as suas opiniões, tomadas de posição e interven ções eram uma escolha pessoal sua que não justificava nem impunha, porque nenhum raciocínio poderia provar a sua justeza. «Não dou um passo em frente como o combatente universal[ ]. Se eu luto, por esta ...
ou aquela razão, faço-o porque, de facto, essa luta é importante para mim, na minha subjectividade 33�». Ele militava contra os· redutos de alta segurança nas prisões francesas, que considerava insuportáveis, ora, «quando é insuportável, já não se suporta», concluía ele para abreviar o comentário filosófico da sua idiossincrasia política (como diz Passeron). E, em Vincennes, deplorava-se o que as suas escolhas de acção e recusas de agir tinham de caprichoso. Houve um serão em que Foucault e eu estávamos a ver, na sua minúscula televisão, uma reportagem sobre o conflito israelo-palestiniano. Surge no ecrã um combatente de um dos campos (não importa qual), que declara: «Desde a minha infância, bato-me pela minha causa, é assim, sou feito disto, e não direi mais». «Finalmente, chegámos ao que interessa», exclamou Foucault, feliz por se sentir dispensado de uma tagarelice que, na melhor das hipóteses, teria sentido como retórica política ou propaganda. Imagine-se um instante uma cidade onde não se discutiriam grandes ideais nem preferências estéticas, Bizâncio sem querelas bizantinas ... Eu sou, pela parte que me toca, americanófilo e partidário da energia nuclear bem como da tourada .B4: vou incomodar a vizinhança com as minhas preferências? Mas é raro que nos abstenhamos de nos darmos razão; cedemos geralmente àquilo a que Foucault chamava de vontade de verdade . .333 DE, IV, p. 667. 33+ Em 2007, convém ser anti-americano, contra as OGM (ou a energia nuclear) e a tourada (ou a caça). Ao ler os papeis pbstumos de Nietzsche, é divertido saber que,
em 1885, louvava-se Richard \Vagner por «aliar tudo o que há de bom hoje em dia: ele é antisemita, vegetariano e detesta a vivissecção» (CEuvres philosop biques com pletes, vol. XI, p. 414).
127
POUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Sucede que nos contentemos com o enunciado da nossa escolha, como um facto bruto; um patriota talvez diga, «ria ht or wrong, my country>>. Mas sentirá mais frequentemente a necessidade de afirmar que a sua pátria tem razão ou que a verdadeira moral está em tomar o partido da
sua pátria, de tal modo é potente a vontade de verdade. Para citar Santo Agostinho 335, «ama-se tanto a verdade que, se se amar algo diferente dela, quer-se que aquilo que se ama seja a verdade». Será preciso dizê -lo, as nossas justificações são sofismas, julgamos a verdade de acordo com as nossas escolhas
e
não escolhemos mediante a verdade, e são as
nossas escolhas que fazem aparecer os fins 336• Todos estão neste ponto, incluindo os numerosos defensores do loaos, da verdade, da razão e do entendimento. Espinosa ensinava-o 337: não desejamos uma coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque a desejamos. Esta vontade de verdade procura, certamente, tranquilizar-se, porque pode tornar-se um instrumento de poder, propaganda,
e
sabe-se qual é o poder da linguagem 338• Além disso, a vontade de verdade é contingente; é mais vincada no Ocidente do que noutros pontos, está organizada em ciências poderosas, oficiais, imperiosas. Alguns espíritos, porém, esquivam-se à vontade de verdade; é menos frequente que sejam filósofos, com o seu logos, do que homens da segunda função, segundo Dumézil
guerreiro com o seu ardor, a
sua ira, o seu th)'mos 339• Ora, Foucault era um guerreiro, e um
guerreiro não vai construir frases, ad vogar, dizer que tem razão: não está indignado, está irado; desposou a sua causa, ou antes, esta desposou-o a ele, bate-se por ela e não está disposto a discutir. Não está convencido, mas resolvido («ter convicções é ser-se tolo», disse ele um dia). Reencontramo-nos sob o céu rasgado entre os deuses, de que fala Max Weber. Talvez se objecte: <<Mas por que motivo quererão as pessoas mudar as coisas, se não têm qualquer razão para o fazer?». Efectivamente, mas
335 Col!fessions, X, 25t 34. 336 DE, I, p. 619. 337 Ética, III, 9, escblio. 338 «"Olha Tartufo: ele é gordo, é feio, mas seduz a casa inteira apenas com pala vras." O título da peça poderia ser Tam.ifo ou o psicanalista», dizia Foucault, que se deliciava com
Tarttifo e ia ver todas
as suas
encenações.
339 Platão, República, 4-4-0b e seguíntes.
128
IX. FOUCAULT CORROMPE A JUVENTUDE? DESESPERA BILLANCOURT?
l I
o facto está aí: não sendo intelectuais cartesianos, decidem-se sem boas
razões, inventando geralmente uma; e aqueles que nada querem mudar,
também não têm razão. Há em Foucault um voluntarismo, à falta de melhor; ele não decide que é preciso querer aquilo que se quer, julga cons
tatar
que é assim que os homens se comportam. O facto de se querer fazer pensar a sua verdade a todos os homens, de se querer o bem de outrem- como ele gostava de dizer-, era-lhe pessoalmente odioso. E
era isto que o cristianismo� o marxismo e, infelizmente 340, as sabedorias pagãs já faziam.
Foucault voltava incessantemente a este ponto: <<é uma questão que me diz pessoalmente respeito quando eu decid o , a propósito das prisões, dos asilos psiquiátricos, disto ou daquilo , de me lançar a um
certo número de acções 341>>; ou ainda, «nunca me comporto como um profeta, os meus livros não dizem às pessoas o que devem fazer»
342•
Ele próprio, como se viu, lutava pelo que lhe importava «na [sua] sub jectividade».
A dita subjectividade não era puro capricho, estava fundada numa experiência pessoal e numa competência. A Polónia oprimida foi uma das suas causas mais caras 343; porque ocupara um posto na embaixada francesa em Varsóvia, porque vira a bota soviética pesar sobre o país e porque conhecera a <<miséria socialista e a coragem de que necessita» 344•
Já falei da sua denúncia dos crimes estalinianos. Havia também nele uma simpatia profunda pelos excluídos, os oprimidos, os revoltados� os mar ginais. Daí a amizade apaixonada (nada mais, nada menos) que me disse
ter sentido certa altura por Jean Genet.
Melhor é deixar falar uma testemunha participante: acontecia a Fou cault sentir «a urgência de preparar um golpe político sobre a desumani dade dos complexos de alta segurança ou sobre outra dessas causas ditas,
por miopia, apolíticas, que sempre haviam deixado indiferentes partidos revolucionários e caridades religiosas, emoções populares e petições de
340 DE, IV, p. 673. Como diz Peter Brown, em L'Essor du christianisme cccidental, trad. Chemla, Seuil, 1997, p. 174, com os cristãos, o cuidado de si torna-se cuidado pelos outros, por condescendência (SJ·nkatabasis) no sentido primeiro do termo.
341 DE, III, p. 634; cf. DE, IV, p. 667. 342 DE, IV, p. 536. 343 Jbiàem, pp. 211-213, 261-269, 338-341, 344-346, etc. 344 Como se podia ler na sobrecapa de L'Histoire de la folie, em edição original (cito de memória).
129
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
sábios progressistas 345». Militou pela legalização do aborto 346, mas recusou, aquando da eleição presidencial de 1981, associar-se aos apelos a favor de Mitterand, uma vez que um intelectual não é um director de consciência. Ciente do dilema entre retórica e filosofia, entre propaganda e cepticismo, ele não argumentava a favor das suas causas: procurava antes suscitar indignações e esperava que um punhado de indignados viesse até si. Não fazia das grandes questões um hábito, mas não deixava de militar a favor de reformas. Quando seguimos a sua biografia, mês a mês 347, vemo-lo bater-se incessantemente contra «pequenas» injustiças de toda a espécie, qual reparador de agravos- esta expressão define menos mal o que foi a sua actividade política. Ele tomara posição contra a pena de morte. Em contrapartida, não tinha qualquer programa de conjunto. Em concordância com a sua filo sofia céptica, não tinha convicções que não fossem puramente pessoais e muitas vezes negativas, tal como esta: por princípio, não se pode proibir revoltar-se, não se pode recusar o futuro que nasce em nome da pretensa racionalidade do presente. Será permitido retorquir ao nosso autor que, de princípios tão gerais nenhuma conclusão positiva pode ser retirada. De maneira que não poderá haver mais razões para se revoltar do que para não o fazer; o futuro, seja qual for, não será mais racional do que o presente ou do que o passado, então como preferir isto àquilo? Por idios sincrasia, por gosto pessoal) que, tal como as cores, não se discute. Ele não ignorava que as suas opiniões políticas nem sempre eram as minhas e não me fazia pregações, nem me censurava.
345 J-CL Passeron, ltinbaitt d'un socicloaue. o p.
cit.
Podem ler-se neste livro as
talentosas páginas que fazem reviver em Foucault o militante e antítese de um «intelectual genérico» como Pierre Bourdieu.
346 DE, II, p. 446. 347 Como pode ser feito no tomo I de DE, pp. 13-64.
Boi
o
«intelectual espedfico»,
Foucault
e
a política
O primeiro princípio da idiossincrasia de Foucault - não se deve
fazer cara feia ao futuro emergente -levou-o por fim a interpretar a sua
História da Sexualidade como uma contribuição para uma nova aurora 348•
Este enorme trabalho fora posto em prática a partir de uma ideia contra a corrente, que eram as suas ideias preferidas (o sexo é mais objecto de uma obsessão cultural do que alvo dessa repressão que incessantemente se acusa) 349; depois, o interesse que ele descobrira pelos filósofos da
Antiguidade empolgara-o, fizera a análise do «cuidado de si» socrático 350 e da auto-constituição do sujeito ou estetização; e, por fim, dissera para consigo que, afinal de contas, as pessoas poderiam encontrar nessa espessa obra uma contribuição para o futuro que nascia, acima de um discurso moralizador e agonizante. Também aqui é possível que o sábio tenha sentido tacitamente alguma satisfação; afinal, o que fizera ali era a tarefa normal de um intelectual 351•
É preciso e basta citar:
Da Antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era essencialmente procura de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um sistema de regras. Se eu me interessei pela Anti guidade foi porque, por uma série de razões, a ideia de uma moral como obediência a um código de regras está, agora, a desaparecer, já desapareceu. E a essa ausência de moral responde, deve responder, uma procura que é
a
de uma estética da existência.
352
348 Wilhelm Schmid, A�f der Suche nach einer neuen Lebenskunst: die Frase nach dem
r mp
Gruncl und die Neubegründung der Ethik bei Foucault, Suh ka
349
Ver, por exemplo,
,
1991.
DE, III, p. 570
350 Lembremos, numa palavra,
que longe de ser
um
narcisi smo ou um dandismo,
o cuidado de si consiste em ocupar-se de si próprio para se fundar em liberdade pela mestria de si mesmo (DE, IV, p. 729). 351 DE, III, p. 594: o papel do intelectual não consiste em «dizer verdades proféticas para
o
futuro», mas sim em «dar a compreender às pessoas aquilo que se está a passar,
nos domínios em
que o intelectual pode ser competente».
352 DE , IV, p. 731-732; ver (DE, IV1 pp. 409-410) um sobrevoo histórico do cui dado de si através do
paganismo e do cri
stian
i smo ,
no
qual Foucault faz ainda alusão
ao
131
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Note-se a impre�isão do termo utilizado- deve: será wna probabilidade
objectiva? Tendo o livre sujeito horror do vazio, esse vazio provavelmente
não deixará de se preencher. Mas não será também o papel, o dever de
um filósofo (tal como ele o concebia) contribuir para isso? Foucault não vem propor uma ordem moral da sua invenção, vem. contribuir para um
processo espontâneo.
Em 1979, o segundo princípio da sua idiossincrasia levou-o a tomar
partido pelo levantamento islâmico contra o Xá do Irão. Lembramo-nos que, antes da vitória dos partidários de Khomeyni, esse aiatola tinha
encontrado refúgio em França, a partir de onde dirigia a revolta. Esta
suscitara em França ou, pelo menos,
em
Vincennes, entusiasmo entre os
espírito avançados, terceiro-mundistas e inimigos do imperialismo. Posso
testemunhar, juntamente com outros, que Foucault não partilhava esse
fervor ingénuo. Mas tinha pessoalmente uma concepção prévia favorável a todas as revoltas, e viu nesta um levantamento de libertação popular.
Ele quis informar-se sobre este ponto (seguia a actualidade para proveito
do jornal
Libération) e, para mais, a forte personalidade de Khomeyni
fascinava-o.
Havia nele uma abertura de espírito para a novidade, o desconhe
cido 353, e uma ausência céptica de dogmatismo. O futuro é imprevisí
vel, inconcebível, e Foucault era sensível à solenidade do devir; não quis
reduzir esse futuro aos ideais ocidentais, �ão fazer do véu das mulheres uma ultima ratio
..•
Foi, por isso, encontrar-se com Khomeyni em Neauphle
-le-Château, onde o governo francês lhe oferecera hospitalidade e, no
regresso, disse-me isto: «C ompreendes que se vá até lá: eis um homem
que,
com
uma Única palavra pronunciada ao longe, é capaz de lançar cen
tenas de milhar de manifestantes contra os tanques nas ruas de Teerão».
Acrescentou: «Falou-me do seu programa de governo; se ele tomasse o
poder seria uma asneirada de chorar» (ao dizer isto, Foucault ergueu os
olhos ao céu, com um ar de lamento). Eis o que vi
e
ouvi.
Não há dúvida nenhuma de que Foucault considerou a revolução
iraniana como a luta de libertação de um povo. Do mesmo modo, o
herói do Renascimento segundo Burkhardt.
353 Sobre esta abertura à novidade, ''er um artigo que Foucault publicou, antes da \itória de Khomcyni, no Nom•el Observat:eur, cm Outubro de 1978: a ideia de um governo islâmico «impressionou-me no seu esforço para politi7.ar,
em resposta
a problemas actuais,
estruturas social e religiosamente indissociáveis». Artigo reproduzido em DE, III, p. 688,
e em Histoire de l'islam et des musulmans en France du Moyen Age à rws Íours (M. Arkoun, ed.),
Albin Michel, 2006, p. 972.
1321
X.
FOUCAULT
E
A POLÍTICA
regime socialista que observara na Polónia era aos seus olhos uma tirania estrangeira, imposta pelos tanques soviéticos; «O comunismo não aguen taria dois dias sem. a ocupação r ussa>>, dizia ele. Mas há mais: é certo que Foucault não partilhava o ocidentalocentrismo e a fé na democracia e nos direitos do homem, sem esquecer a igualdade dos sexos, que são outros tantos dogmas para muitos de nós. Talvez tivesse a sensação de que não passavam de co�quistas frágeis que, como tudo neste mundo, não durariam eternamente. E, sobretudo, ele suspendia o seu julgamento: por antidogmatismo, não era nem pró nem contra. Sobrevoava de alto a história universal. Ao mesmo tempo, mostrava-se acolhedor por princípio às novida des que a história não deixaria de fazer aparecer. Era a primeira vez que eclodia no mundo
um
movimento islamista e os efeitos desse fenómeno
eram ainda desconhecidos. Foucault declarou estar «impressionado por essa tentativa de abrir na política uma dimensão religiosa». Sendo a reli gião a menor das suas preocupações, interrogava-se sobre esses iranianos que «procuramt à custa das suas vidas, essa coisa cuja possibilidade nós, desde o Renascimento, esquecemos: uma espiritualidade política». E acrescentou: «Já estou a ouvir alguns franceses a rir, mas sei que estão errados.>> Tentemos ver melhor. Em princípio, a sua recusa de qualquer dogma, do ponto de vista de Sírius, não podia negar essa nova inven ção da história, mas também não lhe dava razão. Poderia pelo menos optar por uma posição de neutralidade benevolente e, sem se tornar positivamente partidário dessa espiritualidade política, ser compreensivo em relação a ela e inclinar-se perante a solenidade do devir. Mas, de facto, no fundo de si próprio, ficara perturbado com o heroísmo das multidões iranianas enfrentando polícia e exército. Foi por isso, creio, que ele ultrapassou a neutralidade e tomou partido pelos revoltados, sem esperar para ver
se
o islamismo não geraria razões de indignação,
merecedoras de suscitar revoltas pontuais. Sem dúvida, ele terá também sido i ntelectualmente tentado a manifestar fortemente, sobre um caso extremo, o seu recuo de princípio perante as «Verdades» ocidentais. Nobody
is
pe!foct.
A tomada de posição de Foucault a favor de Khomeyni pôs em fúria alguns imigrados iranianos opositores ao islamismo e ao obscurantismo, que vieram partir-lhe a cara à porta do seu apartamento em Paris. Era preciso mais do que isto para impressionar Michel Foucault, que se tornou, porém, mais sensível às críticas que iam surgindo na imprensa francesa sobre a sua posição. Não tenho vontade de me alongar sobre o resto.
133
I
I
FOUCAULT, o PENSAMENTO, A PESSOA
Pronto, admitamos: a solenidade do devir... Dir-me-ão: «<sso prova bem que o cepticismo é falso, porque é inútil e não sabe ensinar ao homem o que ele deve fazerh> Mas onde é que já se viu uma filosofia ou uma religião, seja ela qual for, saber ensinar-nos tal coisa, sem ser através de uma ilusão na qual queremos acreditar porque nos convém? Onde é que já se viu, a menos que se seja um predicador, o mundo ser tão bem feito que a verdade nele se meça pela sua utilidade? O mundo também não está mal feito, nem sequer está feito, pelo menos para nós. Temos de decidir tudo sozinhos, escolher tudo, nenhuma verdade nos cairá do céu nem da transcendência. foucault escolheu; talvez mais tarde tivesse feito outra opção. Ei-lo então a conceber a possibilidade de um Irão que «introduziria na política uma dimensão religiosa». Ora, independentemente do caso, tudo isto coloca um problema de fundo, ou antes, traz ao dia a atitude dúplice que é, logicamente, a de qualquer cepticismo e de qualquer homem que não se engane a si próprio: seria suicida se não fosse dúplice. Porque, qual poderia
ser
a posição de um céptico perante a eventualidade de
um futuro onde mentes como a dele já não tivessem lugar? O que seria do genealogista que tanto admira esse futuro solene, se esse devir lhe
impusesse uma sociedade na qual a religião, a ideologia ou, simplesmente,
a incultura tornassen1 impossível ser-se genealogista? A genealogia, o cepticismo, a liberdade de pensamento, aqui estão uns quantos luxos de ocidentais e ocidentalizados. Calma, não vou produzir ordem moral, impedir o pensador cép tico de duvidar dessa cultura que lhe permite ser céptico, intimá-lo a deixar de duvidar a fim de conservar a liberdade para o fazer. Queria simplesmente lembrar que determinadas atitudes podem acarretar um desdobramento de personalidade. lmpavidumferíent ruinae
Para assistir,
.. .
impávido, à ruína de um modo de pensamento que se partilha, e para ver
nessa ruína a confirmação do que se pensa, é preciso desdobrar-se,
colocar-se, em espírito, fora do seu tempo e do seu corpo. A maioria das filosofias partem do nosso mundo tal como ele se
apresenta e reencontram-no, intacto e bem fundado, no seu happy end. Mas há outras, como a de Nietzsche, onde não há final feliz
354•
Pior
ainda, a verdade e a vida são inimigas, a verdade tendo como verda deira, à custa de um desdobramento, a possibilidade da sua morte.
É sofistico, como já vimos, pretender que a doutrina céptica se possa 354 Resta a Nietzsche querer viver a vida, querê-la tal
eterno retorno ao idêntic"'.
cotno
é,
t�
até querer o seu
X.
FOUCAULT E A POLÍTICA
refutar a si mesma; em contrapartida, o doutrinário vê-se re duzi do a
retocar a sua dou t r i n a , porque é preciso viver. Ou, p e lo menos, dei xará de utilizar o pensamento para dar às suas escolhas politicas um valor de verdade ...
Despersonalizar a vida interior Mas, ao mesmo tempo, nessa doutrina que professa às suas custas, o céptico pode proc urar uma despersonalização, uma morte viva. Essa despersonalização - esse desdobramento - é um exercício de alto voo
e spiritual que vale bem uma religião; é uma tentativa ( platón ica , é certo, como todas as religiões) de se tornar puro espírito.
É uma atitude tomada
face à relação que temos com o mundo, relação que He ideg ge r designa por Stimmuna e que não é apenas activa e cognitiva, mas também afectiva, existencial. A terra da nossa mor te opri me -n os e ignora-nos, vamos ter a surpresa de poder ouvir o inflexível Foucault acusa-la disso mesmo,
um poeta fê-lo também: Ela diz-me: <<Eu sou o impassível teatro
Que o pé dos actores não pode mover 355» ... Ao desdobrar-me para dizer a verdade, escreve Foucault, <<estou a
abolir toda a interioridade nesse fora que é tão indi ferente à minha vida , e
tão neutro, qu<� não dis ti ngue entre a minha vida e a minha morte 356». Despersonalização que quem quer dizer a ve rdade a todo o custo
não deixa de procurar, para replicar à i ndif erença cósmica através de uma igual indiferen ça. O justo o por á o desdém à ausência
E não res p on der á senão com um frio silêncio Ao silêncio eterno da Divindade. 357
355 Alfred de Vigny, «:La maison du berger», Les Destinées. 356 DE, I, p. 695. J57 Alfred de Vigny, «Le Mont des oliviers», Les Destinées.
135
POUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Dar unicamente a palavra às coisas, para fazer de si mesmo um fantasma mudo. Como se vê, o nosso herói não era simples, não possuía o monolitismo dos intelectuais politizados do pós-guerra, simplificados, em bons militares, para o bom combate. Esta é a despersonalização que possuem, sem sempre terem dela consciência, o etnólogo que postula a igual dignidade de todas as cultu ras 158 ou o historiador pronto
a
pleitear, se preciso fort contra as causas
que lhe são mais caras. Como chegara a Michel Foucault essa vontade de dizer verdade? Tudo o que eu sei da sua evolução intelectual é isto: por volta dos seus vinte anos, nos anos 1945, disse-me ele expressamente, começara, como tantos outros, por estimar que o marxismo era, srosso
modo, uma evidência de bom senso, e inscrevera-se no Partido. Pertenceu, pois, a essa geração de jovens franceses que se atribuíram um pensamento pessoal, elevando-se acima das suas teorias marxistas de juventude, o que lhes dera algum avanço: elevavam-se a partir de um trampolim teórico em
vez
de começarem
ao
nível do chão.
No início dos anos 1950, Foucault tinha-se tacitamente afastado do marxismo; revelava-se acerbo contra o Partido, no nosso quarteto de estudantes comunistas (Jean-Claude Passeron, Gérard Genette, Jean Molino e o autor destas linhas)
359
que o cercava na rua d'Ulm,
por volta de 1954. No meio bem comportado da rua d'Ulm, a fre quentação de Foucault comportava para nós uma lição: além da inte ligência das suas conversas, tínhamos a sorte de
ver
de perto alguém
que «não era como toda a gente». Filosoficamente, o que começara a
intrigá-lo era a omnipresença de um fundamento transcen �ente
em todas as doutri nas; lembro-me desta conclusão de aula, na Ecole Normale: «Ü argumento ontológico da existência de Deus serve, na realidade, de fundamento teológico para a e ssência do mundo>>. Por volta de 1953, a grande viragem foi a leitura de Nietzsche, tido como
358 Há umas quatro décadas, uma discussão opôs, neste ponto, Roger Caillois a Claude Lévi·Strauss; um etnólogo, dizia o primeiro, deve privilegiar a �'llltura que lhe permite ser etnólogo. Comum nos meios especiali7..ados, o pensamento «ocidental», o seu racionalismo,
a
a
questão reside em saber se
ma curiosidade pelo pensamento dos
outros, não passa de um epísbdio histórico, um acidente, ou se é o destino, ou o rumo desejável de toda a humanidade. O assunto atormentava Husserl em vésperas da Segunda Guerra Mundial,
em
La Crise de l'humanité européenne
et
la phílosophie.
359 Foucault nasceu em 1916, nós nascêramos em 1930, mas éramos ainda estudan tes, enquanto Foucault, na rua de Ulm, era um dos nossos docentes; como Althusser, era um «caimão» («cai·man», director de estudos da Éoole Normale Supérieure, n. do t.].
136
X. FOUCAULT E A POLÍTICA
contestatário da noção de verdade adequada: ei-la, a derradeira e a maior das transcendências. Sociologicamente falando, Foucault começou por ser um professor que, devido ao sucesso dos seus livros, depressa se tornou célebre enquanto, no plano universitário, era simplesmente inclassificável
360•
Ele marcava
presença nos três focos de inteligência em França: a Universidade e os meios do jornalismo e da edição. Tendo-se tornado um intelectual conhe
cido, mantinha apenas relações
no
meio do jornalismo e da edição, a par
com alguns actores políticos 361• Paralelamente, continuava a exercer a sua profissão de docente
com
muita consciência; jovem professor numa
universidade de província, nunca faltara a nenhuma das suas aulas e as suas lições no College de France eram o grande assunto da sua semana. Consciência profissional e esforço sacrificial sobre si próprio, de que tinha orgulho, por amoralismo: reconhecia nele uma potência sobre si mesmo e um movimento ascendente da sua energia. Terá sido um escritor por vocação? Ele contou-me que na ado lescência não projectara tornar-se um fazedor de livros e que tinha sonhado com outro género de vida. Não podia prever que um dia a escrita se tornaria a sua razão de viver. Todavia, nunca deixou de se interessar pela actualidade e go s t aria de ter tido uma verdadeira
360 E, reciprocamente, «considerar alguém universitâri
R.evue Blancbe c Péguy contra Brunetiêrc e Lanson, culmina por volta de 1900 na guerra em
torno de Baudelaire; conhecemos igualmente uma batalha em torno de Barthes. Foucault foi legitimado universitariamcnte graças à estima que lhe manifestaram
lhe concederam o severo Cangui1hem,
na
e
ao apoio que
Universidade, e o áspero Vuil1emin, n o Collége
de Francc. Estes não apreciavam minimamente a negação do universal, do racional e do normal por Foucault, mas respeitavam a su a inteligência. Todavia, Canguilhem dizia dele ser mais um poeta do que um historiador ou um filósofo. Uma bela ilustração do caso é feita no relato de W.Clarck sobre a defesa de tese de Foucault na Sorbonne, em 1961,
Lieux de e
savoir.
Espaces et
cm
c.cmmunautés, I (Chr. Jacob éd.), Albin Michel, 2007, pp. 91-92
95-97. Alem disso. estava em jogo uma afinidade de temperamento: Canguilhem e
Vuillemin haviam sido ilustres
Foucault , no
seu
na
Resistência. Segundo o testemunho de Daniel Defert,
leito de morte, terá dito: «Peçam a Cangui1hem que venha, ele sabe
morrer.» A coragem é uma pátria comum.
361 Tanto quanto sei, de não estava ligado a nenhum grupo gay militante. Não se perdeu a oportunidade de dizer que de elegera Roland Barthes
no
CoH�ge de France
por solidariedade gay; não passa de um boato: as razões dele , que eu conheço
e
não par
tilhava, não eram estas.
137
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
influência intelectual (que não tinha) 362, ser uma eminência parda da edição, mas sem ostentar o título prosaico de director de colecção e até mesmo ter alguma inf luência política 363• Não seria de censurar;
talvez tivesse sido um melhor conselheiro do que outros. Foucault era u m guerreiro, queria conquistar um pedaço do mundo físico ou moral, grande ou pequeno. Ambição secular ou não, acontece que aquilo que se tornara a sua paixão, a sua vida interior, encontra-se consignado nos seus Hvrost enquanto essa vida se transformava naquilo que dela faziam os livros; construía-se a si próprio enquanto construía os seus livros. O que já tinha escrito não contava para ele, porque tinha de continuar uma tarefa sem fim. Não me tragam constantemente coisas que eu disse outroraf Quando as pronuncio, já estão esquecidas. Tudo o que eu disse no passado não tem qualquer impor tância. Escrevem-se coisas que já se usaram muito dentro da cabeça; o pensamento extenua, escreve-se, eis tudo. O que eu escrevi não me interessa. Interessa-me o que poderei vir
a escrever, o que poderei vir a fazer.
364
Um dia, longe de França, em Toronto, ele confessava o seguinte: «Escrevo para me transformar e não pensar a mesma coisa que antes:».
362 Ele não teve, em vida, qualquer influência profunda, mas sim um grande sucesso, que se deveu à originalidade do seu estilo, que fizera de uma obra tão difícil como Les Afots
et
les Choses um best-seller. Uma amiga minha, dirigindo-se,
no
início de
um ano escolar, à turma de filosofia de um liceu, leu aos seus jovens alunos uma página de Sartre, uma de Lévi-Strauss e uma de Foucault; só a página de Foucault, mais pela escrita do que pelas obscuras palavras, conseguiu mergulhá-los num silêncio profundo. O sucesso das suas lições no College de France (a sala t�stava tão cheia que havia ouvintes
sentados no chão, nas alas,
ou
acompanhavam a aula num ecrã insta1ado numa outra sala)
devia-se mais à melodia do seu estilo do que ao conteúdo das palavras.
363 Tinha ligações muito estreitas com o jornal diário Libhation. Estava em contacto com o sindkato CFDT e com o respectivo secretário, Edmond Maire. Era íntimo de Simone Signoret e Yves Montand, tornados opositores da política interna soviética. Em 1981, não deixaria de estar contra a chegada dos socialistas ao poder; suponho, sem ter a certeza, que preferia Rocard a Mitterrand. Aquando da sua morte, Foucault preparava uma crítica do socialismo francês (havia um monte de livros sobre o assunto na cabeceira da sua cama); o partido socialista, segundo ele, nunca tivera uma política propriamente dita.
364 DE, II, p. 304; 1, p. 574.
138
X. FOUCAULT
É sabido,
EA
POLÍTICA
o criador é criado pela sua obra e pensa tudo o que ela pensa,
mas é dizer pouco ainda: a salvação reside na morte do homem pela escrita- que o despersonaliza- e numa perpétua fuga em frente. Sei que o saber tem o poder de nos transformar, que a verdade não
é apenas uma maneira de decifrar o mundo
[ ], ...
mas que,
se
eu
conhecer a verdade, então estarei transformado. E talvez salvo. Ou então morrerei, mas de qualquer modo creio que é a mesma coisa para mim. 365
O trabalhador despersonaliza-se na sua obra anónima; escreve «para já não ter rosto 366», «para se desprender de si mesmo» numa <<modifica ção lenta e árdua por uma preocupação constante pela verdade>>. Sim, é isto que se pode ler: pela verdade; «esse trabalho de modificação do seu próprio pensamento e do pensamento dos outros parece-me ser a razão para a existência de intelectuais 167>>
-
para abolir a sua individualidade,
a sua ecceidade 368, e atingir um estado de indiferença, de ilimitação e independência a respeito de todas as coisas, o que é uma morte viva. A isto Flaubert, esse schopenhaueriano sem saber, chamava objectividade 369•
365 DE, IV, p. 535. 366 L'Archéoloaie du Savoir, p. 28. 367 DE, IV, p. 675. 368 Termo que designa o princípio de individuação de uma. entidade; a ecceidade é aquilo que faz de um indivíduo o que ele é.
369
(N. do T.)
Foi isso qt.le ele retratou cm L'Éducatüm sentimentale, cujo realismo muito metafi
sico é o da vida que não deixa de se desfazer; é o romance, dizia Albert Thibaudet, de
um
mundo tal como seria se a Vontade não existisse. Daí «o desenrolar contínuo, monótono, morno, indefinido das suas páginas», como diz tão bem Proust, onde «as coisas têm tanta vida quanto os homens» (por isso a «mania da descrição perpétua» que Barbcy d'Aurevílly censuran a Flaubcrt).
E,
como diz F<�déric Moreau, não menos abúlico, o romance e o
seu herbi estão mutuamente «espelhados»; aqui está a chave desta obra-prima que uns consideram dispneica e pela qual outros são fanáticos. O romance é um manifesto desse
cont.empus mundi, esse desdém pelas coisas do mundo, praticado por mais do que uma religião. Abandonar o mundo é despersonali7.ar-se: a religião de Flaubert não é a da arte, mas sim da «objectividade», não passando a arte de um meio (para Foucault, o meio era a erudição; para Renê Char, era a poesia). Dai também o cuidado maníaco que Flaubert tinha
com
uma inútil «documentação» (a hora exacta do comboio para Auxerre!). Mas
não quero fechar este parêntesis sem citar o belo livro de Jean Boric, Frédéric
et
les amis
des hommes: présentation de L'Éducation sentimentale, Grasset, 1995.
139
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Quando a pessoa se torna discurso 370, deixa de existir; para citar
René Char 371, que Foucault sabia de cor, o homem é «lixado até à invisibilidade». Foucault teve uma vida de escritor, mas era um desses apaixonados que
se
identificava menos com a sua obra do que com o acto
de escrever ou de pintar (com a idade, surgem alguns grafómanos, como Sartre e Picasso, acrescentemos Proust). Foi por isso[
. . .
] que trabalhei como um doente toda a minha vida.
Não me preocupo minimamente com o estatuto universitário daquilo que faço, porque o meu problema é a minha própria transformação. [
. . .
] Esta transformação de si pelo seu próprio saber é, creio, algo
muito próximo da experiência estética. Por que motivo trabalharia um pintor se não fosse transformado pela sua pintura? :m O filósofo ou historiador Foucault identifica aqui o seu caso com o de um artista, um pintor. A sua auto-observação mostrara-lhe que tocava, com o seu trabalho, no ponto em que, apesar de desiguais em dignidade, as actividades intelect,uais mais prosaicas e humildes não se distinguem da criação literária. E uma espécie de religião, digo-vos eu. Foucault convertera-se a ela quando era estudante na rua d'Ulm, e a ocasião para a sua conversão foi a leitura de Maurice Blanchot, o que não era nada previsível; <
370 Ver a primeira página de L'Ordre Ju discours. 371 No poema «Allégeance» e noutros lugares: o poeta (ele próprio diferente do ser humano qtle momentaneamente investe) desaparece no seu poema «como um destroço feliz» - verso este que, precisamente, Foucault cita em L'Ordre du discours, p. 9, sem nomear o autor
(é a sua maneira de lhe
prestar homenagem, presumindo-o conhecido de
todos). Surgem, numerosas, outras citações de Char, não nomeado: «Outrora a erva
era
boa para o louco e hostil para o carrasco», em L'Hiswire de la folie, Gallimard, col. Tel., p. 320; outras citações em DE, I, pp. 164, 167 (no cimo
e
no fundo da página) e 197; em
(as claridades da erva); em L'Histoire de lajolie, p. 95 (o termo 320, 549, cf. p. 546 (Char escreveu ao contrário: «a sua solitária vero�
Les Mots et las Chose, p. 35 raro aligeirar), pp.
similhança»). E o epígrafe em DE, 1, p. 65, bem como de Histoirc de la scxualité. Vimos acima que
a palavra
um termo técnico, foi retirada de Partagcformei.
372 DE, IV, p. 536. Cf IV, p. 675
c
IV, p. 42.
a
citação de Char na contracapa
«intransitivo», da qual Foucau1t faz
X.
FOUCAULT E A POLÍTICA
I
Toda a actividade do espírito que tenha o seu fim em si mesma (nem que viesse a ter depois aplicações, nem que viesse a agir sobre a opinião, por exemplo) faz aceder ao mesmo tempo a uma impersonalidade onde desaparece o eu do investigador ou do escritor, e ao nascimento de um eu sem qualidades, sem atributos, sem rosto, que não é imortal nem eterno (nesses momentos não se pensa em si), mas estranho ao tempo, situado fora do tempo. Estamos constantemente absorvidos pelo nosso trabalho, esquecemo-nos da morte real: não somos eternos nem com certeza inesquecíveis e imortais, mas somos despersonalizados, reificados num texto anónimo.
É
como se o artista ou o investigador já estivessem
mortos, e é nesse sentido que Foucault escreve: <<serei transformado, salvo, ou talvez morto». Sim, morto, porque, para este nietzschiano, não havia salvação possível, só havia escolha entre o nada e o caos, onde se está vivo. Parar de mudar, querer escapar a uma realidade exterior e
interior que é definitivamente caótica, é viver como um morto.
141
I
l I 1
Retrato do samurai
Este pretenso esquerdista, que não era nem freudiano nem marxista, nem socialista nem progressista, nem terceiro-mundista, nem heideg geriano, que não lia Bourdieu nem o jornal
Le Fíearo,
que não era nem
«nietzschiano de esquerda» (como alguns), nem, aliás, de direita, foi o inactual, o intempestivo da sua época, para retomar com propriedade
um termo nietzschiano. Por essa via, Foucault era não-conformista, o
que parecia suficiente para poder classificá-lo como sendo de esquerda. E, porém, quando era professor em Vincennes, após Maio de 1968, ele considerava - no seu foro Íntimo - os maoístas e os grupos esquerdistas como fenómenos simpáticos, até Úteis, porque agitados, mas também os via como fenómenos subalternos. Quanto a eles, consideravam-no impre
visível. Mas ele era astuto. Preferindo pender para a esquerda, abstinha-se de dissipar o equívoco, a nuance, que separava a sua intempestividade do esquerdismo dos seus admiradores. Porque era unicamente entre os militantes de esquerda e com o Libération que podia encontrar camaradas para as suas lutas pontuais. Apresso-me a acrescentar que, em contrapartida, Foucault era muito íntegro e não era homem para fazer concessões acerca de uma opinião, fosse ela qual fosse, no interesse da sua carreira literária. Cada escritor gere os interesse da sua carreira de modo mais ou menos visível, mais ou menos hábil, mais ou menos ríspido. Quanto a ele, não esquecia os seus e tratava-os com diplomacia, mas as suas verdades não eram negociáveis. Vivia sobretudo para os seus livros e as suas ideias. Uma confidência que me fazia periodicamente era a sua tristeza por não poder publicar com
rapidez suficiente os seus cursos. Aqueles que, depois da sua morte, edi taram de modo exemplar os seus Cours e os seus Díts et
Écrits fizeram-lhe
a vontade, a título póstumo.
À direita,
sempre se farejou em Foucault o inimigo público, o que
não era nenhum engano, porque, longe de denunciar o mundo moderno com o seu pão,
o
seu circo e o seu virtual, ele trazia à luz, sem qual
quer sátira, a fábula do mundo em toda a sua extensão. Como podia eu não o aprovar, uma vez que o pacato ofício de historiador consiste em
fazê-lo? Essa lucidez intemporal distingue os intempestivos como ele dos anti-modernos que não o apreciavam (Jean Baudrillard era um anti -moderno, parece-me).
143
I
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Para grande satisfação dos historiadores, Foucault estava disposto a escavar até às diferenças mais radicais, em qualquer lugar e em qual quer época. Ora, no mesmo lance, fazia constatar, a cada passo, que as pretensas raízes não estavam enraizadas em coisa nenhuma. Toda a gente, ou quase, consegue mais ou menos pressenti-lo, mas regra geral esquece-o para poder viver em paz, ou então só pensa nisso quando se senta à mesa de trabalho. Foucault, ele, nunca o esquecia e, enquanto via o mundo do ponto dt� vista de Sírius, via-o também como um campo de batalha potencial, agora que este mn u do, tanto antigo quanto moderno,
perdera a seus olhos qualquer legitimidade. Ele trabalhava muito e não vivia num estado permanente de indignação ou de febre militante, mas mantinha-se informado
e
dava, pontualmente, uma ajuda contra um
abuso intolerável. Entre as inovações do início do seu septenato, Giscard d'Estaing imaginara convidar um punhado de personalidades de estaque, entre eles a Senhora de Romilly, para um almoço no Eliseu; Foucault respondeu que .iria, na condição de poder interrogar o Presidente sobre o processo conhecido por pulôver encarnado - em que um culpado, que talvez não o fosse, fora condenado à morte e guilhotinado, tendo Giscard recusado agraciá-lo. Foucault não foi ao Eliseu. Se se procurar identificar um tipo de humanidade, havia em Fou cault essa «renúncia céptica de encontrar um sentido para o mundo» de que fala Max Weber, que aí via, com algum exagero, uma atitude «comum a todas as camadas intelectuais de todos os tempos 373».
É
impossível saber o que Homero, Eurípides, Shakespeare, Tchekhov ou mesmo Max Weber pensavam dos seus próprios heróis 374• Encontrava -se, nas relações de Foucault - pelo menos quem fizesse parte do seu grupo de amigos
(e
era melhor não ser seu inimigo, porque era
temível contra aqueles que queriam contra ele pensar mais alto ou que consideravam que o rigor do seu pensamento deveria valer-lhes, mais do que a ele> a celebridade) -, encontrava-se , dizia eu, essa atitude atenta e que não julgava: expor nos seus livros as doutrinas mais bizarras e não julgar; acolher, com a simpatia admirativa de um naturalista pela inventividade da Natureza, toda a diversidade humana
373 M. Weber, Sociologie Jes reliaions, ed. Grossein-Passeron) Gallimard, ooJ. Tel, 2006, p. 228.
374 Estou a pensar nos escritos teóricos de Weber e não nos seus textos políticos sobre a actualidade,
144
XI. RETRATO DO SAMURAl
com as suas excentricidades, os seus caprichos, os seus ridículos, os seus excessos, os seus acessos de megalomania, não chorar disso, não troçar. Surpreendo, um dia, uma dessas intermináveis conversas telefó�i
�
cas com o Libération. Ele acabava de conhecer uma mulher poderosa e detestada pela esquerda, Marie-France Garaud, conselheira do Eliseu. «N�oh>, protestava ele, para grande surpresa do seu interlocutor, «ela tem menos personalidade política do que literária!». Depois de ter des ligado, voltando-se para mim, certamente a sonhar com a sua infância: «>. Para mim isto é humanismo, ou então não percebo nada disso. Tal era a regra tácita da vida de salão que ele instituíra no seu apar tamento impecavelmente cuidado na rua de Vaugirard. Não se bisbilhotava nesses serões pontuados pelas suas enormes risadas humo rísticas e onde o malogrado Hervé Guibert, que era já um escritor reconhecido e não se sabia ainda votado a uma morte próxima, se mostrava encantador, sem qualquer ponta de acidez. Foucault, que não tinha nroupies nem fãs, era amigável, leal e generoso para com aqueles que não o invejavam e se comportavam com ele como amigos e iguais. Acrescentemos que o aço do seu ego não encerrava essas pequenas bolhas de pequenas vaidades que por vezes se encontram nos maiores, que fazem ranger os dentes daqueles que são vaidosos e deixam indife rentes aqueles que o não são. Neste salão igualitário, civilizados e não convencional, gozava-se em paz a liberdade de poder ser-se quem se é. Eu tinha acesso permanente, quaisquer que fossem os convidados do serão, porque Foucault entregara-me o título de homossexual de honra, não sem uma ligeira censura: <
na
mesa dele e a hospitalidade num estúdio
que prolongava o seu apartamento; ele e eu ressuscitávamos em ponto pequeno o antigo mundo dos colegas da rua de Ulm e chamávamo-nos pelas nossas alcunhas de então: ele era <de Fouks», a Raposa. Por outro lado, detalhe do qual se verá em breve o alcance, o leitor conhece a carta comovente e insensata que Nietzsche, nos derradeiros anos da sua
loucura, escrevera a Cosima von Bülow, pelo casamento Cosima Wagner;
145
I I
FOUCAULT) o PENSAMENTO, A PESSOA
<
um
yukata) que Foucault trouxera de
Tóquio em dois exemplares. Sou intimado a sentar-me, desenrola-se uma amável conversa e depois a desconhecida, que falava um francês sem sotaque, ausenta-se. Mal acabara de fechar a porta da entrada que Foucault, orgulhoso como um pavão por esta sua transgressão, voltou-se para mim a dizer: «Passámos a noite juntos. Beijei-a
na
disse-me que tinham até pensado em casar-se, mas
boca!» Depois,
na
condição de
Foucault poder adoptar o nome da mulher: «Ter-me-ia chamado Míchel von Bülowh> O código civil alemão obstou e adivinha-se a pena que um nietzschiano poderá ter tido. Outros falaram, melhor do que eu o saberei fazer, do outro lado deste grande senhor elegante, seco como um sílex, cuja coragem foi diversas vezes comprovada (numa praia tunisina, um dia, precipitou-se para dentro de um cabaré em chamas para salvar o proprietário, correndo o risco de ser vitimado pela explosão da botija de gás). Normalmente, os intelectuais não têm medo do perigo, têm medo de andar à bulha, dizia o meu defunto colega Georges Ville, por quem Foucault teve durante algum tempo uma paixão platónica (<
375 Charles Andler, Metzsche, sa vie, sa pensk> ed. Gallimard, 1958, vol. II, p. 612; vol. m, p. 4-86.
I 14-6
\
XI. RETRATO DO SAMURAl
esforçando-se por fazer sair as palavras, confessou-me sentir-se enver
gonhado por ter sido , em adolescente, vítima submissa d o s e u mei o. Nesses tem p os long ínquos , na École Normale, frequentada por tre zentos jovens estudantes masculinos, a homossexua lidade era in isível e v
marcada por um interdito total; apenas Foucault ousou deixar entrever a sua verdade no final da sua f requência, a um punhado de discípulos
e admiradores 376. Era então um homem jovem, instalado, com uma agres si va
amargura, na sua diferença e desprezo pelos outros e por si
mesmo; interiorizara tão bem a exclusão que um dia de 1954 falou-me amarguradamente da «grande comédia histérica» que era a homossexua lidade, pensava ele então. O seu mal-estar explodia por vezes em sessões de chacota vingativa perante o e spectá cul o dos hetero, o s seus opressores tranqui los . O partido comunista não era
o
últ imo a prati car a exclusão,
e um certo escândalo no interior da nossa célula, nesses anos de 1954, revelou-nos quantos sofrimentos esse preconceito provocava também a muitos dos nossos camaradas.
Correndo o ris co de c.air no anedótico > eis uma recordação minúscula
que revela o ponto em que estava o tabu nesse ano. Quando Foucault
soube que o nosso quarteto de normalianos 377 se havia comportado bem
aquando do drama que acabo de re ferir, deci diu , não «sair do armário» mas, propriamente falando, abrir-nos os olhos à força. Cocteau, que era ent ão «companheiro de caminhada>> do partido comunista, acabava de ser eleito membro da Academia Francesa e ironizávamos sobre o artigo elogioso que o jornal L'Humanité publicara por essa ocasião. Passando
sem transição desse jornal para o próprio Cocteau, Foucault proferiu subitamente: <<Ela é completamente louca». Perguntaram-lhe:
"
On de vai
passar as férias de Verão, este ano , mestre?" E ela, coquete, respondeu: "Não sairei de Paris:
vou
ter provas.''» Um arrepio percorreu-me a espi
nha, porque era a primeira vez que ouvia com os meus ouvidos esse ela que era um feminino da língua secreta do inferno e que nos impunha
que não conti nuásse mos a ignorar a existência de malditos entre nós; essa louca não era também o feminino de louco, mas um termo técnico
dessa sociedade secreta da qual Foucault não escondia já ser um i ni ciado ; a sociedade bisbilhoteira de que fala Sodoma
e
Gomorra.
376 Ele acabara por me confessar que apenas um dos seus alunos estava a par do
u
segredo: um estudante científico, cujo nome se tinha tornado proverbial por ca sa da sua
heterossexualidade flamejante e dos seus sucessos femininos. O desejo, ou antes, o prazer, tinha-se tornado uma pátria comum e indivisível para esse Dom Juan e para Foucault. 377 Designação usual para os alunos da École Normale Supéríeure.
(N.
do
T.)
147
I
i
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Vinte anos depois, quando reencontrei Foucault no College de France, já não dava risadinhas nem fazia bisbilhotice, já não tinha nada de histérku, tornara-se «Um bravo pederasta sem problemas», segundo os seus próprios termos. Na sua juventude, contava-me ele, começara por atravessar um período de en gate desregrado, como estava na moda. <>, perguntou-me ele. «Eu, quando comecei, fui para a cama com duzentos homens no primeiro ano». Uma testemunha garante-me que o número é um pouco exagerado, como são aqueles que constam do Antigo Testamento. Depois, uma ligação apaixonada e dolorosa 378 contou muito para ele, até que veio o amor duradouro, as décadas de companheirismo com Daniel Defert a quem estava ligado por um afecto mútuo e profundo. Todavia, contou-me ele também, a sua grande paixão, durante os anos de juventude no liceu, não fora o dealbar da sua homossexualidade, mas sim
o
engolir de todas as drogas que conseguia encontrar em casa
do pai, cirurgião, a fim de comprovar o quanto estas modificavam o pensamento e que existiam, de facto, vários pensamentos possíveis.
«Mamã, o que pensa um peixe?>>, perguntou ele um dia à mãe diante de um aquário onde nadavam peixinhos vermelhos 379• O pensamento de um peixe, as drogas, a droga, a loucura, tudo isto provava que a nossa maneira normal de pensar não era a Única possíveL Assim nascem vocações filosóficas. Quanto à homossexualidade e aos seus sofrimentos,
me
disse Didier
Éribon,
ele experimentara demasiado,
na sua própria vida, que a psiquiatria ou a psicanálise eram também tecnologias de poder. M.ais tarde, viria a descobrir que o discurso moderno do «sexO>> fazia da homossexualidade uma componente capital da identidade do indivíduo; identidade que ele teria de assumir
e
que só
podia confessar, porque a ciência falara e o seu saber tinha poder sobre a «verdadeira>> identidade de cada um. Posto isto, uma boa parte da sua energia intelectual foi empregue a combater a normalidade imposta pelo saber do «sexo» e a resistir aos efeitos de poder que esse discurso de verdade induz. 378 Com o compositor Jean Barraqué; ver D.
Éribon, Michel Foucault, ed. Flam
marion, 1989, pp. 86-90. 379 De acordo com o testemunho da Senhora Foucault, relatado por Didier Éribon na sua biografia de Foucault.
148
1
XL RETRATO DO SAMURAl
Foucault conservara o gosto pela droga, ópio, LSD, mas unicamente em episódios <..'Ontrolados e com vários meses de intervalo, porque o gosto de escrever, de trabalhar e o prazer que ele retirava do ensino eram sufi cientes para impedir qualquer excesso. Uma vez concluídas as aulas que ele dava todos os anos em Berkeley (sentia-se bem nos Estados Unidos e amava esse país), concedia-se uma viagem de LSD (que, uma vez, ia acabando mal) e uma rodada numa sauna gay do gueto homossexual de São Francisco, onde se mostrava menos sádico do que alguns, a priori, supunham. Foi disso que ele morreu. Podia ver-se, pendurada com um pionés na parede do seu gabinete no College de France, um cartaz publi citário a essa sauna, cartaz que, já doente, ele nunca retirou. Foucault não tinha medo da morte, dizia-o aos seus amigos quando a conversa girava em torno do suicídio 180 (em bom samurai, ele usava os dois sabres, dos quais o mais pequeno serve para se infligir a morte), e os factos provaram que ele não se gabava. Nos derradeiros meses de vida, escrevia e reescrevia os seus dois livros sobre o amor na Anti guidade, para liquidar essa dívida para consigo próprio. Fazia-me, por vezes, rever uma das suas traduções e queixava�se de uma tosse tenaz e de uma ligeira febre constante; por cortesia, fazia-me pedir conselhos a minha mulher que é médica e que nada podia mas ... «Üs teus médicos vão certamente pensar que estás com sida», disse-lhe eu a brincar (as provocações mútuas sobre a diferença dos nossos gostos amorosos eram um dos rituais da amizade). «É precisamente isso que eles pensam, respondeu-me ele a sorrir, e compreendi-o bem pelas perguntas que me fizeram». O meu leitor terá dificuldade em acreditar que nesse mês de Fevereiro de 1984 uma febre e uma tosse não levantavam suspeitas a ninguém; a sida era ainda um flagelo tão longínquo e ignorado que se tornava lendário e talvez imaginário 381• «A propósito», perguntei-lhe eu por simples curiosidade, «isso existe realmente, a sida, ou é uma lenda moralizadora?»; «- Ora, ouve :>>, respondeu-me ele, depois de um segundo de reflexão, <<eu estudei a questão, li um monte de coisas sobre o assunto: sim, existe, não é uma lenda. Os médicos americanos 380 Sobre o direito ao suiddio, "'er DE, Jll, p. 777. Cf. Niet7.sche, (Eewres philo wphiques completes, X, p. 87: «A morte. É preciso transformar o facto fisiológico obtuso numa necessidade moral. Viver de modo a ter também no momento conveniente a sua vontade de morte.»
381 Nenhum dos seus familiares desconfiou de nada; só soubemos no dia seguinte
à sua morte. Segundo o testemunho de Daniel Oefert. ele próprio tinha anotado no seu bloco: «Eu sd que tenho sida, mas, com a minha histeria, esqueço-o.»
14-9
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
estudaram isso de perto>>. E deu-me pormenores técnicos, em duas ou três f rases. «Afinal de contas, disse de mim para mim, ele é h.istoriador da medicina». Começam então a surgir nos jornais notícias de origem americana sobre «:o cancro dos homossexuais>>, em que a realidade desse f lagelo era posta em dúvida. Retrospectivamente, o seu sangue frio aquando da minha tola pergunta corta-me a respiração; ele próprio deverá ter previsto que um dia iria ser assim, meditar sobre a resposta que me dera e contar com a
minha memória 382• Doravante estaria instalada em mim uma inquietação recalcada que se traduziu em repetidas e cáusticas piadas sobre
a
saúde
de Foucault e que acabou por explodir numa alucinação 383 no próprio dia da sua morte, segunda feira, 25 de junho de 1984, algumas horas antes do telefonema de um outro amigo, o japonizante Maurice Pinguet que me comunicava a coisa a partir de Tóquio, onde a rádio acabava de dar a notícia. Tais foram, pois, a vida e a morte deste cavaleiro andante, deste reformador sempre na brecha, nem utopista, nem niilista, nem conserva dor, nem revolucionário. Ousarei falar do seu bom senso? A sua filosofia do entendimento estava nos antípodas da Razão na História. Mas falemos também da acuidade do seu olhar que vislumbrava impiedosamente, através das essências, o carácter arbitrário das singularidades. Este personagem elegante, pleno de sangue frio e de clareza, era corajoso, inflexível, incisivo mais do que irónico (a ironia, essa voz de falsete ...) . 382 Retomo aqui, com
a
sua amigável autorização, um relato
que Didier Éribon
publicou no seu Michel Foucault, p. 34.
383
As últimas noticias de Foucau1t eram más, a minha mulher soubera na véspera,
junto dos médicos do hospital de la Sa1pêtrU�re, que já não sabiam o que fazer. Tendo
saído de Paris, e u ia na auto-estrada, quando vi que estava a ser ultrapassado por um carro
maciço e potente que seguia a alta velocidade, era verde, e a traseíra rectangular tinha uma forma inabituaL No
momento em
que passo u por mim , reconheci Foucault no lugar
do condutor que voltou vivamente para mim o seu perfi1 pontiagudo e me sorriu com os seus lábios finos. Carreguei no acelerador para o apanhar, mas retirei imediatamente o
pé,
tendo compreendido o carácter alucinatório desta visão, porque uma alucinação não
se confunde com uma verdadeira percepção, é Index sul; compreende..ra também a alego
ria: Foucault ia para
onde iremos todos
e ultrapassava-me tranquilamente e m matéria de
inteligência. O carro desapareceu ao longe ou deixou de existir, não sei. Isto tudo terá durado meio minuto, no máximo. Quando contei a coi sa
a Passeron, ele fez-me notar compreendera: a traseira singular do carro era a de um carro mortuá rio. -·Alucinação ou sonho acordado? A visão po ss uí a o engenho alegbrico dos sonhos próximos do acordar, quando o pensamento já está meio desper to . a quilo
150
que eu não
I
XI. RETRATO DO SAMURAl
I
Ele não ignorava nada das hostilidades e dos ciúmes que suscitava à sua volta, era um psicólogo lúcido das mediocridades. Expandia, sem se incomodar, a força do seu ego mas, em virtude do mesmo princípio, recusava a falsidade psicológica consigo próprio: pecava corajosamente
(peccafortiter, dizia Lutero) e confessava-o.
Quando
se comportara mal 384, não o escondia nem de si (a moral existia para ele, importava-lhe não ser um pulha aos seus próprios olhos); para estar de bem com a sua consciência, sentia a necessidade de se confessar a um amigo íntimo (que ele sabia ou supunha estar a par de todos os mexericos ou bisbilhotices do nosso meio). Mas, nem por isso era menos sensível, susceptível de paixão amorosa, não desprovido de vida interior, tinha as suas minudências e as suas fobias, como toda a gente, as suas manhas, as suas larguezas também, tendo dado provas de afeições devotas e de amizades sólidas ou apaixonadas. Era um interlocutor rápido, cuja presença se impunha sem pesar. Cortês e afável com cada qual, não pontificava e não era condescendente. Aqueles- e aquelas� que trabalharam para ele dizem que lhes falava de igual para igual, com gentileza. <<Entendo-me bem com a minha secretária: de carro) quando olhamos para as pessoas na rua, ela e eu gostamos dos mesmos homens». Este igualitarismo quotidiano era natural, porque Foucault era sempre ele próprio, modelado pelo interior, para lá das diversas atitudes convenientes que são próprias aos diferentes meios, o que não deixava de embaraçar os interlocutores que se questionavam sobre quem estaria diante deles. Foucault praticamente não ouvia música, mas gostava muito de pintura (o seu gosto por Manet é conhecido), e tinha escolhas vincadas em literatura. Por volta de 1955, segundo ele, existiam dois campos literários em que um, tido como secundário, contava com Brecht, Sartre ou Saint-John Perse; e o outro, o Único bom, incluía os nomes de críticos ou criadores como Beckett, Blanchot, Bataille ou Char. Foucault possuía urna sensibilidade literária aguda. Parece que ainda o vejo a sair de manhã do seu gabinete corno um diabo a saltar da caixa, de olhos esbugalhados, com um livro aberto na mão, a proferir: «Escuta, Veyne, não te parece que em literatura há coisas que estão acima de tudo o resto? Para mim, a tirada de Édipo cego, no final do Édipo Rei...». Não concluíra.
384 Por exemplo, tomara de ponta este ou aquele personagem do seu meio e dissera -lhe maldades ferozes, como ele sabia fa:z.er bem demais.
I 151
FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA
Para voltar ao seus próprios livros, estes não cessam de repetir: «Em nome de que princípio poderia eu ou poderíeis vós pregar um programa de acção? Mas não vos deixeis impressionar pelo presente que é já passado quando o discernis; sabei antes o que quereis e o que recuseis». Penso frequentemente nele
e
então voltam-me ao espírito, como uma espécie
de oração, quatro versos de William Carlos Williams sobre a estrela da manhã (que é a mesma que a estrela da tarde; desde
Frege
,
nenhum
lógico moderno o ignora): Estranha coragem Eu
te
devo, astro antigo.
Brilha só em plena aurora perante a qual de nada abdicas. As aulas de
Foucault
385
no College de France atraíam uma multidão,
como outrora as de Bergson. A sala estava a abarrotar, as pessoas estavam sentadas, de
pé, até
deitadas, ocupavam todos os assentos, os degraus
das escadas. Estavam ali personalidades conhecidas, gente do teatro, um antigo secretário de Estaline. Os gravadores piscavam durante a lição (as cassetes das aulas eram alvo de um tráfico discreto). Pierre Nora e eu próprio estávamos presentes, sentados sossegadinhos,
lado
a lado, a
ref lectir sobre aquilo que estávamos a ouvir. \
A frente da assistência, aos pés da cátedra, todo estendido no chão, um muito belo, magro e longilfneo jovem comediante erguia para o pro fessor a cabeça elegantemente apoiada na mão. Esta figura alegórica que separava, como um traço, o público e
o orador testemunhava da afluência. que ele outorgava a sua aprovação ao
A sua presença ostensiva atestava pensamento do autor e a sua pose desenvolta - que os separavam, a um e ao outro, das convenções do vulgar e cimentava a lenda pela sua comum pertença ao bom partido
Foucault ignorava e
386•
�·
era autorizada
deixava fazer; em contrapartida, recusava, com
uma frase elegante, ser fotografado. Em Paris, a rua du Fouarre está muito próxima do College de France. Ora, Dante (que foi a mónada humana mais completa que alguma vez existiu, que se interessava por tudo e que tudo
tornava
paixão) colocou
385 «lt's a strange couraoel You give me, ancient star: I Shíne al<>ne in tbe sunrise/ Toward wich you lend no part.» 386 Numa das suas aulas, J .-P. Vernant teve Marlene Dietrich sentada de pernas
cru:r.adas
I
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1s2
I
na
primeira fila.
XI. RETRATO DO SAMURAl
I
no seu Paraíso Siger de Brabante (que fora condenado, em 1277, pelo bispo de Paris por ter oposto as verdades da filosofia às revelações da Fé); Dante disse dele 3s1: '
E de Siger a luz eterna
Que, leccionando na rua du Fouarre, Silogizando direito se fez odiar.
387 «Essa ê la luce eterna cli Siaieri.l cbe Leogendo ncl viço de 11 strami,/ silloaizo inividiosi veri», «verdades que o fizeram odiar» (Paracliso, X, 136).
153
Aeradeço a Didier Éribon, que está na oriaem deste breve livro, e também, pelo seus encorajamentos, Daniel Difert, que não é porém
responsável pelos erros que devo ter cometido. A chave filosófi.ca deve-se a Jean-Marie Scha iffor, como o leitor pôde constatar.
Na Albin Michel, Hélene Monsacré soube levar até ao parto este livro que se arrastava há vinte anos; de todos os responsáveis, Joí a mais hábil a orientar, mas igualmente a mais competente.
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Indice
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Tudo é singular na história universal: o «discurso»
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Introdução .
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9
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11 27
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O cepticismo de Foucault ......... -. . . . . . . . . . . . . . . . . .
43
IV.
A Arqueologia
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
S9
Universalísmo, universais, epigéne.se: os primórdi os do cristianismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
65
. . . . .
71
. . . . . . . .
83
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
99
VI.
Todo
o a
Apesar de Heidegger, o homem é um animal inteligente
VIL Ciências físicas e humanas: o programa de Foucault VIII. Uma história sociológica das verdades:
saber, poder� dispositivo
J
!
. . . . .
priori é histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
I v. I
I
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IX.
Foucault corrompe a juventude1 Desespera Billancourt1 . . . . . . 117
X.
Foucault e a política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
X.
Retrato do samurai
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. . . . . . . . . . . . 143