G.K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA
Biblioteca São Miguel Arcanjo http://saomiguel.webng.com/
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G.K. CHESTERTON
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA
Biblioteca São Miguel Arcanjo http://saomiguel.webng.com/
Biblioteca São Miguel
http://saomiguel.webng.com/
CAPITULO
I
OS DOIS POETAS DE SAFFRON PARK Para as bandas do poente de Londres refulgia, como o vermelho esfarrapado de uma nuvem ao entardecer, o subúrbio de Saffron Park. Totalmente edificado com ladrilho brilhante, ostentava uma fantástica linha de telhados e uma extravagante linha de calçadas. Fora obra de um construtor especulativo, mirão em assuntos de arte, que identificava sua arquitetura algumas vezes com o estilo Rainha Elizabeth e outras vezes com o estilo Rainha Ana, sob a visível impressão de que as duas soberanas eram uma só. Com alguma justiça, Saffron Park passava por colônia de artistas, embora nunca houvesse produzido razoavelmente qualquer gênero de arte. Mas, se suas pretensões a núcleo intelectual eram um tanto descabidas, suas pretensões a recanto aprazível eram realmente incontestáveis. O visitante, que pela primeira vez contemplasse aquelas esdrúxulas casas vermelhas, seria levado a cogitar desde logo na singularidade que devia marcar o feitio mental das pessoas que as habitavam. E quando encontrasse tais pessoas não ficaria desapontado. O local era não só aprazível, mas perfeito, desde que não fosse tido em conta de miragem, mas de sonho. Ainda que os habitantes nada tivessem de "artistas", tudo ali era artístico. Aquele rapaz de cabelos compridos e vermelhos e de feições impudentes não havia de ser necessariamente um poeta, mas era irrefutavelmente um poema. Aquele cavalheiro idoso, de barba branca e enxovalhada e de chapéu também branco e enxovalhado, um pândego venerável, não havia de ser obrigatoriamente um filósofo, mas, no mínimo, devia fornecer motivos à filosofia alheia. Aquele cavalheiro científico, calvo como um ôvo, de pescoço pelado como o. de uma ave, não fazia jus aos ares de cientista que alardeava. Não descobrira novidades
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em biologia; mas poderia, por acaso, ter descoberto um espécime biológico mais raro do que sua pessoa? Por isso, e somente por isso, o lugar merecia estudos pertinentes e demorados; tinha de ser examinado menos como uma oficina de artista do que como uma delicada, posto que consumada, obra de arte. O estranho que chegasse a participar de sua atmosfera social teria a sensação de estar participando da representação de uma comédia. Sua atraente irrealidade avultava de modo especial no crepúsculo, quando sobre os fantásticos telhados incidiam as últimas reverberações da luz. Nesses momentos, todo aquele bairro insano parecia projetar-se no espaço como uma nuvem flutuante. Esta impressão era ainda mais fortemente verídica nas muitas noites de festa local; pois, nos recessos dos pequeninos jardins iluminados, enormes lanternas chinesas pendiam de árvores minúsculas como frutos monstruosos e sinistros. E a impressão foi excepcionalmente forte naquela noite, da qual ainda se guardam vagas recordações e na qual o poeta dos cabelos de fogo foi o herói. Não se pense que aquela foi a única noite em que êle figurou como herói. Em muitas outras, os que passavam em frente ao seu jardim podiam ouvir-lhe a voz sonora e didática promulgando leis para os homens e, especialmente, para as mulheres. Nessas ocasiões, a atitude das mulheres constituía mesmo um dos paradoxos do lugar. Pertenciam quase todas à categoria das vagamente chamadas mulheres emancipadas e proclamavam ali seus protestos contra a supremacia masculina. Entretanto, estas mulheres modernas consentiam em regalar um homem com a inusitada cortesia jamais recebida por êle de uma mulher comum: a de escutá-lo enquanto êle está falando. E Mr. Lucian Gregory, o poeta dos cabelos vermelhos, era um homem digno de ser escutado, mesmo que devesse a gente rir-se dele no fim. Entoava a velha cantiga da anarquia da arte e da arte da anarquia com petulante frescor, o que provocava momentâneo prazer. Ajudava-o, até certo ponto, a cativante singularidade de sua aparência, da qual êle procurava tirar o maior efeito. A cabeleira vermelho-escuro, dividida ao meio, era literalmente igual à de uma mulher: suavemente encaracolada, como a de uma virgem de um quadro pré-rafaelista. Entretanto, do interior dessa moldura oval, quase piedosa, avançava uma cara insuspeitadamente grosseira e brutal, e o queixo despontava com aspecto desdenhoso e zombeteiro. Essa mistura ao mesmo tempo deleitava e abalava os
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nervos de uma população neurótica. Era uma blasfêmia ambulante, uma fusão do anjo e do macaco. Aquela noite, se não merece ser lembrada por outro motivo qualquer, permanecerá, contudo, na memória dos habitantes do lugar em razão do extraordinário crepúsculo que a precedeu. Parecia o fim do mundo. O céu se cobrira de plumagem vivida e palpável; dir-se-ia que as penas que adejavam no ar viriam tocar os rostos das pessoas. No alto da abóbada as penas acinzentavam-se, tomando os mais raros matizes de violeta e malva e tons absurdos de rosa ou verde pálido. Mas, para os lados do oeste tudo era indescritível, transparente, apaixonante. As últimas plumas escarlates escondiam o sol como se este fosse uma coisa boa demais para ser vista. Tudo ali se aproximava excessivamente da terra, como se quisesse contar uma assustadora confidencia. O empíreo mesmo parecia um segredo. Exprimia aquela esplêndida pequenez que é a alma do patriotismo local. O próprio céu parecia pequeno. Repito, há várias pessoas que só relembrarão aquela noite em virtude do céu opressivo. Outras há, porém, que podem relembrá-la por ter assinalado a aparição do segundo poeta de Saffron Park. Por muito tempo, o revolucionário dos cabelos vermelhos reinou sem rival. Mas, na noite que se seguiu àquele crepúsculo assustador, sua solidão teve fim inopinadamente. O novo poeta, que disse chamar-se Gabriel Syme, era um sujeito calmo e cortês, de barbicha pontuda, bem cuidada e cabelos amarelados. Mas, em pouco tempo, adivinhava-se que êle era menos manso do que aparentava. Particularizou sua chegada por diferir de Gregory, o poeta estabelecido, em tudo quanto dizia respeito à natureza da poesia. Dizia-se um poeta da lei, um poeta da ordem; ia mais além ainda: dizia-se um poeta da respeitabilidade. Por isso, alastrou-se, entre os moradores de Saffron Park, a suspeita de haver êle despencado daquele céu inverossímil. Com efeito, Mr. Lucian Gregory, o poeta da anarquia, farejou um nexo entre os dois acontecimentos. — Admito, exclamou em seu tom subitamente lírico, admito que só numa noite assim, de nuvens e cores cruéis, poderia ocorrer na terra um tão grandioso portento, como o é, na verdade, um poeta respeitável. Você afirma que é um poeta da lei e eu afirmo que você é uma contradição em termos. Espanta-me somente que não tenha havido cometas e terremotos quando você surgiu neste jardim.
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O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha pálida e pontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa. O terceiro membro do grupo, Rosamond, irmã de Gregory — que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, embora possuísse um rosto muito mais afável — riu com espanto e reprovação, como habitualmente fazia diante do oráculo familiar. Gregory recomeçou num tom de alta bonomia oratória. — Um artista é o mesmo que um anarquista, sentenciou. Você pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Um anarquista é um artista. O homem que atira bombas é um artista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Esse homem percebe que valem muito mais o súbito clarão de uma flama viva e o estampido de uma detonação perfeita do que os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Um artista afronta todos os governos, omite todas as convenções. O poeta só está à vontade na desordem. Não fosse assim, a coisa mais poética do mundo seria a estrada de ferro subterrânea. — E é mesmo, confirmou Mr. Syme. — Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito razoável quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que é que todos os empregados e operários que tomam os trens parecem tão tristes e cansados, tão completamente tristes e cansados? Eu respondo. É porque sabem que o trem está na rota certa. Ê porque sabem que terão de chegar ao lugar para o qual compraram os bilhetes. Porque sabem que depois de Sloane Square a estação seguinte deve ser Vitória, nenhuma outra senão Vitória. Mas eu adivinho o formidável êxtase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisíaco de suas almas, se a estação seguinte pudesse ser Baker Street! — Ê você que é antipoético, replicou o poeta Syme. Se tudo quanto você diz dos empregados é verdadeiro só tenho a lamentar que eles sejam tão prosaicos como a sua poesia. O maravilhoso, o raro está em chegar à meta. O vulgar, o insípido, está em não atingi-la. Sentimos um frêmito épico quando o homem com sua seta selvagem atinge um pássaro distante. Não é também épico quando o homem com uma locomotiva selvagem atinge uma estação distante? O caos é estúpido. No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad. Mas o homem é um mágico e toda a sua magia con-
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siste precisamente nisso: êle diz Vitória e — zás — é Vitória mesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesia e de prosa. A mim deixe-me ler, com lágrimas de orgulho, uma tabela do horário dos trens. Tome seu Byron, que comemora as derrotas do Homem. Dê-me Bradshaw, que comemora as vitórias. Dê-me Bradshaw, digo-lhe eu! — Vai viajar? perguntou Gregory sarcàsticamente. — Eu lhe digo, continuou Syme com veemência, que cada vez que o trem entra numa estação sinto que êle venceu as baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma batalha contra o caos. Você diz com desprezo que quando alguém deixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitória. E eu digo que podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sempre que efetivamente chego a Vitória, tenho a sensação de ter escapado por um triz. E, quando ouço o guarda gritar: "Vitória", não me parece ouvir um vocábulo desprovido de sentido. Para mim, é o grito do arauto anunciando a conquista. Para mim, é realmente "Vitória". Ê a vitória de Adão. Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabeça vermelha e pesada. — Mesmo assim, disse êle, nós, os poetas, perguntamos incessantemente: "E o que é Vitória, agora que nós a alcançamos?" Para você, Vitória é como a Nova Jerusalém. Para nós, entretanto, Nova Jerusalém não será melhor nem pior do que Vitória. Sim, o poeta será um eterno inconformado, mesmo andando nas ruas do céu. O poeta está sempre em revolta. — De novo! disse Syme irritado. O que há de poético nessa contínua revolta? Você podia dizer também que é poético padecer enjôo no mar. Ê um estado de revolta. Ambas, a doença e a revolta, podem ser coisas salutares em certas ocasiões desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em que são elas poéticas! A revolta, em abstrato, é. .. revoltante. É mero vômito! A moça estremeceu ao ouvir o vocábulo desagradável, mas Syme estava demasiadamente inflamado para reparar nela. — Ê a boa marcha das coisas que é poética! Exclamou. Nossa digestão, desde que se mantenha sagrada e silenciosamente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa mais poética, mais poética do que as flores, mais poética do que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.
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O homem dos brandos olhos azuis e da barbicha pálida e pontuda suportou essas rajadas com certa solenidade submissa. O terceiro membro do grupo, Rosamond, irmã de Gregory — que tinha deste os cabelos ondulados e vermelhos, embora possuísse um rosto muito mais afável — riu com espanto e reprovação, como habitualmente fazia diante do oráculo familiar. Gregory recomeçou num tom de alta bonomia oratória. — Um artista é o mesmo que um anarquista, sentenciou. Você pode inverter a ordem das palavras, se lhe aprouver. Um anarquista é um artista. O homem que atira bombas é um artista, porque prefere um grande momento a tudo o mais. Esse homem percebe que valem muito mais o súbito clarão de uma flama viva e o estampido de uma detonação perfeita do que os simples corpos desarticulados de alguns esbirros. Um artista afronta todos os governos, omite todas as convenções. O poeta só está à vontade na desordem. Não fosse assim, a coisa mais poética do mundo seria a estrada de ferro subterrânea. — E é mesmo, confirmou Mr. Syme. — Absurdo! disse Gregory, que se vendia por muito razoável quando outra pessoa tentava o paradoxo. Por que é que todos os empregados e operários que tomam os trens parecem tão tristes e cansados, tão completamente tristes e cansados? Eu respondo. É porque sabem que o trem está na rota certa. Ê porque sabem que terão de chegar ao lugar para o qual compraram os bilhetes. Porque sabem que depois de Sloane Square a estação seguinte deve ser Vitória, nenhuma outra senão Vitória. Mas eu adivinho o formidável êxtase, o brilho astral de seus olhos, o enlevo paradisíaco de suas almas, se a estação seguinte pudesse ser Baker Street! — Ê você que é antipoético, replicou o poeta Syme. Se tudo quanto você diz dos empregados é verdadeiro só tenho a lamentar que eles sejam tão prosaicos como a sua poesia. O maravilhoso, o raro está em chegar à meta. O vulgar, o insípido, está em não atingi-la. Sentimos um frêmito épico quando o homem com sua seta selvagem atinge um pássaro distante. Não é também épico quando o homem com uma locomotiva selvagem atinge uma estação distante? O caos é estúpido. No caos o trem podia ir a qualquer parte, a Baker Street ou a Bagdad. Mas o homem é um mágico e toda a sua magia con-
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siste precisamente nisso: êle diz Vitória e — zás — é Vitória mesmo. Ora, por favor! Tome todos os seus livros de poesia e de prosa. A mim deixe-me ler, com lágrimas de orgulho, uma tabela do horário dos trens. Tome seu Byron, que comemora as derrotas do Homem. Dê-me Bradshaw, que comemora as vitórias. Dê-me Bradshaw, digo-lhe eu! — Vai viajar? perguntou Gregory sarcàsticamente. — Eu lhe digo, continuou Syme com veemência, que cada vez que o trem entra numa estação sinto que êle venceu as baterias dos opressores, e que o homem ganhou uma batalha contra o caos. Você diz com desprezo que quando alguém deixa Sloane Square, chega infalivelmente a Vitória. E eu digo que podem acontecer milhares de coisas em vez desta e que sempre que efetivamente chego a Vitória, tenho a sensação de ter escapado por um triz. E, quando ouço o guarda gritar: "Vitória", não me parece ouvir um vocábulo desprovido de sentido. Para mim, é o grito do arauto anunciando a conquista. Para mim, é realmente "Vitória". Ê a vitória de Adão. Gregory, com sorriso lento e amargo, meneou a cabeça vermelha e pesada. — Mesmo assim, disse êle, nós, os poetas, perguntamos incessantemente: "E o que é Vitória, agora que nós a alcançamos?" Para você, Vitória é como a Nova Jerusalém. Para nós, entretanto, Nova Jerusalém não será melhor nem pior do que Vitória. Sim, o poeta será um eterno inconformado, mesmo andando nas ruas do céu. O poeta está sempre em revolta. — De novo! disse Syme irritado. O que há de poético nessa contínua revolta? Você podia dizer também que é poético padecer enjôo no mar. Ê um estado de revolta. Ambas, a doença e a revolta, podem ser coisas salutares em certas ocasiões desesperadas. Mas, enforquem-me, se posso ver em que são elas poéticas! A revolta, em abstrato, é . . . revoltante. É mero vômito! A moça estremeceu ao ouvir o vocábulo desagradável, mas Syme estava demasiadamente inflamado para reparar nela. — Ê a boa marcha das coisas que é poética! Exclamou. Nossa digestão, desde que se mantenha sagrada e silenciosamente normal... eis o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa mais poética, mais' poética do que as flores, mais poética do que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.
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Realmente, disse Gregory com arrogância, os exemplos que você escolhe.. . — Oh! Perdoe-me, respondeu Syme, inflexível. Esqueciame que tínhamos abolido todas as convenções... Pela primeira vez um indício de rubor marcou a testa de Gregory. — Quer dizer que você não espera, disse êle, que eu inicie a revolução da sociedade aqui neste jardim?! Syme cravou os olhos nos olhos do outro e sorriu com doçura. — Não, não espero. Mas creio que se você fosse um anarquista de verdade era exatamente isso o que faria. Os enormes olhos taurinos de Gregory relampejaram como os de um leão enfurecido, e quase se podia imaginar que sua juba vermelha se encrespara. — Então você acha, disse com grande dificuldade, que não levo a sério o meu anarquismo? — Como? Quer repetir, por favor? — Que não levo a sério o meu anarquismo? rugiu Gregory com os punhos fechados. — Ora, meu caro! Não se aflija! respondeu Syme e afastou-se. Com surpresa, mesclada de curiosidade e prazer, descobriu que Rosamond Gregory havia acompanhado seus passos. — Mr. Syme, começou ela, pessoas como o senhor e meu irmão, quando falam, estão sempre atentos para o que dizem? O senhor reparou no que disse? Syme sorriu e perguntou: — E a senhorita? Repara no que diz? — Que quer dizer o senhor? indagou a moça severamente. — Cara Miss Gregory, disse Syme com brandura na voz, há muitas espécies de sinceridade e de insinceridade. Quando você, por exemplo, agradece ao vizinho de mesa que acaba de lhe passar o saleiro, repara no que diz? Não. Quando diz que o mundo é redondo, repara no que diz? Não. Está dizendo a pura verdade, mas não se dá conta disso. Ora, às vezes acontece que um homem quando fala diz, realmente, aquilo que pensa. Pode dizer uma meia-verdade, um quarto ou um décimo da verdade, não importa. Ê o caso de seu irmão. Ao falar, êle diz mais do que quer dizer, tal é o ímpeto com que pensa naquilo que está dizendo.
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Rosamond fixou-o demoradamente. Em seu rosto grave e franco pairava a sombra daquela insensata responsabilidade que habita o íntimo da mulher mais frívola, daquele desvelo maternal que é tão velho quanto o mundo. — Então há razões para julgar Gregory um anarquista? — Apenas aquelas razões que dei há pouco, ou, se quiser, aquelas sem-razões. Rosamond passou alguns momentos matutando, a testa franzida; de repente, disse: — Em todo caso, não irá êle atirar bombas ou tomar parte em atentados? Syme rebentou numa gargalhada que parecia grande demais para seu tipo frágil e levemente ajanotado. — Não, por Deus! exclamou. Essas coisas têm de ser feitas anonimamente. Os lábios de Rosamond descerraram-se num sorriso. Ela pensava em Gregory. Sabia-o inconseqüente, mas não precisava temer pela segurança dele. Syme afastou-se com ela para um banco no canto do jardim e continuou a expor suas opiniões. Era um homem sincero e, a despeito de suas graças e finezas superficiais, fundamentalmente humilde. E é sempre o humilde que fala demais; o orgulhoso mede as palavras com muita cautela. Defendia a respeitabilidade com ardor e exagero. Apaixonava-se no louvor à cordura e à decência. Ali, sentado, aspirava a fragrancia dos lilazes espalhados pelo jardim. Lenta e quase imperceptivelmente, começou a subir até êle, vinda de uma rua distante, a música de um realejo. Parecia-lhe que suas heróicas palavras engolfavam-se numa delicada melodia emanada talvez de regiões subterrâneas ou extraterrenas. Ao passo que falava, comprazia-se em contemplar os cabelos vermelhos e o rosto cândido da moça. Supondo terem decorrido alguns minutos, advertiu que, em ocasiões como aquela, os pares não deviam isolar-se por muito tempo. Com este pensamento, pôs-se de pé, mas pasmou-se ao ver o jardim completamente vazio. Há muito tinha saído o último conviva. Embaraçado, pediu desculpas à moça e tratou de partir o mais depressa que pôde. Em sua cabeça — e êle não sabia como justificar essas sensações — boiavam uns como eflúvios de champanha. Nos extraordinários acontecimentos que viriam depois, a moça não teria nenhuma participação. E êle não voltou a vêla senão quando tudo acabou. Entretanto, por entre as temerá-
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rias aventuras que o aguardavam, a imagem dela havia de surgir, desaparecer e surgir de novo, inexplicavelmente, como o tema de um movimento musical; e o esplendor de sua maravilhosa cabeleira havia de atravessar, como um fio vermelho, as tramas desvairadas e tenebrosas das tapeçarias da noite. Porquanto, o que se seguiu foi tão inacreditável que bem podia ter sido um sonho. Quando Syme chegou à rua, achou-a deserta sob o céu estrelado. Não demorou a descobrir um misterioso silêncio que era antes um silêncio vivo que morto. No alto do poste, situado defronte da porta, uma lâmpada acesa dourava as folhas da árvore, cujos galhos debruçavam-se sobre o muro. A um passo do poste, alguém se mantinha de pé, quase tão rígido e imóvel como o próprio poste. Tinha a cabeça coberta por um chapéu alto e negro e o corpo envolto numa comprida sobrecasaca negra; na sombra, o rosto era igualmente negro. Todavia, a meada de cabelos avermelhados, escapos à zona das trevas, e a agressividade da postura publicavam' no vulto negro o poeta Gregory. Imitava os bravateiros embuçados que, munidos de espadas, espreitam a vinda do opositor. Gregory fêz um gesto semelhante a uma saudação e teve da parte de Syme uma réplica algo mais solene. — Estava esperando que você chegasse, disse Gregory. Poderíamos conversar uns dois minutos? — Pois não. De que se trata? inquiriu Syme um pouco espantado. Gregory bateu com a bengala no poste e na árvore, ao mesmo tempo em que começou a falar. — Disto e disto. Da ordem e da anarquia. Aí tem você sua preciosa ordem nessa mesquinha lâmpada de ferro, feia e estéril. E aqui está a anarquia, opulenta, viva, fecunda. Eis a anarquia nesta árvore esplêndida nas cores do ouro e da esmeralda. — Apesar de tudo, respondeu pacientemente Syme, neste momento você só pode ver a árvore sob a luz da lâmpada. Não me consta que em tempo algum você possa ver a lâmpada, sob a luz da árvore. Fêz uma curta pausa e prosseguiu: mas posso perguntar-lhe se você ficou aqui todo esse tempo no escuro, só para reabrir agora nossa discussão? — Não! explodiu Gregory numa voz que ressoou em toda a rua. Não fiquei aqui para recomeçar a discussão, mas para acabar com ela de uma vez.
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Caiu novamente o silêncio, e Syme, ainda que não pescasse o verdadeiro sentido das palavras do outro, instintivamente pressentiu a gravidade do momento. Gregory voltou a falar com voz macia e sorriso desconcertante. — Mr. Syme, esta noite você fêz uma coisa realmente notável. Você fêz comigo o que nenhum homem nascido de mulher jamais conseguiu fazer antes. — Realmente? — Aliás, se bem me recordo, disse Gregory pensativamente, outra pessoa também conseguiu fazer a mesma coisa. Foi o comandante de um vaporzinho vagabundo, em Southend, se a memória não me falha. A verdade é que você me irritou. — Lamento muito, respondeu gravemente Syme. — Mas eu temo que a minha ira e o insulto que você me fêz ultrapassem os limites do tolerável e não possam ser apagados com uma simples desculpa, disse Gregory muito calmo. Nenhum duelo poderá apagá-lo. Se eu o matasse, o caso não estaria encerrado. Só existe um meio de fazer desaparecer o insulto e esse meio eu já o escolhi. Vou, com o possível sacrifício de minha vida e de minha honra, provar que você está enganado em tudo quanto disse. — Em tudo quanto eu disse? — Sim. Você disse que eu não levo a sério o meu anarquismo. — Há graus de seriedade, replicou Syme. Nunca pus em dúvida a sua sinceridade em certas coisas. Por exemplo: você só diz aquilo que lhe parece digno de ser dito, acredita que um paradoxo pode despertar a humanidade para uma verdade desprestigiada. Neste sentido, nunca duvidei de que você fosse cabalmente sincero. Gregory encarava-o firme mas penosamente. — E num outro sentido, perguntou, você crê na minha seriedade? Você me toma por um flâneur que deixa cair por onde passa uma ou outra verdade ocasional. Num sentido mais profundo, mais intenso, você não crê que sou sério. Syme bateu violentamente com a bengala na calçada e bradou: — Sério! Santo Deus! É seria esta rua? São sérias estas malditas lanternas chinesas? É séria toda essa mixórdia? Olhe, aparece aqui um sujeito, diz um montão de tolices e talvez também algumas coisas sensatas. .. Está bem. Mas eu não darei um vintém por êle se no mais fundo do ser não conduzir uma
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coisa mais séria do que essa tagarelice... uma coisa mais séria, que tanto pode ser a religião quanto a bebida. — Muito bem, disse Gregory com o rosto sombrio. Você vai conhecer uma coisa mais séria do que a bebida ou a religião. Syme ficou aguardando delicadamente até que Gregory retomou a palavra. — Você acaba de falar em religião. É verdade, realmente, que você tem uma? — Claro! exclamou Syme, com um sorriso radiante. Somos todos católicos agora. — Então posso pedir-lhe que jure por todos os deuses e santos da sua religião que não revelará a nenhum filho de Adão e especialmente à polícia o que vou contar? Jura? Se assume tão terrível compromisso, se consente em sobrecarregar sua alma com um juramento que nunca pensou em fazer e com um conhecimento de coisas com que jamais sonhou, eu lhe prometo em troca... — Você me promete em troca!?! insistiu Syme quando o outro se interrompeu. — Eu lhe prometo uma noite muito divertida. Syme tirou o chapéu e disse: — Seu oferecimento é tão insensato que não merece recusa. Você diz que um poeta é sempre um anarquista. Discordo. Mas espero que êle seja pelo menos um cavalheiro. Permita-me, aqui e agora, jurar como cristão e prometer como bom camarada e companheiro de ofício, que não contarei nada, seja o que fôr, à polícia. E agora, em nome de Colney Hatch, de que se trata? — Acho, disse Gregory com plácida dissimulação, que devemos chamar um fiacre. Deu dois longos assobios, e um fiacre veio ressoando pela rua. Entraram em silêncio. Pela portinhola, Gregory deu o endereço de uma obscura taberna situada em Chiswick, à margem do rio. O fiacre foi posto de novo em movimento e, dentro dele, estes dois fantásticos sujeitos deixaram seu não menos fantástico subúrbio.
CAPITULO II
O SEGREDO DE GABRIEL SYME Chegado em frente a uma cervejaria particularmente imunda e lúgubre, o fiacre parou. Apearam-se e Gregory conduziu imediatamente o companheiro para um cubículo interior, sombrio e abafado, espécie de locutório, onde se sentaram à roda de uma sórdida mesa de pé de galo, toda de madeira. O quarto era tão pequeno e escuro que do serviçal chamado nada mais se divisava além da vaga e negra sombra de um vulto corpulento e barbado. — Quer cear? perguntou Gregory polidamente. O pâté de foie gras daqui não é bom, mas posso recomendar a lebre. Syme recebeu impassível a observação, imaginando tratarse de uma pilhéria. Disposto a seguir o filão de humor, respondeu com propositada indiferença: — Ora, me traga maionese de lagosta. Para sua indescritível estupefação, o criado disse apenas "Pois não, senhor!" e foi buscá-la. — Que quer beber? acrescentou Gregory, com o mesmo ar descuidado mas polido. Como já jantei, vou tomar somente um creme de menthe. No champanha se pode confiar... Deixe-me servir-lhe ao menos meia garrafa de Pommery. — Muito obrigado, disse o imóvel Syme. Você é muito amável. Suas tentativas, até então frustradas, de manter a conversação, foram enfim cortadas, como por um raio, com a presença da lagosta. Syme degustou-a, achou-a bastante apetitosa e logo começou a comer com grande avidez. — Perdoe-me se manifesto tão claramente minha satisfação, disse sorrindo a Gregory. Nem sempre tenho a sorte de ter
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um sonho como este. É uma novidade para mim que um pesadelo conduza a uma lagosta. Comumente sucede o inverso. — Não está dormindo, garanto-lhe, disse Gregory. Ao contrário; você está à beira do momento mais real e excitante de sua existência. Ah, olhe aí seu champanha! Admito que haja uma leve desproporção, digamos, entre o arranjo interior deste excelente hotel e seu exterior simples e despretensioso. Mas nisso reside toda a nossa modéstia. Somos os homens mais modestos que jamais viveram sobre a terra. — E quem são nós? perguntou Syme, esvaziando o copo de champanha. — Muito simples, respondeu Gregory. Nós somos os anarquistas sérios, em quem você não acredita. — Oh! exclamou Syme. Vocês se arranjam bem nas bebidas! — Sim, somos sérios em tudo, respondeu Gregory. Depois de uma pausa acrescentou: — Se dentro de alguns instantes esta mesa começar a girar um pouco, não meta isso na conta das suas incursões no champanha. Não quero que você cometa uma injustiça. — Bem, se não estou bêbado, estou louco, replicou Syme com absoluta calma. Mas confio em que possa comportar-me como um cavalheiro em qualquer circunstância. Posso fumar? — À vontade, disse Gregory, apresentando-lhe uma charuteira. Experimente um dos meus. Syme aceitou o charuto e, cortando-lhe a ponta com um corta-charutos que tirou do bolso do colete, levou-o à boca, acendeu-o vagarosamente e soltou imensa baforada. Creditese a seu favor a calma com que efetuou todo este ritual, pois, pouco antes de iniciá-lo, a mesa tinha começado a girar, a princípio vagarosamente e depois cèleremente como numa sessão espírita. — Não faça caso, disse Gregory. Ê uma espécie de rosca. '•— Exato! disse Syme plàcidamente. Uma espécie de rosca. Como é simples! Um minuto depois, a fumaça do charuto, que até então ondulava pelo quarto em serpeantes volteios, subiu a prumo como por uma chaminé de fábrica, e os dois, mais a mesa e as cadeiras, desapareceram através do assoalho, como se a terra os tivesse tragado. Foram caindo estrepitosamente por dentro de uma espécie de chaminé rugidora, tão rapidamente como um ascensor desgovernado, e de supetão chegaram ao fundo com
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um baque surdo. Mas quando Gregory escancarou as duas folhas de uma porta e surgiu uma subterrânea luz vermelha, Syme continuava a fumar tranqüilamente, uma perna cruzada sobre a outra, e um único fio de seus cabelos amarelos não se tinha desarranjado. Gregory guiou-o através de um corredor baixo, abobadado, de onde provinha a luz vermelha. Lá no fundo, presa a uma pequena e pesada porta de ferro, estava uma enorme lanterna escarlate, quase tão grande como uma lareira. Na porta havia um tipo de escotilha ou vigia, na qual Gregory deu cinco pancadas. Uma voz forte, com sotaque estrangeiro, perguntou quem era. Gregory deu uma resposta mais ou menos inesperada: "Mr. Joseph Chamberlain". Moveram-se os pesados gonzos. Evidentemente, tratava-se de uma senha. Interiormente, o corredor cintilava como se estivesse revestido de uma rede de aço. Num segundo relance, Syme percebeu que a fulgurante parede estava realmente forrada de várias fileiras de espingardas e pistolas, estreitamente entrelaçadas ou amontoadas. — Devo pedir-lhe perdão por todas essas formalidades, disse Gregory. Temos que ser muito rigorosos aqui. — Não se desculpe, disse Syme. Conheço sua paixão pela lei e pela ordem. E entrou no corredor guarnecido pelas armas de aço. Com seus compridos cabelos louros e sua ridícula sobrecasaca, era na verdade uma figura singularmente frágil e fantástica a caminhar naquela rutilante avenida da morte. Atravessaram vários corredores idênticos e chegaram, por fim, a um esquisito quarto de aço e de paredes curvas, quase esférico, mas sugerindo, com suas fileiras de bancos, o aspecto de um anfiteatro científico. Nele não havia espingardas nem pistolas, mas estavam suspensas nas paredes formas mais ambíguas e terríveis, coisas que lembravam bulbos de plantas de ferro, ou ovos de pássaros de ferro. Eram bombas, e o quarto mesmo assemelhava-se ao interior de uma bomba. Syme bateu na parede para derrubar a cinza do charuto e entrou. — E agora, meu caro Mr. Syme, disse Gregory sentandose expansivamente no banco situado debaixo da bomba maior, agora que estamos à vontade, falemos claramente. Mas nenhuma palavra da linguagem dos homens poderá lhe dar a menor idéia do motivo que me impeliu a trazê-lo até aqui. Foi uma daquelas emoções puramente arbitrárias, que levam a gente a pular de um rochedo ou a apaixonar-se. Limito-me a dizer
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que você foi e, para fazer-lhe justiça, ainda continua sendo um camarada indizivelmente irritante. Eu quebraria vinte juramentos de sigilo só pelo simples prazer de espezinhá-lo. Esse seu modo de acender o charuto obrigaria um padre a revelar o segredo da confissão. Bem. Você dizia que estava perfeitamente convicto de que eu não era um anarquista sério. Este lugar não lhe parece sério? — Realmente parece encobrir uma moral debaixo de toda sua gaiatice, assentiu Syme. Mas posso fazer-lhe duas perguntas? Não precisa ter medo de me dar informações. Você deve estar lembrado de que muito habilmente extorquiu de mim a promessa de nada contar à polícia... promessa que em verdade cumprirei. Portanto, é por mera curiosidade que faço tais perguntas. Em primeiro lugar, que é que tudo isso significa? O que é que vocês pretendem? Querem abolir o governo? — Queremos abolir Deus! disse Gregory abrindo os olhos de fanático. Não pretendemos somente perturbar alguns despotismos e regulamentos policiais. Esse tipo de anarquismo existe, mas não passa de um ramo dos não-conformistas. Nós cavamos mais fundo e vamos fazê-los voar mais alto. Visamos a negação de todas as arbitrárias distinções, estabelecidas entre o vício e a virtude, a honra e a traição, que ainda constituem o fundamento da rebeldia dos simplórios. Os ingênuos sentimentais da Revolução Francesa pregavam os Direitos do Homem! Nós odiámos Direitos e Injustiças. Já abolimos os dois. — E a direita e a esquerda? perguntou Syme com simplicidade. Espero que vocês as eliminem também. Para mim são muito mais enfadonhas. — Você falou de uma segunda pergunta, interrompeu Gregory. — Com muito prazer, disse Syme reatando o fio da conversa. Noto que, em todos os atos e circunstâncias presentes, vocês tentam cobrir-se de mistério. Tenho uma tia que morava em cima de uma loja, mas esta é a primeira vez que encontro gente que vive, de preferência, debaixo de uma taberna. Possuem uma pesada porta de ferro e não podem passar por ela sem se submeter à humilhação de chamar-se Mr. Chamberlain. Cercam-se de apetrechos de aço que tornam o lugar, por assim dizer, mais sinistro do que acolhedor. Posso agora perguntar-lhe por que, depois de vencer todos esses obstáculos para entrincheirarse nas entranhas da terra, você alardeia os seus segredos, dis-
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correndo sobre anarquismo diante de todas as donas desocupadas de Saffron Park? Gregory sorriu: — A resposta é simples. Já lhe disse que sou um anarquista sério, mas você não acreditou. Nem ninguém acredita. Enquanto não os trouxer a esta sala infernal não acreditarão. Syme fumava pensativamente e fitava-o com interesse. Gregory continuou: — A história que lhe vou contar poderá diverti-lo. Logo que me fiz membro dos Novos Anarquistas experimentei todos os gêneros de disfarces respeitáveis. Vesti-me de bispo. Cuidei de ler tudo o que se relacionava com os bispos em nossos opúsculos anarquistas. O Vampiro da Superstição e Padres de Rapina. Aprendi neles que os bispos são uns anciãos terríveis e estranhos que ocultam da humanidade um segredo cruel. Estava enganado. A primeira vez que, com botas episcopais, botei os pés num salão e trovejei — "Humilha-te, humilha-te, presunçosa razão humana" — descobriram, não sei como, que eu nada tinha de bispo e me apanharam imediatamente. Depois banquei o milionário, mas defendia o capital com tanta inteligência que qualquer imbecil podia ver logo que eu era muito pobre. Então, procurei passar por major. Pessoalmente, sou um humanitário, mas creio possuir bastante largueza intelectual para compreender a posição daqueles que, como Nietzsche, admiram a violência, a guerra altiva, feroz da natureza e tudo o mais que você conhece. Transformei-me, então, num major. Constantemente desembainhava e brandia a espada e, sem nenhum propósito, gritava: "Sangue!", como um homem que pede Vinho. Repeti muitas vezes: "Pereçam os fracos. É a lei". Parece que não é assim que procedem os majores. Fui apanhado novamente. Afinal, desesperado, fui ter com o Presidente do Conselho Central Anarquista, que é o homem mais notável da Europa. -— Como se chama? perguntou Syme. — Você não pode nem imaginar, respondeu Gregory. E nisso está a grandeza dele. César e Napoleão empenharam todo o seu gênio para se tornarem conhecidos e tiveram êxito. Nosso Presidente põe todo o seu gênio em conseguir que não se fale dele, e o conseguiu. Mas você não pode ficar cinco minutos na mesma sala em que êle estiver sem sentir que na mão dele César e Napoleão teriam sido dois meninotes.
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Empalideceu e passou uns momentos em silêncio. Depois prosseguiu: — Qualquer que seja o conselho que êle dê é sempre uma coisa tão surpreendente como um epigrama e ao mesmo tempo tão prática como o Banco da Inglaterra. Perguntei-lhe: "Que disfarce esconder-me-á das vistas do mundo? Que posso eu descobrir de mais respeitável que bispos e majores?" Êle me olhou com sua cara enorme e indecifrável. "Você quer um disfarce que o ponha a salvo de tudo, não é? Você quer um traje que lhe permita passar por inofensivo; um traje de que ninguém possa suspeitar que leva uma bomba escondida?" Assenti com a cabeça. E êle prosseguiu, alteando a voz de leão: "Pois, então, vista-se como um anarquista, seu idiota!", rugiu com tanta força que abalou a sala. "E não haverá ninguém que o julgue um tipo perigoso". E virou-se, dando-me suas largas costas, sem me dizer outra palavra. Tomei o conselho e até aqui não me arrependi. Dia e noite preguei sangue e destruição àquelas mulheres e — por Deus! — elas me deixariam guiar o carrinho em que levam os filhos a passeio. Os grandes olhos azuis de Syme fitavam o companheiro respeitosamente. — Você me ludibriou, disse êle. É realmente um embuste primoroso. Fêz uma pausa e acrescentou: — Que nome tem esse medonho Presidente? — Nós todos o chamamos Domingo, respondeu Gregory com simplicidade. O Conselho Central Anarquista se compõe de sete membros que receberam os nomes dos dias da semana. O Presidente é o Domingo. Alguns de seus admiradores chamamno Domingo, o Sanguinário. É curioso que você tenha tocado neste ponto, porque nesta mesma noite em que você caiu do céu (desculpe-me a expressão) nossa seção londrina deve reunir-se aqui nesta sala para eleger um representante que vai preencher a vaga no Conselho. O cavalheiro que desempenhou por algum tempo, com perícia e aplausos gerais, as árduas funções de Quinta-feira, acaba de morrer. Por isso, convocamos esta noite uma reunião para escolhermos o seu sucessor. Levantou-se e começou a passear pela sala, sorrindo com certo embaraço. — Syme, de certo modo, eu o sinto agora como se você fosse minha mãe. Sinto que posso confiar-lhe qualquer coisa, desde que você prometeu não contar nada a ninguém. De fato,
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vou contar-lhe uma coisa que não teria coragem de contar aos anarquistas que estarão aqui dentro de dez minutos. Naturalmente iremos proceder a uma forma de eleição. Não me acanho de dizer-lhe que estou certo do resultado. E baixando modestamente os olhos, disse: Está quase estabelecido que eu serei o Quinta-feira. — Bravo, amigo! exclamou Syme calorosamente. Congratulo-me com você. Bela carreira! Gregory sorriu com modéstia e, enquanto atravessava a sala, falava apressadamente. — A verdade é que tudo está pronto para mim nesta mesa, e a cerimônia provavelmente será a mais curta possível. Por sua vez, Syme foi até à mesa e viu uma bengala que um exame mais apurado revelou ser uma bengala de estoque. Lá estavam também um grande revólver Colt, um embrulho de sanduíches e uma formidável garrafa de conhaque. Numa cadeira, ao lado da mesa, fora atirado um capote. — Resta-nos somente esperar que se cumpram as formalidades da eleição, prosseguiu Gregory com desenvoltura. Uma vez concluídas, agarro a capa e a bengala, meto as outras coisas no bolso e abandono esta caverna, saindo por uma porta que dá para o rio. Lá me espera uma lancha a vapor. Então.. . Depois . . . Oh! A alegria selvagem de ser o Quinta-feira! E entrelaçou os dedos nervosamente. Syme, que se sentara uma vez mais com seu habitual langor insolente, levantou-se com um desusado ar de hesitação. — Por que é, perguntou de maneira um tanto vaga, que eu acho que você é um sujeito honesto? Por que é que eu simpatizo francamente com você? Parou um instante e depois ajuntou, como se o fizesse por pura curiosidade: Será porque você é um verdadeiro asno? Ficou meditando em silêncio durante alguns momentos e por fim exclamou: — Ora, dane-se tudo! Nunca em minha vida me vi numa situação mais engraçada do que esta, mas vou comportar-me à altura. Gregory, antes de entrar aqui eu lhe fiz uma promessa. E hei de cumpri-la, mesmo torturado por tenazes incandescentes. Você está disposto a fazer, para minha segurança, uma pequena promessa da mesma espécie? — Uma promessa? perguntou Gregory espantado. — Sim, uma promessa respondeu Syme muito sério. Perante Deus eu jurei que não contaria seu segredo à polícia.
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Poderá você jurar pela humanidade, ou por qualquer outra asneira da sua crença, que não revelará meu segredo aos anarquistas? — Seu segredo? perguntou Gregory estupefato. Você tem um segredo? — Tenho, disse Syme. Eu tenho um segredo. Depois de uma pausa, insistiu: Jura? Antes de falar, Gregory considerou gravemente o outro por alguns instantes. — Você deve ter-me enfeitiçado, mas sinto uma furiosa curiosidade a seu respeito. Juro. Juro que não contarei aos anarquistas nada do que você me disser. Mas avie-se. Em dois minutos eles estarão aqui. Syme levantou-se e enfiou as mãos brancas e compridas nos bolsos das calças cinzentas. Quase ao mesmo tempo soaram cinco pancadas na escotilha, anunciando a chegada dos primeiros conspiradores. — Bem, disse Syme, e continuou a-falar com lentidão. Não sei como contar-lhe a verdade em poucas palavras, senão dizendo que o seu expediente de disfarçar-se como um poeta desorientado não é privilégio seu nem do seu Presidente. Algumas vezes também temos lançado mão do mesmo embuste na Scotland Yard. Gregory tentou levantar-se de um pulo, mas por três vezes fraquejou. — Que é que você está dizendo? perguntou aterrado. — Isso mesmo, disse Syme simplesmente. Sou detetive. Trabalho para a polícia. Mas. .. creio que seus amigos estão chegando. Do corredor vinha um murmúrio de "Mr. Joseph Chamberlain", repetido duas vezes, três, trinta vezes, casado ao trotar daquela multidão de Joseph Chamberlains — o que parecia a personificação mesma da solenidade.
CAPITULO III
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA Antes que assomasse à porta o primeiro recém-chegado, Gregory se tinha recuperado da surpresa e do aturdimento. De um salto pôs-se ao lado da mesa. Rugindo feito uma fera, apanhou o revólver e apontou-o para Syme. Este, sem vacilar, ergueu a mão pálida e delicada. — Não seja idiota, disse com a dignidade efeminada de um cura. Não vê que não é necessário? Não vê que embarcamos no mesmo bote e que ambos estamos mareados? Gregory não podia falar, mas também não podia disparar a arma; apenas podia considerar em silêncio a situação. — Não vê que nos pusemos em xeque um ao outro? gritou Syme. Eu não posso dizer à polícia que você é anarquista. Você não pode dizer aos anarquistas que eu sou da polícia. Posso apenas vigiá-lo, ciente do que você é; você pode apenas vigiar-me, ciente do que eu sou. Em suma, trata-se de um solitário duelo intelectual: minha cabeça contra a sua. Eu sou um polícia privado da ajuda da polícia. E você, meu pobre amigo, é um anarquista privado da ajuda daquela lei e daquela organização tão essenciais à anarquia. A única diferença que existe é a seu favor. Você não está rodeado de polícias inquiridores; eu estou rodeado de anarquistas inquiridores. Não posso atraiçoá-lo, mas poderia eu mesmo atraiçoar-me. Vamos, homem! Espere para ver como me atraiçôo. Vou fazê-lo primorosamente. Gregory baixou vagarosamente o revólver, ainda com os olhos presos em Syme, como se este fosse um monstro marinho.
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— Não creio na imortalidade, disse por fim. Mas se, depois de tudo isso, você quebrar sua palavra, Deus fabricará um inferno só para você gemer lá dentro eternamente. — Não quebrarei minha palavra, disse Syme severamente, nem você quebrará a sua. Seus amigos já estão aqui. A massa de anarquistas entrou pesadamente na sala, a passo duro e fatigado. Um homenzinho de barba negra e de óculos — um sujeito mais ou menos do tipo de Mr. Tim Healy — destacou-se do grupo, agitando numa das mãos um maço de papéis. — Camarada Gregory, disse êle, suponho que esse homem é um delegado, não? Surpreendido, Gregory baixou os olhos e gaguejou o nome de Syme; mas Syme, quase petulante, respondeu: — Alegra-me ver que a sua porta é tão bem guardada que é dificílimo para alguém que não seja delegado entrar aqui. Entretanto, o homenzinho da barba negra, visivelmente suspeitoso, contraiu a testa. — Qual dos nossos ramos você representa? perguntou maliciosamente. — Eu não diria que represento um ramo, disse Syme rindo. Acho melhor dizer que represento a raiz. — Que quer dizer com isso? — A verdade, disse Syme serenamente, é que eu sou sabatista. Enviaram-me especialmente para que vocês observem aqui o devido acatamento ao Domingo. O homenzinho deixou cair um de seus papéis, e um bruxuleio de medo perpassou em todas as fisionomias do grupo. Evidentemente, o terrível Presidente, cujo nome era Domingo, costumava enviar esses embaixadores intempestivos às assembléias secionais. — Bem, camarada, disse o homenzinho dos papéis, acho que agiríamos corretamente dando-lhe um lugar em nossa reunião. — Se você me pede um conselho de amigo, disse Syme com severa benevolência, acho que é isso que devem fazer. Quando Gregory notou que o perigoso diálogo terminara, com inesperada salvação para seu rival, levantou-se imediatamente e começou a caminhar pela sala, mergulhado em penosos pensamentos. Afligia-o, deveras, uma angústia diplomática. Era óbvio que, com sua inspirada desfaçatez, Syme venceria todas as situações difíceis. Por esse lado não havia o que
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temer. Êle mesmo, Gregory, não podia atraiçoar Syme, em parte por questão de honra, mas em parte também porque, se êle o atraiçoasse e por um motivo qualquer fracassasse em destruí-lo, o Syme que escapasse seria um Syme desonerado de todos os compromissos de sigilo, um Syme que simplesmente correria a denunciá-lo na Delegacia mais próxima. No fim de contas, tratava-se de uma única reunião noturna e de um único detetive que a assistia. Teria o cuidado de evitar o mais possível, naquela noite, que se mencionassem os planos de ação. Depois Syme ia embora e o caso estava encerrado. A passos largos avançou por entre os anarquistas que começavam a distribuir-se nos bancos, e disse: — Penso que é tempo de começarmos. A lancha está esperando no rio. Proponho que o camarada Buttons assuma a presidência. Erguendo as mãos, todos aprovaram a proposta. O homenzinho dos papéis enfiou-se na poltrona presidencial. — Camaradas! começou êle com voz incisiva como disparo de pistola. Nossa reunião desta noite é importante, mas convém que seja breve. Esta seção tem, desde sempre, tido a honra de eleger Quintas-feiras para o Conselho Central Europeu. Elegemos muitos e valorosos Quintas-feiras. Todos lamentamos o triste desaparecimento do heróico trabalhador que ocupou o posto até a semana passada. Como sabeis, êle prestou consideráveis serviços à nossa causa. Organizou aquela grande explosão de dinamite em Brighton, que, sob circunstâncias mais favoráveis, teria matado todos quantos se encontravam no cais. Sabeis também que êle foi tão desprendido em sua morte como o tinha sido em vida, pois morreu no culto à fé que depositava numa higiênica mistura de água e giz, em substituição ao leite, beberagem que considerava própria de bárbaros pela crueldade que inflige à vaca. E a crueldade, ou qualquer coisa que lembrasse a crueldade, indignava-o. Mas não é para louvar suas virtudes que estamos reunidos, e sim para uma tarefa mais árdua. Difícil é glorificar o mérito de suas qualidades; é, porém, ainda mais difícil substituí-las. A vós, camaradas, compete, nesta noite, escolher, entre os presentes, o homem que deverá ser Quinta-feira. Espero que um de vós indique um nome para ser submetido à votação. Se nenhum nome fôr indicado serei forçado a admitir que aquele querido dinamitador, que nos deixou para sempre, levou aos abismos insondáveis o último segredo da virtude e da inocência.
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Houve um movimento de aplauso quase inaudível, tal como o que se ouve às vezes na igreja. Em seguida, um ancião corpulento, com uma comprida e venerável barba branca, talvez o único trabalhador real que ali se encontrava, levantou-se com dificuldade e falou: — Proponho para Quinta-feira o camarada Gregory. E voltou a sentar-se com a mesma dificuldade. — Há alguém que secunde esta proposta? perguntou o Presidente. Um tipo pequeno, barbado, vestido com um casaco de veludo, apoiou a resposta. — Antes de submeter a matéria à votação, disse o Presidente, convido o camarada Gregory a fazer sua profissão de fé. Gregory ergueu-se no meio de ruidosos aplausos. A palidez mortal de seu rosto acentuava, por contraste, o esquisito vermelho de seus cabelos, que pareciam quase escarlates. Mas sorria e estava inteiramente à vontade. Tinha o espírito preparado e, diante de si, via o programa que traçara, plano e reto como uma estrada branca. Estava decidido a fazer um discurso ameno e ambíguo a fim de gravar na mente do detetive a impressão de que a fraternidade anarquista era, de resto, muito suave. Acreditava no próprio talento literário e na sua capacidade de sugerir belos matizes e usar palavras inconfundíveis. Julgava que, com cautela e a despeito das pessoas que o rodeavam, podia dar da instituição uma idéia sutil e delicadamente falsa. Já uma vez Syme presumira que os anarquistas cobriam com suas arruaças as mais refinadas tolices. Não podia agora, num momento de perigo, reforçar a antiga presunção de Syme? — Camaradas! começou em voz baixa mas penetrante. Não é mister dar-vos conta da minha política, pois ela também é a vossa. Nossa crença tem sido caluniada, deformada, totalmente obscurecida e vilipendiada, mas persiste incorruptível. Os ociosos que falam da anarquia e da ameaça que ela representa, catam informações ali, acolá, por toda a parte, mas não nos buscam, não buscam as nascentes, as origens. Sobre os anarquistas instruem-se nas novelas baratas, instruem-se nos jornais da bolsa comercial, instruem-se no Ally Sloper's HalfHoliday e no Sporting Times. Nunca se instruem sobre os anarquistas nas próprias fontes anarquistas. Não temos ensejo de desagravar as montanhas de ultrajes que, de um extremo a outro da Europa, acumulam sobre nossas cabeças. O homem que
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sempre ouviu dizer que somos pragas vivas nunca ouviu nossa resposta. É certo que ainda não vai ouvi-la nesta noite, embora a paixão me mande romper o teto com minhas palavras. Porque é nas profundezas do coração da terra que os perseguidos têm permissão para reunir-se, como os cristãos se reuniam nas catacumbas. Mas, se por um desses incríveis acasos, estivesse aqui neste momento um homem que durante toda a sua vida alimentou imensos preconceitos a nosso respeito, farlhe-ia esta pergunta: "Que espécie de reputação moral desfrutavam nas ruas de Roma os cristãos que se congregavam nas catacumbas? Quantas histórias de atrocidades cristãs não contavam os romanos cultos? Suponde (eu pediria a esse homem), suponde que nós estamos apenas revivendo aquele misterioso paradoxo da História. Suponde que nós parecemos tão escandalosos como os cristãos porque somos realmente tão inofensivos como eram os cristãos. Suponde que parecemos tão loucos como os cristãos porque somos realmente tão mansos como eles". Os aplausos que tinham saudado as primeiras frases de Gregory foram esfriando gradualmente e ante as últimas palavras sumiram-se de vez. Cortou o repentino silêncio a voz forte e áspera do homem do casaco de veludo. — Eu não sou manso! — O camarada Witherspoon, tornou Gregory, diz que não é manso. Ah, como êle conhece tão mal a si mesmo! Não podeis negar que êle usa de expressões extravagantes e que sua aparência é feroz e mesmo (para o gosto vulgar) pouco sedutora. Mas somente o olho de uma estima tão profunda e dedicada como a minha pode perceber as camadas de sólida mansidão que lhe forram o âmago do ser, camadas tão inescrutáveis que êle mesmo é incapaz de divisá-las... Repito: Somos os verdadeiros cristãos primitivos, só que chegamos muito tarde. Somos simples como eles eram simples: contemplai o camarada Witherspoon. Somos modestos, como eles eram modestos: contemplai-me. Somos clementes... — Não! Isso não! É demais! protestou Mr. Witherspoon, o do casaco de veludo. Gregory repetiu furioso: — Somos clementes como os primitivos cristãos eram clementes, o que não impediu que eles fossem acusados de comer carne humana. Nós não comemos carne humana... — Vergonha! bradou Witherspoon. Por que não?
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— O camarada Witherspoon, disse Gregory com febril jovialidade, está ansioso de saber por que motivo ninguém o come. (Risos) De qualquer modo, no seio de nossa sociedade, que o estima sinceramente, que está fundada no amor... — Não! não! disse Witherspoon, abaixo o amor! — . . . que está fundada no amor, repetiu Gregory rangendo os dentes, não haverá dificuldade em atingir o objetivo que visamos como uma corporação, ou que eu visaria se fosse eleito representante dessa corporação. A cavaleiro das calúnias que nos representam como assassinos e inimigos da sociedade humana, demandaremos, com coragem moral e tranqüilo impulso intelectual, os perenes ideais de fraternidade e simplicidade. Gregory volveu a seu banco e passou a mão pela testa. Fêz-se um silêncio constrangedor, mas o Presidente ergueu-se como um autômato e falou com voz incolor: — Há alguém que se oponha à eleição do camarada Gregory? A assembléia dava a impressão de estar vaga e subconscientemente desapontada. O camarada Witherspoon mexia-se intranqüilo em seu banco e resmungava dentro da espessa barba. Todavia, por mera rotina, a proposta teria sido aprovada. Mas quando o Presidente ia abrir a boca para declará-la aprovada, Syme levantou-se rapidamente e disse com voz sumida e quieta: — Sr. Presidente, eu me oponho. O fator decisivo na oratória é uma súbita mudança de voz. E Mr. Gabriel Syme evidentemente entendia de oratória. Tendo pronunciado estas primeiras palavras formais num tom moderado, breve e simples, fêz com que as seguintes retumbassem e estalassem na abóbada, como se uma das armas houvesse disparado. — Camaradas! gritou com uma voz que fêz estremecer os ouvintes. Foi para isto que viemos até aqui? Para ouvirmos frases como essas é que vivemos soterrados como ratos? Bobagens desta ordem podemos escutar nos banquetes das escolas dominicais. Revestimos de armas estas paredes e barramos a porta com a morte para impedir que outros venham aqui ouvir o camarada Gregory dizer-nos: "Sede bons e sereis felizes", "A honestidade é o melhor princípio" e "A virtude traz em si mesma a recompensa"? Respondam-me por favor. Não houve em todo o discurso do camarada Gregory uma única
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palavra que um cura não pudesse ouvir com prazer. (Apoiado, apoiado) Mas eu não sou um cura (Ruidosos aplausos) e não o escutei com prazer. (Renovados aplausos) O sujeito talhado para ser um bom cura não foi talhado para ser um enérgico, resoluto e eficiente Quinta-feira. (Apoiado, apoiado) O camarada Gregory nos disse, num tom demasiadamente indulgente, que nós não somos os inimigos da sociedade. Mas eu digo que nós somos os inimigos da sociedade, e tanto pior para a sociedade. Nós somos os inimigos da sociedade, pois a sociedade é inimiga da humanidade, sua mais antiga e impiedosa inimiga. (Apoiado, apoiado) O camarada Gregory nos disse, mais uma vez indulgente, que não somos assassinos. Concordo. Não somos assassinos. Somos carrascos. (Aplausos) Desde que Syme se levantara, Gregory permanecia fitando-o, com o rosto idiotizado de assombro. Na pausa que se fêz, seus lábios côr de barro despregaram-se e êle exclamou com automática e inanimada clareza: — Maldito hipócrita! Syme cravou seu olhar azul-pálido nos olhos furiosos de Gregory e disse com dignidade: — O camarada Gregory acusa-me de hipocrisia. Êle sabe, tão bem como eu, que estou mantendo meus compromissos e que não faço outra coisa senão o meu dever. Falo sem rebuços. Não simulo. Digo que o camarada Gregory é incompetente para o cargo de Quinta-feira, apesar de todas as suas amáveis qualidades. Aliás, êle está incapacitado de ser Quinta-feira em razão de suas amáveis qualidades. Não queremos o Supremo Conselho da Anarquia infetado de pieguismo sentimental. (Apoiado, apoiado) Não é tempo de polidez cerimoniosa, e menos ainda de cerimoniosa modéstia. Oponho-me ao camarada Gregory como me oporia a todos os governos da Europa. O anarquista que se dedicou à anarquia esqueceu a modéstia e esqueceu também o orgulho. (Aplausos) Não sou apenas um homem. Sou uma causa. (Aplausos renovados) Oponhome ao camarada Gregory tão impessoalmente e tão serenamente como se tivesse de escolher entre um revólver e outro numa daquelas prateleiras. E digo mais: em lugar de ter Gregory e seus métodos açucarados no Supremo Conselho, ofereço-me como candidato... Esta frase afogou-se numa ensurdecedora cachoeira de aplausos. Aquelas caras, que iam ficando mais ferozes à medida que aprovavam as palavras cada vez mais intransigentes
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de Syme, estavam agora retorcidas em esgares de expectação ou fendidas em gritos de regozijo. No momento em que êle se anunciou como candidato ao posto de Quinta-feira, rebentou incontrolável bramido de excitação e assentimento. Gregory, cuja boca espumava, ergueu-se de um salto e berrou para conter a gritaria. — Parai! Loucos, parai! gritou com uma voz aguda que lhe rasgava a garganta. Parai... Entretanto, acima dos brados de Gregory e acima do alarido geral, ouvia-se a voz de Syme trovejando impiedosamente: — Não vou para o Conselho com o fim de rebater a calúnia dos que nos chamam assassinos; ao contrário, lutarei por merecê-la. (Aplausos estrepitosos e prolongados) Ao pároco que afirma que estes homens são inimigos da religião, ao juiz que afirma que estes homens são inimigos da lei, ao gordo parlamentar que afirma que estes homens são inimigos da ordem e da moralidade públicas, a todos eles responderei: "Sois falsos reis, mas sois verdadeiros profetas. Vim para destruirvos e cumprir vossas profecias". O pesado clamor paulatinamente decrescia, mas antes que cessasse Witherspoon, arrebatado, o cabelo e a barba eriçados, falou: — Proponho, como emenda, que o camarada Syme seja indicado para o posto. — Parai! Pairai! gritou Gregory frenético. Tudo isso é uma.., A voz do Presidente cortou-lhe a palavra com frieza... — Há alguém que esteja de acordo com a emenda? perguntou. Num dos últimos bancos, um homem alto, cansado, de olhos melancólicos e de cavanhaque à americana, tentava levantar-se. Gregory, que estivera a esganiçar-se até então, imprimiu à voz uma nova modulação, mais espantosa do que qualquer ganido. — Vou dar cabo de tudo isso! disse, e sua voz parecia tão pesada como uma pedra. Este homem não pode ser eleito. Êle é . . . — É . . . ? ! repetiu Syme completamente imóvel. Que é que êle é? Duas vezes Gregory abriu a boca mas não pôde articular uma só palavra. Depois, lentamente, o sangue começou a insinuar-se em seu rosto inerte.
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— Êle é inexperiente em nosso trabalho, concluiu e sentou-se imediatamente. Nesse ínterim, o homem comprido e magro, do cavanhaque americano, conseguira levantar-se e estava repetindo com monótono sotaque americano: — Peço licença para apoiar a candidatura do camarada Syme. — Como é de praxe, deverá ser apreciada, em primeiro lugar, a emenda, disse Mr. Buttons, o Presidente, com mecânica rapidez. Resta saber se o camarada Syme... Gregory estava novamente de pé, ofegante e arrebatado. — Camaradas! bramiu. Não sou nenhum louco. — Oh, oh! interrompeu Mr. Witherspoon. — Não sou nenhum louco, reiterou Gregory com tão inesperada sinceridade que por uns instantes a sala ficou em silêncio. Dou-vos um conselho. Chamai-me louco, se quiserdes. Não, não. Não direi que é um conselho, pois não posso darvos nenhuma razão para o seguirdes. Direi que é uma ordem. Podeis chamá-la uma ordem louca, mas executai-a. Protestai, mas ouvi-me! Matai-me, mas obedecei-me! Não elejais este homem! A verdade, mesmo agrilhoada, é tão terrível, que por um momento a vitória louca e frágil de Syme oscilou como um caniço ao vento. Mas nada se podia adivinhar nos olhos frios e azuis de Syme. Este se contentou com dizer: — O camarada Gregory ordena... Foi o suficiente para desfazer o feitiço. Um dos anarquistas logo interpelou Gregory: — Quem é você? Você não é o Domingo. E outro acrescentou em tom mais rude: — Nem é o Quinta-feira. Camaradas, gritou Gregory, numa voz semelhante à de um mártir que, no êxtase da dor, supera a própria dor. Nada significa para mim que vós me odieis como tirano ou que me detesteis como escravo. Se não quereis acatar minha ordem, aceitai minha degradação. Ajoelho-me diante de vós, atiro-me a vossos pés, imploro-vos: não elejais este homem. — Camarada Gregory, disse o Presidente ao fim de uma pausa de consternação. Na verdade, isso não é muito dignificante. Pela primeira vez, naqueles lances, houve alguns segundos de silêncio real. Gregory, um esquálido destroço de homem,
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deixou-se cair em seu banco, e o Presidente, como um relógio que tivesse acabado de receber corda, repetiu: — Resta saber se o camarada Syme deve ser eleito para o posto de Quinta-feira no Conselho Geral. O alarido cresceu como o mar, as mãos ergueram-se como floresta, e três minutos depois, Mr. Gabriel Syme, do Serviço Secreto da Polícia, estava eleito para o posto de Quinta-feira no Conselho Geral dos Anarquistas da Europa. Todos os que estavam na sala pareciam pensar na lancha que esperava no rio, na bengala de estoque e no revólver que esperavam em cima da mesa. No instante em que a eleição se concluiu e foi declarada irrevogável e Syme recebeu suas credenciais, todos se puseram de pé e os fogosos grupos movimentaram-se e confundiram-se na sala. Inesperadamente, Syme viu-se cara a cara com Gregory, que o contemplava com ódio e espanto. Passaram muitos minutos fitando-se mutuamente em silêncio. — Você é um demônio, disse Gregory por fim. — E você é um cavalheiro, redarguiu Syme gravemente. — Foi você que me arrastou a esta cilada, começou Gregory, trêmulo da cabeça aos pés. Foi você que... — Não diga tolices, retrucou Syme. Quem, senão você, me trouxe a este demoníaco parlamento? Você me fêz jurar antes que eu o fizesse a você. Talvez estejamos fazendo o que ambos julgamos ser justo. Mas, quanto ao que nos parece justo, possuímos noções tão danadamente contrárias que entre nós não pode haver nenhuma conciliação. Não temos nada de comum, exceto a honra e a morte. Ao dizer isso ajustou o enorme capote sobre os ombros e apanhou a garrafa de cima da mesa. — O barco está pronto, disse Mr. Buttons alvoroçando-se. Tenha a bondade de acompanhar-me. Com um gesto que revelava o recepcionista de loja, Mr. Buttons desceu com Syme por um corredor estreito, reforçado com arcos de ferro. Seguia-lhes febrilmente os passos o torturado Gregory. No fim do corredor havia uma porta que foi aberta engenhosamente por Buttons, desvendando um quadro azul-prateado do rio ao luar, semelhante a um cenário de teatro. A poucos passos achava-se uma escura e minúscula lancha a vapor, que parecia um filhote de dragão, com um olho vermelho.
No momento em que ia passar para bordo, Gabriel Syme voltou-se para o ofegante Gregory. — Você cumpriu sua palavra, disse cortêsmente, com o rosto na sombra. É um homem de bem. Muito obrigado. Cumpriu a palavra até nos pormenores mais insignificantes. Houve uma coisa especial que você me prometeu no começo desses sucessos e que realmente me proporcionou. — De que é que você está falando? bradou o caótico Gregory. Que foi que eu lhe prometi? — Uma noite muito divertida, disse Syme, e fêz um cumprimento militar com a bengala de estoque, enquanto a lancha começava a deslizar.
CAPITULO IV
A HISTÓRIA DE UM DETETIVE Gabriel Syme não era simplesmente um detetive que pretendesse ser poeta; era realmente um poeta que se transformara em detetive. Seu ódio à anarquia não era hipócrita. Syme era um daqueles homens a quem desde cedo a rematada loucura da maioria dos revolucionários compele a adotar diante da vida uma atitude demasiadamente conservadora. Não atingira esse ponto por via de nenhuma tradição doméstica. Sua respeitabilidade era espontânea e imprevisível, uma rebelião contra a rebelião. Descendia de uma família de excêntricos, em cujo seio as pessoas mais velhas empolgavam idéias mais novas. Um de seus tios tinha o hábito de sair à rua sem chapéu, e outro fizera gorada tentativa de sair de chapéu e mais nada. Seu pai cultivava as artes e o aperfeiçoamento de si mesmo. Sua mãe dedicava-se à simplicidade e ao asseio. Por isso o menino, durante os seus mais verdes anos, ignorou totalmente qualquer bebida entre os extremos do absinto e do licor de cacau, pelos quais revelava saudável repugnância. Quanto mais sua mãe pregava uma abstinência mais do que puritana, mais seu pai se expandia numa incontinência mais do que paga, e no momento em que ela chegou a propagar o vegetarianismo, êle já estava a pique de defender o canibalismo. Assediado desde a infância por todos os tipos concebíveis de revolta, Gabriel teve de revoltar-se em nome de alguma coisa. Assim, revoltou-se em nome da única coisa que restava: o bom senso. Mas dentro dele corria boa parcela do sangue destes fanáticos, o que fazia com que seus protestos de fidelidade ao senso comum parecessem um pouco ferozes demais para serem sensatos. Sua aversão à desordem moderna foi coroada por um acidente. Aconteceu que êle passava por uma rua quan-
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do se deu um atentado a dinamite. Por alguns momentos ficou cego e surdo e, quando a fumaça desapareceu, pôde ver as janelas quebradas e os rostos ensangüentados. Depois disto, continuou como de costume: quieto, cortês, gentil; mas havia em sua mente um ponto que não estava são. Não considerava os anarquistas, do mesmo modo que a maioria considera, como um punhado de sujeitos mórbidos que combinam ignorância com intelectualismo. Considerava-os como um perigo imenso e terrível, uma invasão chinesa. Inundava continuamente os jornais e as cestas de papéis usados das redações com uma torrente de contos, versos e violentos panfletos acautelando as gentes contra esse dilúvio de bárbara negação. Mas parecia ter avançado muito pouco na direção do inimigo, como, — e isto era muito pior, — parecia ter avançado menos ainda na direção da própria subsistência. Quando vagueava pelo aterro do Tâmisa, pitando amargamente um charuto barato e matutando nos progressos da anarquia, não havia anarquista, dos de bomba no bolso, tão selvagem ou tão solitário como êle. Inquietava-o permanentemente o desamparo e o desespero do governo, posto entre a espada e a parede. Era quixotesco demais para ver as coisas com naturalidade. Certa vez, sob um crepúsculo vermelho-escuro, Syme passeava pelo aterro. O rio vermelho refletia o céu também vermelho e ambos refletiam sua cólera. O céu, de fato, estava tão carregado e o rio emitia um clarão tão acobreado que a água parecia deitar chamas mais violentas que as do crepúsculo. Era literalmente um caudal de fogo correndo sinuoso através das amplas cavernas de um mundo subterrâneo. Nessa época Syme tinha um aspecto andrajoso. Usava uma antiquada cartola preta e envolvia-se num capote preto e roto, ainda mais antiquado. Tal combinação tornava-o semelhante aos antigos vilões de Dickens e Bulwer Lytton. A barba e o cabelo amarelados também estavam mais desgrenhados e leoninos do que quando surgiram, muito depois, aparados e penteados, nos jardins de Saffron Park. Os dentes cerrados mordiam um mata-rato preto, comprido e fino, comprado em Soho. Toda a sua pessoa representava um perfeito exemplar daqueles anarquistas contra quem havia declarado uma guerra santa. É provável que tenha sido este o motivo que levou o guarda do aterro a caminhar em sua direção e saudá-lo: — Boa noite!
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Syme, em plena crise de mórbido temor pela sorte da humanidade, sentiu-se espicaçado com a simples e mecânica cortesia do funcionário, que, ali ao crepúsculo, não passava de uma indistinta figura azulada. — Será mesmo uma boa noite? disse mordazmente. Vocês são capazes de achar boa a noite do fim do mundo. Veja este céu, veja este rio: vermelhos, sangrentos! Garanto que se isso fosse rigorosamente sangue humano, espalhado e cintilante, você continuaria aqui perpètuamente impassível, a inspecionar pobres transeuntes inofensivos e a ordenar-lhes que se dispersassem. Vocês da polícia são cruéis com os pobres, mas eu poderia perdoar a crueldade de vocês não fosse esta calma que vocês afetam. — Se temos calma, replicou o guarda, é a calma da resistência organizada. — Ah é? disse Syme admirado. — O soldado deve ter calma no aceso da batalha, continuou o guarda. A disciplina de um exército é a cólera de uma nação. — Valha-me Deus! As Escolas Públicas! É essa a educação não-sectária? — Não, disse o guarda com tristeza. Não gozei nunca desses privilégios. Não sou do tempo das Escolas Públicas. Temo que a minha educação tenha sido muito rudimentar e obsoleta. — Onde você estudou? inquiriu Syme curioso. — Oh, em Harrow, respondeu o guarda. — As simpatias de classe, por mais falsas que sejam, são, não obstante, para muitas pessoas as coisas mais verdadeiras do mundo. E Syme sentiu-as explodirem dentro de si antes que pudesse refreá-las. — Mas homem, por Deus! Você não devia ser da polícia. O guarda suspirou e meneou a cabeça. — Tem razão, disse solenemente. Eu sei que não sou digno. — Mas por que você ingressou na polícia? interrogou Syme com rude curiosidade. — Exatamente pelo mesmo motivo que você tem de insultar a polícia. Descobri que havia no serviço uma oportunidade especial para aqueles, cujos temores pela sorte da humanidade dizem respeito antes às aberrações do intelecto cien-
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tífico que aos normais e desculpáveis, ainda que excessivos, distúrbios da vontade humana. Espero que tenha sido claro. — Se você se refere a suas opiniões, acho que as exprimiu claramente, disse Syme. Mas quanto a ter-se explicado está longe ainda. Como é que um homem como você bota um elmo azul e vem filosofar aqui no aterro? — Evidentemente você nada sabe dos últimos desenvolvimentos do nosso sistema policial, retorquiu o guarda. Aliás, isso não me surpreende. Nós os mantemos em segredo, a coberto das classes cultas, porque são estas que abrigam a maior parcela de nossos inimigos. Mas parece que o seu espírito já está predisposto... Penso que você podia alistar-se. — Alistar-me em quê? perguntou Syme. — Explicarei tudo, disse o guarda calmamente. A situação é esta: o chefe de um dos nossos departamentos, detetive dos mais célebres de toda a Europa, vem desde muito tempo suspeitando de uma conspiração puramente intelectual que em breve ameaçará a própria existência da civilização. Está convicto de que os mundos artísticos e científicos se unem secretamente numa cruzada contra a Família e o Estado. Por esta razão, êle ideou uma especial corporação de detetives, detetives que são também filósofos. A função deles é investigar as origens dessa conspirata e combatê-la, não só no sentido meramente criminal, mas no terreno da controvérsia. Eu sou democrata e creio no valor do homem comum em questões de intrepidez e virtudes comuns. Mas não seria aconselhável, obviamente, o emprego do polícia mediano numa investigação que é, ao mesmo tempo, uma caça à heresia. Os olhos de Syme brilhavam de curiosidade e simpatia. — O que é que fazem então? perguntou. — A missão do polícia-filósofo, respondeu o homem de azul, é mais arriscada e mais sutil do que a do simples detetive. O detetive comum vai às cervejarias capturar ladrões; nós nos dirigimos ao serões artísticos para descobrir pessimistas. Através das páginas de um razão ou de um diário os detetives comuns descobrem que se cometeu um crime. Nós, através de um livro de sonetos, descobrimos que um crime está para ser cometido. Temos que seguir desde a origem a pista daqueles pensamentos terríveis que conduzem os homens ao fanatismo intelectual e, por fim, ao crime intelectual. Há pouco, tivemos de correr bastante para chegarmos a tempo de impedir um assassínio em Hartlepool. O nosso êxito se deveu exclusi-
vãmente à argúcia do jovem Mr. Wilks, nosso companheiro, que atinara com o sentido exato de umas oitavas que havia lido. — Quer dizer, inquiriu Syme, que há realmente tal conexão entre o crime e a inteligência moderna? — Você não é suficientemente democrata, replicou o guarda, mas tinha razão há pouco quando disse que o tratamento que dispensamos usualmente aos criminosos pobres é um tanto brutal. Garanto-lhe que abomino meu ofício quando, algumas vezes, sinto que êle consiste apenas numa guerra aos ignorantes e desesperados. Mas este nosso novo movimento é uma empresa muito diferente. Procuramos dar um desmentido ao pretensioso axioma inglês que diz que os incultos são os criminosos temíveis. Lembramo-nos dos imperadores romanos, dos príncipes da Renascença, grandes envenenadores. Afirmamos que o criminoso temível é o criminoso culto. Afirmamos que o criminoso mais temível destes tempos é o filósofo moderno inteiramente bárbaro. Comparados com êle, arrombadores e bígamos são homens de moralidade perfeita; meu coração me leva para o lado deles. Aceitam o ideal essencial do homem; só que o procuram erroneamente. Os ladrões respeitam a propriedade; só que desejam que a propriedade se torne propriedade deles para que possam respeitá-la mais e melhor. Mas os filósofos condenam a propriedade enquanto propriedade, querem destruir a simples idéia da posse pessoal. Os bígamos respeitam o matrimônio, ou então não levariam a cabo a formalidade altamente cerimoniosa e ritualística da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento como casamento. Os assassinos respeitam a vida humana; apenas desejam obter para si mesmos uma abundância maior de vida humana, com o sacrifício daquelas que lhes parecem vidas menores. Mas os filósofos odeiam a vida mesma, a deles e a dos outros. Syme pôs-se a bater palmas. — Isso é verdadeiro! bradou. Tenho pensado assim desde a infância, mas nunca pude estabelecer a antítese verbal. O criminoso vulgar é um mau sujeito, mas é, em todo caso, condicionalmente bom. Desde que um determinado obstáculo — um tio rico, por exemplo — seja removido, está pronto para aceitar o universo e louvar a Deus. É reformador, não é anarquista. Pretende limpar o edifício e não destruí-lo. Mas o filósofo pernicioso não tenta alterar as coisas; quer aniquilá-las.
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Sim, o mundo moderno conservou todas aquelas facetas realmente opressivas e ignominiosas da função policial, como saquear os pobres e perseguir os infortunados. Abandonou a obra mais digna: a punição dos poderosos traidores do Estado e dos poderosos heresiarcas da Igreja. Os modernistas dizem que não devemos punir os heréticos. Minha única dúvida reside em saber se temos o direito de punir alguém mais. — Mas isto é absurdo! exclamou o guarda, esfregando as mãos numa excitação inusitada em pessoas da sua categoria e dos seus hábitos. Mas é inexplicável! Não sei o que você fêz, mas sei que está desperdiçando sua vida. Você deve, com urgência, alistar-se em nosso exército especial para lutar contra a anarquia. Os exércitos de nossos inimigos estão em nossas fronteiras. Apertam o cerco. Um momento mais e você poderá ser excluído da glória de trabalhar conosco e talvez da glória de morrer com os últimos heróis do mundo. — Realmente é uma oportunidade que não se deve desperdiçar, anuiu Syme. Mas ainda não entendi tudo. Sei, tanto quanto qualquer outro, que o mundo moderno está cheio de homenzinhos sem lei e de pequenos movimentos absurdos. Mas, selvagens como eles são, têm geralmente o mérito de discordarem uns dos outros. Como é que você pode dizer que chefiam um exército ou organizam uma investida? Que espécie de anarquia é esta? — Não a confunda, redargüiu o guarda, com essas fortuitas explosões de dinamite na Rússia e na Irlanda, que são efetivamente as explosões de homens oprimidos, se bem que desorientados. Falo de um vasto movimento filosófico, composto de dois círculos: um externo e outro interno. Pode dizerse mesmo que o círculo externo é o dos leigos e que o interno é o do sacerdócio. Prefiro dizer que o círculo externo é do setor inocente e que o interno é o setor supremamente culpado. Os do círculo externo, que formam a copiosa massa dos sectários, são simples anarquistas, isto é, homens que acreditam que as normas e as fórmulas destruíram a felicidade humana. Crêem que todos os funestos efeitos do crime são conseqüências normais do sistema que lhe deu o nome de crime. Não crêem que o crime gera o castigo. Crêem que o castigo gerou o crime. Para eles, o homem que seduziu sete mulheres deveria naturalmente passar impune como as flores da primavera. Para eles o punguista é naturalmente um sujeito de sentimentos delicadamente generosos. Estes eu filio ao setor dos inocentes.
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— Oh! murmurou Syme. — É natural, portanto, que estas pessoas falem no advento de uma era de felicidade, no paraíso do futuro, numa humanidade liberta da servidão do vício e da servidão da virtude, e de coisas semelhantes. Assim também falam os do círculo interno, os do sacerdócio sagrado. Também falam para as multidões aclamadoras da felicidade futura e da humanidade que um dia será livre. Mas em suas bocas (e aqui o guarda baixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas têm uma significação aterradora. Eles não têm ilusões; são demasiadamente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate. Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que a humanidade há de ser livre algum dia, têm em mente que a humanidade há de suicidar-se. Quando falam de um paraíso fora do bem e do mal, têm em mente o túmulo. Visam apenas dois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois destruírem-se a si mesmos. É este o motivo por que lançam bombas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica desapontada ao ver que a bomba não matou o rei, mas o alto sacerdócio regozija-se por saber que matou alguém. — Como posso unir-me a vocês? perguntou Syme numa espécie de arrebatamento. — Sei de certeza que no momento há uma vaga, disse o guarda, já que tenho a honra de merecer um pouco da confiança do chefe, do qual lhe falei. Você deveria vir vê-lo. Aliás, não direi que você vai vê-lo, pois que ninguém nunca o viu; mas poderá falar com êle, se quiser. — Pelo telefone? inquiriu Syme com interesse. — Não, respondeu calmamente o guarda. Êle tem o capricho de viver sempre num quarto escuro como breu. Diz que assim seus pensamentos ficam mais claros. Venha comigo. Um pouco confuso e muito animado, Syme deixou-se levar até uma porta lateral na longa fila de edifícios da Scotland Yard. Antes de dar pelo que fazia, passou pelas mãos de cerca de quatro oficiais intermediários e encontrou-se de um momento para outro num quarto cuja escuridão inesperada feriu-o como uma centelha. Nada tinha da escuridão normal, em que as formas pouco a pouco se esboçam; era antes a escuridão da cegueira instantânea. — É o novo recruta? perguntou uma voz dura.
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E estranhamente, visto que nenhum contorno se podia adivinhar naquela escuridão, Syme compreendeu duas coisas: a primeira, que a voz procedia de um homem de estatura descomunal e a segunda, que o homem estava de costas para êle. — É o novo recruta? repetiu o chefe invisível, que parecia estar a par de tudo. Está bem. Está admitido. Syme, assombrado, trêmulo, procurou timidamente lutar contra esta sentença irrevogável. — Mas eu, na verdade, não tenho experiência... — Ninguém tem nenhuma experiência da batalha do Armagedon, disse o outro. — Também não sei se sou capaz... — Você quer e isso basta, disse o desconhecido. — Mas, a verdade, ponderou Syme, é que não sei de nenhum ofício em que a simples boa vontade seja prova de aptidão. — Eu sei, disse o outro. O dos mártires. Eu o estou condenando à morte. Passe bem. Foi assim que ao reaparecer com sua deplorável cartola preta e seu anárquico e deplorável capote na claridade carmesim do crepúsculo, Gabriel Syme vinha feito membro da nova corporação de detetives, fundada para dar combate à grande conspiração. Seguindo os conselhos do guarda seu amigo (que era profissionalmente inclinado ao asseio) aparou o cabelo e a barba, comprou um chapéu novo, vestiu um irrepreensível terno de verão azul-cinza, enfiou uma flor amarela na lapela e, em suma, converteu-se naquele sujeito elegante e quase intolerável que Gregory veio a conhecer no jardinzinho de Saffron Park. Antes que êle deixasse os quartéis da polícia, seu amigo entregou-lhe um cartãozinho azul, onde se lia um número e as palavras "A Ultima Cruzada", signo de sua autoridade oficial. Guardou-o cuidadosamente no bolso do colete, acendeu um cigarro e dali partiu para caçar e acometer o inimigo em todos os salões elegantes de Londres. Já vimos para onde sua aventura o guiou finalmente. Mais ou menos à uma e meia da madrugada de um dia de fevereiro, êle se encontrava subindo o silencioso Tâmisa, armado de bengala de estoque e revólver, solenemente eleito Quinta-feira do Conselho Central Anarquista. Quando Syme tomou a lancha, experimentou a esquisita sensação de estar vivendo num ambiente completamente novo; não só na paisagem de uma nova terra, mas na paisagem
de um novo planeta. Isto se devia, em grande parte, à impensada porém firme resolução daquela noite e, um pouco também, à completa mudança havida no tempo e no céu, desde que entrara na lôbrega taberna duas horas antes. Todos os sinais da apaixonada plumagem daquele anuviado crepúsculo haviam-se desvanecido. Agora a nudez da lua pairava na nudez do céu. A lua estava tão redonda, tão cheia, que (por paradoxo que deve ter sido notado inúmeras vezes) parecia um sol mais fraco. Dava, não a impressão de uma resplandecente noite de lua, mas a de um mortiço dia de sol. Sobre toda a paisagem derramava-se um irreal e luminoso palor, como naquele crepúsculo que, no dizer de Milton, provoca o sol em eclipse. Ê isso veio reafirmar em Syme a convicção de que se achava num outro planeta mais vazio, que girava em volta de uma estrela mais triste. Contudo, opunha a esta ofuscante desolação na terra luarenta a sua cavalheiresca loucura, que chamejava na noite como uma imensa fogueira. Mesmo as coisas comuns que trazia consigo — a comida, o conhaque e o revólver carregado — revestiam-se daquela poesia concreta e material que toca o menino que leva uma espingarda num passeio ou que vai para a cama com um pedaço de bolo. A bengala de estoque e a garrafa de conhaque, embora fossem os utensílios de mórbidos conspiradores, tornavam-se as expressões de um romance mais saudável. Syme via na bengala de estoque a espada do paladino e no conhaque o vinho do trago de despedida. Em verdade, as mais desumanizadas fantasias modernas necessitam, para se firmar, de alguns símbolos mais antigos e mais simples. A aventura pode ser louca, mas o aventureiro deve ser são. O dragão sem São Jorge não seria sequer grotesco. Assim, aquela paisagem só era fantástica pela presença de um ente realmente humano. Para o espírito exaltado de Syme, as casas e os terraços reluzentes e frios das margens do Tâmisa pareciam tão ermos como as montanhas da lua. Mas a própria lua só é poética porque há o homem da lua. A lancha era manejada por dois homens, e com muito esforço avançava com lentidão. A lua transparente que alumiara Chiswick desaparecera no momento em que eles passavam por Battersea. Ao chegarem diante da portentosa frontaria de Westminster o dia começava a raiar. Raiava como enormes barras de chumbo que se racham deixando entrever barras de prata; e estas esplendiam como fogo alvacento quando a lancha, mu-
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dando de rumo, derivou para os lados de uma ampla escada de desembarque localizada um pouco além de Charing Cross. As grandes pedras do aterro revelavam-se aos olhos de Syme escuras e gigantescas. Eram negras e descomunais na infinita alvura da aurora. Contemplando-as, Syme sentia-se como se fosse desembarcar nas colossais escadarias de um palácio egípcio. Realmente, a impressão não era despropositada. Êle, em espírito, ia galgá-las para atacar os sólidos tronos de terríveis reis pagãos. Pulou da lancha sobre um degrau escorregadio e ficou, um instante, imóvel, forma escura e delgada no meio da fabulosa pedraria. Os dois tripulantes se afastaram na lancha, rumando contra a corrente. Não tinham pronunciado uma única palavra.
CAPITULO V
A FESTA DO MEDO À primeira vista, a ampla escadaria de pedra pareceu a Syme tão deserta quanto uma pirâmide; mas, antes de atingir o topo, descobrira que um homem, debruçado no parapeito, esquadrinhava o rio. Quanto à aparência, êle era totalmente convencional. Usava um chapéu alto de seda e envergava um sobretudo do tipo de moda mais formalista, com uma flor vermelha na lapela. Galgando os degraus um a um, Syme ia-se aproximando lentamente do desconhecido. E, como este nem ao menos pestanejava, pôde acercar-se o suficiente para notarlhe, sob a luz desmaiada e fosca da manhã, o rosto comprido, pálido e inteligente, rematado com um tufo triangular de barba negra na ponta do queixo, que não condizia com o todo caprichosamente escanhoado. Esta moita de pêlos parecia obra de mera negligência e destoava do rosto barbeado com esmero — rosto aberto, contemplativo e, a seu modo, nobre. Reparando em tudo isso, Syme abeirou-se ainda mais. Entretanto, o desconhecido não se mexeu. A princípio, o instinto levou Syme a crer que tinha diante de si o homem com quem devia encontrar-se. Depois, vendo que não recebia nenhum sinal, cuidou que se enganara. Agora, porém, tinha fortes razões para convencer-se de que este homem era um dos comparsas de sua doida aventura. Êle se mantinha mais calmo do que seria de esperar de alguém submetido a tão indiscreta inspeção. Estava tão imóvel como um boneco de cera e, como tal, parecia não ter nervos. Syme insistia em encarar o rosto pálido, grave e delicado, mas o rosto não se desprendia da contemplação do rio. Então, tirou do bolso o documento que Buttons lhe dera para comprovar a eleição, e exibiu-o aos olhos daquele rosto triste e belo. O
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homem sorriu e seu sorriso foi um choque: rasgava-se numa linha oblíqua, que repuxava a face direita para cima e a esquerda para baixo. Racionalmente falando, nada havia nisto de assombroso. Muita gente tem o hábito nervoso de entortar o sorriso e, em muitas pessoas, isso é até atraente. Mas para Syme, os episódios vividos, a fosca madrugada, a sombria missão que lhe fora cometida e a solidão na majestosa pedraria orvalhada acabavam por tornar aquele sorriso enervante. Havia o rio silencioso e o homem silencioso, de feições clássicas. De repente, o sorriso do homem precipitava o toque extremo de pesadelo. O espasmo de sorriso foi momentâneo e o rosto logo readquiriu sua harmoniosa melancolia. Sem dar nem pedir explicações, o desconhecido pôs-se a falar como quem conversa com velho colega. — Se formos diretamente a Leicester Square, disse, chegaremos a tempo de tomar café. Domingo insiste sempre conosco para que tomemos café bem cedinho. Você dormiu? — Não, disse Syme. — Nem eu, continuou o outro familiarmente. Vou ver se consigo dormir depois do café. Fala com inopinada urbanidade, mas a voz extremamente morta contradizia o fanatismo do rosto. A bem dizer, todas as palavras afáveis eram para êle convenções defuntas e sua vida era o ódio mesmo. Fêz uma pausa e continuou: — Naturalmente o secretário de sua seção contou-lhe tudo que sabia. Mas uma coisa que ninguém nunca pôde saber é qual terá sido a última idéia do Presidente. Suas idéias vicejam como as florestas tropicais. Assim, caso você não saiba, é bom saber desde já que êle está pondo em prática um novo plano de esconder-se. Consiste precisamente em não nos escondermos de jeito nenhum. No começo, evidentemente, nós nos reuníamos numa cela subterrânea, tal como vocês. Depois Domingo ordenou que reservássemos um quarto num restaurante. Diz êle que se nós não parecemos estar escondidos ninguém pensará em perseguir-nos. Bem, êle é um homem sem igual na terra, mas chego a pensar às vezes que seu cérebro imenso, à medida que os anos passam, vai se tornando um pouco maluco. Pois não é que agora nos pavoneamos nas barbas do público? Tomamos o café da manhã numa varanda — numa varanda, veja bem — que dá para Leicester Square. — E o que diz o povo? perguntou Syme.
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— O que o povo diz é muito simples, respondeu-lhe o guia. Diz que somos um bando de senhores galhofeiros que se dão ares de anarquistas. — Tenho para mim que é um plano verdadeiramente astucioso, disse Syme. — Astucioso! Diabo leve esse seu descaramento! Astucioso! bradou o outro, numa súbita voz aguda e estridente, tão perturbadora e discrepante como o sorriso torto. Quando, por uma fraçãozinha de segundo apenas, você vir o Domingo, deixará de chamá-lo astucioso. E assim foram ter ao fim de uma rua estreita e depararam com Leicester Square banhada pela luz do sol matinal. Suponho que nunca se saberá por que esta praça parece tão exótica e, de certa maneira, tão continental. Nunca se saberá se é o seu aspecto estrangeiro que seduz os estrangeiros ou se são os estrangeiros que lhe dão semelhante aspecto. Naquela manhã este exotismo aparecia singularmente nítido. O largo espaçoso, a folhagem ensolarada, a estátua e os contornos sarracenos do Alhambra formavam uma réplica de uma praça pública francesa ou espanhola. E isto vinha confirmar a sensação que, de todos os modos, tinha invadido Syme no decurso de toda a aventura, isto é, a sensação sobrenatural de ter-se extraviado num mundo novo. O fato é que êle tinha comprado, desde os tempos de garoto, muitos maus charutos em Leicester Square. Contudo, quando dobrou a esquina e avistou as árvores e as cúpulas mouriscas, esteve a ponto de jurar que entrara numa desconhecida Place disso ou daquilo de alguma cidade estrangeira. A um canto da praça sobressaía o oitão de um hotel próspero mas sossegado, cuja fachada dava para outra rua. Na parede via-se uma larga porta-janela que era provavelmente a entrada de um imenso restaurante. Na parte de fora dessa janela, praticamente suspensa sobre a praça, erguia-se uma varanda apoiada num formidável contraforte, suficientemente espaçosa para conter uma mesa grande. De fato, continha uma mesa de jantar, ou, mais propriamente, uma mesa de café, em torno da qual se abancavam, em pleno sol e visíveis a toda a rua, homens barulhentos e palradores, todos vestidos na insolência da moda, com coletes brancos e lapelas floridas. Algumas de suas pilhérias podiam. ser ouvidas no outro lado da praça. Ao ver o grave Secretário exibir seu sorriso absurdo,
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Syme compreendeu que esta turbulenta assembléia matutina era o conclave secreto dos Dinamiteiros Europeus. Depois, como continuasse a contemplá-los, Syme viu uma coisa que não tinha visto antes. Sem dúvida não a vira porque ela era excessivamente grande para ser vista. No ponto mais próximo da varanda, obstruindo boa parte da perspectiva, elevava-se o dorso montanhoso de um homem descomunal. Assim que o viu, o primeiro pensamento de Syme foi que o peso do homem podia ocasionar o desmoronamento da varanda de pedra. Sua vastidão não consistia somente no fato de que êle era excepcionalmente alto e inacreditavelmente gordo. Desde as proporções originais tal homem devera ter sido planejado como um gigante, do mesmo modo que uma estátua é deliberadamente cinzelada como um colosso. Vista de trás, a cabeça coroada de cabelos brancos parecia mais volumosa do que uma cabeça devia ser. As orelhas que se destacavam dela eram maiores do que as orelhas humanas. Todo êle fora terrivelmente ampliado na escala; e este senso das dimensões era tão desvairado que quando Syme olhava para aquele homem tinha a impressão de que os outros personagens subitamente minguavam e ananicavam-se. Lá estavam eles sentados como antes, com suas flores e sobrecasacas, mas agora assemelhavam-se a cinco garotos entretidos durante o chá pelo homem gigantesco. Quando Syme e o guia se aproximaram da porta lateral do hotel, um criado veio atendê-los com um sorriso em que se lhe viam todos os dentes. — Os cavalheiros estão lá em cima, disse. Estão conversando e rindo a valer. Dizem que vão lançar bombas no rei. E o criado afastou-se apressadamente com um guardanapo no braço, divertido com a singular frivolidade dos cavalheiros do andar superior. Os dois homens subiram a escada em silêncio. Syme jamais pensara em perguntar se o homem monstruoso que quase abarrotava e desmoronava a varanda era o grande Presidente de quem os outros tinham medo. Soube que era êle mesmo com inexplicável mas instantânea certeza. Syme era realmente um desses homens abertos às mais extravagantes influências psicológicas, num grau um pouco perigoso para a saúde mental. Totalmente livre do medo aos perigos físicos, era exageradamente sensível ao cheiro dos danos espirituais. Já por duas vezes naquela noite pequeninas coisas insignificantes haviam-lhe exacerbado o espírito, dando-lhe a sensação
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de que se achava a poucos passos dos quartéis-generais do inferno. E esta sensação se tornava opressiva à medida que êle se aproximava do grande Presidente. Ela o esmagava sob a forma de uma pueril mas odiosa fantasia. Ao atravessar uma sala interior para chegar à varanda, pareceu-lhe que o rosto imenso de Domingo se dilatava; e Syme se deixou dominar pelo temor 3e que, quando estivesse muito próximo, o rosto se tornaria desmesurado e êle, então, não poderia conter um grito. Recordou que, quando era menino, não ousava olhar para a máscara de Memnon no Museu Britânico, por ser ela uma cara e por ser tão grande. Com um esforço mais heróico do que o de saltar sobre um rochedo, encaminhou-se para o assento vazio a um canto da mesa e sentou-se. Os presentes saudaram-no com uma chacota jovial, como se o conhecessem desde muito tempo. Acalmou-se um pouco ao reparar em seus casacos convencionais e no sólido e brilhante bule de café. Depois, pousou o olhar novamente em Domingo: o rosto dele era enorme; mesmo assim, era concebível num ente humano. Na presença do Presidente a confraria inteira parecia mais do que insípida. À primeira vista, nada chamava a atenção, exceto o fato de se acharem todos, por um capricho do Presidente, vestidos com festiva respeitabilidade, o que dava à refeição um aspecto de banquete nupcial. A verdade é que, num breve relance, só um homem se distinguia. Devia ser o dinamiteiro típico. Trajava o uniforme da ocasião: alto colarinho branco e gravata de cetim. Mas desse colarinho surgia uma cabeça indomável e inconfundível, com intratável mata de cabelos e barba castanhos, que quase encobriam uns olhos de Skye terrier. No entanto, os olhos varavam o emaranhado e se mostravam como os olhos tristes do servo russo. Essa fisionomia não provocava o mesmo terrível efeito que a do Presidente, mas possuía todo o sortilégio que pode provir do grotesco absoluto. Se da gravata e do colarinho rijo pulasse inesperadamente a cabeça de um gato ou de um cão não causaria um contraste mais absurdo. O homem parece que se chamava Gogol. Era polonês e, neste círculo de dias da semana, recebera o nome de Terçafeira. Possuía alma e verbo incuràvelmente trágicos, e não podia forçar-se a representar o próspero e frívolo papel que dele exigia o Presidente Domingo. Com efeito, no momento em que Syme entrou, o Presidente, com aquela atrevida des-
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consideração pela suspeita pública, que era sua política, estava caçoando da inabilidade de Gogol para adotar modos convencionais. — Nosso amigo Terça-feira, dizia o Presidente numa voz profunda mas cheia de quietude e volume, nosso amigo Terça-feira parece não entender bem a idéia. Veste-se como um cavalheiro, mas desconfio que é uma alma grande demais para comportar-se como tal. Insiste nos métodos do conspirador teatral. Ora, se um cavalheiro de cartola e sobrecasaca passeia em Londres ninguém vai pensar que êle é um anarquista. Mas se um cavalheiro bota cartola e sobrecasaca e depois sai a passear de quatro pés... bem, pode atrair a atenção. E é isso o que faz o Irmão Gogol. Sai a passear de quatro pés com tão inesgotável diplomacia que agora está se vendo em grande dificuldade para caminhar ereto. — Meu forte não é andar esgondido, respondeu contrariado Gogol, com pesado sotaque estrangeiro. Não estou envergonhado da gausa. — Mas você está. Está sim, meu velho, e a causa também está envergonhada de você, continuou o Presidente bonacheirão. Você se esconde como os outros; mas, veja bem, não sabe fazê-lo porque é um asno consumado! Você procura combinar dois métodos incompatíveis. Quando um chefe de família dá com um homem debaixo da cama é provável que se detenha para averiguar o caso. Mas se êle descobre debaixo da cama um homem de cartola, convenhamos, meu caro Terça-feira, que êle jamais esquecerá esse fato. Quando você foi encontrado debaixo da cama do Almirante Biffin... — Também não sou forte em trapazas, disse lügubremente Terça-feira, enrubéscendo. — Exato, meu caro, exato! exclamou o Presidente com grave cordialidade. Você não é forte em coisa nenhuma. Enquanto a conversação prosseguia neste tom, Syme passou a examinar mais acuradamente os homens que o rodeavam. E, pouco a pouco, foi outra vez dominado por aquele sentimento de algo espiritualmente raro. Pensara, antes, que todos ali tinham a estatura da média das pessoas e vestiam os trajes comuns, com a evidente exceção do cabeludo Gogol. Contudo, ao observar os demais, começou a ver em cada um deles exatamente aquilo que vira no homem à margem do rio: um pormenor demoníaco. Aquele
sorriso torto, que, de um momento para outro, desfigurava o belo semblante do homem que lhe servira de guia, era típico de todos esses tipos. Cada um carregava com alguma coisa, só percebida talvez na décima ou vigésima olhadela, que não era normal e que era difícil de ser humanamente concebida. Syme dizia, para si mesmo, que todos eles tinham o aspecto de pessoas elegantes e sociáveis, acrescido de uma distorção conseguida num espelho curvo imperfeito. Somente os exemplos individuais darão a conhecer esta semi-oculta excentricidade. O cicerone de Syme recebera o título de Segunda-feira. Era Secretário do Conselho e nada, exceto o riso assustador e feliz do Presidente, espalhava maior temor do que seu sorriso oblíquo. Mas agora que Syme dispunha de mais espaço e luz para observá-lo, atentava noutras peculiaridades. Seu rosto formoso era tão macilento que Syme julgou-o consumido por alguma doença; mas, de certo modo, a própria ansiedade dos olhos escuros desmentia esta suposição. Não era enfermidade física que o afligia. Seus olhos ardiam em tortura intelectual, como se o pensamento mesmo fosse dor. Êle era o paradigma da tribo, onde todos partilhavam de alguma aberração sutil e distinta. Junto dele sentava-se Terça-feira, o cabeludo Gogol, um homem mais obviamente louco. Em seguida estava Quarta-feira, um certo Marquês de St. Eustache, personagem suficientemente característico. A uma rápida inspeção, êle nada revelava de insólito, salvo o fato de ser o único conviva que vestia as roupas elegantes como se elas realmente lhe pertencessem. Usava uma barba negra quadrada, à francesa, e uma sobrecasaca negra ainda mais quadrada, à inglesa. Mas Syme, sensível a essas coisas, percebeu que o homem levava consigo uma rica atmosfera — rica e sufocante — que lembrava, desarrazoadamerite, os narcotizantes odores e as lâmpadas mortiças dos mais sombrios poemas de Byron e Poe. A isso calhava o seu modo de vestir-se, não de cores mais suaves, mas de tecidos mais leves; seu negro parecia mais opulento e mais cálido que as sombras negras que o cercavam, como se fosse composto de côr mais profunda. Dir-se-ia que seu casaco negro só era negro por ser púrpura muito viva, e que sua barba negra só era negra por ser azul intenso. E, na caliginosa espessura da barba, sua boca vermelho-escuro mostrava-se insolente e sensual. O que quer que êle fosse não era um francês; podia ser um judeu; podia ser
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algo ainda mais impenetrável no obscuro coração do Oriente. No deslumbrante colorido dos mosaicos e quadros persas, que reproduzem os déspotas em caçadas, vêem-se esses olhos amendoados, essas azuladas barbas negras, esses lábios carmesins e cruéis. Depois vinha Syme e a seu lado um ancião, o Professor de Worms, que ocupava o posto de Sexta-feira, cuja vacância, por falecimento do ocupante, era aguardada de uma hora para outra. A inteligência era a única coisa que se salvava desse estágio final de decadência senil. Seu rosto era tão cinzento como sua comprida barba cinzenta e sua testa alteava-se até fixar-se numa ruga de moderado desespero. Em nenhum outro caso, nem mesmo no de Gogol, o lustre nupcial do traje exprimia um contraste mais doloroso. A flor vermelha na lapela ressaltava diante de um rosto inteiramente descolorido como chumbo. O efeito era repugnante, como se uns bêbedos almofadinhas tivessem com suas roupas vestido um cadáver. Quando se erguia ou se sentava, o que fazia depois de muito esforço e risco, denunciava algo pior do que simples fraqueza, algo indefinivelmente aliado ao horror de toda a cena. Denunciava não apenas decrepitude, mas corrupção. Outra odiosa fantasia cruzou a mente vibrátil de Syme, insinuando que, ao menor movimento, uma perna ou um braço daquele homem podia soltar-se do corpo. Na extremidade da mesa achava-se o homem chamado Sábado, justamente o mais simples e enganoso de todos. Baixo, atarracado, cara escura, quadrada e barbeada, dizia-se médico e Buli era seu nome. Surpreendia-se nele aquela combinação de savoir-faire com uma espécie de solícita rudeza, o que é mais ou menos encontradiço nos jovens médicos. Usava as roupas festivas antes com arrogância do que com tranqüilidade e trazia um sorriso estampado na cara. Não se lhe descobria outra singularidade além dum par de óculos escuros, quase opacos. Podia ter sido apenas um crescendo de fantasia nervosa, mas para Syme aqueles discos negros eram terrificantes; recordava-lhe sinistras histórias meio esquecidas, histórias de moedas que se colocavam nos olhos dos mortos. Por isso o olhar de Syme não se apartava dos vidros negros nem do esgar cego. Usados pelo moribundo Professor ou mesmo pelo pálido Secretário, não estariam mal empregados. Mas nos olhos do homem mais moço e mais corpulento eles nada mais eram que
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um enigma. Roubavam a chave do rosto. Não se podia dizer o que significavam seu sorriso e sua gravidade. Um pouco por isto e um pouco por ser êle*dono de grosseira virilidade, na qual os outros eram deficientes, Syme presumiu que o médico era o mais perverso de todos aqueles homens perversos. E chegou até a admitir que os olhos de Buli tinham sido encobertos porque eram medonhos de ver.
CAPITULO VI
A DESCOBERTA Tais eram os seis homens que haviam jurado destruir o mundo. Na presença deles Syme esforçava-se continuamente para manter o senso comum. Às vezes, via que suas suposições eram subjetivas, que se achava diante de homens normais, dos quais um era velho, outro nervoso, outro míope. Mas logo avassalava-o novamente o sentimento de um simbolismo sobrenatural. Sob todos os aspectos, aqueles sujeitos pareciam colocar-se nos últimos limites das coisas, assim como as teorias por eles sustentadas se colocavam nos últimos limites do pensamento. Compreendia que cada um deles atingira, por assim dizer, o ponto final de alguma abstrusa via do raciocínio. Não podia deixar de imaginar, como numa velha fábula, que se um homem caminhasse em direção ao ocidente, até ao fim do mundo, encontraria alguma coisa — uma árvore, digamos — que era mais ou menos igual a uma árvore, uma árvore possuída por um espírito; e que se êle caminhasse em direção ao oriente, até o fim do mundo, encontraria alguma outra coisa que não era rigorosamente igual a si mesma — uma torre, talvez, cuja simples forma era adulterada. Assim, esses homens pareciam elevar-se, violentos e enigmáticos, sobre um último horizonte, como se fossem visões da fronteira. As extremidades da terra se tocavam. A conversa não foi perturbada com a entrada de Syme; e não era o menor dos contrastes, naquela desooncertante matinada, o que se verificava entre o tom fluente e despreocupado da palestra e seu terrível conteúdo. Entregavam-se à discussão de uma conspirata real e muito próxima. Lá em baixo o criado dera uma informação exatíssima ao dizer que eles estavam falando de bombas e de reis. Dali a apenas três dias,
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o Czar ia encontrar-se em Paris com o Presidente da República da França, e aqui, enquanto comiam toucinho com ovos na varanda soalheira, esses jubilosos senhores haviam decidido como dar cabo dos dois potentados. Até o instrumento já fora escolhido, e coubera ao barbinegro Marquês ser o portador da bomba. Usualmente, a imediação de um crime positivo e objetivo como esse bastaria para despertar e curar Syme de todas as suas inquietações puramente místicas. Êle não teria pensado em outra coisa que na necessidade de ir em socorro de dois corpos humanos ameaçados de despedaçamento pela ação do ferro e do gás rugiente. Mas a verdade era que agora começava a dominá-lo um terceiro tipo de medo, mais ativo e pungente do que a repulsa moral ou a responsabilidade social. Muito simplesmente não se amedrontava com o que pudesse suceder ao Presidente francês ou ao Czar; começava a amedrontar-se com o que podia suceder a êle próprio. Bastante loquazes, aqueles homens pouca atenção lhe davam e discutiam entre si, com os rostos chegados e quase uniformemente graves, exceto quando por um instante o sorriso se rasgava oblíquo na cara do Secretário, como o denticulado relâmpago se rasga oblíquo no firmamento. Mas uma coisa havia, tão persistente, que principiou por perturbar Syme e terminou por aterrá-lo. Era o Presidente, que o fitava fixamente com desmedido mas ambíguo interesse. O agigantado homem estava muito quieto, porém seus olhos azuis saíam fora das órbitas e enfiavam-se em Syme. Syme estava na iminência de pôr-se em pé e saltar da varanda. Quando tinha sobre si os olhos do Presidente, sentia-se como se fosse feito de vidro. Reconhecia, sem a menor sombra de dúvida, que Domingo, sossegada e misteriosamente, tinha descoberto que êle era espião. Alongando o olhar do parapeito da varanda, viu lá em baixo um polícia a contemplar distraído os luzentes gradis e as árvores cheias de sol. Foi então que o assaltou a grande tentação que havia de atormentá-lo por muitos dias. Diante desses homens poderosos e repulsivos, que eram os príncipes da anarquia, quase esquecera a frágil e excêntrica pessoa do poeta Gregory, simples esteta do anarquismo. Chegava a pensar nele agora com velha simpatia, como se tivessem brincado juntos na infância. Mas lembrou-se de que estava ainda vinculado a Gregory por um solene compromisso. Prometera não fazer jamais aquela coisa
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que estava a ponto de fazer agora. Prometera não transpor de um salto aquela varanda para ir falar com o polícia. Retirou a mão fria do frio parapeito de pedra. Sua alma oscilou ao sabor de uma vertigem de indecisão moral. De um lado, não tinha mais que partir o fio de um voto imprudente, feito a uma súcia de velhacos, para que sua vida pudesse ser tão aberta e banhada de sol como a praça fronteira. De outro lado, tinha somente que preservar sua antiquada honradez para ser, palmo a palmo, triturado pelo poderio desse soberbo inimigo do gênero humano, cuja inteligência era uma câmara de tortura. Todas as vezes que dirigia a vista para a praça, lá achava o tranqüilo polícia, um monumento do senso comum, da ordem comum. Todas as vezes que se voltava para a mesa do café topava o Presidente estudando-o plàcidamente com seus olhos enormes e intoleráveis. Em toda a torrente de seus pensamentos, dois houve, porém, que nunca lhe passaram pela cabeça. Primeiro: nunca lhe ocorreu duvidar de que o Presidente e o resto do Conselho pudessem esmagá-lo, caso êle persistisse na idéia de enfrentá-los sozinho. O lugar podia ser público, o projeto podia parecer impossível. Mas Domingo não era um homem que se arriscasse assim comodamente sem ter antes deixado aberto, não se sabe como nem onde, seu alçapão de ferro. Com veneno anônimo ou com acidente de rua, com hipnotismo ou com o fogo do inferno, Domingo podia certamente eliminá-lo. Se desafiasse aquele homem era provável que não sobrevivesse: ou morreria ali mesmo na cadeira em que estava sentado ou algum tempo depois, como ao fim de uma doença inocente. Se chamasse prontamente a polícia e ela os prendesse, se contasse tudo e mobilizasse contra eles toda a força da Inglaterra, provavelmente escaparia. De outro modo, era impossível. Mas naquela varanda, no meio de cavalheiros aparentemente ocupados em contemplar uma praça cheia de sol e de gente, Syme não se sentia mais seguro do que se estivesse num barco, no meio de corsários armados, contemplando um mar deserto... O segundo pensamento que nunca lhe ocorreu foi o de ser espiritualmente conquistado pelo inimigo. Muitos modernistas, calejados numa impotente adoração da inteligência e da força, podiam ter afrouxado sua lealdade, sob a tirania de uma personalidade vigorosa. Podiam ter chamado Domingo super-homem. E se tal criatura é concebível, sem dúvida era Domingo quem melhor a corporificava, com seu alheamento
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sísmico, de estátua ambulante. Podia merecer qualquer nome sobre-humano, por sua corpulência, que era demasiadamente óbvia para ser descoberta, e por sua caraça, que era demasiadamente franca para ser decifrada. Mas essa era uma espécie de baixeza moderna com que Syme não podia pactuar, mesmo em extrema depressão. Como qualquer um, êle era bastante covarde para temer a brutalidade; mas não era tão covarde que a admirasse. Os homens comiam e conversavam, e até nisso eles eram típicos. Dr. Buli e o Marquês, despreocupadamente e com naturalidade, provavam das melhores iguarias da mesa: faisão frio e pastel de Estrasburgo. O Secretário, porém, era vegetariano e, entre meio tomate cru e três quartos de um copo de água morna, falava fervorosamente do projetado assassínio. O velho Professor consumia as papas adequadas à sua asquerosa segunda infância. Ainda aqui o Presidente exercia seu curioso e maciço predomínio. Comia por vinte homens, comia incrivelmente, com assombrosa voracidade, de- modo que era o mesmo que pôr-se a gente a contemplar o trabalho de uma fábrica de salsicha. Entretanto, depois de devorar uma dúzia de bolos e sorver meia canada de café, continuava com a imensa cabeça inclinada e os olhos fixos em Syme. Muitas vezes me ponho a pensar, disse o Marquês dando uma boa mordida numa fatia de pão com geléia, se não seria melhor para mim fazer uço do punhal. Muitas coisas formidáveis têm sido feitas com êle. E seria uma nova emoção enfiar um punhal num Presidente da França e depois revolvê-lo por dentro. — Você se engana, respondeu o Secretário franzindo as negras sobrancelhas. O punhal era simplesmente a expressão da velha pendência pessoal com um tirano pessoal. A dinamite não é apenas nosso melhor instrumento; é o nosso melhor símbolo. Para nós é um símbolo tão perfeito como o incenso para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque se expande. Assim também é o pensamento: só destrói porque se expande. O cérebro do homem é uma bomba, bradou abandonando-se subitamente à sua estranha paixão e golpeando o crânio com violência. Meu cérebro sente-se como uma bomba, noite e dia. Precisa explodir! Precisa explodir! O cérebro do homem deve explodir, ainda que arrebente todo o universo.
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— Não me agradaria que o universo arrebentasse justamente agora, frisou o Marquês. Pretendo cometer uma porção de barbaridades antes de morrer. Ontem na cama pensei numa. — Não importa. Já que o fim único de todas as coisas é o nada, atalhou Dr. Buli com seu esfíngico sorriso, não vale a pena fazê-la. O velho Professor, que se distraía a olhar o teto, disse: — No íntimo toda a gente sabe que não vale a pena fazer coisa nenhuma. Houve um silêncio singular. Depois o Secretário falou: — Mas nós nos afastamos do assunto. A questão está em saber como Quarta-feira há de dar o golpe. Acho que todos estamos de acordo na idéia original da bomba. Quanto aos outros preparativos, eu sugeriria que amanhã de manhã êle fosse antes de tudo a . . . A frase foi cortada pelo súbito aparecimento de uma sombra vastíssima. O Presidente Domingo se erguera e parecia tapar o céu que os cobria. — Antes de discutirmos qualquer desses pontos, disse numa voz calma e quieta, passemos para dentro. Tenho a dizer-lhes uma coisa muito particular. Syme levantou-se antes dos outros. O instante decisivo tinha enfim chegado; a pistola apontava para sua cabeça. Podia ouvir o policial ociosamente agitar-se e bater com os pés na calçada, pois a manhã, apesar de luminosa, era fria. Na rua um realejo iniciou de repente uma toada jovial. Em pé, Syme se entesou como se estivesse ouvindo um toque de cometa antes da batalha. Sentiu-se dono de uma coragem sobrenatural, que êle não sabia de onde vinha. Aquela melodia vibrante parecia-lhe cheia da vivacidade, da vulgaridade e da intrepidez dos pobres, que, em todas aquelas ruas imundas, se apegavam aos pudores e às esmolas da cristandade. A traves sura juvenil de entrar na polícia tinha desaparecido de sua mente; não pensava em si mesmo como representante da corporação de cavalheiros que, por capricho, se fizeram milicianos, nem no velho excêntrico que habitava o quarto escuro. Via-se como embaixador de todo esse povo humilde e bom das ruas, que diariamente marchava para a batalha ao som do realejo. E esta exaltada ufania de ser humano elevava-o inexplicavelmente a uma altitude incomensurável, infinitamente acima dos sujeitos monstruosos que o cercavam. Por um instante, ao menos, olhou sobrarfceiro, do píncaro estelar do lugar-comum,
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para todas aquelas cambaleantes excentricidades. Diante deles sentia toda a inconsciente e elementar superioridade que sente o bravo diante de feras poderosas ou o sábio diante de erros poderosos. Sabia que não tinha a força intelectual nem a força física do Presidente Domingo, mas nesse momento isso não lhe interessava mais do que o fato de não possuir os músculos do tigre ou um chifre no nariz como o rinoceronte. Tudo foi tragado pela convicção inabalável de que o Presidente estava errado e o realejo estava certo. Ressoou em sua cabeça aquele incontestável e terrível truísmo da canção de Rolando: Pcüens ont tort et Chrétiens oni droit, que, no antigo francês nasalado, traduz o tumulto e o fragor das armas em choque. Liberto o espírito da carga de fraqueza que o oprimia, adotou a firme decisão de enfrentar a morte. Se a gente simples do realejo podia desempenhar seus milenários deveres, também êle poderia-desempenhar os seus. O próprio orgulho de cumprir a palavra consistia em ter de cumpri-la para os ímpios. Seu último triunfo sobre aqueles lunáticos resumia-se em acompanhá-los ao quarto escuro e morrer por alguma coisa que eles não podiam sequer entender. O realejo parecia tocar uma marcha com a energia e a multiplicidade de sons de uma orquestra; e sob os clarins que entoam a altivez da vida Syme ouvia os profundos rufos cadenciados dos tambores que compassam a altivez da morte. Os conspiradores, em fila, começavam a passar para os cômodos internos. Syme seguia-os, em último lugar, exteriormente calmo, mas seu cérebro e seu corpo latejavam num ritmo apaixonado. O Presidente levou-os por uma sinuosa escada lateral (que devia ser utilizada pelos criados) e introduziu-os num quarto escuro, frio e desabitado, ao qual a mesa e os bancos imprimiam um aspecto de refeitório abandonado. Depois que estavam todos lá dentro o Presidente fechou a porta a chave. O primeiro a falar foi Gogol, o irreconciliável. que parecia estourar de furores inarticulados. — Zim! Zim! grunhiu com obscura excitação, tornando o pesado sotaque polonês quase impenetrável. Vozes dizem que não se esgondem. Dizem que se deixam ver. É jalzo. Quando têm um azunto importante correm a discuti-lo numa caixa esgura.
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O Presidente dava a impressão de aceitar a crítica incoerente do estrangeiro com total benevolência. — Você, Gogol, ainda não pode compreender, disse em tom paternal. Ouvindo-nos dizer bobagens naquela varanda ninguém procurará saber para onde vamos depois.. Se tivéssemos vindo primeiro para cá teríamos toda a criadagem no buraco da fechadura. Você parece não conhecer a humanidade. — Morro por ela! exclamou o polonês numa agitação estúpida. Mato zeus oprezores! Mas não gosto dessas bringadeiras de esgonder. Quero matar o tirano na praza públiga. — Ah, sim, percebo! disse o Presidente aprovando bondosamente, enquanto se sentava à cabeceira da longa mesa. Primeiro você morre pela humanidade, depois ressurge e mata os que a oprimem. Correto! Agora quero pedir-lhe que modere seus inestimáveis sentimentos e que tome seu lugar à mesa junto aos outros. Pela primeira vez nesta manhã uma coisa aproveitável vai ser dita. . Com a inquieta diligência que vinha mostrando desde as primeiras ordens, Syme foi o primeiro a sentar-se, Gogol sentou-se por último, resmungando dentro das barbas castanhas sobre gombr omissos. Com exceção de Syme, ninguém parecia ter a mínima idéia do golpe que estava prestes a ser dado. Quanto a êle, sentia-se como um homem que sobe a um cadafalso com a intenção de fazer, a qualquer preço, um bom discurso. — Camaradas, começou o Presidente, pondo-se em pé com rapidez. Já fomos longe demais com esta farsa. Reuni-os aqui para dizer-lhes uma coisa tão simples mas tão surpreendente, que até os criados lá de cima (acostumados a nossas inconseqüências) poderiam descobrir uma esquisita seriedade em minha voz. Camaradas, estivemos discutindo planos e citando lugares. Proponho, antes de mais nada, que esses planos e lugares não sejam aprovados nesta sessão e que fiquem inteiramente sob a direção de um membro digno de confiança. Sugiro o camarada Sábado, Dr. Buli. Até aí, todos contemplavam o Presidente; mas depois estremeceram em seus assentos, porque as palavras que se seguiram, embora não fossem proferidas em voz alta, possuíam vivida e sensacional ênfase. Domingo deu um murro na mesa. — Nem mais uma palavra sobre planos e lugares! Nem um ínfimo pormenor sobre o que vamos fazer deve ser comentado nesta reunião.
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Domingo passara a vida atordoando os sequazes, mas parecia que êle nunca os tinha realmente atordoado senão agora. Todos agitaram-se febrilmente, exceto Syme, que estava duro no seu canto, com a mão no bolso empunhando o revólver carregado. Quando viesse o ataque venderia muito cara a vida. Enfim ia saber se o Presidente era mortal. Domingo continuou polidamente: — Sem dúvida vocês compreenderão que só um motivo pode proibir a livre manifestação do pensamento neste festival da liberdade. Não importa que os estranhos nos ouçam. Eles pensam que estamos pilheriando. Mas o que tem importância capital é que entre nós existe alguém que não é dos nossos, que está a par dos nossos graves desígnios, mas que não os compartilha, que... O Secretário interrompeu-o com um grito agudo, como uma mulher. — Não pode ser! exclamou erguendo-se num pulo. Não é possível! O Presidente bateu na mesa com a palma da mão, enorme e gorda como a barbatana de um peixe colossal. — Sim, disse vagarosamente, há um espião neste quarto. Há um traidor nesta mesa. Não vou gastar mais palavras. Seu nome é . . . Syme começou a levantar-se, com o dedo firme no gatilho. — Seu nome é Gogol, disse o Presidente. É esse cabeludo impostor que passa por polonês. Gogol deu um pulo do banco, segurando um revólver em cada mão. Com a mesma presteza voaram-lhe três homens ao pescoço. Até o Professor fêz um esforço para se pôr em pé. Mas Syme pouco assistiu da cena, cegado por benéfica escuridão, e afundou trêmulo no banco, numa apatia de intenso alívio.
CAPITULO VII
A INEXPLICÁVEL CONDUTA DO PROFESSOR DE WORMS — Sentem-se! ordenou Domingo com uma voz só empregada em ocasiões excepcionais, uma voz que obrigava os homens a depor as espadas desembainhadas. Os três que se tinham levantado afastaram-se de Gogol, e este equívoco personagem voltou a seu lugar. — Bem, meu prezado senhor, disse com energia o Presidente, dirigindo-se a Gogol como alguém se dirige a um desconhecido, quer fazer-me o favor de colocar a mão no bolso superior do colete e mostrar-me o que traz dentro dele? O suposto Gogol, um tanto pálido sob o emaranhado de cabelos negros, meteu, com aparente frieza, dois dedos dentro do bolso e de lá retirou um cartão azul. Ao ver o cartão, Syme despertou de novo para o mundo exterior e, embora nada pudesse ler da inscrição, pois o cartão estava na outra extremidade da mesa, notou a alarmante semelhança com o cartão azul que trazia no bolso e que tinha recebido quando se alistou na milícia antianarquista. — Patético eslavo, continuou o Presidente, trágico filho da Polônia, está preparado para negar, diante desse cartão, que nesta sociedade você é, vamos dizer, de trop? — Oh, de modo algum! exclamou o ex-Gogol. Todo mundo se sobressaltou ao ouvir uma voz clara, comercial e algo familiar surgir daquela floresta de cabelos estrangeiros. Era irracional, como se um chinês subitamente entrasse a falar com sotaque escocês. — Concluo que você não desconhece a posição em que está, observou Domingo.
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— Acertou, disse o polonês. E vejo que é um bocado incômoda. Tudo quanto tenho a dizer é que não creio que um polonês pudesse imitar meu sotaque como eu imitei o dele. — Concordo. Admito que seu sotaque é inimitável. Eu mesmo tentei praticá-lo no banho. Vê algum inconveniente em deixar aqui a barba e o cartão? — Nenhum, respondeu Gogol, e com um dedo arrancou toda a hirsuta cabeleira, expondo uns fios vermelhos e ralos e um rosto pálido e petulante. Fazia muito calor, acrescentou. — Farei a justiça de confessar, disse Domingo não sem uma espécie de brutal admiração, que você parece ter-se conservado inteiramente frio aí debaixo. Agora escute aqui, Eu gosto de você. Por isso, ficaria desgostoso por uns dois minutos e meio se viesse a saber que você morreu de suplícios. Preste atenção: se você algum dia contar à polícia ou a quem quer que seja as nossas atividades, eu terei esses dois e meio minutos de desconforto. Do seu desconforto não quero falar. Passe bem. Cuidado com a escada. O detetive de cabelos vermelhos que personificara Gogol ergueu-se sem proferir uma palavra e saiu do quarto com um ar de total indiferença. Entretanto, o aturdido Syme pôde verificar que essa tranqüilidade fora adquirida de chôfre. Um leve tropeço do lado de fora da porta indicou que o despedido detetive não pensara na escada. — O tempo voa, disse expansivamente o Presidente depois de lançar um olhar para seu relógio, que, como tudo, quanto lhe pertencia, parecia maior do que devia ser. Preciso ir embora imediatamente. Vou ocupar a presidência de uma reunião humanitarista. O Secretário voltou-se para êle com semblante carrancudo. — Não seria melhor, alvitrou um tanto severamente, discutir os pormenores do plano agora que o espião nos deixou? — Não, acho que não, retrucou o Presidente no meio de um bocejo que era um discreto terremoto. Deixemo-lo como está. Sábado que cuide de tudo. Vou andando. No próximo domingo, aqui, à hora do café. Todavia, a turbulência das últimas cenas havia lacerado os nervos quase nus do Secretário. Êle era um desses homens que são conscienciosos até no crime. — Cumpre-me protestar, Presidente, contra esta irregularidade. Temos como princípio fundamental de nossa sociedade a discussão de todos os projetos em plenário. É claro
que aplaudo irrestritamente as suas precauções na presença real de um traidor... — Secretário, redargüíu rudemente o Presidente, se você botar a cabeça para ferver com um nabo ela pode prestar para alguma coisa. Não dou certeza, mas bem que pode prestar. O Secretário recuou, tomado de fúria eqüina. — Realmente não chego a compreender... começou profundamente ofendido. — É isso, é isso, disse o Presidente balançando a cabeça várias vezes. É aí que você fracassa redondamente. Nunca chega a compreender nada. Ora, asnática criatura, bramiu pondo-se de pé, você não queria ser ouvido por um espião, não é assim? Como sabe que não está sendo ouvido agora? E com estas palavras abalou do quarto, dando de ombros com indecifrável desdém. Quatro dos homens ficaram boquiabertos, sem qualquer noção aparente dos propósitos de Domingo. Somente Syme teve tal noção, o que bastou para gelar-lhe os ossos. Se as últimas palavras do Presidente tinham alguma significação era mais do que claro que êle, Syme, afinal não estava isento de suspeita. Elas significavam que, conquanto Domingo não pudesse denunciá-lo como fêz com Gogol, não podia também confiar nele como confiava nos demais. Os outros levantaram-se resmungando e correram dali à procura de almoço, pois já passava de meio-dia. Por último, lenta e miseravelmente, saiu o Professor. Depois que todos se foram, Syme permaneceu muito tempo sentado, refletindo em sua esquisita situação. Escapara do raio, mas ainda estava embaixo de üma nuvem. Ergueu-se por fim e abandonou o hotel, entrando em Leicester Square. O dia luminoso e frio tinha-se tornado muito mais frio. Quando Syme chegou na rua foi surpreendido por alguns flocos de neve. Trazia consigo a bengala de estoque e o resto da bagagem portátil de Gregory, mas esquecera o capote nalguma parte, na lancha talvez ou na varanda. Confiado em que a nevada era passageira, retrocedeu um pouco e abrigou-se no limiar de uma pequena e nauseante loja de cabeleireiros, cuja vitrina exibia unicamente uma melancólica dama de cera vestida com traje de cerimônia. A neve, entretanto, recrudescia. Porque a visão da dama de cera concorresse para deprimir seu espírito, Syme dirigiu o olhar para a rua branca e deserta. E não foi pequeno seu
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assombro ao deparar com um homem imóvel defronte da loja, de olhos fitos na vitrina. O chapéu do estranho estava empapado de neve como o chapéu do Papai Noel, e os alvos flocos cobriam-lhe as botas e os tornozelos. Contudo, parecia que nada haveria de arrancá-lo à contemplação do enfermiço manequim de traje cerimonioso e sórdido. Que um ser humano se pusesse, em tal ocasião, a embasbacar para uma loja como aquela era motivo de grande espanto para Syme; mas esse espanto gratuito mudou-se de imediato em comoção pessoal, ao constatar que o estranho não era outro senão o paralítico ancião Professor de Worms. O local é que não parecia adequado a pessoa idosa e enferma. Syme estava pronto a crer que todas as perversões tinham curso na degenerada confraria, mas não podia crer que o Professor se enamorara justamente daquele manequim. Admitia que a doença do homem (qualquer que ela fosse) se manifestava em acessos momentâneos de rigidez ou arrebatamento. Não se inclinava, porém, a sentir a menor compaixão. Ao contrário, folgava com os espasmos e os passos tardos e coxeantes do Professor, os quais lhe permitiriam fugir e deixá-lo a milhas de distância. Pois Syme desejava ardentemente libertar-se, ao menos por uma hora, de toda aquela envenenada atmosfera. Só assim, poderia concatenar os pensamentos, traçar sua política e decidir finalmente se devia ou não devia manter a promessa feita a Gregory. Abriu caminho por entre o bailado da neve, enveredou por duas ou três ruas, percorreu outras duas ou três e entrou num modesto restaurante de Soho para almoçar. Serviu-se de uns quatro pratos leves, bebeu meia garrafa de vinho tinto e finalizou a refeição com café e charuto, sempre imerso em suas meditações. Escolhera uma mesa no primeiro andar repleto do tinido de talheres e do vozeio dos estrangeiros. Recordou que, em outros tempos, tomara esses inofensivos e amáveis estrangeiros por anarquistas. E teve um arrepio ao pensar na dura realidade. Mas o arrepio veio misturado à deliciosa emoção da fuga. O vinho, o alimento habitual, o ambiente conhecido, as fisionomias de homens normais e palradores levavam-no a quase imaginar que o Conselho dos Sete Dias não passara de um pesadelo. E embora o Conselho fosse a toda prova uma realidade objetiva, era, ao menos, remota. Altos edifícios e ruas populosas punham-se entre êle e sua última visão dos sete renegados. Estava livre na livre Londres,
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bebendo vinho no meio dos livres. Um pouco mais tranqüilizado, apanhou o chapéu e a bengala e desceu vagarosamente a escada. Quando entrou no salão parou bruscamente e fincou-se no lugar. A uma mesinha próxima da janela e da rua coberta de neve sentava-se o velho anarquista Professor de Worms, com o rosto lívido e as pálpebras abaixadas, diante de um copo de leite. Por um instante, Syme ficou tão rígido como a bengala em que se apoiava. Depois, com um movimento atabalhoado, passou roçando pelo Professor, abriu precipitadamente a porta e, fechando-a com violência atrás de si, parou do lado de fora sob o rigor da neve. — Será possível que esse velho cadáver esteja me seguindo? inquiriu-se mordendo o bigode amarelo. Devo ter demorado demais lá em cima. Só assim esses pés de chumbo puderam apanhar-me. A minha felicidade é que me basta andar um pouco mais depressa para deixar esse sujeito tão longe de mim como daqui a Tombuctu. Não estarei fantasiando? Êle estava me seguindo mesmo? Acho que Domingo não seria tão tolo que mandasse um coxo perseguir-me! Pôs-se a caminho com passos rápidos, torcendo e rodopiando a bengala e tomou a direção de Covent Garden. Ao cruzar o grande mercado a neve caía de rijo, cegando e desnorteando, enquanto a tarde começava a escurecer. Os flocos atormentavam-no como um enxame de abelhas prateadas. Invadindo-lhe os olhos e a barba, acrescentavam um incessante aborrecimento a seu nervos já irritados; e no momento em que êle, claudicante, atingia a entrada de Fleet Street, perdeu a paciência: entrou numa casa de chá domingueira para abrigar-se. Como justificativa pediu uma xícara de café forte. Mal tinha acabado de fazer a encomenda, o Professor de Worms entrou coxeando pesadamente, sentou-se com dificuldade e pediu um copo de leite. A bengala de Syme caiu no chão, produzindo forte ruído metálico, revelador do aço oculto. Mas o Professor não se abalou. Syme, que era normalmente um sujeito frio, estava tão boquiaberto como um matuto diante de um passe de mágica. Não vira nenhum fiacre segui-lo; não ouvira barulho de rodas na rua; segundo todas as aparências o homem tinha vindo a pé. Mas o ancião só podia andar feito um caracol, e Syme tinha andado feito o vento. Levantou-se com presteza e agarrou a bengala, meio enlouquecido com aquela contradição na mais
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simples aritmética, e arrojou-se por entre as portas de vaivém, deixando o café intato. Um ônibus que ia para o aterro passou ruidoso numa rapidez inusitada. Syme teve que correr umas cem jardas para alcançá-lo; mas conseguiu num pulo guindarse ao pára-lama e, depois de breve pausa para tomar fôlego, subiu para o tejadilho. Fazia cerca de meio minuto que estava sentando, quando sentiu nas costas um sopro cansado e asmático. Volvendo-se imediatamente, viu elevar-se pouco a pouco nos degraus do ônibus um chapéu alto, encharcado de neve gotejante, e, à sombra da aba, a cara míope e os ombros débeis do Professor de Worms. Com o desvelo que lhe era peculiar, o Professor meteu-se num banco e enrolou-se até o queixo na manta de lã. Todos os movimentos da figura vacilante e das mãos trêmulas do ancião, todos os gestos incertos e todas as pausas pânicas pareciam pôr fora de dúvida que êle estava irremediavelmente perdido na degenerescência final do corpo. Movia-se por polegadas, sentava-se com pequenas agonias de precaução. Entretanto, a menos que as entidades filosóficas chamadas tempo e espaço não tivessem vestígio sequer de existência real, era incontestável que êle tinha corrido para tomar o ônibus. Syme pôs-se de pé no carro trepidante e, depois de lançar um olhar angustiado ao céu invernoso que, a cada instante, se tornava mais negro, disparou pela escada. Havia repelido o impulso elementar de atirar-se do alto do ônibus. Perplexo demais para poder raciocinar, precipitou-se num dos bequinhos laterais de Fleet Street como um coelho se precipita num buraco. Teve o vago pressentimento de que naquele labirinto de vielas em breve haveria de despistar o velho e misterioso bonifrate que vinha em seu encalço. Entrava e saía pelos becos tortuosos, que tinham mais de furnas que de vias públicas; e no momento em que havia completado cerca de vinte ângulos alternados e descrito um polígono inconcebível, parou para escutar qualquer rumor de perseguição. Não havia nenhum e na verdade não poderia haver, pois as ruelas estavam atapetadas de neve silente. Todavia, um pouco atrás de Red Lion Court deu com um lugar onde algum enérgico cidadão tinha afastado a neve pelo espaço de umas -vinte jardas, deixando à mostra as úmidas e cintilantes pedras do calçamento. Não deu muita atenção a isso e internou-se em mais outro braço do labirinto. Mas quando, cem jardas adiante,
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parou novamente para escutar, seu coração parou também, porque daquele trecho de pedras nuas chegavam o tinido da muleta e os passos difíceis do coxo infernal. Lá em cima o céu, carregado de nuvens de neve, envolvia Londres num negror e numa opressão prematuros para aquela hora da tarde. De cada lado de Syme as paredes da viela estendiam-se lisas e indistintas; não havia janela nem qualquer tipo de fresta. Sentiu novo impulso para fugir desse cortiço de casas e ganhar outra vez uma rua ampla e iluminada. Mas teve de vaguear e dar muitas voltas por longo tempo antes de acertar com a artéria principal. E quando a encontrou, viu que tinha saído muito mais longe do que imaginara. Achou-se na deserta vastidão de Ludgate Circus e avistou a Catedral de São Paulo assentada no céu. No primeiro momento admirou-se de encontrar essas largas avenidas tão vazias como se a peste houvesse assolado a cidade. Depois admitiu que certo vazio era natural; primeiro, porque a nevasca era mesmo perigosamente violenta, e segundo, porque era domingo. E ao pensar na palavra "domingo" mordeu o lábio; para êle tal palavra passou a ser desde então uma coisa assim como um trocadilho obsceno. Debaixo do esbranquiçado nevoeiro suspenso no céu, toda a atmosfera da cidade adquirira um fantástico matiz esverdeado como de homens sob o mar. O soturno crepúsculo escondido por trás da cúpula de São Paulo tinha cores esfumaçadas e sinistras — verde mórbido, vermelho agonizante e bronze evanescente — bastante vivas, porém, para salientar a sólida alvura da neve. Acima destas cores funestas elevava-se o vulto negro da catedral, de cujo cimo pendia enorme placa de neve, como de um pico alpino. Caíra ali por acaso, de modo a quase revestir a cúpula de alto a baixo e destacar em prata pura o orbe majestoso e a cruz. Diante deste espetáculo Syme empertigou-se e com a bengala de estoque fêz involuntária continência. Sabia que aquela figura maligna o rastreava, ora veloz ora lenta, como se fosse sua sombra, mas não se preocupou. Parecia um símbolo da fé e da intrepidez do homem que este ponto eminente da terra estivesse iluminado enquanto os céus se escureciam. Os demônios podiam ter capturado o céu, mas não tinham ainda capturado a cruz. Teve vontade de arrancar o segredo desse perseguidor dançante, saltão e paralítico; e à entrada do pátio que leva a Ludgate Circus, voltou-se, de bengala em punho, para enfrentar o inimigo.
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O Professor de Worms dobrava ronceiramente a esquina da ruazinha irregular. Seu porte inverossímil, entrevisto sob uma solitária lâmpada de gás, lembrava obrigatoriamente um fabuloso tipo das canções de ninar: "o homem torto que andou uma milha torta". Realmente era como se êle tivesse sido retorcido pelas ruas tortuosas que tinha palmilhado. Vinha-se aproximando pouco a pouco, com a luz da lâmpada a refletir-se nos óculos e no rosto resignado. Syme esperava-o como São Jorge esperou o dragão, como um homem espera uma explicação final ou a morte. E o velho Professor veio em sua direção, mas passou como um verdadeiro desconhecido, sem um pestanejo de suas funéreas pálpebras. Houve algo nesta silenciosa e inesperada inocência que deixou Syme numa fúria mortal. A cara descolorida e a atitude do homem pareciam assegurar que toda a perseguição tinha sido mera casualidade. Syme foi galvanizado por uma energia que se situava entre o azedume e uma explosão de zombaria infantil. Com gesto estouvado, fêz que ia derrubar o chapéu do velho e, gritando algo como "Manja!", pôs-se a correr pelo branco e amplo Ludgate Circus. Agora era impossível esconder-se; olhando por cima do ombro divisou a negra figura do provecto cavalheiro a segui-lo com grandes e gigantescas pernadas, como quem ganha uma corrida de uma milha. Mas a cabeça encaixada naquele corpo bambo continuava pálida, grave e profissional, como uma cabeça de pregador num corpo de arlequim. Esta irrisória caçada desenrolou-se através de Ludgate Circus e Ludgate Hill, em torno da Catedral de São Paulo e ao longo de Cheapside, enquanto Syme relembrava todos os pesadelos de sua vida. Por fim Syme enveredou para os lados do rio e foi parar perto das docas. Ao ver as vidraças amarelas de uma taberna iluminada, lançou-se para dentro dela e pediu cerveja. Era uma tasca imunda, povoada de marujos estrangeiros, onde se podia fumar ópio e puxar facas. Segundos depois, o Professor de Worms entrou no recinto. Sentou-se cuidadosamente e pediu um copo de leite.
CAPITULO VIII
O PROFESSOR EXPLICA Quando Gabriel Syme se achou definitivamente acomodado numa cadeira e teve em sua frente também definitivamente acomodadas as sobrancelhas erguidas e as pálpebras pesadas do Professor, voltaram-lhe todos os temores. Não havia dúvida de que esse sujeito incompreensível o tinha seguido desde a reunião do arrogante Conselho. Se êle possuía um caráter como paralítico e outro como perseguidor, o contraste podia torná-lo mais sedutor mas não o tornava mais inofensivo. Syme percebeu que teria irrisória compensação caso não alcançasse desmascarar o Professor e fosse por êle desmascarado. Esvaziou um canecão de cerveja antes que o Professor tocasse no copo de leite. Entretanto, uma simples conjetura dava ao seu desamparo um toque de esperança. Era bem possível que essa correria não significasse necessariamente que êle estava sob suspeita. Talvez se tratasse de uma formalidade regulamentar. Talvez essa corrida desordenada não passasse de um sinal amistoso que êle devia ter subentendido. Talvez fosse um ritual. Talvez cada novo Quinta-feira tivesse de ser caçado ao longo de Cheapside do mesmo modo que é de praxe ir por ali escoltado cada novo Prefeito. Estava elaborando um ligeiro questionário quando foi interrompido pelo Professor. Antes que Syme pudesse fazer a primeira de suas diplomáticas perguntas, o velho anarquista já se tinha dirigido a êle à queima-roupa: — É detetive? Por mais prevenido que estivesse, Syme jamais podia terse prevenido contra uma coisa tão real e contundente como esta. Sua grande presença de espírito apenas lhe permitiu responder com um ar de embaraçada jovialidade.
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— Detetive? Eu? disse rindo vagamente. O que o levou a pensar que sou detetive? — Nada de especial, respondeu calmamente o Professor. Só que achei você parecido com um polícia. E ainda continuo achando. — Terei, por engano, trazido de lá do restaurante algum casquete policial? perguntou Syme, sorrindo frouxamente. Trago por acaso um número? Terão minhas botas aquele terrível aspecto investigante? Por que você me toma por um polícia? Tenha paciência, deixe-me ser um carteiro. O velho Professor meneou a cabeça com severa gravidade, mas Syme prosseguiu na sua febricitante ironia. — Talvez me tenham escapado as sutilezas de sua filosofia germânica. Talvez polícia seja um termo relativo. Num sentido evolucionista, a transformação do macaco em polícia é tão lenta que é possível não tenha eu captado as cambiantes. O macaco é apenas o polícia que podia ser. Talvez uma solteirona de Clapham Common seja somente o polícia que podia ter sido. Não me importo de ser o polícia que podia ter sido. Não me importo de ser qualquer coisa no pensamento alemão. — Trabalha na polícia? perguntou o ancião, ignorando todo o improvisado e desesperado motejo de Syme. É detetive? O coração de Syme petrificou-se, mas o rosto não se alterou. — Sua insinuação é ridícula, começou. Porque cargas d'água... O velho quase quebrou a raquítica mesa com um violento murro de sua mão paralítica. — Minha pergunta foi clara. Não a entendeu, espião miserável? guinchou um tanto tresloucado. Você é ou não é detetive? — Não! respondeu Syme, como alguém que está à mercê do carrasco. — Jura? disse o velho, espichando sua cara morta que parecia asquerosamente viva. Jura? Jura? Sabe que se jurar em falso será condenado? Sabe que o diabo dançará em seus funerais? E que o pesadelo vai se sentar em seu túmulo? Não haverá realmente nenhum equívoco? É, então, um anarquista, um dinamiteiro? Não é detetive? De modo algum? Não faz parte da polícia britânica? Esticou o cotovelo sobre a mesa e levou a mão grande e frouxa até à orelha.
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— Não faço parte da polícia britânica, retrucou Syme com calma insana. O Professor de Worms recostou-se em sua cadeira com uma curiosa expressão de brando desespero. — É pena, disse êle, porque eu faço. Syme pôs-se em pé de um salto, empurrando para trás, com estrondo, o banco em que estava sentado. — Faz parte de quê? perguntou dificultosamente. Você é o quê? — Sou um polícia, respondeu o Professor com seu primeiro riso franco e os olhos brilhando através dos óculos. Mas como você acha que polícia é um termo puramente relativo, nada tenho a ver com você. Sou da força policial britânica; e desde que você afirma que não é da força policial britânica resta-me apenas dizer que o encontrei num clube de dinamiteiros e que nada me cabe fazer senão prendê-lo. E com estas palavras deixou cair na mesa um perfeito fac-simile do cartão azul que Syme guardava no bolso do colete, símbolo de seu poder policial. Por um segundo, Syme teve a sensação de que o cosmos se tinha transformado, de que todas as árvores cresciam para baixo e todas as estrelas se estendiam sob seus pés. Mas, pouco a pouco, formou-se nele a convicção oposta. A verdade é que nas últimas vinte e quatro horas o cosmos estivera realmente pelo avesso e só agora é que o subvertido universo voltava ao normal. Esse demônio de quem êle tinha estado a fugir durante todo o dia não era mais que um irmão mais velho que agora, do outro lado da mesa, ria zombeteiramente. Não procurou inteirar-se logo dos pormenores; bastava-lhe saborear o fato simples e auspicioso de ser esta sombra, que o perseguira com a intolerável opressão do perigo, apenas a sombra de um amigo esforçando-se por alcançá-lo. Compreendeu — pois que qualquer vitória sobre a morbidez vem sempre acompanhada de saudável humildade — que era ao mesmo tempo um idiota e um homem livre. Em tais condições chega-se a um ponto em que somente três coisas são possíveis: em primeiro lugar, uma perpetração de orgulho satânico; em segundo, as lágrimas, e finalmente o riso. O egoísmo de Syme apegou-se à primeira por alguns segundos, mas logo adotou a terceira. Retirando do bolso do colete seu próprio cartão azul, atirou-o na mesa e, sacudindo a cabeça para trás, até que sua barbicha
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amarela quase apontava para o teto, rebentou numa selvagem gargalhada. Mesmo naquele antro abafado, continuamente cheio do barulho de facas, pratos, latas de conserva, berros, lutas e correrias súbitas, o júbilo algo homerico de Syme despertou, a atenção de muitos sujeitos semibêbedos. — De que é que está rindo tanto, excelência? perguntou admirado um trabalhador das docas. — De mim mesmo, respondeu Syme, e recaiu na agonia de sua frenética reação. — Componha-se, ordenou o Professor. Do contrário, ficará histérico. Tome mais cerveja. Beberei com você. — Ainda não bebeu seu leite, disse Syme. — Meu leite! escarneceu o outro, num tom de cru e insondável desprezo. Meu leite! Você pensa que eu ligo para essa droga infame quando estou fora do alcance dos sanguinários anarquistas? Somos todos cristãos nesta sala, e, lançando um olhar para a turba de ébrios, acrescentou: embora não muito perfeitos. Tenho então que acabar meu leite? Com todos os diabos! Já lhe darei o fim merecido! E arremessou da mesa o copo, que produziu ao cair um ruído de vidro quebrado e uma poça de líquido prateado. Syme fitava-o com encantada curiosidade. — Agora compreendo, bradou. Naturalmente você não é um velho. — Não posso arrancar minha cara aqui mesmo, retorquiu o Professor de Worms, porque ela é, sem dúvida, uma caracterização especial. Quanto a saber se sou um velho, não me cabe dizer. Completei trinta e oito anos em meu último aniversário. — Sim, está certo, disse Syme impacientemente, mas o que quero dizer é que você não padece de nenhum incômodo. — Sim, disse o outro calmamente, sou sujeito a resfriados. O riso de Syme teve nesse ponto uma queda de alívio. Riu à idéia de ser o paralítico Professor um jovem ator caracterizado para a ribalta. Mas sentiu que teria rido do mesmo modo se o pimenteiro tivesse emborcado sobre a mesa. O falso Professor bebeu a cerveja e limpou a falsa barba. — Sabia, inquiriu, que aquele Gogol era um dos nossos? — Não. Nem suspeitava, respondeu Syme surpreendido. E você, não sabia?
— Como é que podia saber? replicou o homem que se chamava de Worms. Pensei que o Presidente estava falando comigo e logo me deu uma bruta tremedeira. — E eu pensei que era comigo, disse Syme, continuando a rir descuidadamente. Passei todo o tempo com a mão no revólver. — Eu também, disse o Professor ainda assustado. E Gogol também, evidentemente. Syme deu uma palmada na mesa e soltou uma exclamação. — Mas éramos três! E três é um número razoável para dar combate a quatro. Ah, se soubéssemos que éramos três! O rosto do Professor de Worms entristeceu e êle baixou a vista. — Éramos três, repetiu êle. Mas, trezentos que fôssemos nada poderíamos ter feito. — Nem se fôssemos trezentos contra quatro? perguntou Syme, troçando um pouco arrebatadamente. — Nem assim, disse com serenidade o Professor. Nem se fôssemos trezentos contra Domingo. A simples menção deste nome pôs Syme frio e sério. O riso morreu em seu coração antes de morrer em seus lábios. A cara do inesquecível Presidente apareceu-lhe tão nítida como uma fotografia colorida, e nesse instante Syme se deu conta da diferença que havia entre Domingo e todos os seus satélites. Enquanto as carantonhas destes últimos, por mais ferozes ou sinistras que fossem, aos poucos desbotavam-se na memória como outras tantas fisionomias humanas, a de Domingo parecia tornar-se mais real com a ausência, como se o retrato de um homem se transformasse com o passar do tempo num ser vivo. Ao cabo de alguns momentos de silêncio, Syme pôs-se a falar com ímpeto igual ao da primeira espumarada de champanha. — Professor, isso é intolerável! Você tem medo desse homem? O Professor ergueu as pesadas pálpebras e fixou em Syme os olhos grandes, azuis, bem abertos, de uma honestidade quase etérea. — Tenho, sim, disse mansamente. E você também tem. Syme emudeceu. Depois, ergueu-se, empertigando-se como um homem insultado, e afastou de si a cadeira.
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— Sim, tem razão, disse com voz indescritível. Eu tenho medo dele. E por isso mesmo juro por Deus que procurarei até achar esse homem a quem temo e hei de matá-lo. Se o céu fosse seu trono e a terra seu escabêlo, juro que haveria de liquidá-lo. — Como? inquiriu o espantado Professor. E por quê? — Porque tenho medo dele, disse Syme. Ninguém deve deixar no universo uma coisa de que tenha medo. De Worms pestanejou estupefato. Esforçou-se para falar, mas Syme continuou numa voz baixa, tocada de indizível exaltação: — Quem haveria de contentar-se com destruir as pequeninas coisas que não o atemorizam? Quem haveria de rebaixar-se ao humilde papel de valentão, como qualquer lutador de feira? Quem ousaria declarar-se isento de medo, como uma árvore? Combate-se aquilo que se teme. Lembra-se da velha história do clérigo inglês que deu os últimos sacramentos ao salteador siciliano? Lembra-se do que disse o salteador em seu leito de morte? "Não lhe posso dar dinheiro, mas vou lhe dar um conselho para toda a vida: polegar na lâmina e ferir para cima". O mesmo lhe digo eu: ferir para cima se se quer ferir as estrelas. O outro olhava para o teto, num dos sestros de seu disfarce. — Domingo é uma estrela fixa, disse êle. — Logo verá nele uma estrela cadente, redargüiu Syme e pôs o chapéu na cabeça. O gesto resoluto de Syme fêz o Professor inconscientemente levantar-se. — Sabe por acaso para onde vai? perguntou, com uma espécie de benévola desorientação. — Sei, replicou Syme lacônico. Vou impedir que lancem a bomba em Paris. — Já sabe como deve agir? — Não, disse Syme sem se perturbar. — Você se lembra, naturalmente, recomeçou o soi-disant de Worms, cocando a barba e olhando pela janela, de que quando suspendemos apressadamente a sessão todos os preparativos para a chacina tinham sido confiados ao Marquês e ao Dr. Buli. A esta hora é provável que o Marquês esteja cruzando o Canal. Mas creio que nem mesmo o Presidente sabe para onde êle irá e o que fará. O único que está a par de tudo é o Dr. Buli.
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— Diabos o levem! praguejou Syme. E não sabemos onde êle se encontra. — Sim, disse o outro, com seu curioso alheamento. Eu sei onde êle está. — Poderá dizer-me? perguntou Syme, com os olhos acesos. — Vou levá-lo lá, disse o Professor, e tirou o chapéu do cabide. Syme ficou a olhá-lo com uma espécie de estática excitação. — Que quer dizer? perguntou desabridamente. Vai comigo? Correrá esse risco? — Jovem, disse o Professor alegremente, divirto-me a observar que você me toma por um covarde. Sobre isso lhe digo só uma palavra, e essa mesma em absoluta conformidade com a sua retórica filosófica. Você pensa que é possível derrotar o Presidente. Eu sei que é impossível, mas vou tentar, e abrindo a porta da taberna, que foi invadida por uma rajada de ar frio, saíram juntos para as ruas escuras das docas. Quase toda a neve se derretera ou se convertera em lama pisada, mas aqui e ali cintilava na obscuridade um ou outro grumo mais cinzento que branco. As ruazinhas estavam enlameadas e cheias de poças que refletiam as lâmpadas acesas, irregularmente e ao acaso, como fragmentos de um mundo esmigalhado. Syme sentia-se quase completamente ofuscado ao atravessar esta progressiva confusão de luzes e sombras; mas seu companheiro caminhava com regular desembaraço para um ponto no fim da rua, onde uma ou duas polegadas do rio iluminado davam a idéia de uma barra de fogo. — Para onde vai? perguntou Syme. — Vou até à esquina, ver se o Dr. Buli já foi para a cama, respondeu o Professor. É higiênico e deita-se cedo. — Dr. Buli! exclamou Syme. Êle mora na esquina? — Não, respondeu o amigo. Na realidade, êle mora um pouco longe daqui, na outra margem do rio, mas desse ponto podemos saber se êle já foi para a cama. Contornando a esquina enquanto falava e contemplando o rio escuro salpicado de chamas, apontou com a bengala para a outra margem. No lado fronteiro, em Surrey, sobranceiro ao Tâmisa, aparecia um maciço agrupamento de enormes edifícios pontilhados de janelas iluminadas e elevados como chaminés de fábrica a uma altitude quase alucinada. Um desses blocos, por
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— Sim, tem razão, disse com voz indescritível. Eu tenho medo dele. E por isso mesmo juro por Deus que procurarei até achar esse homem a quem temo e hei de matá-lo. Se o céu fosse seu trono e a terra seu escabêlo, juro que haveria de liquidá-lo. — Como? inquiriu o espantado Professor. E por quê? — Porque tenho medo dele, disse Syme. Ninguém deve deixar no universo uma coisa de que tenha medo. De Worms pestanejou estupefato. Esforçou-se para falar, mas Syme continuou numa voz baixa, tocada de indizível exaltação: — Quem haveria de contentar-se com destruir as pequeninas coisas que não o atemorizam? Quem haveria de rebaixar-se ao humilde papel de valentão, como qualquer lutador de feira? Quem ousaria declarar-se isento de medo, como uma árvore? Combate-se aquilo que se teme. Lembra-se da velha história do clérigo inglês que deu os últimos sacramentos ao salteador siciliano? Lembra-se do que disse o salteador em seu leito de morte? "Não lhe posso dar dinheiro, mas vou lhe dar um conselho para toda a vida: polegar na lâmina e ferir para cima". O mesmo lhe digo eu: ferir para cima se se quer ferir as estrelas. O outro olhava para o teto, num dos sestros de seu disfarce. — Domingo é uma estrela fixa, disse êle. — Logo verá nele uma estrela cadente, redargüiu Syme e pôs o chapéu na cabeça. O gesto resoluto de Syme fêz o Professor inconscientemente levantar-se. — Sabe por acaso para onde vai? perguntou, com uma espécie de benévola desorientação. — Sei, replicou Syme lacônico. Vou impedir que lancem a bomba em Paris. — Já sabe como deve agir? — Não, disse Syme sem se perturbar. — Você se lembra, naturalmente, recomeçou o soi-disant de Worms, cocando a barba e olhando pela janela, de que quando suspendemos apressadamente a sessão todos os preparativos para a chacina tinham sido confiados ao Marquês e ao Dr. Buli. A esta hora é provável que o Marquês esteja cruzando o Canal. Mas creio que nem mesmo o Presidente sabe para onde êle irá e o que fará. O único que está a par de tudo é o Dr. Buli.
— Diabos o levem! praguejou Syme. E não sabemos onde êle se encontra. — Sim, disse o outro, com seu curioso alheamento. Eu sei onde êle está. — Poderá dizer-me? perguntou Syme, com os olhos acesos. — Vou levá-lo lá, disse o Professor, e tirou o chapéu do cabide. Syme ficou a olhá-lo com uma espécie de estática excitação. — Que quer dizer? perguntou desabridamente. Vai comigo? Correrá esse risco? — Jovem, disse o Professor alegremente, divirto-me a observar que você me toma por um covarde. Sobre isso lhe digo só uma palavra, e essa mesma em absoluta conformidade com a sua retórica filosófica. Você pensa que é possível derrotar o Presidente. Eu sei que é impossível, mas vou tentar, e abrindo a porta da taberna, que foi invadida por uma rajada de ar frio, saíram juntos para as ruas escuras das docas. Quase toda a neve se derretera ou se convertera em lama pisada, mas aqui e ali cintilava na obscuridade um ou outro grumo mais cinzento que branco. As ruazinhas estavam enlameadas e cheias de poças que refletiam as lâmpadas acesas, irregularmente e ao acaso, como fragmentos de um mundo esmigalhado. Syme sentia-se quase completamente ofuscado ao atravessar esta progressiva confusão de luzes e sombras; mas seu companheiro caminhava com regular desembaraço para um ponto no fim da rua, onde uma ou duas polegadas do rio iluminado davam a idéia de uma barra de fogo. — Para onde vai? perguntou Syme. — Vou até à esquina, ver se o Dr. Buli já foi para a cama, respondeu o Professor. É higiênico e deita-se cedo. — Dr. Buli! exclamou Syme. Êle mora na esquina? — Não, respondeu o amigo. Na realidade, êle mora um pouco longe daqui, na outra margem do rio, mas desse ponto podemos saber se êle já foi para a cama. Contornando a esquina enquanto falava e contemplando o rio escuro salpicado de chamas, apontou com a bengala para a outra margem. No lado fronteiro, em Surrey, sobranceiro ao Tâmisa, aparecia um maciço agrupamento de enormes edifício» pontilhados de janelas iluminadas e elevados como chaminés ds fábrica a uma altitude quase alucinada. Um desses blocos, por
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suas especiais condições, assemelhava-se a uma Torre de Babel com cem olhos. Syme, que nunca vira nenhum dos arranhacéus da América, não pode senão pensar que estava sonhando. Enquanto se embevecia nessa contemplação, a mais alta luz daquela torre de luzes incontáveis repentinamente se extinguiu, como se o negro Argos tivesse piscado para êle com um dos seus incontáveis olhos. O Professor de Worms girou sobre os calcanhares e bateu com a bengala numa das botas. — Chegamos muito tarde, disse êle. O higiênico doutor já foi para a cama. — Como? Quer dizer, então, que êle mora lá em cima? — Sim, confirmou de Worms. Exatamente detrás daquela janela que você já não pode ver. Voltemos e vamos jantar. Amanhã bem cedinho viremos fazer uma visita a êle. Sem mais conversa, tomou a dianteira, seguindo por vários atalhos, até que ambos desembocaram em pleno fulgor e bulício de East índia Dock Road. O Professor, que dava mostras de conhecer toda a circunvizinhança, dirigiu-se para um local onde a longa fileira de lojas iluminadas era abruptamente interceptada por uma quieta escuridão. Havia ali, recuado uns vinte passos da avenida, um velho e mísero albergue pintado de branco. — A gente sempre pode encontrar boas estalagens inglesas; elas estão em toda parte, como fósseis, explicou o Professor. Outro dia dei com uma excelente no West End. — Suponho, disse Syme sorrindo, que esta é a correspondente dela aqui no East End. Não é mesmo? — É, sim, anuiu reverente o Professor e entrou. No albergue jantaram e passaram a noite, dormindo profundamente. O feijão com toucinho que essa gente extraordinária tão bem cozinhava e a surpreendente aparição do Borgonha, saído de suas adegas, foram para Syme o coroamento da camaradagem e do bem-estar. Em todas as provações desses últimos dias apenas a solidão o horrorizara, e não há palavras que exprimam o abismo entre a solidão e a companhia de um aliado. Podemos concordar com os matemáticos em que quatro é igual a duas vezes dois. Mas dois não- é igual a duas vezes um; dois é igual a duas mil vezes um. Por isso é que, a despeito de uma centena de inconvenientes, o mundo escolherá sempre a monogamia.
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Pela primeira vez Syme sentiu disposição para desabafar toda a sua opressiva história, iniciada no momento em que Gregory o levou à pequena taberna ribeirinha. E fê-lo exaustivamente, num monólogo exuberante, como quem conversa com velhos amigos. Por seu turno, o homem que personificava o Professor de Worms não estava menos expansivo. A história dele era quase tão inacreditável como a de Syme. — A sua caracterização é formidável, disse Syme esvaziando um copo de Mâncon. Muito mais perfeita que a do velho Gogol. Desde o momento em que o vi, êle me pareceu excessivamente cabeludo. — É uma questão de teoria artística, ponderou o Professor pensativamente. Gogol era um idealista. Queria representar o anarquista segundo o ideal abstrato ou platônico. Eu sou um realista, um retratista. Aliás, retratista é uma expressão inadequada. Sou um retrato. — Não estou entendendo, disse Syme. — Sou um retrato, repetiu o Professor. Um retrato do célebre Professor de Worms, que vive, creio eu, em Nápoles. — Quer dizer então que você é uma cópia desse homem, sugeriu Syme. Mas não sabe êle que você o está arremedando? — Sabe demais, replicou alegremente o outro. — E êle, por que não o denuncia? — Porque eu já o denunciei, respondeu o Professor. — Explique-se, por favor, pediu Syme. — Com muito prazer, se não lhe enfada ouvir minha história, retrucou o eminente filósofo estrangeiro. Sou ator profissional e me chamo Wilks. Quando trabalhava no palco costumava farrear com todas as categorias de boêmios e patifes. Estava em todas as partes. Freqüentava a malandragem dos hipódromos e o rebotalho das artes, e uma vez ou outra ia ter com os exilados políticos. Foi num desses antros de sonhadores refugiados que conheci o grande filósofo niilista alemão Professor de Worms. O que me interessou nele foi a aparência, que era odiosíssima. Logo passei a estudá-la cuidadosamente. Depois, vim a compreender que êle havia provado que Deus era o princípio destruidor do universo, por isso insistia tanto na necessidade de uma energia furiosa e incessante que despedaçasse todas as coisas. Dizia êle que a Energia era o Todo. Era coxo, míope e parcialmente paralítico. Quando o conheci estava num dos meus momentos de irreverência, e tanto êle me desagradou que resolvi imitá-lo. Se eu fosse dese-
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nhista teria feito uma caricatura. Como eu era apenas um ator, podia apenas fazer o papel de uma caricatura. E me transformei no que se poderia denominar um extravagante exagero da velha e enxovalhada personalidade do velho Professor. Ao entrar na sala onde se reuniam seus correligionários, esperava ser recebido com estrondosas gargalhadas ou, quando muito, com estrondosos protestos contra o insulto. Não posso descrever a surpresa que senti quando minha entrada foi acolhida com respeitoso silêncio, seguido, logo que comecei a falar, de murmúrios de admiração. A maldição do artista perfeito tinha caído sobre minha cabeça. Eu fora sutil demais, verídico demais. Eles julgavam que eu era realmente o grande professor niilista. Naquele tempo eu era um rapazola ingênuo e confesso que o fato me abalou profundamente. Mas antes que pudesse recobrar-me, dois ou três desses admiradores, irradiando indignação, vieram correndo comunicar-me que um insulto público me tinha sido dirigido na sala contígua. Inquiri deles a natureza do insulto. Parecia que um camarada impertinente se apresentara feito uma despropositada paródia de mim mesmo. Eu tinha bebido mais champanha do que me era aconselhável, e num acesso de loucura decidi enfrentar a situação. Desconfio de que não foi senão para ver de perto os olhares furiosos da turba, as minhas sobrancelhas erguidas e os meus olhos gelados que o Professor entrou na sala. Não é preciso dizer que houve uma colisão. Todos os pessimistas que me rodeavam olhavam ansiosamente de um Professor a outro Professor para ver qual dos dois era efetivamente o mais débil. E eu venci. Não se podia esperar que um velho, pobre de saúde como o meu rival, fosse tão impressionantemente débil como um jovem ator em pleno vigor da mocidade. Veja você: êle era na verdade um paralítico e, operando dentro desta definida limitação, não podia ser tão jocosamente paralítico como eu. Por isso tentou derrotar minha prosápia intelectualmente. Livrei-me com alguma astúcia. Cada vez que êle dizia alguma coisa que ninguém senão êle mesmo era capaz de entender, eu replicava com outra coisa que nem eu mesmo era capaz de entender. "Não me parece", disse êle, "que você possa ter chegado ao princípio de que a evolução é somente negação, desde que isso implica na introdução de lacunas que formam constitutivos de diferenciação". Respondi com o maior desdém: "Você leu tudo isso em Pinckwerts; a noção de que a involução funcionava eugênicamente foi exposta há muito tem-
po por Glumpe". É ocioso dizer que nunca existiram tais pessoas como Pinckwerts e Glumpe. Mas os que nos rodeavam, para minha surpresa, davam sinais de conhecê-los perfeitamente. Vendo o Professor que o método erudito e misterioso deixava-o à mercê de um inimigo ligeiramente deficiente em escrúpulos, recorreu a um nível mais popular de argumentação. "Noto", disse êle escarninho, "que você se distingue como o falso porco de Esopo". "E você se obscurece", redargüi sorridente, "como o porco-espinho de Montaigne". É preciso dizer que não há porco-espinho em Montaigne? "Seus estratagemas estão por terra", disse êle, "e o mesmo vai acontecer com sua barba". Não tive resposta inteligente para essas palavras, que eram inteiramente verdadeiras e um pouco mordazes. Mas ri com satisfação e respondi ao acaso: "Como as botas do panteísta". E sem demora dei meia volta com todas as honras da vitória. O verdadeiro Professor foi levado para fora, mas sem violência, ainda que um dos homens tenha tentado muito pacientemente arrancar-lhe o nariz. Creio que agora êle é recebido em toda a Europa como um delicioso impostor. Como você pode imaginar, todas as suas manifestações de gravidade e cólera fazem-no mais divertido ainda. — Bem, disse Syme, posso compreender que você tenha posto essas barbas sujas e velhas para o gracejo de uma noite, mas não entendo porque você não se desfez delas depois disso. — Eis o resto da história, disse o ator. Quando deixei o conventículo, debaixo de reverentes aplausos, saí manquejando pela rua escura, esperando afastar-me em breve o suficiente para poder caminhar como um ser humano. Entretanto, assim que dobrei a esquina fui surpreendido por um toque no ombro e, ao voltar-me, achei-me à sombra de um enorme guarda, que me disse que eu estava sendo procurado. Assumi uma atitude paralítica e bradei com forte sotaque alemão: "Sim, sou procurado... pelos oprimidos do mundo inteiro. Você está me prendendo sob a acusação de ser eu o grande anarquista Professor de Worms". O guarda impassivelmente consultou um papel que trazia consigo. "Não senhor", disse com polidez, "não é por isso; ao menos, não é exatamente por isso. Eu o prendo sob a acusação de não ser o célebre anarquista Professor de Worms". Tal acusação, se se pode chamar isso de acusação criminal, era indubitavelmente a mais suave das duas. E me deixei levar, desconfiado mas não grandemente consternado. Atravessei certo número de salas e cheguei finalmente
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à presença de um oficial. Este explicou-me que uma severa campanha estava sendo iniciada contra os centros anarquistas e que a minha bem sucedida representação podia ser de considerável utilidade para a segurança pública. Ofereceu-me bom salário e me deu este cartãozinho azul. Embora nossa conversa tenha sido breve, êle me deixou a impressão de ser um homem de sensatez e humor sólidos; mas não posso dizer muita coisa sobre a pessoa dele, porque... Syme abandonou no prato a faca e o garfo. — Já sei, disse. Porque você falou com êle num quarto escuro. O Professor fêz que sim com a cabeça e esgotou seu copo.
CAPITULO IX
O HOMEM DOS ÓCULOS — O Borgonha é maravilhoso, disse pensativamente o Professor, enquanto punha o copo na mesa. — Não parece que você o aprecia tanto assim, observou Syme. Toma-o como se fosse remédio. — Não repare nos meus hábitos, disse o Professor melancòlicamente. Minha situação é um tanto curiosa. Por dentro estou rebentando de alegria infantil, mas de tal modo me integrei no papel do paralítico Professor que já não posso largá-lo. Mesmo quando estou entre amigos e não tenho nenhuma necessidade de disfarçar-me, não posso deixar de falar baixo e franzir a testa. .. como se fosse realmente minha testa. Posso sentir-me inteiramente feliz, mas só de m o d o . . . paralítico, compreende? As mais vibrantes exclamações pulsam em meu coração, mas de minha boca elas saem irreconhecíveis. Você deveria ouvir-me dizer: "Anima-te, rapaz!" Isso traria lágrimas a seus olhos. — Não há dúvida, disse Syme, mas creio que, fora de tudo isso, você está um bocado inquieto. O Professor teve um leve sobressalto e encarou Syme firmemente. — Sujeito muito arguto, você, disse êle. É um prazer trabalhar com você. Sim, é verdade, tenho uma nuvem pesada em minha cabeça. Há um grande problema a enfrentar, e enterrou a testa nua nas mãos. Depois perguntou em voz baixa: — Sabe tocar piano? — Sei, sim, disse Syme surpreendido. Dizem que não toco muito mal. Como o outro não falasse, ajuntou:
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— Espero que a pesada nuvem se tenha dissipado. Após um demorado silêncio, o Professor falou de dentro da sombria caverna de suas mãos: — Teria servido da mesma forma se você soubesse datilografia. — Muito obrigado, disse Syme. É bondade sua. — Escute aqui, continuou o outro. Lembre-se do homem que temos de ir ver amanhã. O negócio que você e eu vamos tentar amanhã é muito mais perigoso do que roubar da Torre as Jóias da Coroa. Vamos tentar arrancar um segredo a um sujeito muito sagaz, muito forte e extremamente cruel. Acredito que nenhum deles, exceto naturalmente o Presidente, seja tão medonho e pavoroso como esse fulano dos óculos e dos dentes arreganhados. Talvez não tenha o pungente entusiasmo pela morte, pelo martírio, que distingue o Secretário. Aliás, o próprio fatalismo do Secretário revela um patos humano e é quase um toque de redenção. Mas o doutorzinho, não. Desfruta um bom senso compacto, mais repelente que a loucura do Secretário. Não notou ainda a sua virilidade, a sua vitalidade detestável? Êle anda aos saltos como uma bola de borracha. Fique certo de que Domingo não estava dormindo (eu me pergunto se êle já dormiu alguma vez) quando fechou todos os planos do atentado na cabeça redonda e negra do Dr. Buli. — E você pensa, disse Syme, que esse monstro sem par vai ficar bem mansinho quando eu tocar piano para êle? — Não me venha com asneiras, respondeu-lhe o mentor. Mencionei o piano porque êle nos proporciona dedos ágeis e independentes. Syme, se temos de levar a cabo essa entrevista e sair dela sãos e salvos, precisamos combinar entre nós um código de sinais que não possa ser descoberto por essa alimária. Elaborei um tosco alfabeto cifrado, correspondente aos cinco dedos. É assim, veja (e começou a tamborilar os dedos sobre a mesa de madeira): M A U , mau, uma palavra que poderemos utilizar com freqüência. Syme bebeu outro copo de vinho e começou a estudar o método. Possuindo miolo e mãos anormalmente hábeis em quebra-cabeças e prestidigitações, não demorou a enviar breves mensagens sob a forma de tapinhas descuidados na mesa ou no joelho. E como o vinho e a companhia sempre tivessem o efeito de aguçar-lhe a comicidade, dentro em pouco viu-se o Professor a braços com a desadorada energia do novo idioma, incandescido agora pelo cérebro ardente de Syme.
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— Precisamos contar com diversos sinais para palavras, disse Syme com seriedade, palavras que provavelmente serão muito úteis, palavras carregadas de matizes. Minha palavra favorita é "coevo". Qual é a sua? — Pare de bancar o engraçado, queixou-se o Professor. Não imagina como isto é sério. — "Viçoso", também, continuou Syme, movendo a cabeça sagazmente. Precisamos da palavra "viçoso", que se aplica ao capim, como você sabe. — Acha então, bradou furiosamente o Professor, que vamos falar de capim ao Dr. Buli? — Há muitas maneiras de tocar no assunto e introduzir a palavra com naturalidade, considerou Syme. Podemos dizerlhe: "Dr. Buli, como revolucionário você não ignora que um tirano já nos aconselhou a comer capim: e, em verdade, muitos de nós, contemplando o suculento e viçoso capim primaveril..." — Não compreende que isto é uma tragédia? inquiriu o outro. — Perfeitamente, redargüiu Syme. Nunca se esqueça de ser cômico numa tragédia. Que diabo é que se pode fazer? Meu desejo é que essa sua linguagem tenha um mais amplo objetivo. Não poderíamos, talvez, estendê-la dos dedos das mãos para os dos pés? Isso, sem dúvida, nos obrigaria a descalçar os sapatos e as meias, o que, entretanto, realizado com discrição.. . — Syme, vá dormir! ordenou-lhe o amigo com áspera simplicidade. Syme, entretanto, sentou-se na cama e passou algum tempo estudando o novo código. Acordou na manhã seguinte, quando o nascente estava ainda abismado na escuridão, e avistou as barbas grisalhas de seu aliado, que, de pé à beira da cama, parecia um fantasma. Sentou-se pestanejando; voltou a si lentamente, atirou fora os cobertores e pôs-se de pé. Pareceu-lhe que toda a segurança e toda a sociabilidade da noite anterior haviam-se apartado dele com as roupas da cama, e que estava exposto a um perigo iminente. Ainda depositava inteira confiança em seu companheiro, mas era a confiança que existe entre dois homens que marcham para a forca. — Viva! exclamou Syme, afetando alegria, enquanto vestia as calças. Sonhei com seu alfabeto. Você levou muito tempo para criá-lo?
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O Professor não deu resposta. Fitava-o absorto, com olhos da côr de um mar invernoso. Syme repetiu a pergunta. — Estou lhe perguntando se levou muito tempo para inventar tudo isso. Eu que me julgava bamba nessas coisas passei uma boa hora estudando. Você dominou isso tudo de uma só vez? O Professor continuava silencioso, com os olhos bem abertos e um sorriso fixo mas quase imperceptível. — Quanto tempo? O Professor não se moveu. — Diabos o levem! Não pode responder? gritou Syme numa raiva súbita, que ocultava um certo temor. Se podia ou não responder, a verdade é que o Professor não o fêz. Syme encarou o rosto rijo como pergaminho e os olhos azuis e vazios. Seu primeiro pensamento foi que o Professor tinha enlouquecido, mas o segundo foi mais terrível. No fim de contas, o que sabia desta criatura singular que inconsideradamente aceitara por amigo? O que -sabia deste homem, exceto que êle tinha partilhado do festim anarquista e que lhe tinha contado uma história ridícula? Como era improvável existir lá outro amigo além de Gogol! Seria o silêncio deste homem uma maneira espetacular de declarar guerra? Seria, então, este adamantino olhar o espantável escárneo de um tríplice traidor, que se bandeava pela última vez? Aguçou os ouvidos no cruel silêncio. Chegou a imaginar que ouvia lá fora, no corredor, os passos abafados e solertes dos dinamiteiros vindo capturá-lo. Mas, depois, ao baixar a vista, rebentou numa gargalhada. Embora o Professor se mantivesse tão calado como uma estátua, seus cinco mudos dedos dançavam vividamente sobre a mesa morta. Syme acompanhou os velozes movimentos da verbosa mão e leu claramente a mensagem: — Só falarei" deste jeito. Precisamos habituar-nos. Tamborilou a resposta com impaciente desabafo: — Ótimo. Vamos sair para tomar café. Agarraram os chapéus e as bengalas em silêncio; mas ao tocar na bengala de estoque Syme teve um sobressalto. Demoraram-se alguns momentos no botequim, apenas para beber café e comer reforçados sanduíches, e depois atravessaram o rio, que sob o clarão cinzento do amanhecer parecia tão desolado como o Aqueronte. Alcançaram a base do imenso bloco de edifícios que tinham visto da outra margem, e em silêncio começaram a subir os nus e inumeráveis degraus de
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pedra, parando de vez em quando para trocar curtas mensagens no corrimão da balaustrada. A cada novo lanço de escada correspondia uma janela e cada janela revelava-lhes uma pálida e trágica alvorada assomando morosamente sobre Londres. Vistos das janelas, os incontáveis telhados de ardósia assemelhavam-se aos plúmbeos vagalhões do mar cinzento e encapelado depois da chuva. Progressivamente, Syme ia-se convencendo de que sua nova aventura tinha de certo modo um cunho de calculada sensatez, muito mais intolerável do que as insensatas aventuras já vividas. Na noite anterior, por exemplo, os enormes edifícios apareceram-lhe como uma torre num sonho. E agora que subia esta enfadonha e interminável escadaria estava assustado e perplexo com a série quase infinita de degraus. Mas isto não era o quente horror de um sonho, de uma fantasia ou de uma alucinação. Tal infinidade era antes o vazio infinito da aritmética, uma coisa impensável mas necessária ao pensamento. Ou era como os estonteantes cálculos da astronomia sobre a distância entre as estrelas fixas. Syme supunha estar subindo para a morada da razão, coisa mais odiosa que o próprio absurdo. Quando chegaram ao patamar do Dr. Buli, a última janela descobriu-lhes uma aurora amarga, branca, entremeada de montículos da côr de um vermelho áspero, mais próprio do vermelho do barro do que do vermelho de nuvem. E ao entrarem, o sòtãozinho pobre do Dr. Buli estava cheio de luz. Em consonância com esses quartos vazios e com esse austero alvorecer, Syme foi invadido por umas recordações mais ou menos históricas. Logo que viu o sótão e o Dr. Buli sentado a uma mesa a escrever, atinou com o sentido das suas recordações: a Revolução Francesa. Era de esperar que contra esse amanhecer alvacento e opressivamente vermelho se destacasse o negro perfil da guilhotina. Dr. Buli estava de camisa branca e calções pretos; sua cabeça escura e raspada podia perfeitamente ter saído de um chino. Êle ficaria bem como um Marat ou como um Robespierre mais desleixado. Entretanto, bastava vê-lo de perto para desfazer-se a fantasia francesa. Os jacobinos eram idealistas, e o que caracterizava esse homem era um materialismo homicida. Sua postura lhe conferia uma nova aparência. A intensa e branca luz da manhã, entrando de través e adelgaçando as sombras, fazia-o mais pálido e mais anguloso do que na reunião da varanda. As duas negras lunetas que tapavam seus olhos podiam efeti-
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vãmente ser tomadas como negras cavidades em seu crânio, como se êle não passasse de uma caveira. E, com efeito, se alguma vez a Morte se sentou a uma mesa de madeira para escrever não teve outro aspecto senão esse. Quando os dois homens entraram, Dr. Buli levantou os olhos, sorriu com visível alegria e ergueu-se com a elástica rapidez de que o Professor tinha falado. Providenciou cadeiras para os recém-chegados e, indo até a um cabide atrás da porta, pôs-se a vestir um casaco e um colete de lã escuro e desbotado; abotoou-se cuidadosamente e voltou a sentar-se à sua mesa. A quieta jovialidade de seus modos deixou seus dois oponentes desarmados. Foi com momentânea dificuldade que o Professor quebrou o silêncio e começou: — Peço-lhe desculpas por vir perturbá-lo tão cedo, camarada, disse êle, readquirindo cautelosamente os gestos lentos de de Worms. Sem dúvida você executou todos os preparativos para o negócio de Paris, não é mesmo? E acrescentou com infinita vagareza: Segundo as informações que recebemos, o atraso de um minuto poderá ser fatal. Dr. Buli sorriu outra vez, mas continuou a fitá-los em silêncio. O Professor, então, recomeçou, fazendo uma pausa antes de cada uma de suas enfadonhas palavras: — Por favor não me julgue excessivamente precipitado; mas aconselho-o a alterar esses planos, ou, se é muito tarde para isso, a seguir seu agente com toda a proteção que puder conseguir para êle. O camarada Syme e eu tivemos uma experiência, que, se fosse contada, levaria mais tempo do que este de que dispomos, embora eu seja de opinião que temos de agir de conformidade com ela. Por isso, poderei relatar o ocorrido em todos os pormenores, mesmo com o risco de perder tempo, se realmente lhe parece ser o relato essencial para a compreensão do problema que vamos discutir. O Professor arrastava suas frases, tornando-as intoleràvelmente longas e pausadas, na esperança de que o doutorzinho, enlouquecido, explodisse de impaciência e pusesse as cartas na mesa. Entretanto, o doutorzinho não fazia senão encará-lo e sorrir, o que transformava o monólogo num trabalho espinhoso. Syme já começava a sentir náusea e a desesperar-se. O sorriso e o silêncio do Dr. Buli não eram como o olhar cataléptico e o silêncio arrepiante que, meia hora atrás, havia surpreendido no Professor. Nas momices e visagens do Pro-
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fessor havia sempre algo puramente grotesco, como num boneco de engonço. Syme recordava os angustiosos temores do dia anterior como quem se recorda de ter tido medo de duendes na meninice. Mas agora estava em pleno dia; tinha à sua frente um homem robusto, espadaúdo, trajado com simplicidade, singularizando-se apenas no uso de uns óculos deformadores, e que, sem sobrecenhos ou arreganhos, encarava-os com um sorriso fixo e mudo. Tudo ali tinha um sentido de insuportável realidade. Sob a crescente luz do sol, as cores da tez do Dr. Buli e o padrão de suas roupas adquiriam excessivo realce, como nas novelas realistas. Mas seu sorriso era levíssimo, e cortês a inclinação de sua cabeça; a única coisa inquietante era seu silêncio. — Como estava dizendo, tornou o Professor, como um homem fatigado de andar na areia frouxa e pesada, o incidente que nos ocorreu e nos levou a tomar informações sobre o Marquês é daquele tipo que precisa de ser narrado; mas como sucedeu ao camarada Syme antes de mim. . . Êle parecia escandir suas palavras como se elas fossem as palavras de uma antífona; mas Syme, que estava atento, viu que seus longos dedos tamborilavam àgilmente na borda da mesa rachada, e leu a mensagem: — É preciso que você continue. Este diabo esgotou as minhas forças. Syme lançou-se na brecha com aquela fanfarronada de improvisação que sempre o acometia quando estava alarmado. — É verdade, a coisa aconteceu comigo, disse apressadamente. Tive a sorte de conversar com um detetive, que graças ao meu chapéu me tomou por uma pessoa respeitável. Desejando firmar minha boa reputação, levei-o para o Savoy e lá embriaguei-o completamente. Foi aí que êle se tornou expansivo e me contou, atabalhoadamente, que dentro de um ou dois dias esperam prender o Marquês na França. Por isso, a menos que você ou eu decida seguir a pista.. . O sorriso do Dr. Buli era ainda mais afetuoso, mas seus olhos anteparados continuavam indevassáveis. Através de sinais, o Professor fêz ver a Syme que iria retomar a explanação. De fato, daí a instantes começou com a mesma deliberada calma: — Logo que Syme chegou com esta informação resolvemos trazê-la ao seu conhecimento para que você tomasse a de-
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cisão que lhe parecesse mais conveniente. Entretanto, não tenho nenhuma dúvida de que é urgente.. . Durante todo esse tempo Syme estivera a contemplar Dr. Buli tão fixamente como Dr. Buli contemplava o Professor, mas sem o sorriso. Os nervos de ambos os irmãos de armas estavam a ponto de estalar debaixo daquela tensão de imóvel amabilidade, quando, de repente, Syme curvou-se, e seus dedos dançaram displicentemente sobre a extremidade da mesa. Enviou a seu aliado esta mensagem: — Tenho uma idéia. O Professor, mal fêz pausa em seu monólogo, tamborilou: — Então diga. Syme telegrafou: — É uma idéia espetacular. O outro respondeu: — Ou uma tolice espetacular? Syme disse: — Sou um poeta. O outro retorquiu: — Um poeta morto. Syme estava vermelho até à raiz de seus cabelos amarelos, e seus olhos ardiam febrilmente. Na realidade, tivera um pressentimento e este se tinha elevado à categoria de delirante certeza. Voltando a suas pancadinhas simbólicas, explicou para o amigo: — Você não imagina como o meu pressentimento é poético. Tem aquela força súbita que às vezes sentimos quando chega a primavera. Depois leu esta resposta nos dedos do amigo: — Vá para o inferno! O Professor prosseguiu em seu monólogo palavroso e ôco, dirigido ao Dr. Buli. — Ainda diria, tamborilou Syme, que êle se parece com aquele inopinado cheiro de mar que podemos descobrir no coração dos bosques viçosos. Seu companheiro não se dignou responder. — Ou ainda, rufou Syme, é real como o intenso cabelo vermelho de uma bela mulher. O Professor desfiava sua oração, mas em meio a ela Syme decidiu-se a agir. Curvando-se sobre a mesa, falou com uma voz que não podia ser desprezada: — Dr. Buli!
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A cara mansa e risonha do médico não se mexeu, mas eles juravam que por baixo dos óculos negros seus olhos dardejaram Syme. — Dr. Buli, disse Syme num tom peculiarmente preciso e cortês, poderia fazer-me um pequeno favor? Quer ter a bondade de tirar os óculos? O Professor agitou-se na cadeira em que estava sentado e olhou para Syme com uma espécie de gelada e enfurecida surpresa. Syme, assemelhando-se a um homem que lançou à mesa a vida e a fortuna, esperava com o rosto afogueado. O médico não fêz nenhum movimento. Por alguns segundos houve um silêncio em que se podia escutar a queda de um alfinete e que foi cortado apenas uma vez pelo silvo de uma lancha distante, no Tâmisa. Depois, Dr. Buli ergueu-se vagarosamente, sem perder o sorriso, e tirou os óculos. Syme deu um pulo para trás, como um professor de química ante uma explosão bem sucedida. Os olhos do outro brilhavam como estrelas, e por um instante Syme ficou a apontá-los sem pronunciar uma palavra. O Professor também deu um pulo, esquecido de sua suposta paralisia. Arrimou-se depois no espaldar da cadeira e encarou dubitativamente o Dr. Buli, como se o médico se houvesse convertido num sapo, ali diante de seus olhos. Efetivamente tratava-se de uma portentosa cena de transformação. Diante dos dois detetives sentava-se agora um moço de aparência infantil, com olhos da côr de avelã, francos e felizes, fisionomia alegre, trajado como um simples empregado e de natural sem dúvida bondoso e até mesmo comum. Conservava seu sorriso, que bem podia ter sido o primeiro sorriso de um recém-nascido. — Eu sabia que era poeta! exclamou Syme como se estivesse em êxtase. Eu sabia que meu pressentimento era tão infalível como o Papa. Os óculos é que fizeram tudo! Tudo estava nos óculos! Com esses terríveis olhos negros, com essa robustez, com esses ares divertidos, era um demônio vivo no meio dos demônios mortos. — Não há dúvida que a diferença é extraordinária, disse hesitante o Professor. Mas quanto ao plano do Dr. Buli.. . — Dane-se o plano! rugiu Syme fora de si. Olhe para êle! Veja a cara dele, o colarinho, as abençoadas botas! Você não vai pensar que isso aí é um anarquista, vai?
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— Syme! gritou o outro, agoniado de medo. — Por Deus! bradou Syme. Correrei o risco. Dr. Buli, sou um detetive. Eis aqui meu cartão, e atirou o cartão azul sobre a mesa. O Professor ainda temia que tudo estivesse perdido; apesar disso, era leal. Tirou seu próprio cartão oficial e colocou-o junto ao do amigo. Foi quando o terceiro homem soltou uma gargalhada, e pela primeira vez os outros dois lhe ouviram a voz. — Velhinhos, estou contentíssimo com a vinda de vocês, porque, assim, poderemos partir juntos para a França, disse êle com a petulância de um colegial. Também sou da polícia, e acenou-lhes de leve com um cartão azul, como para cumprir uma formalidade. Enfiando na cabeça um chapéu claro e repondo suas demoníacas lunetas, o médico caminhou para a porta com tal rapidez que os outros o seguiram instintivamente. Syme ia um pouco distraído e, ao deixar o quarto, provocou um tinido ao bater com a bengala nas pedras do corredor. — Deus Todo Poderoso! exclamou Syme. Se meus olhos não me enganam, naquele amaldiçoado Conselho havia mais desses amaldiçoados detetives do que dos amaldiçoados dinamiteiros. — Podíamos ter lutado com vantagem, disse Buli. Éramos quatro contra três. O Professor descia as escadas, e sua voz veio de lá de baixo. — Não, disse a voz. Não éramos quatro contra três. Não tínhamos tanta sorte. Éramos quatro contra Um. Os outros desceram as escadas em silêncio. O jovem chamado Buli, com a inocente cortesia que lhe era característica, insistiu em ir por último; mas, quando chegaram à rua, sua robusta rapidez afirmou-se inconscientemente e êle tomou a dianteira, andando velozmente em direção ao gabinete de informações da estrada de ferro e conversando com os outros por cima do ombro. — Nada como encontrar uns bons colegas, dizia êle. Já me sentia meio morto de medo de estar só. Por pouco não dei um abraço em Gogol, o que teria sido um gesto imprudente. Espero que vocês não caçoem do diabo dessa minha fraqueza.
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— Todos os diabos de todos os infernos também se juntaram para minha fraqueza! disse Syme. Mas o pior diabo era você com os seus antolhos infernais. O jovem riu lisonjeado e respondeu: — Não é um primor? É uma idéia muito simples, mas não foi minha, não saiu da minha cabeça. Vejam bem. Eu queria alistar-me na polícia, especialmente no serviço de repressão aos dinamiteiros. Mas para este fim eles só queriam gente que pudesse passar por dinamiteiro; e todos apostaram que eu jamais ficaria com cara de dinamiteiro. Afirmavam que até meu andar era respeitável e que, visto de costas, eu me parecia com a própria Constituição britânica. Diziam que eu era saudável demais, otimista demais, digno demais, benévolo demais. Puseram-me toda sorte de apelidos na Scotland Yard. Diziam que se eu fosse um criminoso poderia ter enriquecido por me parecer exageradamente com um homem honesto; mas como eu tinha a infelicidade de ser um homem honesto, perdia a mais remota oportunidade de ajudá-los passando por criminoso. Mas, enfim, me levaram à presença de um figurão que era o chefe de tudo aquilo e possuía naturalmente uma cabeça respeitável. E lá todos eles confessaram-se desalentados. Um perguntou se uma barba cerrada esconderia meu sorriso; outro asseverou que se enegrecessem minha cara eu me transformaria num sombrio anarquista. Mas o tal chefão saiu-se com uma observação curiosíssima: "Um par de óculos esfumaçados!" disse categoricamente. "Olhem para êle agora; parece um angélico moço de escritório. Ponham-lhe um par de óculos esfumaçados e verão que por onde êle passar os meninos gritarão aterrorizados". E assim foi, por São Jorge! Uma vez cobertos os olhos, todo o resto — sorrisos, ombros largos, cabelo curto, etc. .. — fêz de mim um perfeito diabo. Depois de feito, foi muito simples. . . como os milagres; mas a parte realmente miraculosa não foi essa ainda. Houve uma coisa estupenda nisso tudo. Ainda hoje quebro a cabeça para entendê-la. — O que foi? perguntou Syme. — Vou contar, respondeu o homem dos óculos. Esse manda chuva da polícia, que tão habilmente me decifrou e compreendeu que os óculos negros se ajustariam com meu físico, desde os cabelos até às botas, esse camarada, Deus meu, nem sequer me viu! Os olhos de Syme relampejaram, e êle perguntou:
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— Como foi isso? Eu pensei que você tinha falado com êle. — Que falei, falei, esclareceu Buli. Falei com êle num quarto escuro como breu, igual a uma carvoaria. Você não faz idéia! — Não posso nem imaginar, confirmou Syme gravemente. — É um caso inédito, murmurou o Professor. O novo aliado era um furacão no capítulo das coisas práticas. Na estação, com a rapidez do homem de negócios, inteirou-se dos trens que saíam para Dover. Em seguida, entalou os companheiros num fiacre e, antes que eles tivessem tomado fôlego na arrancada, alojou-os e alojou-se também num vagão. Só quando viajavam no barco para Calais a conversa voltou a animar-se. — Já tinha resolvido ir almoçar na França, explicou Dr. Buli. Agora estou encantado por ter quem almoce comigo. Vejam: fui obrigado a despachar aquela besta do Marquês, com bomba e tudo, porque o Presidente não me perdia de vista. Deus é testemunha! Um dia eu lhes contarei toda a história, e vocês verão que ela é simplesmente asfixiante. Todas as vezes que eu tentava escapulir topava com o Presidente, que sorria para mim da sacada de um clube ou me cumprimentava do tejadilho de um ônibus. Podem dizer o que quiserem, mas tenho para mim que aquele sujeito se vendeu ao diabo. Como é que se pode estar em seis lugares ao mesmo tempo? — De modo que você teve de despachar o Marquês, não é isso? inquiriu o Professor. Faz muito tempo? Poderemos alcançá-lo? — Sim, retrucou o novo guia. Calculei tudinho. Êle ainda estará em Calais quando desembarcarmos. — Mas quando o alcançarmos em Calais, o que é que vamos fazer? indagou o Professor. Esta pergunta anuviou, pela primeira vez, o semblante do Dr. Buli. Êle refletiu um instante e disse: — Suponho que, teoricamente, deveríamos chamar a polícia. -— Suponho que não, objetou Syme. Teoricamente eu prefiro afogar-me a chamar a polícia. Sob minha .palavra de honra, prometi a um pobre sujeito, que é um autêntico pessimista moderno, nunca contar nada à polícia. Pouco entendo de casuística, mas não posso faltar com minha palavra a um pes-
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simista moderno. É a mesma coisa que faltar com a palavra a uma criança. — É o meu caso, disse o Professor. Já pensei em falar com a polícia mas não pude, por causa de um juramento idiota que eu fiz. Enquanto fui ator, era uma espécie de pau para toda obra. Só não me prestei ao perjúrio nem à traição. Se eu tivesse cometido esse crime não teria mais noção do bem e do mal. — Também passei por tudo isso, confessou o Dr. Buli. Dei minha palavra ao Secretário. Vocês sabem quem é: o homem que tem o sorriso de cabeça para baixo. Meus amigos, aquele é o homem mais infeliz que o gênero humano já produziu. Pode ser sua digestão, ou sua consciência, ou seus nervos, ou sua filosofia do universo... não sei. Só sei que êle está condenado, que está no inferno! Não posso trair um homem desses e atormentá-lo. Seria o mesmo que açoitar um leproso. Digam que estou louco, mas é o que sinto. — Não creio que você esteja louco, disse Syme. Sabia que você assumiria essa atitude, desde aquele momento em que... — Sim?! interrogou Dr. Buli. — Em que você tirou seus óculos. Dr. Buli sorriu e foi espairecer pela coberta, contemplando o mar batido pelo sol. Voltou logo depois, pisando com força e descuidadamente. Um silêncio amigável estabeleceu-se entre os três homens. — Bem, disse Syme, parece que adotamos todos o mesmo tipo de moralidade ou imoralidade. Assim, façamos o possível para enfrentar as conseqüências. — Tem razão, assentiu o Professor, tem toda razão; e apressemo-nos, pois estou vendo o cabo Gris-Nez apontar lá na França. — A primeira conseqüência, disse Syme com seriedade, é esta: nós três estamos sós neste planeta. Gogol foi embora, sabe Deus para onde. Talvez tenha sido esmagado como um inseto pelo Presidente. No Conselho somos três contra três, como os romanos que guardavam a ponte. Mas a nossa posição é mais insustentável; primeiro, porque eles podem apelar para a organização deles e nós não podemos apelar para a nossa, e, segundo, porque... — Porque um dos outros três homens não é um homem, disse o Professor.
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Syme anuiu com um movimento da cabeça e, por um ou dois segundos, guardou silêncio. Depois disse: — Tenho uma idéia. Devemos fazer alguma coisa para conservar o Marquês em Calais até meio-dia de amanhã. Passaram pela minha cabeça mais de vinte esquemas. Estamos de acordo em que não podemos denunciá-lo como dinamiteiro. Não podemos levá-lo à cadeia por qualquer acusação trivial, porque teríamos que ser vistos; êle nos conhece e ficaria com a pulga atrás da orelha. Não podemos pensar em desviá-lo para outros negócios anarquistas; êle podia engolir tudo, menos a idéia de ficar em Calais enquanto o Czar passeia livremente em Paris. Podíamos tentar raptá-lo e trancafiá-lo nós mesmos, mas êle é muito conhecido aqui. Possui uma completa guarda pessoal, feita só de amigos; é forte e bravo, e o resultado é duvidoso. A única coisa viável, realmente, é tirar proveito dos próprios fatores que estão do lado do Marquês. Vou aproveitar-me do fato de ser êle um nobre altamente respeitado. Vou aproveitar-me do fato de ter êle tantos amigos e freqüentar a alta sociedade. — Que diabo é que você está dizendo aí? perguntou o Professor. — Os Symes vêm mencionados pela primeiras vez no século quatorze, afirmou Syme, mas, segundo certa tradição, um deles foi a Bannockburn na comitiva de Bruce. A partir de 1350 a linhagem está bem determinada. — Esse aí perdeu o juízo, disse o médico espantado. — Nosso brasão de armas, continuou Syme calmamente, está assim descrito: "em campo argentado um chaveirão goles lavrado com três cruzes recruzadas". O moto é variável. O Professor abecou rudemente Syme pelo colete. — Já vamos desembarcar, disse. Você está mareado ou quer fazer graça? — Minha explanação é quase dolorosamente prática, respondeu Syme, sem se apoquentar. A casa de St. Eustache também é muito antiga. O Marquês não negará que é um fidalgo, nem pode negar que eu também sou um fidalgo. E a fim de pôr fora de dúvida a questão da minha posição social, proponho-me a, na primeira oportunidade, arrancar-lhe o chapéu da cabeça. Mas já estamos no porto. Saltaram em terra debaixo de um solão que os deslumbrava. Syme, que agora os conduzia como Buli os tinha conduzido em Londres, levou-os por uma avenida ao longo da
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praia, até chegar a uns cafés escondidos na folhagem densa de um caramanchão e fronteiros ao mar. Como ia na frente dos outros, caminhava com alguma arrogância e floreava a bengala como se ela fosse uma espada. Dirigia-se para o ponto extremo da fileira de cafés, mas deteve-se repentinamente. Com um gesto rápido impôs silêncio e apontou com um dedo enluvado para uma mesa, abrigada embaixo de florida ramagem, onde se sentava o Marquês de St. Eustache, com os dentes cintilando por entre a espessa barba negra, e a cara ousada e trigueira, sombreada por um chapéu de palhinha amarelo, destacando-se contra o mar violáceo.
CAPITULO X
O DUELO Syme sentou-se com seus companheiros a uma das mesas do café. Seus olhos azuis resplandeciam como o mar que se estirava lá embaixo. Com alegre impaciência pediu uma garrafa de Saumur. Tinha suas razões para encontrar-se num estado de curiosa hilaridade. Sua animação, que já estava num ponto anormalmente alto, ia subindo à medida que o Saumur baixava na garrafa; de modo que, meia hora depois, sua conversa era uma torrente de incoerências. Declarou estar fazendo um rascunho do diálogo que iria travar com o fatal Marquês, e rabiscava-o às pressas com um lápis. Dava-lhe a forma de um catecismo, cujas perguntas e respostas eram declamadas com extraordinária rapidez. — Aproximo-me. Antes de tirar o chapéu dele, tiro o meu. Digo-lhe: "O Marquês de Saint Eustache, creio eu". Êle me diz: "O célebre Mr. Syme, suponho". E acrescenta com finura e requinte: "Como passa?" E eu lhe respondo também com finura e requinte: "Oh! Passo e fico!" — Ora, cale-se! disse o homem dos óculos. Aprume-se e jogue fora esse papel. Que é que você vai fazer realmente? — Mas é um esplêndido catecismo, redargüiu Syme patético. Deixem-me lê-lo. Tem apenas quarenta e três perguntas e respostas, e algumas respostas do Marquês são maravilhosamente engenhosas. Agrada-me ser justo com meu inimigo. — Mas para que serve tudo isso? perguntou já exasperado Dr. Buli. — Para levar-me a meu desafio, compreende? disse Syme radiante. Quando o Marquês tiver dado a trigésima nona resposta, que diz...
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— Por acaso ainda não se lembrou, perguntou o Professor com grave simplicidade, de que o Marquês pode deixar de dar as quarenta e três respostas que você lhe atribui? Nesse caso, entendo que os epigramas que você traz engatilhados contra êle poderão parecer mais do que forçados. Syme deu uma palmada na mesa, fascinado. — Oh, é verdade! exclamou. Nunca pensei nisso, Senhor, tendes uma inteligência incomum. Alcançareis a fama. — Você está bêbedo como um gambá, disse o médico. — Cabe-me apenas, continuou Syme impassível, adotar outro método de quebrar o gelo (se me permitis a expressão) entre mim e o homem que desejo matar. Uma vez que a direção de um diálogo não pode ser preestabelecida somente por uma das partes (como o haveis notado com tão recôndita agudeza), suponho que a única coisa que tal parte tem a fazer é pôr-se a representar todo o diálogo até onde lhe fôr possível. E é o que vou fazer, por São Jorge! E ergueu-se incontinenti. Seus cabelos amarelos flutuavam na brisa suave que vinha do mar. Num café chantant escondido entre as árvores, tocava uma banda, e uma mulher acabava de cantar. Na cabeça esbraseada de Syme o estridor das fanfarras lembrava a desafinaçãodaquele realejo de Leicester Square, sob cuja melodia êle se preparara para morrer. Dirigiu o olhar para a mesinha onde estava o Marquês. O homem tinha agora dois companheiros: dois solenes franceses de sobretudo e cartola,"um dos quais ostentava a roseta vermelha da Legião de Honra — pessoas, evidentemente, de sólida posição social. Ao lado dessas vestes negras e cilíndricas, o Marquês, com seu chapéu de palhinha e suas leves roupas primaveris, parecia boêmio e mesmo bárbaro; mas se parecia com o Marquês. Em verdade, podia-se dizer que êle era o rei, com sua elegância animal, seus olhares escarninhos e sua cabeça erguida contra o purpúreo mar. Mas não era um rei cristão, de modo algum; era, antes, um déspota trigueiro, meio grego, meio asiático, que nos dias em que a escravidão era coisa natural contemplava no Mediterrâneo suas galés cheias de escravos lamuriantes. Era assim, pensou Syme que a cara bronzeada de um tirano surgia entre os olivais verdes e umbrosos e o azul candente. — Vai pedir a palavra? perguntou impaciente o Professor, vendo que Syme continuava de pé e não se movia.
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Syme sorveu o último copo de vinho espumoso e respondeu apontando para o Marquês e seus colegas: — Vou. Vou falar naquela reunião. Ela me desagrada. Vou puxar o deformado nariz de mogno daquela reunião. E saiu num passo rápido, ainda que incerto. Ao vê-lo, o Marquês arqueou surpreso suas negras sobrancelhas assírias, mas sorriu polidamente. — O senhor é Mr. Syme, suponho, disse êle. Syme inclinou-se. — E o senhor é o Marquês de Saint Eustache, disse Syme cortêsmente. Permita-me que lhe puxe o nariz. Curvou-se para executá-lo, mas o Marquês pulou para trás, derrubando a cadeira, enquanto os dois homens de cartola agarravam Syme pelos ombros. — Este homem me insultou! disse Syme, à guisa de explicação. — Insultou-o? gritou o cavalheiro da roseta vermelha. Quando? — Agora mesmo, disse Syme com atrevimento. Insultou minha mãe! — Insultou sua mãe! exclamou incrédulo o cavalheiro. — Bom, disse Syme reconsiderando, pelo menos insultou minha tia. — Mas como pode o Marquês ter insultado agora mesmo sua tia? perguntou o segundo cavalheiro com legítimo espanto. Como, se êle esteve sentado aqui todo o tempo? — Ah, aí é que está! E o que êle disse... ? insinuou misteriosamente Syme. — Eu não disse nada, redargüiu o Marquês, salvo qualquer coisa aí sobre a banda. Tudo o que eu disse é que gostava de um Wagner bem executado. — Foi uma alusão à minha família, disse Syme com firmeza. Minha tia tocava Wagner pessimamente. Qualquer comentário era desagradável. Sempre fomos insultados por isso. — Isto é absurdo! Extraordinário! bradou o cavalheiro decore, olhando apreensivamente para o Marquês. — Asseguro-lhes, disse Syme com energia, que toda a conversa de vocês estava simplesmente enredada de sinistras alusões à fraqueza de minha tia. — Isso não tem sentido! exclamou o segundo cavalheiro. De minha parte, durante meia hora, a única coisa que eu disse
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foi que gostava da maneira de cantar daquela moça de cabelos negros. — Lá vêm vocês de novo! disse Syme indignado. Minha tia tinha cabelos vermelhos. — Parece-me, observou o outro, que você está simplesmente procurando um pretexto para insultar o Marquês. — Por São Jorge! disse Syme, voltando-se e encarando-o. Como você é inteligente! Os olhos do Marquês chamejaram como os de um tigre. — Insultar-me? gritou. Procura briga comigo! Deus do céu! Nunca houve ninguém que precisasse procurar tanto. Estes senhores poderão ser meus padrinhos. Ainda faltam quatro horas para o anoitecer. Batamo-nos esta tarde. Syme fêz uma esquisita zumbaia e falou: — Marquês, sua atitude é digna de sua fama e de seu sangue. Dê-me licença de consultar, por um momento, aqueles senhores em cujas mãos eu me colocarei. Com três largas passadas reuniu-se a seus companheiros, e estes, que lhe tinham visto o cínico ataque e escutado as absurdas explicações, maravilharam-se de seu semblante. Pois, quando voltou, Syme estava lúcido, um pouco pálido, e falava baixinho, com apaixonado bom senso. — Acabei, disse com voz rouca. Vou lutar com a bêstafera. Mas olhem aqui e ouçam bem. Não há tempo para muita conversa. Vocês são meus padrinhos e têm que aprontar tudo. Precisam insistir, e insistam com todas as forças, em que o duelo se realize amanhã depois das sete. Só assim poderei impedir que êle tome às sete e quarenta e cinco o trem de Paris. Se perde a hora do trem, perde a hora do crime. Êle não pode deixar de concordar com vocês num ponto insignificante como esse de hora e local. Mas, sem dúvida, escolherá um recanto à beira da estrada, perto da estação. É bom espadachim e confia em que me matará a tempo de pegar o trem. Mas eu também entendo de esgrima e acho que posso distraí-lo até que o trem tenha passado. Talvez depois êle me mate, para consolo de suas mágoas. Entenderam? Muito bem. Agora quero apresentá-los a uns encantadores amigos meus. E, avançando rapidamente para os padrinhos do Marquês, apresentou-lhes seus amigos sob uns nomes aristocráticos que eles nunca tinham ouvido antes. Syme era sujeito a acessos de singular senso comum, o que, aliás, não era de sua índole. Tais acessos eram (como êle de-
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nominou seu pressentimento no caso dos óculos) intuições poéticas que, às vezes, se sublimavam em profecias. Agora havia calculado corretamente a política de seu antagonista. Quando o Marquês foi informado por seus padrinhos que Syme só poderia combater na manhã seguinte, compreendeu que se erguia inesperadamente um obstáculo para seus explosivos afazeres na capital. Não podendo confessar a seus amigos os motivos de sua oposição, aceitou o plano que Syme arquitetara. Induziu os padrinhos a escolherem uma campina perto da estrada de ferro, e se encomendou à fatalidade do primeiro assalto. Quem o visse chegar tão despreocupado ao campo de honra não adivinharia que êle tinha pressa de viajar; trazia as mãos nos bolsos, o chapéu de palhinha deitado para trás e a cara simpática a queimar-se ao sol. Mas atiçaria a curiosidade de um estranho a particularidade de aparecerem em seu séquito, não somente os padrinhos com a caixa das espadas, mas ainda dois criados com uma maleta e uma cesta de comida. Embora fosse ainda muito cedo, o sol impregnava de calor todas as coisas, e Syme ficou vagamente surpreso de ver tantas flores primaveris esparzindo ouro e prata pelo capinzal em que toda a comitiva estava mergulhada até aos joelhos. Com exceção do Marquês, todos usavam roupas sombrias e solenes e chapéus semelhantes a negras tampas de chaminés; especialmente o doutorzinho, com o acréscimo de suas funestas lunetas, parecia um agente funerário numa comédia. Não escapou a Syme o cômico contraste entre á fúnebre procissão e o prado vivo e reluzente, marchetado de flores silvestres. Mas, de fato, esse cômico contraste entre a floração amarela e ós chapéus negros era apenas um símbolo do trágico contraste entre a floração amarela e o negro encargo. Viu à direita um bosquezinhò e, mais longe, à esquerda, a curva alongada da estrada de ferro, que êle, por assim dizer, defendia do Marquês, para quem ela era, ao mesmo tempo, meta e fuga. À sua frente, acima do sinistro grupo de seus adversários, destacava-se, como uma nuvem colorida, contra a indefinível linha do mar, uma pequena amendoeira em flor. O membro da Legião de Honra, cujo nome parece que era Coronel Ducroix, aproximou-se com grande polidez do Professor e do Dr. Buli, e sugeriu que o duelo terminasse pelo primeiro sangue.
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Entretanto, Dr. Buli, meticulosamente industriado por Syme na política a ser adotada, insistiu, com subida dignidade e num péssimo francês, pela continuação até o ponto em que um dos combatentes fosse inutilizado. Syme estava decidido a não inutilizar o Marquês e impedir o Marquês de inutilizá-lo, ao menos pelo espaço de vinte minutos. Em vinte minutos o trem de Paris teria ido embora. — Para um homem como Monsieur de St. Eustache, de bravura e destreza notórias, disse solenemente o Professor, deve ser indiferente o método que se abrace, e nosso afilhado tem fortes razões para exigir o mais disputado encontro, razões cuja delicadeza me proíbe de ser explícito, mas de cuja probidade e retidão eu posso. .. — Peste! bradou por trás deles o Marquês, cujo rosto enegrecera de repente. Paremos de falar e comecemos, e com uma cutilada decapitou uma flor. Syme compreendeu-lhe a rude impaciência, e instintivamente olhou por cima do ombro para-saber se o trem vinha chegando. Mas não havia fumaça no horizonte. O Coronel Ducroix ajoelhou-se e abriu a caixa, de onde sacou um par de espadas que, ao sol, transmudaram-se em duas listras de alva chama. Ofereceu uma ao Marquês, que a agarrou sem cerimônia, e outra a Syme, que a recebeu, dobrou e sopesou tão detidamente quanto lhe permitiu a dignidade. Em seguida, o Coronel sacou outro par e, tomando uma para si e dando outra ao Dr. Buli, procedeu à colocação dos homens. Ambos os combatentes haviam despido seus casacos e coletes e empunhado as espadas. Por seu turno, os padrinhos ladearam o campo da luta e desembainharam suas espadas, mas conservaram seus sombrios e escuros agasalhos. Os contendores cumprimentaram-se. O Coronel disse calmamente: — "Em guarda!", e as duas espadas tocaram-se e tiniram. Quando o repenique das lâminas entrechocadas repercutiu em seu braço, todos os fantásticos temores que têm sido o assunto desta história abandonaram Syme como os sonhos abandonam o homem que desperta. Rememorou-os claramente e por ordem, como simples traições dos nervos: o medo ao Professor fora o medo aos caprichos tirânicos de um pesadelo, e o medo ao Dr. Buli fora o medo ao vazio irrespirável da ciência. Aquele era o medo tradicional de que um milagre acontecesse; este era o medo moderno, mais desesperançado, de que nenhum milagre pudesse jamais acontecer. Mas viu que esses medos
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eram puras fantasias, porque se achava em presença do fato irremediável do medo à morte, com seu grosseiro e impiedoso senso comum. Sentiu-se como um homem que passa uma noite inteira sonhando que vai cair num precipício e acorda na manhã em que vai ser enforcado. Pois tão depressa vira um raio de sol escorregar na goteira da lâmina escorçada do adversário, e sentira as duas línguas de aço se tocarem e vibrarem como dois seres vivos, compreendeu que seu antagonista era um terrível contendor e que provavelmente o último instante de sua vida tinha chegado. Sentiu que tudo quanto havia sobre a terra, mesmo a grama debaixo de seus pés, tinha um estranho e intenso valor. Sentiu o amor pela vida em todas as coisas. Chegou até a imaginar que escutava o crescimento da erva; chegou até a pensar que, enquanto êle ali se achava, novas flores estavam nascendo e desabrochando — flores encarnadas e amarelas e azuis que rematavam a magnificência da primavera. E toda a vez que seus olhos se desviavam, por um segundo, dos olhos frios, fixos e hipnóticos do Marquês, davam com a amendoeira na linha do horizonte. Disse consigo que, se por um milagre escapasse, estaria pronto a sentar-se para sempre diante daquela amendoeira, sem desejar nada mais do mundo. Mas, enquanto uma parte de seu espírito se embevecia na contemplação da terra, do céu e de todo o universo, que tinha a beleza viva de uma coisa perdida, a outra parte, transparente como vidro, parava as estocadas do inimigo com uma precisão cronométrica, da qual êle não se julgava capaz. Uma dessas estocadas lhe arranhou o pulso, deixando um tênue filete de sangue, mas isso ou não foi notado ou foi tàcitamente ignorado. Espaço em espaço êle ripostava, e uma ou duas vezes supôs até que tocara o antagonista, mas como não havia sangue na folha nem na camisa presumiu que se equivocara. Logo depois o combate foi suspenso e houve troca de posições. Com risco de perder tudo, o Marquês, que nem sequer pestanejava, esgueirou um olhar para a via férrea, à sua direita. Depois, volveu para Syme um rosto endemoninhado e começou a combater como se possuísse vinte espadas. O assalto sobreveio tão rápido e furioso que aquela espada resplendente pareceu uma chuvarada de setas flamejantes. Syme não teve ocasião de olhar para a via férrea; mas isso não lhe era necessário. A descomedida loucura batalhante do Marqujls não tinha outro impulso que a avizinhação do trem de Paris.
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Mas a endiabrada energia do Marquês era ilimitada. Em duas paradas Syme tirou da liça a ponta de seu contendor e, na terceira, ripostou tão àgilmente que, desta feita, não teve dúvida de que o tinha tocado. Em verdade, a espada se lhe dobrou ao peso do corpo do atingido Marquês. Syme estava tão certo de haver enfiado sua lâmina no inimigo como o está o jardineiro que enfia no chão sua pá. Nada obstante, o Marquês saltou para trás sem desaprumar, e Syme, idiotizado, fitou a ponta de sua espada, onde não descobriu a menor gota de sangue. Houve um instante de rígido silêncio, findo o qual Syme caiu sobre o outro enfurecidamente, cheio de ardente curiosidade. O Marquês era, deveras, melhor espadachim, como o admitira Syme desde o princípio, mas agora mostrava-se perturbado e perdia terreno. Desatento e um tanto lerdo, o Marquês olhava de contínuo para a via férrea, como se tivesse mais medo do trem que do aço pontiagudo. Por seu turno, Syme se batia denodada mas cautelosamente, com o cabeça em fogo, ávido por decifrar o enigma da inexistência de sangue em sua própria espada. Com este propósito visava mais a gorja e a cabeça do que mesmo o corpo do Marquês. Um minuto e meio mais tarde sentiu a ponta de sua espada penetrar no pescoço do homem, debaixo da mandíbula. Mas a lâmina saiu limpa. Quase fora de si, acertou nova estocada, que deveria produzir um talho sangrento na face do Marquês. Mas não houve talho. Por um instante o céu de Syme voltou a escurecer-se com terrores sobrenaturais. Sem dúvida o homem tinha o corpo fechado. Este novo temor espiritual era bem mais terrível que a simples barafunda espiritual simbolizada na perseguição que lhe movera o paralítico. O Professor não passara de um duende, enquanto que este homem era um demônio — talvez fosse o Demônio! Em todo caso, de uma coisa estava certo: três vezes uma espada terrena o tinha ferido e não o marcara. Com este pensamento Syme se reanimou, e tudo quanto nele havia de bom cantou no ar como o vento canta nas árvores. Recordou todas as coisas terrenas de sua aventura: as lanternas chinesas de Saffron Park, a moça dos cabelos vermelhos no jardim, os honestos marujos encharcados de cerveja à beira do cais, os leais companheiros que estavam ali a seu lado. Talvez tivesse sido eleito paladino de todas essas coisas simples e generosas para terçar espadas com o inimigo de toda a criação. "No fim de contas", disse para si mesmo, "sou mais do que um demônio;
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sou um homem. Posso fazer uma coisa que o próprio Satã não pode: posso morrer", e quando estas palavras cruzaram sua mente, êle ouviu um assobio longínquo e abafado que, em breve, se transformaria no rugido do trem de Paris. Entregou-se outra vez à luta com a sobrenatural ligeireza de um maometano que anela o Paraíso. À medida que o trem se aproximava, êle julgava estar vendo o povo erigir arcos florais em Paris; associava-se à vibração e à glória da grande República, cujas portas êle estava protegendo contra o Inferno. E seus pensamentos se engrandeciam ao elevar-se o rugido do trem, que terminou orgulhosamente por um silvo prolongado e penetrante. O trem estacou. Inopinadamente, para espanto dos presentes, o Marquês, num salto para trás, escapou do poder do adversário e lançou ao chão a espada. O salto foi prodigioso, principalmente porque, segundos antes, Syme o atingira em cheio na coxa. — Pára! bradou o Marquês, e sua voz exigia instantânea obediência. Quero dizer uma coisa. — De que se trata? perguntou pasmado o Coronel Ducroix. Houve irregularidade? — Não deixou de haver, disse um tanto pálido o Dr. Buli. Nosso afilhado feriu o Marquês pelo menos umas quatro vezes, e êle continua ileso. — O Marquês ergueu a mão, num curioso gesto de reprimida impaciência. — Por favor, deixem-me falar, disse. É muito importante. Mr. Syme, continuou, virando-se para seu oponente, se bem me lembro, estamos lutando porque o senhor exprimiu o desejo (que reputei irracional) de puxar-me o nariz. Pode agora fazer-me o obséquio de puxar meu nariz o mais depressa possível? Preciso pegar o trem. — Protesto! Isso é inteiramente irregular! exclamou o Dr. Buli indignado. — De fato isso vai de encontro à praxe, anuiu o Coronel Ducroix, olhando severamente para o Marquês. Ao que me consta, registra-se apenas um caso (Capitão Bellegarde e Barão Zumpt) em que as armas foram trocadas no meio da justa, a pedido de um dos combatentes. Mas não se pode dizer que um nariz seja uma arma. — O senhor quer ou não quer puxar meu nariz? perguntou exasperado o Marquês. Por favor, Mr. Syme! O senhor não queria fazê-lo? Pois faça-o! O senhor nem imagina como isso
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é importante para mim. Vamos, não seja tão egoísta! Suplico-lhe que puxe meu nariz imediatamente, e inclinou-se de leve para a frente com um sorriso fascinante. O trem de Paris, arfando e silvando, rangia numa estaçãozinha situada atrás de um outeiro próximo. Uma vez mais Syme foi invadido por uma sensação a que já se habituara no decurso destas aventuras: a sensação de que um sublime e tenebroso vagalhão se elevara até ao céu e acabava de despencar-se. Movendo-se num mundo incompreensível, deu dois passos para a frente e puxou o nariz romano de seu renomado fidalgo. Puxou-o com força, e o nariz veio em sua mão. Por alguns segundos ficou solenemente atarantado, segurando entre os dedos aquela venta de papelão, contemplando-a, enquanto o sol e as nuvens e as colinas arborizadas assistiam a este ridículo espetáculo. O Marquês rompeu chistosamente o silêncio. — Se alguém se interessa por minha sobrancelha esquerda, aqui está ela. Coronel Ducroix, queira aceitar minha sobrancelha esquerda. É o tipo da coisa que poderá ser-lhe útil um dia, e gravemente arrancou uma de suas castanhas sobrancelhas assírias, destapando assim cerca de metade de sua testa morena, e cortêsmente ofereceu-a ao Coronel, que, de raiva, ruborizou-se e perdeu a fala. — Se eu tivesse sabido, balbuciou o Coronel, que estava assistindo um poltrão que se enchumaça para lutar. .. — Sei, sei, disse o Marquês, atirando estouvadamente para um e outro lado do campo vários pedaços de si mesmo. Você está muito enganado, mas não posso dar explicações agora. O trem entrou na estação! — Entrou, disse ameaçadoramente Dr. Buli. Entrou, mas vai sair. E sai sem você. Sabemos muito bem que obra diabólica. .. O misterioso Marquês levantou os braços num gesto de desespero. Ali, de pé, em pleno sol, com uma metade da cara descomposta e a outra metade reluzente e arreganhada, êle era um disparatado estafermo. — Querem levar-me à loucura? perguntou. O trem... — Você não irá nesse trem, disse Syme com firmeza, empunhando a espada. A estrambótica figura virou-se para Syme e pareceu reunir suas forças antes de falar.
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— Você, seu porcalhão, covarde, pulha, velhaco, pelintra, estúpido, excomungado, idiota, imbecil! esbravejou sem tomar fôlego. Mentecapto, trapalhão, palhaço! Você... — Não irá nesse trem, repetiu Syme. — Chamas infernais! bramiu o outro. Porque deveria eu ir nesse trem? — Sabemos porque, respondeu desabridamente o Professor. Você vai a Paris para lançar uma bomba! — E por que não a Jerico? rugiu o outro arrancando a cabeleira que se despegou facilmente. Estarão vocês todos amofinados que não possam descobrir o que sou?- Pensavam realmente que eu queria apanhar esse trem? Por mim, podiam sair vinte trens de Paris! Danem-se os trens de Paris! — Então o que é que você quer? inquiriu o Professor. — O que eu quero? O que eu não quero é apanhar esse trem; o que eu queria era que o trem não me apanhasse, mas estou vendo que agora, Deus do céu! êle já me apanhou. — Lamento dizer-lhe, disse Syme dominando-se, que sua lábia não me impressiona. Talvez, se você removesse os restos de sua antiga testa e os poucos vestígios de seu queixo, suas intenções ficassem mais evidentes. A lucidez mental se realiza de muitas maneiras. Que vem a ser essa história do trem? Por que você disse que êle o apanhou? Pode ser pura invenção literária de minha parte, mas pressinto que isso deve significar alguma coisa. — Significa tudo, disse o outro, e o fim de tudo. Agora nós estamos à mercê de Domingo. — Nós? repetiu estupefato o Professor. Que quer dizer esse "nós"? — A polícia, naturalmente! exclamou o Marquês, e arrancou o couro da cabeça e metade da cara. A cabeça que surgiu era loura, de cabelos lisos e bem penteados, cabeça típica do policial inglês, mas o rosto era incrivelmente pálido. — Sou o Inspetor Ratcliffe, disse com uma pressa que raiava na aspereza. Meu nome é muito conhecido na polícia, e vejo perfeitamente que vocês pertencem a ela. Mas por via das dúvidas trago comigo um cartão, e começou a tirar do bolso um cartão azul. O Professor fêz um gesto de enfado. — Oh! Não precisa mostrar-nos, disse enfastiado. Desse seu nós já temos um naipe quase completo.
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O homenzinho chamado Buli, como outros homens que parecem não ir além de uma vivacidade puramente vulgar, saiuse com uns inesperados expedientes de bom gosto. Sem dúvida foi quem salvou a situação. No meio dessa duvidosa cena de transformação, êle adiantou-se com toda a gravidade e responsabilidade de um padrinho e dirigiu-se aos dois padrinhos do Marquês. — Senhores, nós lhes devemos uma explicação satisfatória; mas asseguro-lhes que não foram vítimas, como estão imaginando, de uma brincadeira de mau gosto, nem de nada indigno de um homem honrado. Não perderam o tempo; ajudaram a salvar o mundo. Não somos truões mas homens desesperados, em guerra com uma vasta conspiração. Uma sociedade secreta de anarquistas caça-nos como se fôssemos lebres. Não se trata desses infelizes loucos que atiram aqui e ali uma bomba, levados pela miséria ou por alguma filosofia alemã, mas de uma igreja rica, poderosa e fanática, uma igreja de pessimismo oriental, que tem por dogma destruir a humanidade como um inseto. Podem inferir a sanha com que eles nos perseguem do fato de sermos obrigados a tais disfarces, como esses de que lhes peço desculpas, e a tais travessuras, como essas que os senhores aturaram. O mais jovem padrinho do Marquês, um sujeitinho baixo de bigodes pretos, inclinou-se polidamente e disse: — Aceito de bom grado as desculpas; mas os senhores hão de permitir que eu decline de acompanhá-los mais adiante em suas dificuldades e me despeça aqui mesmo. O espetáculo proporcionado por um distinto concidadão de nossas relações, que se fragmenta ao ar livre, é inusitado e, acima de tudo, suficiente para um só dia. Coronel Ducroix, não desejo interferir nos seus atos, mas, se o senhor está de acordo em que nossa presente situação é um tanto anômala, convido-o a voltar comigo para a cidade. O Coronel Ducroix virou-se mecanicamente; mas, depois de cofiar um momento o bigode branco, revidou: — Não, por São Jorge! Se esses senhores estão efetivamente embrulhados com uma caterva de assassinos, como dizem que estão, eu irei com eles até o fim. Já combati pela França; seria um pusilânime se não combatesse pela civilização. Dr. Buli tirou o chapéu e agitou-o no ar, dando brados aclamatórios, como se estivesse num comício.
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— Não faça tanto barulho, recomendou-lhe o Inspetor Ratcliffe. Domingo pode ouvi-lo. — Domingo! exclamou Buli, deixando cair o chapéu. — Domingo, sim, exclamou Ratcliffe. Êle pode estar com os outros. — Que outros? perguntou Syme. — Os que desceram do trem, respondeu o Inspetor. — O que você diz parece extremamente desconcertante, começou Syme. Porque, de fato. .. Mas, Deus meu! gritou de chôfre como quem vê uma explosão distante. Por Deus! Se isso é verdadeiro, toda a cambada do Conselho Anarquista estava contra a Anarquia. Todo mundo ali era detetive, exceto o Presidente e seu secretário particular. Que é que isso significa? ""^ Que significa? repetiu o novo policial com incrível violência. Significa que estamos perdidos. Você não conhece Domingo? Não sabe que seus gracejos são sempre tão graves e simples que ninguém os pode prever? Você pode imaginar uma coisa mais característica de Domingo que esta sutileza de colocar seus mais ferrenhos adversários no Supremo Conselho e depois providenciar para que esse Conselho não seja supremo? Asseguro-lhes que êle comprou todos os monopólios, capturou todos os telégrafos, apoderou-se de todas as linhas de estrada de ferro, especialmente desta linha! e apontou um dedo trêmulo para o lado da estação. Todos os movimentos caíram sob seu controle, e meio mundo estava disposto a lutar por êle. Havia, somente, cinco ípassoas que ofereceriam resistência.. . e o velho Demônio colocou-as no Supremo Conselho para que elas perdessem o tempo vigiando-se mutuamente. Não somos mais que uns idiotas, e todas as nossas idiotices faziam parte de seus planos. Domingo sabia que o Professor perseguiria Syme através de Londres e que Syme se bateria comigo na França. E enquanto êle estava juntando grandes somas de dinheiro e se apoderava das grandes linhas telegráficas, nós, os cinco idiotas, perseguíamo-nos uns aos outros, às tontas, como um bando de meninos brincando de cabra-cega. — E agora? perguntou Syme um tanto impassível. — Agora, redargüiu o outro com súbita serenidade, agora êle nos encontrou brincando de cabra-cega num campo de grande beleza rústica e de absoluta solidão. Provavelmente capturou o mundo; só lhe resta capturar este campo e os imbecis que aqui estão. Já que vocês querem realmente saber qual era
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minha cisma com a chegada desse trem, eu direi. Minha cisma era que Domingo ou o Secretário desembarcasse agora mesmo. Syme proferiu um brado involuntário, e todos volveram os olhos para a estação. Era inegável que uma grande multidão parecia dirigir-se para o sítio em que eles estavam. Mas vinha ainda muito distante e estava mal definida. — Era um hábito do extinto Marquês de St. Eustache, disse o novo polícia exibindo um estôjo de couro, andar sempre com um binóculo. Ou o Presidente ou o Secretário vem em nosso encalço no meio daquela turba. Fomos agarrados num recanto aprazível e quieto, onde não podemos cair na tentação de quebrar nossos juramentos chamando a polícia. Dr. Buli, suspeito que você enxergará muito melhor através dos meus que através desses seus óculos sumamente decorativos. . Entregou o binóculo a Dr. Buli, que imediatamente tirou suas lunetas e colocou o aparelho nos olhos. — Não há de ser terrível como você diz, aventou o Professor, um pouco abalado. Não resta d.úvida que vem muita gente, mas é possível que se trate de simples turistas. — Mas simples turistas, perguntou Buli, com o binóculo nos olhos, usam máscaras negras? Syme arrancou violentamente o binóculo da mão do médico e se pôs a observar. A avançadora multidão compunha-se, em sua maioria, de homens de aparência normal. Mas era evidente também que dois ou três dos que vinham à frente usavam meias máscaras negras quase até à boca. Este disfarce é perfeito, especialmente à distância. Syme admitiu a impossibilidade de identificar os loquazes possuidores daquelas mandíbulas escanhoadas; mas, como todos conversavam e sorriam, pôde notar o sorriso torto de um deles.
CAPITULO XI
OS CRIMINOSOS ACOSSAM A POLICIA Syme afastou dos olhos o binóculo, com alívio quase sombrio. — De qualquer modo o Presidente não está entre eles, afirmou enquanto enxugava a testa. — Mas o certo é que estão muito longe, disse pestanejando o desnorteado Coronel, ainda não refeito das apressadas embora polidas explicações de Buli. Acha que é possível reconhecer o seu Presidente no meio de todo aquele povo? — Não poderia eu reconhecer um elefante branco no meio de todo aquele povo!?! respondeu Syme com uma ponta de irritação. Na verdade é como você diz: estão muito longe. Mas se êle viesse caminhando com eles... Deus do céu! creio que este chão sofreria abalos. Após uma pequena pausa, o novato chamado Ratcliffe disse com lúgubre propósito: — Com certeza o Presidente não está entre eles. E prouvera aos Gêmeos que estivesse! É muito mais provável estar desfilando triunfalmente em Paris, ou sentado sobre as ruínas da Catedral de São Paulo. — Isso é absurdo! exclamou Syme. Algo pode ter acontecido em nossa ausência; mas êle não pode ter capturado o mundo com tamanha rapidez. £ indiscutível, acrescentou, de sobrolho franzido, examinando dubitativamente o prado distante nas cercanias da estação, é inegável que uma multidão parece vir ao nosso encontro; mas ela não é esse exército que você imagina. — Oh, não, disse desdenhosamente o novo detetive, não é uma força muito temível. Mas permita que eu fale com franqueza: ela foi calculada matematicamente, tendo em vista a nossa importância, e nós, meu caro, não somos numerosos no uni-
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verso de Domingo. Agora que êle se apoderou de todos os cabos submarinos e de todos os telégrafos, o extermínio do Conselho Supremo lhe parece uma trivialidade, como botar um cartão no correio. É tarefa para seu secretário particular, concluiu o Inspetor, cuspindo na relva. Em seguida, voltou-se para os outros e disse com certa austeridade: — Há muito que dizer em louvor da morte; mas se alguém tem qualquer preferência pela outra alternativa, aconselho-o fervorosamente a tomar meu exemplo. Com estas palavras, deu-lhes as amplas costas e, numa silenciosa determinação, encaminhou-se a passos largos para o bosque. Os outros, a uma simples olhadela, notaram que a escura nuvem humana se apartara da estação e se deslocava com misteriosa disciplina através da planície. Já divisavam, mesmo a olho nu, os borrões pretos que marcavam as máscaras usadas pelas caras da frente. Deram meia volta e seguiram o chefe, o qual já se internara no bosque e desaparecera entre as árvores farfalhantes. O sol, no relvado, era seco e quente. Assim, ao se lançarem no bosque, sentiram o contato refrescante da sombra, como mergulhadores que se lançam numa piscina sombreada. No interior, o bosque se povoava de réstias despedaçadas e sombras inquietas, que formavam uma espécie de trêmulo véu, evocativo da trepidação do cinematógrafo. Syme mal podia distinguir as sólidas figuras que andavam a seu lado sob os dançantes feixes de luz e sombra. Num instante uma cabeça se iluminava à maneira de Rembrandt, obliterando o resto do corpo; no instante seguinte surgiam alvas mãos, fortes e vibráteis, acompanhadas de uma cabeça de negro. O ex-Marquês puxara o velho chapéu de palhinha para cima dos olhos, e a sombra negra da aba dividia-lhe o rosto em duas metades tão perfeitas que êle parecia trazer uma das negras meias máscaras dos seus perseguidores. A fantasia coloriu o opressivo pasmo de Syme. Estaria de máscara o Marquês? Haveria mesmo alguém de máscara? Existiria mesmo alguém? Este bosque enfeitiçado, onde os semblantes dos homens se tornavam alternadamente pretos e brancos, onde seus corpos, uma vez intumescidos na claridade, sumiam na noite informe, este simples caos do claro-escuro (depois da límpida manhã campesina) afigurou-se-lhe um símbolo perfeito do mundo em que vivia há três dias, um mundo em que os homens largavam as barbas, os óculos e os narizes e tomavam ou-
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tras aparências. Aquela trágica confiança em si mesmo, que sentira quando acreditara que o Marquês era um demônio, havia desaparecido estranhamente, agora que êle sabia que o Marquês era um amigo. Depois de todas essas perplexidades, estava quase inclinado a perguntar o que era um amigo e o que era um inimigo. Haveria alguma coisa que subsistisse fora das aparências? O Marquês arrancara o nariz e se transformara num detetive. Não poderia do mesmo modo arrancar a cabeça e transformar-se num espectro? Tudo não se assemelhava, de resto, a este bosque de logros, a esta dança de treva e luz? Tudo não passava de um fugaz resplendor, o resplendor sempre imprevisto e sempre esquecido. Porque Gabriel Syme havia encontrado no coração deste bosque sarapintado de sol o que muitos pintores modernos aí haviam encontrado. Encontrara aquilo que os modernos chamam Impressionismo, que é outro nome para o cepticismo definitivo, incapaz de justificar o universo. Como aquele que, no meio de um pesadelo, se esforça por gritar e despertar, Syme lutava por desvencilhar-se desta última e mais execrável de todas as suas fantasias. Com duas impacientes pernadas alcançou o homem que usava o chapéu de palhinha do Marquês, o homem a quem devia chamar de Ratcliffe. Numa voz exageradamente alta e galhofeira, rompeu o insondável silêncio e puxou conversa. — Posso perguntar-lhe para que fim-de-mundo nos dirigimos? Tão autênticos tinham sido os temores de sua alma que êle se rejubilou ao ouvir a entonação tranqüila e humana de seu companheiro. — Temos que alcançar o mar, passando pela cidade de Lancy. A meu ver é pouco provável que esta região esteja do lado deles. — A que vem tudo isso? berrou Syme. Eles não podem ter conquistado todo o mundo dessa forma. Decerto, nem todos os trabalhadores são anarquistas, e mesmo que fossem, simples multidões não poderiam vencer os modernos exércitos e a polícia! — Simples multidões! repetiu seu novo amigo com um bufo de desprezo. Você fala de multidões e classes operárias como se elas fossem o nó da questão. Está contaminado por uma idéia eterna e idiota: se a anarquia vier, virá dos pobres. Por quê? Os pobres foram rebeldes, mas anarquistas, nunca!
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Mais do que os outros, têm interesse em que haja um governo decente. O pobre realmente se enraíza em sua terra. O rico, não; pode embarcar num iate para Nova Guiné. Algumas vezes os pobres se opuseram aos maus governos; os ricos sempre se opuseram a qualquer governo. Os aristocratas foram sempre anarquistas. Basta recordar as guerras dos barões. — Como preleção sobre história inglesa para meninos, está excelente, disse Syme, mas ainda não encontrei sua aplicação. — Já vai encontrá-la, retorquiu o preletor. Quase todos os braços-direitos de Domingo são milionários americanos e sulafricanos. Por isso é que êle se apossou de todas as comunicações, e é por isso que os quatro campeões restantes da força policial antianarquista estão fugindo através de um bosque como se fossem coelhos. — O que você diz dos milionários eu compreendo, disse Syme pensativo. São loucos quase todos. Mas subjugar uns poucos velhos maníacos e depravados é uma coisa; subjugar grandes nações cristãs é outra. Sou capaz de apostar meu nariz (perdoe a alusão) que Domingo ficaria completamente desamparado ante a tarefa de converter qualquer pessoa normal por aí a fora. — Bem, isso depende da pessoa, disse o outro. — Por exemplo, jamais chegaríamos a converter essa daí, disse Syme apontando para a sua frente. Entraram num espaço descoberto e ensolarado, que aos olhos de Syme representava o retorno do bom senso. E no meio da clareira havia um homem que bem poderia, com absoluta propriedade, encarnar o senso comum. Queimado de sol e sujo de suor, e grave, imbuído daquela profunda gravidade inerente aos singelos trabalhos cotidianos, um rude aldeão francês cortava lenha com uma machadinha. Algumas jardas adiante jazia sua carroça, quase cheia de toros; e o cavalo que comia o capim era, como o dono, valoroso sem ser violento e, como o dono, altaneiro ainda que quase triste. O homem era normando, mais alto do que a média dos franceses e muito anguloso. Sua figura morena recortava-se na quadra ensolarada como uma alegoria do trabalho pintada a fresco sobre um fundo de ouro. — Mr. Syme está dizendo, gritou Ratcliffe para o Coronel francês, que esse homem, pelo menos, nunca será um anarquista.
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— Mr. Syme tem toda razão, respondeu o Coronel Ducroix. Quando nada, pelo simples motivo de ter êle uma boa propriedade a defender. Mas esqueci que na pátria de vocês camponeses não costumam ser ricos. — Esse parece pobre, advertiu Dr. Buli suspeitoso. — Isso mesmo, disse o Coronel. E por isso é que êle é rico. — Tenho um idéia, bradou Dr. Buli de chôfre. Quanto êle cobraria para arranjar-nos um lugar em sua carroça? Aqueles cães vêm a pé, e logo os deixaríamos para trás. — Ofereça-lhe o que quiser! disse pressuroso Syme. Tenho dinheiro à bessa. — Não é assim que se faz, explicou o Coronel. Êle nunca lhe terá nenhum respeito se você não quiser justar. — Mas se êle regatear? começou Buli impaciente. — Regateia porque é um homem livre, redargüiu o outro. Vocês não entendem. Êle não perceberia o sentido da generosidade. Não é de receber gorjetas. E mesmo quando supunham escutar atrás de si as passadas surdas de seus desconhecidos perseguidores, tiveram que demorar-se, mortos de sofreguidão, enquanto o Coronel francês e o lenhador francês falavam com toda a pachorra e esperteza de um dia de feira. Ao fim de quatro minutos, porém, viram que o Coronel tinha razão, pois o lenhador acatara a proposta, não com o vago servilismo do biscateiro bem pago, mas com a seriedade de um procurador que recebeu os honorários justos. Disse-lhes que a melhor coisa a fazer era tomarem o rumo de uma pousada situada nas colinas de Lancy, onde o hospedeiro, antigo soldado convertido em dévot na velhice, decerto simpatizaria com eles e talvez assumisse o risco de ajudá-los. Toda a comitiva então apinhou-se em cima das pilhas de lenha e, ao balanço da rude carroça, dirigiu-se para a outra banda mais alcantilada do bosque. Embora pesado e desconchavado, o veículo ganhara bastante velocidade, e pouco depois tiveram a confortadora impressão do afastamento daqueles, quem quer que fossem, que os perseguiam. Porque, no fim de contas, descobrir onde os anarquistas haviam arregimentado tantos sequazes era um enigma ainda indecifrado. A presença de um único homem era suficiente; eles tinham abalado à vista do sorriso deformado do Secretário. De quando em quando Syme olhava de esguelha para o exército que vinha em suas pegadas.
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À medida que o bosque se rarefazia e estreitava com a distância, Syme descortinava as encostas resplendentes, por onde a quadrada e negra matilha marchava feito um monstruoso escaravelho. Na vivíssima claridade e com seus vivíssimos olhos, quase telescópicos, divisava perfeitamente esses vultos longínquos. Via-os como figuras humanas individualizadas; mas reparava, com surpresa cada vez maior, que eles se moviam como um só homem. Pareciam usar roupas escuras e chapéus comuns, como quaisquer pessoas da rua; mas não se espalhavam, nem se chocavam, nem se distribuíam em vários sentidos, como seria natural numa multidão ordinária. Moviam-se com a assustadora e maligna rigidez de um pau, como um horripilante exército de autômatos. Syme apontou-o a Ratcliffe. — É, sim, respondeu o detetive, isso é disciplina. É puro Domingo. Êle está talvez a quinhentas milhas daqui, mas infunde-lhes tanto temor quanto o dedo de Deus. Marcham uniformemente, e pode apostar suas botas que eles estão falando uniformemente e pensando uniformemente. Mas o que é importante para nós é que eles estão desaparecendo com a mesma uniformidade. Syme concordou. Era verdade que a negra mascarada que os perseguia, pouco a pouco definhava, à proporção que o camponês chicoteava o cavalo. O nível da paisagem clara, ainda que quase todo plano, descambava nos confins do bosque em ondas de lento declive que se perdiam no mar, à semelhança dos mais baixos declives das dunas de Sussex. A única diferença era que em Sussex o caminho deveria ser fragmentado e tortuoso como um regato, enquanto aqui a branca estrada francesa despencava-se diante deles como uma catarata. No fim da primeira rampa, a carroça estalou ao fazer uma curva fechada, e em alguns minutos, com a estrada ainda mais escarpada, contemplaram a seus pés o minúsculo porto de Lancy e o magnífico arco azul do mar. A nuvem viageira de seus inimigos desaparecera totalmente do horizonte. Cavalo e carroça impetuosamente rodearam um grupo de olmos, e o cavalo quase deu de focinho no rosto de um velho que estava sentado num dos bancos da calçada do café "Le Soleil d'Or". O aldeão grunhiu uma desculpa e apeou-se. Os outros também desmontaram e um a um saudaram o velho com
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meias frases de cortesia, pois suas maneiras expansivas evidenciavam que êle era o proprietário da tasca. Era um sujeito encanecido, com cara de maçã, olhos sonolentos e bigode pardo, corpulento, sedentário e simplório, um tipo que se pode com freqüência encontrar na França, mas é muito mais comum na Alemanha católica. Tudo quanto o cercava — seu cachimbo, seu caneco de cerveja, suas flores e sua colmeia — sugeria uma paz ancestral; somente quando seus hóspedes, dentro da sala de visitas, levantaram a vista depararam com a espada pendurada na parede. O Coronel, que cumprimentou o estalajadeiro como um velho amigo, entrou apressadamente, sentou-se e encomendou um refrigerante. A decisão de seu ato interessou Syme, que se sentou a seu lado e aproveitou o momento em que o velho estalajadeiro se ausentou, para satisfazer a própria curiosidade. — Pode explicar, Coronel, perguntou em voz baixa, por que viemos para cá? O Coronel Ducroix sorriu por trás da cerdosa bigodeira branca. — Por duas razões, meu prezado senhor, disse êle. Darei, primeiro, não a mais importante mas a mais vantajosa. Viemos para cá porque este é o único lugar, num raio de vinte milhas, em que podemos alugar cavalos. — Cavalos! repetiu Syme, recobrando o ânimo. — Sim, replicou o outro. Se vocês querem realmente distanciar-se de seus inimigos só têm uma saída: cavalos! A menos, naturalmente, que tragam nos bolsos bicicletas e automóveis. — E você nos aconselha a seguir para onde? inquiriu Syme com alguma descrença. — Fora de dúvida, redargüiu o Coronel, o melhor que vocês têm a fazer é correr logo para a delegacia de polícia da cidade. Tenho para mim que o amigo que apadrinhei em circunstâncias um tanto equívocas exagera demais as possibilidades de um levante geral, mas suponho que nem mesmo êle negaria que entre os gendarmes vocês estão em segurança. Syme aprovou gravemente com a cabeça. Depois perguntou de chôfre: — E sua outra razão de vir para cá? — Minha outra razão de vir para cá, disse seriamente Ducroix, é que é sempre prudente ver um ou dois homens honestos quando se está praticamente às portas da morte.
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Syme olhou para o alto da parede e descobriu um quadro religioso, de cores cruas e patéticas. — Tem razão, disse, e acrescentou quase em seguida: Alguém foi providenciar os cavalos? — Foi, sim, respondeu Ducroix. Fique certo de que dei ordens no momento em que entrei. Aqueles inimigos de vocês não davam a impressão de ter pressa, mas na realidade se deslocavam com incrível rapidez, parecendo um exército bem adestrado. Nunca pensei que os anarquistas tivessem tanta disciplina. Vocês não podem perder um minuto. Nem bem acabara de falar quando o velho estalajadeiro dos olhos azuis e cabelos brancos ingressou cautelosamente na sala e anunciou que havia seis cavalos selados lá fora. A conselho de Ducroix, os cinco outros se muniram de pequenas rações de comida e vinho e, conservando suas espadas duelares como únicas armas disponíveis, afastaram-se ruidosamente pela estrada branca e alcantilada. Por unânime consentimento, os dois criados, que carregaram a bagagem do Marquês quando êle era marquês, ficaram bebendo no café, o que, enfim, não contrariava os secretos desejos de ambos. O sol, nessa hora do dia, começava a declinar para o ocidente. Através de seus raios, Syme entrevia o velho estalajadeiro, cuja robusta figura ia diminuindo aos poucos, embora continuasse em pé a segui-los mudamente com o olhar, enquanto o sol lhe banhava os cabelos prateados. Syme sentia-se presa de uma fantasia persistente e supersticiosa, depositada em seu espírito pelo dito ocasional do Coronel: a de que esse era talvez o último homem honesto que contemplava na terra... Continuava ainda atento para aquele vulto minguante, mero borrão pardacento na vasta muralha verde da encosta, quando, no alto, por trás do estalajadeiro, viu surgir em marcha um exército de homens vestidos de preto. Parecia pairar sobre o bom homem e sua casa como uma negra nuvem de gafanhotos. Em boa hora foram selados os cavalos!
CAPITULO XII
A TERRA EM ANARQUIA Incitando os cavalos ao galope e indiferentes ao áspero declive da estrada, em pouco tempo os cavaleiros retomaram a dianteira, até que a massa dos primeiros edifícios de Lancy interceptou a visão dos seus perseguidores. Sem embargo, fora um longo percurso. Quando chegaram à cidade, já o ocidente se inflamava das cores e da exuberância do crepúsculo. O Coronel sugeriu que, antes de se dirigirem de vez para a delegacia de polícia, tentassem, de passagem, atrair as simpatias de mais um indivíduo que podia ser-lhes útil. — Quatro, dos cinco ricaços deste burgo, disse êle, são trapaceiros vulgares. Suponho que a proporção é razoavelmente igual à do resto do mundo. O quinto é um amigo meu. Sujeito excelente! E o mais importante, do nosso ponto de vista, é que possui um automóvel. — Temo, disse o Professor com jovialidade, espreitando a estrada branca por onde a negra e rastejante mascarada podia surgir de um momento parp outro, temo que não disponhamos de tempo para visitas vespertinas. — A casa do Dr. Renard está apenas a uns três minutos daqui, insistiu o Coronel. — Nossa desgraça, objetou Dr. Buli, está a menos de dois minutos. — Se cavalgarmos a toda brida, disse Syme, poderemos deixá-los para trás, porque eles vêm a pé. — Êle tem automóvel, teimou o Coronel. — Mas não devemos contar com isso, disse Buli. — Êle está do lado de vocês. — Mas pode não estar em casa.
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G. K. C H E S T E R T O N — Silêncio, ordenou Syme subitamente. Que barulho é
esse? Por um segundo todos ficaram tão imóveis como estátuas eqüestres, e por um segundo — por dois ou três ou quatro segundos — o céu e a terra pareceram igualmente imóveis. Depois, todos os seus ouvidos, agoniados de atenção, escutaram pela estrada aquela indescritível vibração que só significa uma coisa: cavalos! O rosto do Coronel transformou-se instantaneamente, como se um raio o tivesse tocado, deixando-o, porém, incólume. — Pegaram-nos, disse com breve ironia militar. Preparar para receber carga de cavalaria! — Onde é que terão conseguido os cavalos? perguntou Syme enquanto mecanicamente instigava o corcel a um meio galope. O Coronel guardou silêncio por um instante. Depois falou constrangido: — Fui estritamente exato quando disse que o "Soleil d'Or" é o único lugar, nessas vinte milhas, onde é possível conseguir cavalos. — Não! bradou Syme violentamente. Não creio que êle o fizesse. Não é possível, não é, com todos aqueles cabelos brancos! — Talvez tenha sido coagido, disse com brandura o Coronel. Eles devem ser pelo menos uma força de cem homens. Essa é mais uma boa razão para procurarmos o meu amigo Renard, que tem automóvel. Ao pronunciar estas palavras, galopou para a esquina e enfiou pela rua com tão fulminante velocidade que os outros, que já corriam à desfilada, tiveram dificuldade em seguir a cauda voadora de seu cavalo. Dr. Renard habitava uma confortável mansão no alto de uma ladeira. Quando, à sua porta, eles apearam dos cavalos, enxergaram, varada pela estrada branca, a sólida crista verde da colina que se alteava acima de todos os telhados da cidade. Ao constatar que a estrada ainda estava deserta respiraram aliviados e tocaram a campainha. Dr. Renard era um homem alegre, de barbas castanhas, um bom representante dessa silenciosa mas ativa- classe profissional que a França soube preservar melhor que a Inglaterra. Quando foi inteirado do assunto, galhofou do pânico do exMarquês. Asseverou, com o sólido ceticismo francês, que não
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havia probabilidade imaginável de um levante geral anarquista, e concluiu, encolhendo os ombros: — Anarquia é infantilidade! — Et ça, bradou de repente o Coronel, apontando por cima do ombro do outro. Isso é infantilidade? Todos volveram o olhar e avistaram um arco de negra cavalaria transpondo o cimo da encosta com todo o ímpeto de Átila. Observaram que apesar de cavalgar velozmente, a tropa se mantinha coesa, e que as negras máscaras da primeira fila avançavam com a mesma regularidade de uma linha de uniformes. O negro quadrado era, em essência, o mesmo de antes, embora avançasse com rapidez cada vez maior. Havia, porém, agora, uma diferença nitidamente visível na rampa da encosta como num mapa inclinado. Na verdade, o grosso da cavalaria formava um único bloco; mas à frente da coluna voava um ginete, cujos movimentos frenéticos de mãos e calcanhares fustigando o cavalo talvez induzissem a pensar que êle não era o perseguidor e sim o perseguido. A despeito da distância, ressaía em sua figura algo tão fantástico e tão inconfundível que prontamente identificava o Secretário. — Lamento interromper uma discussão erudita, disse o Coronel, mas você pode emprestar-me seu automóvel agora mesmo? — Estou desconfiado que vocês estão todos loucos, disse Dr. Renard, sorrindo afàvelmente. Mas Deus permita que a loucura nunca perturbe a amizade. Vamos até à garagem. Dr. Renard era um homem bonachão e monstruosamente rico, cuja casa era como o Museu de Cluny. Possuía três automóveis, mas, tendo os gostos simples da classe média francesa, parecia usá-los muito raramente. Quando seus impacientes amigos foram examiná-los, perderam uma porção de tempo para certificar-se de que um dos três poderia funcionar. Com dificuldade trouxeram-no para a rua, parando-o diante da casa do Dr. Renard. Fora da escura garagem espantaram-se ao ver que o crepúsculo já havia descido com a presteza da noite nos trópicos. Ou eles se tinham demorado mais do que imaginavam, ou algum inusitado dossel de nuvens se armara sobre a cidade. Baixando a vista pelas ruas ladeirosas pareceu-lhes que uma aligeirada neblina subia do mar. — Agora ou nunca, disse Dr. Buli. Ouço cavalos. — Não, emendou o Professor. Um cavalo.
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E enquanto escutavam, tornou-se-lhes evidente que aquele ruído, avizinhando-se cèleremente nas pedras retumbantes, não era o de uma cavalgada, mas o de um ginete que disparara à frente dos demais: o insano Secretário. A família de Syme, como a maioria daquelas que findam na pobreza, possuíra outrora um carro, e Syme sabia tudo acerca de automóveis. Saltou imediatamente para o assento do chofer e, com o rosto afogueado, tentou pôr em movimento o desusado maquinismo. Aplicou toda a sua força numa alavanca e depois disse tranqüilamente: — Receio que êle não ande. No mesmo instante um homem retesado, montado num cavalo veloz, surgiu na esquina com a velocidade e a rigidez de uma seta. Trazia um sorriso que alongava o queixo como se este se tivesse deslocado. Passou raspando pelo carro estacionado, dentro do qual a turma se amontoara, parou na frente e colocou a mão no motor. Era o Secretário, e sua boca se retificara na solenidade do triunfo. Syme debruçava-se tenazmente sobre a roda do volante. Não havia ruído nenhum além do rumor dos outros perseguidores que invadiam a cidade. Súbito rebentou um estridor de ferros entrechocados, e o carro partiu. O Secretário foi arrancado da sela como uma faca lançada para fora da bainha. O carro arrastou-o violentamente umas vinte jardas e deixou-o estendido na estrada, diante do cavalo espavorido. Quando o carro dobrou a esquina, fazendo uma esplêndida curva, viram os outros anarquistas aglomerando-se na rua e erguendo o chefe caído. — Não compreendo porque está tão escuro, disse por fim o Professor em voz baixa. — Penso que vai haver tempestade, aventou Dr. Buli. É pena que não tenhamos uma lâmpada neste carro para iluminar o caminho. — Temos, sim, afirmou o Coronel, e do fundo do cano suspendeu uma pesada lanterna de ferro, esculpida e fora de uso, dentro da qual havia uma lâmpada. Obviamente era uma antigüidade e parecia que seu uso original fora, de certo modo, semi-religioso, pois num de seus lados figurava um rude ornato em forma de cruz. — Onde você a arranjou? perguntou o Professor. — Arranjei-a onde arranjei o carro, respondeu o Coronel, rindo por entre os dentes. Com meu melhor amigo. Enquanto
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aqui o nosso Syme lutava com o volante, subi ligeiro a escadaria e falei com Renard, que, como vocês se lembram, estava de pé no átrio. "Acho", disse eu, "que não há tempo para conseguir uma lâmpada". Êle ergueu os olhos, piscando amàvelmente para a primorosa abóbada do vestíbulo. Do teto, presa por magníficas cadeias de ferro, pendia esta lanterna, uma das cem preciosidades de sua preciosa casa. Sem perda de tempo, arrancou a lâmpada do lugar, rachando os painéis e derrubando dois vasos azuis com sua violência. Entregou-me então a lanterna e eu coloquei-a no carro. Não tinha eu razão de dizer que o Dr. Renard merecia ser conhecido? — Tinha, pois não! confirmou Syme seriamente, e pendurou a pesada lanterna na frente do carro. Havia uma certa alegoria da situação deles no contraste entre o moderno automóvel e a estranha lâmpada eclesiástica. Até aqui tinham passado pela parte mais quieta da cidade, encontrando no máximo um ou dois pedestres que não lhes podiam dar idéia da paz ou da hostilidade do lugar. Agora, entretanto, as janelas das casas começavam uma a uma a iluminar-se, produzindo uma sensação maior de acolhimento e humanidade. Dr. Buli voltou-se para o novo detetive e permitiu-se um de seus sorrisos naturais e amigáveis. — Essas luzes deixam a gente mais alegre. O Inspetor Ratcliffe franziu a testa. — Somente certas luzes me deixam mais alegre, disse êle, e são aquelas luzes da delegacia de polícia que estou vendo no outro lado da cidade. Deus queira que cheguemos lá em dez minutos. Então todo o efervescente bom senso e otimismo de Buli explodiu: — Mas isso é um alucinado disparate! exclamou. Se você supõe que essa gente simples é anarquista, então você está mais louco do que um verdadeiro anarquista. Se resolvêssemos enfrentar aqueles sujeitos toda a cidade combateria do nosso lado. — Não, replicou o outro com a mesma simplicidade. Toda a cidade combateria do lado deles. Haveremos de ver. Enquanto conversavam* o Professor inclinou-se para a frente com repentina inquietação. — Que barulho é esse? perguntou. — Os cavalos atrás de nós, creio eu, disse o Coronel. Pensei que os tínhamos vencido.
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— Cavalos? Nunca! redargüiu o Professor. Não são cavalos, nem estão atrás de nós. Mal concluíra o Professor, quando, à frente deles, no fim da rua, passaram num abrir e fechar de olhos dois objetos brilhantes e rumorosos. Sumiram num segundo, mas todos viram que eram automóveis. O Professor ergueu-se empalidecido e jurou que eram os outros dois automóveis da garagem do Dr. Renard. — Eram os dele, repetiu com os olhos esgazeados. Estavam cheios de mascarados! — Absurdo! vociferou o Coronel. Dr. Renard nunca lhes daria seus carros. — Pode ter sido coagido, sugeriu Ratcliffe calmamente. Toda a cidade está do lado deles. — Você ainda acredita nisso? perguntou incrédulo o Coronel. — Logo todos vocês acreditarão, retorquiu o outro numa desesperada serenidade. Por alguns instantes estabeleceu-se uma pausa embaraçosa, que o Coronel rompeu bruscamente: — Não, não posso acreditar. Isso é puro despropósito. O singelo povo de uma pacata cidade francesa... Foi interrompido por um estampido e um lampejo bem perto de seus olhos. Quando o carro partiu cèleremente, deixando atrás de si uma flutuante nuvem de alva fumaça, Syme ouviu sibilar uma bala. — Deus meu! bradou o Coronel. Alguém nos alvejou. — Não é necessário interromper a conversa, disse o sombrio Ratcliffe. Por favor, Coronel, retome as suas considerações. Se não estou enganado, você falava do singelo povo de uma pacata cidade francesa. O estupefato Coronel não estava mais para motejos. Circunvagava os olhos, perscrutando a rua. — É extraordinário, disse, superextraordinário! — Uma pessoa rabugenta, disse Syme, poderia achar desagradável. Mas me parece que aquelas luzes acolá, no fim desta rua, são da delegacia. Em pouco tempo chegaremos lá. — Não, disse o Inspetor Ratcliffe. Nunca chegaremos lá. Tinha-se levantado para devassar a distância. Voltou a sentar-se e alisou a estirada cabeleira com um gesto de fadiga. — O que é que você quer dizer? inquiriu Buli incisivo.
— O que eu quero dizer é que nunca chegaremos lá, respondeu plàcidamente o pessimista. Eles já atravancaram a estrada com dois pelotões armados. Vejo-os daqui. A cidade está em pé de guerra, como eu predisse. Resta-me somente aninhar-me no conforto sutil de minha própria certeza. E Ratcliffe, acomodando-se confortàvelmente, acendeu um cigarro, enquanto os outros se punham excitadamente de pé e examinavam a estrada. Syme diminuíra a marcha do carro ao sentir que seus planos se tornavam inexeqüíveis e, por fim, parou-o na esquina de uma rua que descia a pique para o mar. Quase toda a cidade estava recoberta de sombras, mas o sol ainda não se tinha posto; por onde se derramava seu fulgor esfatiado, todas as coisas se coloriam de ouro flamante. Sobre o alto dessa rua transversal o derradeiro clarão do ocaso incidia tão agudo e estreito como um raio de luz artificial no teatro. Batia no carro dos cinco amigos, transformando-o numa carruagem fulgurante. Mas o resto da rua, especialmente nas duas extremidades, imergia no mais profundo crepúsculo. Por alguns segundos nada puderam ver. Depois, Syme, cujos olhos eram os mais penetrantes, rompeu num curto e amargo assobio, e a juntou: — É verdade. Uma multidão, ou um exército, ou seja lá o que fôr, está reunido no fim daquela rua. — Bem, se é assim, disse Buli impaciente, deve haver um outro motivo: um combate simulado, o aniversário do prefeito, ou coisa semelhante. Não posso e não quero crer que a gente simples e alegre de um lugar como este ande com os bolsos cheios de dinamite. Avancemos um pouquinho, Syme, e olhemos isso de perto. O carro havia percorrido lentamente umas cem jardas quando todos se surpreenderam com uma gargalhada do Dr. Buli. — Vejam, seus bestalhões! berrou. O que foi que eu disse? Essa multidão é tão obediente à lei como uma vaca. E se não é, está do nosso lado. — Como é que você sabe? perguntou espantado o Professor. — Você é cego como um morcego, berrou Buli outra vez. Não vê quem os comanda? Espreitaram de novo, e então o Coronel, com um tremor na voz, gritou: — Ora, é Renard!
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De fato, não se podiam distinguir claramente os vultos pardacentos que se agitavam na estrada; entretanto, mais adiante, num ponto iluminado, via-se, passeando acima e abaixo, o inconfundível Dr. Renard, de chapéu branco. Sua mão direita afagava as compridas barbas e a esquerda segurava um revólver. — Que louco eu fui! exclamou o Coronel. Naturalmente o meu velho amigo veio ajudar-nos. Dr. Buli, borbulhando gargalhadas, brandia levianamente a espada, como se ela fosse uma bengala. Saltou do carro e saiu a correr, gritando: — Dr. Renard! Dr. Renard! Um segundo depois, Syme julgou que seus próprios olhos enlouqueciam dentro de sua cabeça. Pois o filantrópico Dr. Renard acintosamente apontara o revólver contra Buli e fizera dois disparos que atroaram a estrada. Quase no mesmo instante em que a espiral de branco fumo se desprendeu dessa lastimável detonação, uma longa espiral de branco fumo também se desprendeu do cigarro do cínico Ratcliffe. Este empalidecera como os outros, mas sorria. Dr. Buli, a quem as balas tinham sido dirigidas e que por üm triz não foi escalpado, parou tranqüilamente no meio da estrada, sem dar sinal de medo. Depois virou-se lentamente, caminhou para o carro e subiu, trazendo dois buracos no chapéu. — Bem, disse sossegadamente o fumante, que é que você pensa agora? — Penso, respondeu Dr. Buli sem titubear, que estou dormindo em Peabody Buildings 217 e que daqui a pouco acordo e dou um pulo da cama; ou então, penso que estou sentado num cubículo almofadado de Hanwell e que o médico nada mais pode fazer no meu caso. Mas se você quer saber o que eu não penso, vou lhe dizer. Não penso o mesmo que você pensa. Não penso e não pensarei nunca que a massa de homens comuns seja um amontoado de ignóbeis pensadores modernos. Não, meu caro, sou um democrata e ainda não creio que Domingo possa converter um escavador ou um caixeiro. Não! Posso estar louco, mas a humanidade não está. Syme dirigiu para Buli seus claros olhos azuis, com uma seriedade que comumente não manifestava: — Você é um sujeito excelente. Acredita que a sensatez não é um privilégio exclusivamente seu. E tem toda (razão no que toca à humanidade, aos camponeses e a pessoas como aquele velho e simpático estalajadeiro. Mas não tem razão no
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que toca a Renard. Suspeitei dele desde que o vi. Ê racionalista e, o que é pior, rico. Se o dever e a religião têm que ser destruídos, hão de ser destruídos pelos ricos. — E agora já estão realmente destruídos, disse o homem do cigarro, erguendo-se com as mãos nos bolsos. Os diabos se aproximam. Os ocupantes do automóvel seguiram ansiosamente a direção do olhar cismarento de Ratcliffe e viram que todo o regimento investia sobre eles desde a ponta da rua. Dr. Renard, furioso, marchava na frente, a barba voando na brisa. O Coronel pulou para fora do carro, soltando uma exclamação de impaciência. — Senhores, vozeou, isso é incrível! Deve ser brincadeira. Se conhecessem Renard como eu conheço... É como chamar a Rainha Vitória de dinamiteira. Se vocês guardassem na mente o caráter desse homem... — Dr. Buli, atalhou Syme sardônico, guarda-o pelo menos no chapéu. — Digo-lhes que isso não é possível! berrou o Coronel, pateando que nem um louco. Renard explicará tudo. Êle vai explicar-me, sim. E a passos largos foi para diante. — Não tenha tanta pressa, disse preguiçosamente o fumante. Em breve êle nos explicará tudo. Mas o sôfrego Coronel já não o ouvia e caminhava para o inimigo avançador. O exaltado Dr. Renard outra vez apontou a arma, mas, reconhecendo o adversário, hesitou. O Coronel avizinhou-se dele, fazendo uns gestos frenéticos de admoestação. — É inútil, disse Syme. Nada conseguirá daquele velho idolatra. Proponho que a gente meta o carro no meio deles, de surpresa, como as balas que vararam o chapéu de Buli. É possível que nos matem, mas nós também mataremos um bom número deles. — Não topo isso, não, disse Dr. Buli, tornando-se mais vulgar na sinceridade da sua virtude. Esses pobres camaradas podem estar enganados. Demos uma oportunidade ao Coronel. — Devemos voltar, então? perguntou o Professor. — Não, respondeu friamente Ratcliffe. A outra ponta da rua também está guarnecida. Parece-me até que vejo lá outro amigo seu, Syme.
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Syme habilmente fêz a volta e deu uma olhada para o caminho percorrido. Avistou, galopando ao seu encontro na escuridão, um troço irregular de cavalaria. Viu, sobre a sela da frente, o brilho prateado de uma espada e, pouco depois, o brilho prateado dos cabelos de um ancião. Num instante, com tremenda violência, fêz outra volta e, como um homem que só desejasse morrer, lançou precipitadamente o carro na ladeira que ia dar no mar. — Que diabo é isso? bradou o Professor, agarrando-lhe o braço. — Caiu a estrela da manhã, respondeu Syme, enquanto o carro se despencava pela escuridão como uma estrela cadente. Os outros não lhe entenderam as palavras, mas quando relancearam os olhos para o alto viram a cavalaria inimiga dobrando a esquina e descendo a ladeira; na vanguarda cavalgava o honesto estalajadeiro, corado pela ardente inocência do rubor crepuscular. — O mundo está doido! exclamou .o Professor e enterrou o rosto nas mãos. — Não, disse Dr. Buli com adamantina humildade, doido estou eu. — Que vamos fazer? perguntou o Professor. — Neste momento, disse Syme com científico desprendimento, vamos despedaçar-nos de encontro a um poste de luz. Um segundo depois o automóvel esbarrou, com catastrófico rangido, num objeto de ferro. No instante seguinte quatro homens abriam caminho por entre os destroços metálicos, e um poste comprido e fino, que antes se erguia desempenado à margem da avenida litorânea, quedava-se agora curvado e retorcido como o galho de uma árvore abatida. — Bem, alguma coisa destruímos, comentou o Professor, sorrindo pàlidamente. O que não deixa de ser um consolo. — Você está se tornando anarquista, disse Syme, enquanto, impelido por seu instinto de elegância, sacudia o pó da roupa. — Todo mundo já o é, disse Ratcliffe. Enquanto conversavam, o cavaleiro encanecido e seus sequazes avizinhavam-se tonitruantes, e quase simultaneamente uma escura multidão corria gritando ao longo da avenida. Syme apanhou uma espada e agarrou-a nos dentes, prendeu duas outras debaixo dos sovacos, segurou uma quarta na mão esquerda e com a lanterna na mão direita pulou para a praia.
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Os outros pularam depois dele, em solidário acatamento à decisão, deixando para trás os escombros e a turba reunida. — Temos mais uma oportunidade, disse Syme tirando a espada da boca. Seja qual fôr o sentido de todo este pandemônio, acho que a delegacia de polícia nos ajudará. Não podemos alcançá-la porque eles guardam o caminho. Mas ali, naquele quebra-mar, poderemos resistir tanto quanto Horácio na sua ponte. Temos de resistir até que venha a polícia. Sigam-me. Os outros seguiram-lhe os passos na rangente areia e, após um ou dois segundos, suas botas pisavam, não os seixos da maré, mas lajes grandes e chatas. Tomaram por um extenso e raso molhe que se lançava num braço do mar negro e encapelado, e quando chegaram ao fim do paredão sentiram que haviam chegado ao fim de suas aventuras. Voltaram-se e contemplaram a cidade. A cidade se transfigurara; era só alvoroço. Em toda a extensão da avenida atropelava-se uma turva e estrepitosa corrente de seres humanos, com os braços agitados e os rostos ferozes, a encará-los ameaçadoramente. A comprida e escura fileira estava ponteada de archotes e lanternas; mas mesmo onde nenhuma chama alumiava uma cara enfurecida, eles pressentiam, no perfil mais longínquo e no gesto mais indefinido, um ódio organizado. Evidentemente eram malditos entre todos os homens, mas não sabiam por quê. Como eles já haviam feito, dois ou três sujeitos, que pareciam pequenos e negros como macacos, pularam da calçada e caíram na praia. Gritando horrivelmente e sulcando a areia frouxa, tentaram estabanadamente ganhar o mar. O exemplo foi seguido, e toda a massa negra começou a escorrer e pingar da calçada como negro melaço. Entre os primeiros tipos da praia Syme reconheceu o aldeão que os transportara na carroça. Chafurdava na ressaca, montado num possante cavalo de tiro, e ameaçava-os, brandindo um machado. — O camponês! berrou Syme. Eles não se levantam desde a Idade Média. — Ainda que a polícia chegue agora, disse melancòlicamente o Professor, nada pode fazer com essa multidão. — Tolice! exclamou Buli desesperado. Na cidade deve ter ficado muita gente que é humana.
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— Não, disse o desencantado Inspetor. O ser humano em breve se extinguira. Somos os últimos espécimes da humanidade. — Pode ser, disse o Professor distraidamente. Depois acrescentou com sua voz sonhadora: O que é que está escrito no fim da Inepcíada de Pope? Nenhuma chama, pública ou privada, Nenhuma luz, divina ou maculada, Fulge em teu Reino, oh Caos devorador! Morre a Luz sob teu verbo assolador. Que baixes a cortina, grande Anarca, Surja a treva total, que o mundo abarca! — Silêncio! gritou Buli de repente. Os gendarmes vêm aí. De fato, na delegacia de polícia cruzavam-se vultos diligentes, riscando e ofuscando as janelas iluminadas, e do centro da escuridão vinha o ruído seco e metálico de uma disciplinada cavalaria. — Estão carregando sobre a multidão! gritou Buli entre extasiado e alarmado. — Não, disse Syme, estão formados na avenida. — Apontaram as carabinas, bradou Buli, dançando de alegria. — Sim, disse Ratcliffe, e vão dispará-las contra nós. Em meio a suas palavras soou um demorado crepitar de fuzilaria e, diante deles, as balas saltitaram nas pedras como saraivas. — Os gendarmes uniram-se a eles! exclamou o Professor e deu uma palmada na testa. — Estou mesmo no cubículo, disse Buli convictamente. Houve um longo silêncio. Então, Ratcliffe, olhando para o encrespado mar purpúreo-acinzentado, falou: — Que importa saber quem está louco ou quem está lúcido? Daqui a pouco estaremos todos mortos. Syme voltou-se para êle e perguntou: — Você está completamente desesperado, não é mesmo? Mr. Ratcliffe guardou um mutismo pétreo; ao fim de alguns instantes, porém, respondeu calmamente:
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— Não. Ê muito estranho, mas eu não estou completamente desesperado. Resta ainda uma vaga e louca esperança que não me sai da cabeça. Todos os, podêres deste planeta estão contra nós, e me espanta que sobreviva esta tola esperança. — Em que ou em quem se baseia sua esperança? perguntou Syme curioso. — Num homem que nunca vi, respondeu o outro, fitando o plúmbeo mar. — Compreendo, disse Syme em voz baixa. O homem do quarto escuro. Mas a esta hora já deve ter sido assassinado por Domingo. — Talvez, disse o outro com firmeza. Mas, nesse caso, foi o único homem que Domingo achou duro de morrer. — Ouvi o que você disse, falou o Professor, de costas. Também estou agarrado a uma coisa que nunca vi. De repente, Syme, que estava como que enlevado em visões introspectivas, volveu-se para os outros e gritou como se despertasse: — Onde está o Coronel? Pensei que estava conosco! — O Coronel! repetiu Buli. É verdade, que é feito do Coronel? — Tinha ido falar com Renard, disse o Professor. — Não podemos abandoná-lo no meio dessas feras, bradou Syme. Morramos como cavalheiros s e . . . — Não tenha pena do Coronel, disse Ratcliffe com um pálido sorriso de desdém. Êle está bem acomodado. Está... — Não, não, não! bradou Syme impaciente. O Coronel também? não! Não acredito! — Acredita em seus próprios olhos? perguntou o outro e apontou para a praia. Muitos dos perseguidores, sacudindo os punhos, haviam entrado na água, mas o mar bravio impedia-os de chegar ao molhe. Contudo, dois ou três alcançaram o início da passagem de pedra e pareciam adiantar-se cautelosamente. O clarão de uma lanterna iluminou casualmente os rostos dos dois primeiros. Um desses rostos trazia uma meia máscara preta, sob a qual a boca se contorcia com tal demência nervosa que a moita preta da barba se enrodilhava continuamente, como se fosse um ser vivo e inquieto. O outro era o rosto vermelho e o bigode branco do Coronel Ducroix. Ambos se consultavam gravemente.
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— Sim, êle também, disse o Professor e sentou-se numa pedra. Tudo doido. E eu, doido! Não posso confiar no maquinismo de meu corpo. Sinto que minha mão pode erguer-se e bater-me. — Quando minha mão se erguer, disse Syme, será para bater em outro. E segurando numa das mãos a espada e na outra a lanterna, saiu pelo molhe ao encontro do Coronel. Como se quisesse dissipar a derradeira esperança ou a derradeira dúvida, o Coronel, ao divisá-lo, apontou e disparou o revólver. O tiro não atingiu Syme, e sim a espada, partindo-a rente à guarda. Syme arremessou-se e deu com a lanterna de ferro na cabeça do Coronel. — Judas perante Herodes! gritou e derrubou o Coronel nas pedras. Em seguida virou-se para o Secretário cuja boca medonha estava quase espumando, e suspendeu a lanterna com um gesto tão rígido e tão arrasador que o outro gelou por um momento e foi forçado a escutar. — Está vendo esta lanterna? bramiu Syme numa voz terrível. Está vendo a cruz gravada fora e a lâmpada queimando por dentro? Não foi gravada por você. Não foi acesa por você. Homens melhores do que você, homens que podiam crer e obedecer, modelaram as entranhas do ferro e preservaram a legenda do fogo. Não há uma rua por onde você anda, não há um fio das roupas que você veste, que não tenha sido feito como esta lanterna, para negar sua filosofia de estéreo e ratazanas. Você não sabe fazer nada. Você só sabe destruir. Destruirá a humanidade, destruirá o mundo, mas contente-se com isso. Porque esta velha lanterna cristã você não destruirá. Ela irá para onde o seu império de macacos jamais saberá encontrá-la. E bateu uma vez com a lanterna no Secretário, fazendo-o cambalear; depois, rodopiando-a duas vezes em volta da cabeça, sacudiu-a no mar, onde ela fulgurou como um foguete e afundou. — Espadas! bradou Syme, voltando o rosto inflamado para seus amigos. Carreguemos sobre esses cães. É chegada nossa hora de morrer. Os três companheiros seguiram-no de espada em punho. A espada de Syme estava partida, mas êle, lançando por terra um pescador, arrancou-lhe um cacete das mãos. Num momento eles se teriam arrojado para a multidão e perecido, mas foram sustados por uma alteração. O Secretário, que desde o
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discurso de Syme jazia como desacordado, apoiando na mão a cabeça ferida, arrancou subitamente sua máscara preta. O pálido rosto, assim desnudado e exposto à claridade das lâmpadas, revelava menos raiva que estupefação. O Secretário levantou a mão com impaciente autoridade. — Deve haver algum engano, disse êle. Mr. Syme, parece-me que você não se compenetra de sua situação. Está preso em nome da lei. — Da lei? disse Syme deixando cair o cacete. — Da lei, sim, disse o Secretário. Sou detetive da Scotland Yard, e tirou do bolso um cartãozinho azul. — E o que é que você pensa que nós somos? inquiriu o Professor lançando os braços para o alto. — Vocês, disse firmemente o Secretário, vocês são, como é do meu conhecimento, membros do Supremo Conselho Anarquista. Disfarçado como um de vocês, e u . . . Dr. Buli atirou sua espada ao mar. — Nunca houve nenhum Supremo Conselho Anarquista, bradou. Éramos todos um magote de policiais idiotas vigiando-nos uns aos outros. E todo esse povo excelente que tem estado a azucrinar-nos com seus tiros pensava que éramos os dinamite iros. Eu sabia que não podia estar enganado com as multidões, acrescentou Buli, dirigindo um olhar radiante para a enorme turba que se espalhava ao longo da praia. As pessoas comuns nunca são loucas. Sei disso, eu que sou uma pessoa comum. Bem, agora vou para a terra. Pago um trago para todos.
CAPITULO XIII
A PERSEGUIÇÃO DO PRESIDENTE Ao amanhecer, cinco sujeitos desconcertados mas risonhos tomaram o barco para Dover. O pobre Coronel podia ter alguma razão para queixar-se, primeiro por ter sido levado a combater por duas facções que não existiam e depois por ter sido derreado por uma lanterna, mas era um cavalheiro magnânimo e, confortado pela evidência de que as duas partes nada tinham a ver com dinamite, despediu-se deles no molhe com muita afabilidade. Os cinco reconciliados detetives tinham uma centena de ponnenores a esclarecer entre si. O Secretário contou a Syme que foram obrigados a usar máscaras a fim de se aproximarem do pretenso inimigo como companheiros de conspiração. Syme expôs o motivo que os instigou a fugir tão desabaladamente através de um país civilizado. Mas acima de todas essas questões, de minúcias facilmente explicáveis, elevava-se a montanha central da questão que eles não sabiam explicar. Que significava tudo isso? Se eles eram inofensivos detetives, o que era Domingo? E se Domingo não capturara o mundo, que diabo era que êle tinha feito? Sobre isso o Inspetor Ratcliffe se conservava pessimista. — Estou na mesma situação de vocês, diss» êle. Para mim, esse joguinho de Domingo não tem pé nem cabeça. Mas há uma coisa: Domingo pode ser o que quiser, menos um cidadão inocente. Diabos o levem! Vocês se lembram da cara dele? — Confesso, que nunca pude esquecê-la, respondeu Syme. — Está bem, disse o Secretário. Acho que muito breve desvendaremos tudo, pois amanhã é dia de nossa reunião.
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Desculpem-me, acrescentou com um sorriso pavoroso, de estar tão compenetrado dos meus deveres de Secretário. — Creio que você tem razão, refletiu o Professor. Suponho que êle mesmo desvendará tudo para nós, mas confesso que recearia perguntar a Domingo quem êle é. — Por quê? inquiriu o Secretário. Tem medo de bombas? — Não, retrucou o Professor. Tenho medo de que êle me diga quem é. — Vamos tomar um trago, convidou Dr. Buli, ao fim de uma pausa. Durante toda a viagem, de barco e de trem, eles se mostraram imensamente sociáveis, mas instintivamente tratavam de permanecer juntos. Dr. Buli, que fora sempre o otimista do grupo, fêz o possível para persuadir os outros a tomarem em Vitória o mesmo fiacre; mas eles rejeitaram a proposta e partiram num côche, em cuja boléia Dr. Buli logo se aboletou e pôs-se a cantar. Acabaram a jornada num hotel de Piccadilly Circus, de maneira a estarem perto de Leicester Square quando amanhecesse. Entretanto, as aventuras do dia ainda não estavam encerradas. Dr. Buli, descontente com a determinação geral de ir para a cama, saíra do hotel por volta das onze horas a fim de ver e admirar algumas das belezas de Londres. Contudo, vinte minutos depois estava de volta, atroando o vestíbulo com seus berros. Syme, que a princípio tentara silenciá-lo, viuse por fim obrigado a escutá-lo com renovada atenção. — Eu o vi! Garanto-lhe que o vi! exclamou Dr. Buli com pesada ênfase. — Quem? perguntou Syme de pronto. Não foi o Presidente!?! — Não, homem, não. Não ando tão azarado, disse Dr. Buli com uma risadinha desnecessária, não ando tão azarado assim. Eu o trouxe para cá. — Trouxe para cá? Mas quem? tornou Syme impaciente. — Oj>cabeludo, respondeu o outro lücidamente. O sujeito que bancava o homem cabeludo. Gogol! Ei-lo aqui. E puxou por um relutante cotovelo o mesmo jovem que cinco dias antes saíra do Conselho com seus ralos cabelos vermelhos e um rosto pálido, o primeiro de todos os falsos anarquistas a ser descoberto. — Por que vocês me importunam? bradou o recém-chegado. Expulsaram-me como espião. — Todos somos espiões! sussurrou Syme.
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— Todos somos espiões! gritou Dr. Buli. Venha tomai um trago. De manhã, o batalhão dos seis aliados rumou impassível para o hotel de Leicester Square. — Isso é muito divertido, comentou Dr. Buli. Seis homens vão perguntar a um homem o que êle é. — Parece-me que é mais esquisito que divertido, disse Syme. Parece-me que seis homens vão perguntar a um homem o que eles são. Em silêncio eles entraram na praça e, embora o hotel estivesse localizado no canto oposto, viram num relance a minúscula varanda e um vulto que parecia grande demais para ela. Estava só, sentado, com a cabeça inclinada, os olhos pregados num jornal. Mas todos os seus conselheiros, que vinham com o propósito de destituí-lo, cruzaram a praça como se do céu centenas de olhos os observassem. Haviam disputado demoradamente sobre a política que iriam seguir: deviam deixar de fora o desmascarado Gogol e começar diplomaticamente, ou deviam levá-lo a deflagrar a pólvora de uma vez? Por influência de Syme e Buli prevaleceu o último alvitre. Sem embargo, o Secretário quis saber porque os dois pretendiam atacar Domingo tão temeràriamente. — Meus motivos são muito simples, explicou Syme. Pretendo atacá-lo temeràriamente porque tenho medo dele. Seguindo os passos de Syme, subiram silenciosos a escada escura até que se acharam ao mesmo tempo sob a ampla claridade do sol da manhã e sob a ampla claridade do sorriso de Domingo. — Encantado! disse este. Tenho muito prazer em vê-los. Que dia maravilhoso! E o Czar? Morto? O Secretário, que se adiantara, empertigou-se para exprobrá-lo com dignidade. — Não, senhor, respondeu severamente. Não houve carnificina. Não lhe trago notícias de espetáculos tão desagradáveis. — Espetáculos desagradáveis? repetiu o Presidente, com um sorriso radiante e inquiridor. Que são espetáculos desagradáveis? Os óculos de Dr. Buli? O Secretário ficou um momento embaraçado e o Presidente prosseguiu num tom de leve censura:
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— Naturalmente todos temos direito a nossas opiniões e até a nossos olhos, mas na realidade considerá-los desagradáveis diante daquela pessoa que... Dr. Buli atirou os óculos na mesa, quebrando-os. — Meus óculos são indecentes, disse êle, mas eu não sou. Olhe para minha cara. — A meu ver é o tipo da cara que pode florescer numa pessoa, disse o Presidente. De fato, floresce em você. E quem sou eu para altercar com os frutos silvestres sobre a Árvore da Vida? Pode ser que um dia ela floresça em mim. Quem sabe? — Não temos tempo para frioleiras, esbravejou selvagemente o Secretário. Viemos saber o que significa tudo isso. Quem é você? O que é você? Por que nos ajuntou aqui? Sabe quem somos e o que somos? É você um excêntrico que se faz de conspirador, ou um esperto que se faz de tolo? Responda-me. — Dos candidatos, murmurou Domingo, exige-se apenas que respondam oito dos dezessete quesitos do questionário. Tanto quanto pude entender, vocês querem que eu lhes diga o que sou e o que são vocês, o que é esta mesa, o que é este Conselho e o que é este mundo, enfim. Pois bem, atreverme-ei a rasgar o véu de um destes mistérios. Se desejam saber o que são, direi que são um bando de asnos moços e sumamente bem intencionados. — E você? perguntou Syme, avançando. Você o que é? — Eu? Que sou eu? rugiu o Presidente, e pouco a pouco elevou-se a uma altura inacreditável, como um enorme vagalhão a pique de arquear-se e rebentar sobre eles. Querem saber o que eu sou? Querem? Buli, você, que é um homem de ciência, cave em torno das raízes dessas árvores e descubra a verdade que elas escondem. Syme, você que é um poeta, contemple e interrogue essas nuvens matutinas. Pois eu lhes digo que é mais fácil descobrir a verdade oculta na última árvore e na nuvem mais altaneira do que descobrir o que eu sou. Entenderão o mar, e eu permanecerei um enigma; saberão o que são as estrelas, mas não saberão o que eu sou. Desde o começo do mundo todos os homens têm-me caçado como se caça um lobo: reis e sábios, poetas, legisladores, todas as igrejas e todos os filósofos. Nunca me agarraram, e os céus se despenharão no dia em que me vir em apuros. De todos tenho escapado e a todos tenho confundido. E agora farei a mesma coisa.
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Antes que qualquer dos presentes pudesse mexer-se, o homem colossal, como um imenso orangotango, se dependurara na balaustrada da varanda. Antes de cair, porém, suspendeu-se como se praticasse numa barra horizontal e, fincando o queixo volumoso na balaustrada, disse solenemente: — Há, porém, uma coisa que vou dizer-lhes acerca de minha identidade. Sou o homem do quarto escuro, o homem que os fêz detetives. Dito isto, jogou-se da varanda em baixo, dando pulos elásticos no calçamento como uma desmesurada bola de borracha e aos saltos ganhou o oitão do Alhambra, fêz um sinal para um fiacre e pinotou para dentro. Os seis detetives quedaram fulminados e lívidos ao lampejo de sua última afirmação. Mas quando o Presidente desapareceu no fiacre, o senso prático de Syme espertou. Imediatamente Syme transpôs a balaustrada, saltando tão desastradamente que quase quebrava as pernas, e chamou outro fiacre. Êle e Buli tomaram o mesmo fiacre, o Professor e o Inspetor entraram noutro, enquanto o Secretário e o ex-Gogol treparam num terceiro, justamente a tempo de encalçarem o voante Syme, que, por seu turno, encalçava o voante Presidente. Domingo levava-os, nessa caçada selvagem, para os lados do noroeste, e seu cocheiro, evidentemente sob o influxo de induzimentos excepcionais, incitava o cavalo a uma velocidade perigosa. Mas Syme, que não estava para contemporizações, pôsse de pé, gritando "Pega ladrão!", até que as multidões acorreram e os guardas começaram a deter as pessoas e a interrogá-las. Tudo isso teve influência sobre o cocheiro do Presidente, que logo ficou apreensivo e meteu o cavalo de trote. Abriu a portinhola para falar ponderadamente com seu passageiro e largou o comprido chicote na boléia. Domingo inclinou-se para a frente, segurou o chicote e arrancou-o brutalmente da mão do homem. Em seguida, pondo-se êle mesmo de pé na boléia, deu de açoitar o cavalo e bramir com todas as forças, de modo que passavam pelas ruas como um furacão. Através de ruas e praças rodava esse disparatado veículo, no qual o passageiro fustigava o cavalo e o cocheiro tentava furiosamente sofreá-lo. Os três outros fiacres perseguiam-no (se a comparação é válida para fiacres) como galgos arquejantes. Lojas e ruas sucediam-se como setas zunidoras.
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No auge da corrida, Domingo voltou-se no guarda-lama em que se encontrava e mostrando a cara imensa, com os dentes arreganhados, os cabelos brancos esvoaçando no vento, dirigiu a seus perseguidores uma tremenda careta, como um ouriço-cacheiro colossal. Então, erguendo àgilmente a mão direita, atirou uma bola de papel no rosto de Syme e recolheu-se ao fiacre. Conquanto instintivamente desconfiado, Syme apanhou-a e descobriu que ela consistia em dois papeluchos amarrotados. Um trazia seu nome e o outro o de Dr. Buli. Ao seu nome juntava-se uma extensa e de certo modo irônica enfiada de letras. O sobrescrito de Dr. Buli era, no fim de contas, consideravelmente maior do que a mensagem, pois que esta se reduzia às palavras: Que é feito de Martin Tupper agora? — Que quer dizer esse velho maníaco? perguntou Buli, encarando o papel. Que diz o seu, Syme? A mensagem de Syme era, sem dúvida, muito mais prolixa e rezava o seguinte: Ninguém mais do que eu lamentaria qualquer interferência do Arquidiácono. Espero que as coisas não cheguem a este ponto. Mas, pela última vez, onde estão suas galochas? A coisa está preta, especialmente depois do que disse o tio. O cocheiro do Presidente parecia estar readquirindo certo domínio sobre seu cavalo, e os perseguidores estavam mais próximos quando enveredaram por Edgware Road. E aqui ocorreu uma interrupção que os aliados julgaram providencial. Todo o tráfego derivava para a direita ou para a esquerda, ou estacionava, porque do extremo da rua vinha o ruído inconfundível do carro de bombeiros, que em poucos segundos passou em disparada como um raio de bronze. Apesar de toda a velocidade, Domingo saltou do fiacre, pulou para o carro, subiu, aprumou-se e foi visto, ao desaparecer na estrepitosa distância, falando ao atônito bombeiro com gestos explicativos. — Depressa! A êle! uivou Syme. Não pode sumir-se agora. Um carro de bombeiros não engana ninguém.
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Os três cocheiros, que se tinham aturdido por um instante, chicotearam seus cavalos e em breve diminuíram o espaço que os separava de sua caça fugitiva. O Presidente deu por essa proximidade e, vindo para a traseira do carro, inclinou-se inúmeras vezes, beijou as mãos e, ao fim dessas mesuras, atirou um bilhete, elegantemente dobrado, no peito do Inspetor Ratcliffe. Quando este cavalheiro o desenrolou, não sem impaciência, leu estas palavras: Foge imediatamente. Já se sabe da verdade sobre teus suspensórios. — Um amigo. O carro de bombeiros seguia para o norte, rumo a uma região que eles não identificavam. E quando passava ao longo de uma fileira de altos paredões sombreados pelas árvores, os seis amigos viram com surpresa, mas também com satisfação, que o Presidente saltava do veículo. Mas não sabiam se deviam atribuir tal ato ao capricho presidencial ou aos reiterados protestos dos seus hospedeiros. Contudo, antes que os três fiacres o alcançassem, êle, como um imenso gato pardo já havia galgado o paredão e se esvaecera na treva da folhagem. Syme, enfurecido, mandou parar seu fiacre, desmontou e lançou-se também à escalada. Quando tinha uma perna sobre o muro, volveu para seus amigos um rosto que na sombra pareceu extremamente pálido. — Que lugar será este? perguntou-lhes. Será a casa desse velho diabo? Ouvi dizer que êle tem uma casa no norte de Londres. — Tanto melhor, disse sombriamente o Secretário, colocando um pé no estribo. Nós o encontraremos em casa. — Não, não é isso, tornou Syme, franzindo as sobrancelhas. Ouço os ruídos mais horríveis, como diabos rindo, espirrando e assoando os diabólicos narizes! — Naturalmente são seus cães que estão ladrando, alvitrou o Secretário. — Por que não diz que são escaravelhos negros que estão ladrando?! respondeu Syme furiosamente. Ou caracóis ladrando?! Gerânios ladrando?! Você já ouviu um cão ladrar desse jeito?
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Levantou a mão e imediatamente subiu da mata um demorado grunhido que parecia meter-se debaixo da pele e gelar a carne — um grunhido abafado e horripilante que provocava uma palpitação no ar. — Os cães de Domingo não devem ser cães comuns, disse Gogol e estremeceu. Syme já estava do outro lado, mas ainda escutava com impaciência. — Escutem, disse êle. Isso pode ser um cão? Quem é que tem um cão dessa espécie? Rebentara um rouco alarido, imitante às súplicas e clamores de seres condenados. Depois, ouviram, longínquo como um eco, um som igual ao de um clarim roufenho. — A casa dele deve ser o inferno! exclamou o Secretário. E se é o inferno, eu vou entrar! e quase de um pulo atravessou o paredão. Os outros seguiram-no. Caíram num emaranhado de plantas e arbustos e foram sair numa vereda. Nada lhes chamou a atenção, mas subitamente Dr. Buli bradou: — Ora, seus burros! Isso aqui é o Jardim Zoológico! Enquanto eles ansiosamente procuravam qualquer indício de sua caça fugidia, um guarda uniformizado surgiu correndo no caminho, acompanhado de outro homem à paisana. — Êle passou por aqui? perguntou o guarda ofegante. — Quem? inquiriu Syme. — O elefante! gritou o guarda. Um elefante que enlouqueceu e fugiu! — Fugiu carregando um senhor idoso, explicou o outro estranho, arfando. Um pobre velho dos cabelos brancos. — Qual era o tipo desse velho? interrogou Syme com incontida curiosidade. — Um velho bem alto e bem gordo, de terno cinza claro, informou sôfregamente o guarda. — Bem, começou Syme, se esse velho é mesmo desse tipo, se você está absolutamente certo de que se trata de um velho bem gordo e bem alto, de terno cinza, pode ter a certeza de que o elefante não fugiu com êle. Foi êle que fugiu com o elefante. O elefante que pudesse levá-lo sem que êle consentisse em fugir ainda não foi feito por Deus. Raios o partam, lá está êle!
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Não havia dúvida. Cerca de duzentas jardas adiante, pelo relvado, uma multidão ululante debalde acossava um enorme elefante pardo, que corria com passadas terrivelmente largas, de tromba empinada e rija como um gurupés, trombeteando como a trombeta da condenação. No dorso desse animal oscilante e bramador, repoltreava-se o Presidente Domingo com toda a placidez de um sultão; mas, com algum objeto afiado, aguilhoava a fera, instigando-a a uma carreira desenfreada. — Façam-no parar! gritava a turba. Êle vai sair pelo portão. — Como se pode parar um desmoronamento? disse o guarda. Êle já saiu pelo portão! E, no momento mesmo em que falava, um derradeiro estrondo e um urro de terror anunciaram que o enorme elefante pardo havia derrubado o portão do Jardim Zoológico e desembestava por Albany Street como novo e rápido tipo de ônibus. — Deus Onipotente! bradou Buli. Nunca vi um elefante tão veloz. Voltemos aos fiacres, se não queremos perder de vista o Presidente. Quando corriam para o portão por onde o elefante tinha desaparecido, Syme sentiu-se deslumbrado com o panorama dos estranhos animais entrevistos nas jaulas, de passagem. Mais tarde, achou esquisito que os tivesse visto tão claramente. Recordou-se especialmente dos pelicanos, de papos absurdos, pendentes. Perguntou a si mesmo porque o pelicano era o símbolo da caridade, quando era necessária muita caridade para admirar um pelicano. Lembrou-se também do bucero, que era simplesmente um vastíssimo bico amarelo carregando atrás de si um minúsculo pássaro. Tudo isso lhe proporcionou a sensação, cujo vigor não sabia explicar, de que a Natureza entregava-se de contínuo a divertimentos misteriosos. Domingo lhes dissera que eles o entenderiam quando tivessem entendido as estrelas. Syme perguntava a si mesmo se os próprios arcanjos poderiam entender o bucero. Os seis inditosos detetives meteram-se nos fiacres e foram no encalço do elefante, compartilhando do terror que êle espalhava pelas ruas. Nesse momento, Domingo não se voltava para fitá-los, mas oferecia-lhes a sólida extensão de suas costas cegas, que os enlouqueciam mais do que suas anteriores chacotas. Todavia, pouco antes de alcançarem Baker Street, viramno atirar qualquer coisa para o alto, como o menino que
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lança uma bola ao ar e se prepara para recebê-la de volta. Mas na velocidade em que iam, ela veio cair muito atrás, bem perto do fiacre em que viajava Gogol; e este, movido ou pela débil esperança de encontrar uma pista ou por algum impulso incompreensível, mandou parar o fiacre para ir apanhá-la. Era uma volumosa bola de papel, a êle dirigida. Ao examiná-la, porém, notou que todo o seu volume consistia em trinta e três pedaços de papel velho enrolados uns sobre os outros. Depois de rasgada a última capa, tudo se reduziu a uma tirinha de papel, na qual estava escrito: Parece que a palavra deve ser: rosa. O homem que antes se chamava Gogol não disse nada, mas os movimentos de suas mãos e de seus pés foram os de quem esporeia um cavalo. Ruas e mais ruas, bairros e mais bairros, eram percorridos pelo prodigioso elefante voador, que atraía multidões às janelas e separava o tráfego para a direita e para a esquerda. E atrás dele, colaborando nesta insana publicidade, corriam desapoderadamente os três fiacres. Não tardou que fossem tomados por participantes de um desfile ou mesmo de um anúncio de circo. Na pressa em que iam, encurtavam incrivelmente as distâncias, e Syme viu o Albert Hall em Kensington quando se julgava ainda em Paddington. O elefante avançou mais ágil e livremente através das ruas vazias e aristocráticas de South Kensington e por fim endireitou para aquela parte do horizonte onde a enorme roda de Earl's Court se elevava no Armamento. A roda pouco a pouco foi-se tornado maior, até que encheu todo o céu como a roda das estrelas. A fera derrotou os fiacres. Eles perderam-na de vista, desorientados pelas inúmeras esquinas. Quando se acharam em frente a um dos portões da Exposição de EarPs Court viramse bloqueados por uma grande multidão, reunida em torno de um enorme elefante que resfolegava e se sacudia, como costumam fazer essas criaturas disformes. Mas o Presidente havia desaparecido. — E o homem, para onde foi? inquiriu Syme, escorregando para o chão. — Embarafustou pela Exposição a dentro! respondeu o guarda, embaraçado. E acrescentou com um ar ofendido: É
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um cavalheiro engraçado. Pediu que eu lhe segurasse o cavalo, e me entregou isso. E estendeu, com repugnância, um pedaço de papel dobrado, dirigido Ao Secretário do Conselho Central Anarquista. O Secretário, enraivecido, abriu-o e leu o que estava escrito: Quando o arenque vai na corrente, O Secretário ri contente; Quando o arenque voa e pinota, O Secretário bate a bota. Provérbio Rústico. — Ora bolas! começou o Secretário. Por que você deixou que êle entrasse? É comum visitarem sua exposição pessoas montadas em elefantes malucos? É? — Vejam! gritou Syme. Olhem aquilo ali! — Olhar o quê? volveu o Secretário afobadíssimo. — O baião cativo! disse Syme, apontando frenèticamente. — Por que eu devo olhar para um balão cativo? bradou o Secretário. O que é que há de extraordinário num balão cativo? — Nada, disse Syme, só que esse não é cativo. Todos ergueram os olhos. Sobre a Exposição, o balão pairava enfunado, amarrado a um cordel, como um balão de brinquedo. Um segundo depois, o cordel se partiu, justamente debaixo da cesta, e o balão, solto, pôs-se a flutuar, erradio como uma bôlhã de sabão. — Com seiscentos mil diabos! guinchou o Secretário. Êle se meteu ali dentro! e fechou os punhos contra o céu. O balão, carregado talvez por alguma brisa passageira, veio colocar-se precisamente em cima deles, e foi-lhes fácil enxergar a enorme cabeça branca do Presidente, que os espreitava com um olhar benévolo. — Deus me proteja! disse o Professor com a inflexão senil que nunca pôde desligar de sua barba esbranquiçada e de seu rosto apergaminhado. Deus me proteja! Parece que senti alguma coisa cair na copa do meu chapéu.
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Levantou uma trêmula mão e da aba do chapéu tirou um papelzinho amarfanhado. Abriu-o negligentemente, apenas para deparar com o desenho de um nó cego e as palavras: Tua beleza não me deixou indiferente. — Narciso. Houve um curto silêncio, e depois Syme falou, mordendo o beiço: — Ainda não estou vencido. Esse maldito balão tem que cair em alguma parte. Sigamo-lo!
CAPITULO XIV
OS SEIS FILÓSOFOS Cruzando campinas verdejantes e transpondo sebes vivas, os seis poeirentos detetives afastaram-se cerca de cinco milhas de Londres. No começo da caminhada, o otimista do grupo sugerira que seguissem o balão, por todo o sul da Inglaterra, nos fiaores. Mas logo convenceu-se da persistente recusa do balão a seguir as estradas e da muito mais persistente recusa dos cocheiros a seguir o balão. Conseqüentemente, os incansáveis posto que exasperados viajantes atravessaram bosques escuros e palmilharam terrenos cultivados, até que cada um se transmudou numa figura tão desalinhada que podia ser confundida com a de um vagabundo. As verdes colinas de Surrey testemunharam o trágico desfecho do admirável terno cinzaclaro com que Syme havia saído de Saffron Park. O chapéu de seda, amassado por um ramo travesso, descera ao nariz, a sobrecasaca, graças a espinhos agressivos, rasgara-se nos ombros, e o barro inglês enlameara seu colarinho; mas êle fazia avançar a barbicha amarela com taciturna e furiosa obstinação, sem tirar os olhos daquela flutuante bola de gás, que na vermelhidão do ocaso parecia enfeitada como uma nuvem crepuscular. — A despeito de tudo, comentou Syme, não deixa de ser muito bonito! — Muito! De uma beleza estranha e singular! disse o Professor. Eu quero é ver explodir essa estúpida bola de gás, — Não, atalhou Dr. Buli. Eu não quero não. Isso podia arrebentar o velhote. — Que arrebente! redargüiu o vingativo Professor. Que arrebente! Não ficaria tão arrebentado como no dia em que eu pudesse abecá-lo. Narciso!
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— Apesar de tudo, não quero vê-lo arrebentado, disse Dr. Buli. — O quê? bradou amargamente o Secretário. Você acredita mesmo naquela história de êle ser também o homem do quarto escuro? Domingo seria capaz de inventar que era qualquer coisa. — Não sei se acredito ou não acredito, disse Dr. Buli. Mas não é a isso que me refiro. Não quero que se dê uma explosão no balão do velho Domingo porque... — Por quê? indagou Syme impaciente. — Bem, porque êle mesmo é tão engraçado como um balão, continuou Dr. Buli, atrapalhado. Não entendo patavina desse negócio de ser êle o mesmo homem que nos deu os cartões azuis. Parece-me que isso torna tudo absurdo. Mas confesso que sempre tive minhas simpatias pelo velho Domingo, malvado como é. É como se êle fosse um garoto gorducho e levado da breca. Como posso explicar esta minha esquisita simpatia? O certo é que ela não me impediria de combatê-lo até no inferno! Será que me torno mais claro dizendo que gostava dele porque êle era tão gordo? — Não, isso não esclarece coisa nenhuma, disse o Secretário. — Ah, já sei porque era! exclamou Buli. É porque êle era tão gordo e tão leve. Exatamente como um balão. A gente acha sempre que as pessoas gordas são pesadas, mas êle eu acho que poderia dançar ao lado de uma sílfide. Agora sei o que quero dizer. A força moderada se manifesta pela violência, enquanto a força suprema está na leveza. Isso faz lembrar as velhas especulações: que aconteceria se um elefante pudesse adejar no espaço como um gafanhoto? — Nosso elefante, disse Syme levantando os olhos, adeja no espaço como um gafanhoto. — E por isso, concluiu Buli, é que não posso deixar de admirar o velho Domingo. Não, não é uma admiração pela força, ou qualquer tolice dessa ordem. Há nisso uma espécie de alegria, como se êle trouxesse algumas boas novas. Nunca sentiram isso num dia de primavera? É verdade que a natureza gosta de fazer das suas, mas, seja como fôr, um dia de primavera prova que suas brincadeiras são de muito bom gosto. Eu mesmo nunca li a Bíblia, mas aquela passagem, de que os outros tanto se riem, é uma verdade integral: "Por que saltais
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assim, altas colinas?" Sim, as colinas saltam mesmo... bom, ao menos tentam... Porque admiro Domingo?... Como poderei dizer-lhes?... Porque êle é tal qual um Saltimbanco. Houve uma longa pausa, e depois o Secretário tomou a palavra e falou com um tom de voz estranhamente, torturado: — Você não sabe quem é Domingo. Talvez seja por que você é melhor do que eu e não conhece o inferno. Desde pequeno eu sou elemento deletério e meio doentio. O homem que vive na escuridão e que nos escolheu a todos, escolheu-me porque eu tenho o ar desvairado de um conspirador, porque meu sorriso é torto, porque meus olhos têm um brilho turvo, mesmo quando estou alegre. Mas também deve haver em mim algo que corresponda ao sistema nervoso de todos esses anarquistas. Quando vi Domingo pela primeira vez, não tive dele essa impressão de aérea vitalidade, mas de algo grosseiro e triste, inerente à natureza das coisas. Encontrei-o fumando num cômodo lôbrego, com as janelas cerradas, um lugar infinitamente mais aviltante do que a divertida escuridão em que vive nosso chefe. Estava sentado num banco, um monte de carne, escuro e amorfo. Ouviu minhas palavras sem falar nem se mover. Lancei os apelos mais veementes e fiz as mais eloqüentes perguntas. Então, após longo silêncio, a Coisa começou a mover-se, e eu julguei-a movida por uma enfermidade secreta. Movia-se como uma gelatina asquerosa, mas viva. No instante lembrei-me de tudo que tinha lido a respeito desses corpúsculos repugnantes que constituem a origem da vida: seres marinhos e protoplasmas. Parecia tomar a forma final de toda matéria, a mais extravagante, a mais vergonhosa. Diante de seus estremecimentos, disse de mim para mim que era já alguma coisa que tal monstro pudesse sentir-se miserável. Foi quando me dei conta de que aquela montanha bestial estava se sacudindo de riso solitário, e era de mim que ela ria. E você ainda vem pedir-me para perdoá-lo!?! Não é pouco sermos ridicularizados por alguma coisa que é ao mesmo tempo inferior e mais forte do que nós. — Por certo vocês estão exagerando demais, interrompeu a voz clara do Inspetor Ratcliffe. O Presidente Domingo é um troço terrível para a inteligência, mas fisicamente não é essa curiosidade Barnum que vocês apregoam. Êle me recebeu num gabinete comum, vestido com um casaco de xadrez cinzento, em pleno dia. Falou-me de maneira simples. Mas vou dizer-lhe o que é que chama um pouco a atenção em Domingo. Seu
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quarto é asseado, suas roupas são asseadas, tudo parece em ordem; mas ele é distraído. Às vezes seus grandes olhos fugurantes ficam completamente cegos. Durante horas êle esquece que você está presente. Reparem que a distração é perigosa num sujeito mau. Para nós o malvado é um homem que está sempre atento ao que se passa à sua roda. Não podemos imaginar um malvado que seja honesta e sinceramente um devaneador, porque não podemos imaginar um malvado sozinho consigo mesmo. Um homem distraído é um homem afável. É um homem que, ao dar pela nossa presença, nos pede desculpas. Mas como imaginar um homem distraído que, ao dar pela nossa presença, nos mata? É isso que irrita os nervos, essa combinação de alheamento e crueldade. Algumas vezes, atravessando florestas virgens, os homens experimentaram essa sensação, pois sabiam-se cercados de animais inocentes e impiedosos, que tanto podiam ignorá-los como matá-los. Quem seria capaz de passar dez horas mortais numa sala em companhia de um tigre distraído? — E você, Gogol, que pensa de Domingo? perguntou Syme. — Em princípio, disse Gogol singelamente, não penso em Domingo, do mesmo modo que não encaro o sol ao meio-dia. — Está bem, isso é um ponto de vista, disse Syme pensativo. E você, que diz, Professor? O Professor caminhava de cabeça baixa, arrastando a bengala, e não deu resposta. — Acorde, Professor! disse Syme alegremente. Diga-nos o que pensa de Domingo. O Professor pôs-se, enfim, a falar com muita lentidão. — O que eu penso não sei exprimir claramente. Ou melhor, nem posso pensá-lo claramente. Mas é mais ou menos o seguinte. Como vocês sabem, em minha juventude levei uma vida muito ampla e muito desarrumada. Pois bem, quando vi a cara de Domingo, acheia-a, como todo o mundo acha, muito ampla mas também bastante desarrumada. A cara era tão grande que ninguém poderia enfocá-la ou vê-la como uma cara. O olho estava tão afastado do nariz, que já não era olho. A boca era tão individualizada que se poderia tomá-la por uma coisa à parte. Tudo isso é muito difícil de explicar. Parou um pouco, arrastando sempre a bengala, e prosseguiu:
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— Mas vamos assim mesmo. Uma noite em que eu caminhava por uma estrada, divisei uma lâmpada, uma janela iluminada e uma nuvem, que juntas formavam um rosto inteiro e inconfundível. Se alguém no céu tiver um rosto como esse eu o reconhecerei. Entretanto, quando dei mais alguns passos, verifiquei que não havia rosto, que a janela estava a dez jardas de distância, que a lâmpada estava a dez centenas de jardas e que a nuvem estava muito além do mundo. Da mesma maneira me escapou o rosto de Domingo; correu para a direita e para a esquerda, como fazem essas miragens fortuitas. E assim, o rosto dele forçou-me, de certo modo, a duvidar da existência de qualquer rosto. Não sei se o seu rosto, Buli, é um rosto ou uma combinação de perspectivas. Talvez um disco negro daqueles seus óculos brutais estivesse bem pertinho e o outro cinqüenta milhas além. Ah, as dúvidas do materialista não passam de tolices! Domingo me ensinou as piores dúvidas, as mais dolorosas, as dúvidas de um espiritualista. Sou um budista, suponho; e o budismo não é um credo, é uma dúvida. Meu pobre Buli, não creio que você possua realmente um rosto. Não tenho bastante fé para crer na matéria. Os olhos de Syme continuavam fixos no orbe errante, que, avermelhado pelos reflexos do pôr do sol, parecia um mundo mais róseo e mais inocente. — Vocês observaram uma particularidade interessante em todos os seus depoimentos? perguntou Syme. Cada um de vocês vê Domingo de uma maneira bem diferente; entretanto cada um só achou uma coisa com que compará-lo: o próprio uni verso. Para Buli êle é como a terra na primavera, para Gogol é o sol ao meio-dia. O Secretário recordou o protoplasma informe, e o Inspetor a solidão das florestas virgens. O Professor diz que Domingo é como uma paisagem mutável, É estranho, mas é ainda mais estranho que eu também faça do Presidente Uma idéia original, e que também compare Domingo com o universo. — Ande um pouco mais depressa, Syme, disse Buli. Não se importe com o balão. — Quando vi Domingo pela primeira vez, continuou Syme lentamente, só via as costas. E vendo-as, pressentia que êle era o sujeito pior do mundo. Seu pescoço e seus ombros eram brutais, como os de um deus simiesco. Sua cabeça tinha um toitiço difícil de imaginar num homem. Parecia mais o
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toitiço de um boi. De fato, logo me passou pela cabeça a revoltante fantasia de que ele não era um homem, mas uma fera vestida com as roupas dos homens. — Vamos! disse Dr. Buli. — Foi então que aconteceu o inesperado. Eu vira suas costas, da rua, quando êle estava sentado na varanda. Depois entrei no hotel e, ficando diante dele, vi seu rosto em plena claridade. Seu rosto me assustou, como assustou todo o mundo, mas não porque fosse brutal, não porque fosse mau. Ao contrário, assustou-me porque era belo, porque era bom. — Syme! exclamou o Secretário. Você está se sentindo bem? — Era como o rosto de um antigo arcanjo, distribuindo justiça depois de guerras heróicas. Havia riso nos seus olhos, e em sua boca honra e tristeza. Lá estavam os mesmos cabelos brancos, os mesmos ombros enormes, vestidos de cinzento, que eu contemplara da rua. Mas, ao vê-lo da rua, convenci-me de que êle era um animal, e quando me vi diante dele compreendi que êle era um deus. — Pan, observou sonhadoramente o Professor, era um deus e um animal. — Desde então, continuou Syme como se falasse consigo mesmo, esse tem sido para mim o mistério de Domingo, e é também o mistério do mundo. Quando olho para suas costas horrorosas tenho a impressão de que seu rosto nobre é apenas uma máscara. Mas se lhe vejo o rosto, mesmo de relance, fico a pensar que as costas são uma simples zombaria. O mal é tão mau que só podemos julgar o bem um acidente; o bem é tão bom que somos levados a crer que o mal poderia ser explicado. Mas tudo isso atingiu o auge ontem, quando persegui Domingo no fiacre e me coloquei atrás dele todo o percurso. — E você ainda teve flmpo para pensar? perguntou Ratcliffe. — Tempo suficiente, replicou Syme, para um pensamento sinistro. De repente apoderou-se de mim a idéia de que aquele toitiço cego, liso, era realmente seu rosto, um rosto terrível, sem olhos, que me fitava. E admiti que aquela figura que corria à minha frente era realmente uma figura que corria de costas, dançando enquanto corria. — Horrível! exclamou Dr. Buli sobressaltado.
— Horrível não é o termo, disse Syme. Foi exatamente o pior instante da minha vida. E dez minutos depois, quando botou a cabeça fora do fiacre e fêz uma careta parecida com uma gárgula, percebi que êle se portava como um pai brincando de esconder com seus filhos. — Essa brincadeira está indo longe demais, observou o Secretário, e franziu a testa ao contemplar suas botas estragadas. — Mas escutem! gritou Syme com extraordinária ênfase. Vou dizer-lhes qual é o segredo do mundo. É que do mundo só conhecemos as costas. Tudo é visto por trás, e por isso parece brutal. Isso não é uma árvore, mas as costas de uma árvore. Aquilo não é uma nuvem, mas as costas de uma nuvem. Não vêem que tudo está voltado de costas e esconde o rosto? Se pudéssemos dar a volta e ficar de frente... — Vejam! berrou Buli esganiçadamente. O balão vem caindo! Não havia necessidade de gritar por Syme, porque êle não tinha tirado os olhos do balão. Viu o grande globo luminoso vacilar no céu, endireitar-se e depois mergulhar vagarosamente atrás das árvores, como um sol que se põe. O homem chamado Gogol, que quase não falara durante essas estafantes jornadas, atirou de repente as mãos para o alto, feito uma alma penada. — Êle morreu! exclamou. E agora eu sei que êle era meu amigo, e vivia no quarto escuro! — Morreu!? roncou o Secretário. Vocês não o verão morto assim tão facilmente. Se foi jogado para fora da cesta, nós o encontraremos espojando-se no chão como um potro e escoiceando o vento, para se divertir. — E castanholando os cascos, disse o Professor. Os protros fazem assim, e Pan também fazia. — Pan outra vez? disse irrittio Dr. Buli. Você parece pensar que Pan é tudo. — E é mesmo, disse o Professor. Em grego, Pan quer dizer: tudo. — Não se esqueça, sentenciou o Secretário baixando a vista, de que êle também significa Pânico. Syme, que estivera absorto, sem ouvir nenhuma dessas frases, falou com naturalidade: — Caiu ali adiante! Vamos para lá!
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E acrescentou, com um gesto de desconsolo: — Agora se ele nos enganou e morreu, hem? Seria mais uma de suas pilhérias. Com renovada energia encaminhou-se para as árvores distantes. Seus trapos e retalhos esvoaçavam ao vento. Os outros seguiram-no a passo mais vagaroso e num ar de dúvida. Quase simultaneamente os seis descobriram que não estavam sós naquele sítio. Pelo relvado caminhava, em direção a eles, um homem alto, curvado sobre um báculo comprido e estranho como um cetro. Vestia-se com apuro, mas usava bragas, à moda antiga. A côr do traje era aquele matiz tirante a azul, violeta e cinza, que se vê em certos recantos da mata. À primeira vista e levando-se em conta suas bragas, tinha-se a impressão de que seu cabelo grisalho fora empoado. Marchava tranqüilamente; se não fosse a neve prateada de sua cabeça, êle poderia ser tido com uma das sombras do bosque. — Cavalheiros, disse êle, uma carruagem de meu patrão os espera aqui perto, na estrada. — Quem é seu patrão? perguntou Syme, quedando-se imóvel. — Informaram-me que os senhores sabiam o nome dele, respondeu o homem respeitosamente. Depois de uma pausa, falou o Secretário: — Onde está essa carruagem? — Ela os aguarda desde alguns momentos, disse o estranho. Meu patrão acaba de entrar em casa. Syme esquadrinhou o recesso do bosque virente em que se encontrava. As sebes eram sebes comuns, as árvores pareciam árvores comuns; entretanto, êle se sentia como alguém que tivesse caido prisioneiro no país das fadas. Examinou o misterioso embaixador dos pés à cabeça, mas apenas descobriu que o casaco do homem era da mesma côr das sombras purpúreas e que o rosto era da mesma côr do céu rubro, escuro e dourado. — Mostre-nos o lugar, disse Syme lacônicamente. E sem uma palavra o homem do casaco violeta deu as costas e se dirigiu para uma abertura da sebe, que de súbito revelou a branca luminosidade de uma estrada. Quando os seis extraviados chegaram a essa passagem, viram a branca estrada obstruída pelo que lhes pareceu ser uma
longa fileira de carruagens, semelhantes àquelas que se vêem nas proximidades das casas de Park Lane. Ao lado das carruagens perfilavam-se magníficos lacaios. Todos trajavam uniforme azul-cinza e todos revelavam uma certa categoria de altivez e liberdade que habitualmente não se distingue nos lacaios de um fidalgo e sim nos oficiais e embaixadores dum grande monarca. Nada menos de seis carruagens estavam à espera, uma para cada componente do bando andrajoso e miserável. Todos os servos (como acontece nas cortes) traziam espadas à cinta e as desembainhavam para saudar, com um breve resplendor de aço, cada um que entrasse na carruagem. — Que significa tudo isso? perguntou Buli a Syme quando se separavam. É outra das brincadeiras de Domingo? — Sei lá? respondeu Syme enquanto afundava extenuado nas almofadas de sua carruagem. Mas se fôr, é uma daquelas brincadeiras de que você fala. É uma brincadeira de bom gosto. Os seis aventureiros tinham passado por muitas aventuras, mas nenhuma os impressionara tão fortemente como esta última aventura do conforto. Todos eles estavam afeitos a asperezas; esta repentina suavidade os perturbava. Não podiam sequer imaginar o que eram as carruagens; era-lhes suficiente saber que eram carruagens, e carruagens com almofadas. Também não podiam supor quem era o ancião que os havia conduzido; mas bastava-lhes a certeza de que fora êle quem os conduzira para as carruagens. Syme deixava-se levar, em total abandono, através da movediça escuridão do arvoredo. Era próprio dele que enquanto ti vesse de abrir caminho com sua barbicha êle o fizesse com fúria e determinação, e logo que o encargo lhe fosse tirado das mãos êle se derreasse nas almofadas, vencido por um verdadeiro colapso. Muito lenta e vagamente deu tento das estradas suntuosas por onde a carruagem o transportava. Viu que atravessavam os portões de pedra do que podia ser um parque, e gradualmente subiam uma colina que, embora arborizada de ambos os lados, era um pouco mais ordenada que uma floresta. Então começou a tomar conta dele, como de um homem que lentamente desperta de um sono reparador, uma sensação de prazer integral. Sentiu que as sebes eram o que as sebes devem ser: muros vivos; que uma sebe é como um exército humano, disciplinado mas vivo. Viu os altivos olmos que se elevavam atrás das sebes e
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vagamente pensou nos meninos felizes que trepavam neles. Depois a carruagem tomou por um atalho, e êle avistou, de súbi to, mas sossegadamente, algo que se assemelhava a uma extensa e baixa nuvem crepuscular e que era uma casa extensa e baixa, suavizada pelos macios reflexos do crepúsculo. Mais tarde os seis amigos cotejariam suas impressões e disputariam entre si; mas conviriam misteriosamente em que este lugar lhes lembrava a infância. Ou era a copa deste olmo ou aquela vereda tortuosa, ou era um trecho deste pomar ou o feitio de uma janela; o certo é qúe cada um afirmaria que podia recordar este lugar antes de poder recordar-se de sua mãe. Quando as carruagens rodaram para um portão largo, baixo e cavernoso, um outro homem, envergando o mesmo uniforme, mas usando uma estrela de prata no peitilho cinzento do casaco, saiu a recebê-los. Este impressionante personagem dirigiu-se ao boquiaberto Syme: — Refrigerantes o esperam em seu quarto, senhor. Syme, ainda sob a influência daquele sono mesmeriano de estupefação, subiu as vastas escadarias de carvalho, atrás do respeitoso criado, e entrou numa série de cômodos que pareciam estar reservados especialmente para êle. Com o instinto habitual de sua classe, abeirou-se de um espelho grande para endireitar a gravata ou alisar os cabelos; foi então que deu pela figura sinistra em que se transformara: o sangue escorria-lhe da face, onde o ramo o ferira; os cabelos eriçavam-se como talos amarelos de erva espessa; as roupas estavam desfeitas em compridos e ondulantes farrapos. Imediatamente viu-se diante de um enigma, que nascia sob a forma de uma simples pergunta: como êle conseguira chegar ali e como conseguiria safar-se? Nesse mesmo instante, um homem de azul, que fora designado para seu camareiro, disse com toda a solenidade: — Sua roupa está pronta, senhor. — Roupa! exclamou Syme sardônico. De roupa só tenho esta do corpo, e, segurando duas longas tiras da sobrecasaca de fascinantes festões, fêz que ia imitar o rodopio de uma bailarina. — Meu patrão me incumbiu de avisar ao senhor, disse o camareiro, que haverá um baile a fantasia esta noite. É desejo dele que o senhor vista o traje que eu preparei. Como faltam ainda algumas horas para a ceia, êle espera que o senhor não recuse uma garrafa de Borgonha e um pouco de faisão frio.
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— Faisão frio é uma coisa boa, disse Syme pensativo, e Borgonha é uma coisa supinamente boa. Mas o fato é que eles não me apetecem tanto quanto me apetece saber que diabo significa tudo isso e que traje é esse que você preparou para mim. Onde é que êle está? O criado ergueu de cima de uma espécie de otomana uma longa túnica azul-pavão, do mesmo feitio de um dominó, esmaltado na frente por um vasto sol de ouro e salpicado aqui e ali de crescentes e estrelas cintilantes. -— O senhor vai vestir-se de Quinta-feira, explicou o camareiro afàvelmente. — Vestir-me de Quinta-feira! repetiu Syme meditativo. Não me parece uma roupa quente. — Mas é quente, sim, disse o outro solícito. A roupa do Quinta-feira é extremamente quente. Vai até ao queixo. — Bem, não entendo coisa nenhuma, disse Syme suspirando. Estou tão acostumado a aventuras desconfortáveis que as aventuras confortáveis me abatem. Mas permita-me que eu pergunte por que é que estarei vestido especialmente de Quinta-feira se envergar uma vestimenta esverdeada, toda pintalgada de sóis e de luas? Esses astros, se não estou enganado, brilham também nos outros dias. Lembro-me bem de ter visto a lua numa terça-feira. — O senhor me permite? disse o camareiro. Temos aqui uma Bíblia à sua disposição, e com um dedo rígido e respeitoso apontou uma passagem do primeiro capítulo do Gênesis. Syme leu-a maravilhado. Era aquela que associa o quarto dia da semana à criação do sol e da lua. Aqui, entretanto, contavamse os dias da semana a partir de um domingo cristão. —- Isso está indo de mal a pior, disse Syme, enquanto se sentava numa cadeira. Quem é essa gente que providencia faisão frio e Borgonha, roupas verdes e Bíblias? Providencia tudo? — Tudo, senhor, respondeu o criado gravemente. Devo ajudá-lo a vestir-se? — Oh, venha de lá esse timão! disse Syme impaciente. Embora afetasse desprezo pela fantasia, sentiu uma liberdade e uma naturalidade raras em seus movimentos quando o traje azul e ouro o cingiu; e ao descobrir que tinha de levar uma espada reviveu um sonho infantil. Ao sair do quarto atirou o manto por cima dos ombros. A espada destacava-se, formando um ângulo. Êle tinha toda a galhardia de um trovador, pois esses disfarces antes revelavam que disfarçavam.
CAPITULO XV
O ACUSADOR Quando Syme, a passos largos, atravessava o corredor, viu o Secretário de pé no alto de um majestoso lanço de escadaria. O homem jamais parecera tão nobre. Envolvia-o um manto comprido de intenso negror, em cujo centro incidia uma faixa ou listão de puríssima alvura, como um único raio de luz. O conjunto lembrava uma vestimenta eclesiástica muito severa. Não havia necessidade de Syme explorar a memória ou a Bíblia parar recordar que o primeiro dia da criação assinalava o aparecimento da luz no seio da treva. A própria veste sozinha teria sugerido o símbolo; e Syme sentiu também quão fielmente este modelo de alvura e negror puríssimos exprimia a alma do pálido e austero Secretário, patenteando toda aquela inumana veracidade e todo aquele álgido furor que tão facilmente o levavam a guerrear os anarquistas e tão facilmente lhe permitiam misturar-se com eles. Syme quase não se surpreendeu ao notar que, no meio de toda a comodidade e hospitalidade do novo ambiente, os olhos deste homem continuavam encarniçados. Nem o cheiro da cerceja nem a fragrância dos pomares podia impedir o Secretário de formular uma pergunta racional. Se Syme pudesse ver a si mesmo teria compreendido que êle também, pela primeira vez, parecia ser êle mesmo e ninguém mais. Pois se o Secretário representava o filósofo que ama a Luz primeira e informe, Syme era o tipo do poeta que aspira sempre a modelar a luz em contornos específicos, a fracioná-la em sol e estrela. O filósofo pode às vezes amar o infinito; o poeta ama sempre o finito. Para êle o grande momento não é a criação da luz, mas a criação do sol e da lua.
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Quando desciam juntos a larga escadaria deram com Ratcliffe, que se vestia de verde primaveril. O desenho de seu traje figurava um exuberante emaranhamento de árvores. Êle corporificava aquele terceiro dia em que foram criadas a terra e as coisas verdejantes. A isso se acomodava admiràvelmente o rosto quadrado e sensível, com seu amistoso cinismo. Através de outra passagem ampla e baixa foram conduzidos para dentro de um antigo e espaçoso jardim inglês, repleto de archotes e fogueiras tremeluzentes, onde uma vasta multidão, exibindo as roupagens mais variadas, bailava como num carnaval. Syme julgou ver em cada uma daquelas alucinadas fantasias uma imitação das formas da natureza. Havia um homem vestido de moinho de vento com velas enormes, um outro vestido de elefante, outro vestido de balão; os dois últimos pareciam conservar o fio de suas grotescas aventuras. Syme viu ainda, com estranha emoção, um dançarino vestido como um imenso bucero, cujo bico era duas vezes tão grande como êle mesmo — o esquisito pássaro que se fixara em seu espírito como uma interrogação viva, desde o momento em que êle corria desenfreado pelo caminho do Jardim Zoológico. Havia, entretanto, mil outras fantasias do mesmo quilate. Havia um poste dançante, uma macieira dançante, um barco dançante. Dir-se-ia que a indômita melodia de algum músico louco pusera todas as coisas comuns, dos campos e das ruas, a dançar uma eterna jiga. E muito tempo depois, no repouso da maturidade, Syme não podia contemplar um desses objetos — um poste de luz, uma macieira, ou um moinho de vento — sem pensar que era um folião desgarrado dessa folia de mascarados. Num canto do relvado, animado pelos dançarinos, havia uma espécie de barranco verde, semelhante aos terraços dos jardins de outrora. Ao longo desse terraço, dispostas em forma de crescente, viam-se sete poltronas: os tronos dos sete dias. Gogol e Dr. Buli já tinham ocupado seus lugares e o Professor ia ocupar o dele. A simplicidade de Gogol ou Terça-feira, estava bem simbolizada por uma veste que reproduzia a divisão das águas, uma veste que se abria em sua fronte e caia aos seus pés, cinzenta e prateada, como um lençol de água. O Professor, cujo dia era aquele em que os pássaros e os peixes — as formas mais rudimentares de vida — foram criados, vestia uma roupagem violácea, na qual se estendiam peixes de olhos esbugalhados e extra-
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vagantes pássaros tropicais, mistura de imaginação ilimitada e de dúvida. Dr. Buli, o último dia da criação, usava um casaco coberto de animais heráldicos, em vermelho e ouro, e um capacete onde se via um homem rampante. Rescostava-se na cadeira com um largo sorriso — o quadro de um otimista em seu elemento. Um por um os viandantes galgaram o barranco e foram colocar-se em suas estranhas cadeiras. Quando cada um se sentava, vinha da mascarada uma aclamação entusiástica, tal como aquela com que as multidões recebem os reis. Retiniam as taças, agitavam-se os archotes e chapéus emplumados eram lançados para o ar. Os homens para quem esses tronos foram reservados eram homens coroados com extraordinários lauréis. Mas a cadeira do centro estava desocupada. Syme sentava-se à esquerda dela e o Secretário à direita. O Secretário, olhando para Syme por cima do trono vazio, disse, comprimindo os lábios: — Não sabemos ainda se êle terá morrido no campo. No instante mesmo em que Syme ouviu estas palavras notou no oceano de fisionomias humanas que se exaltavam diante dele um murmúrio de espanto e admiração, como se o céu se tivesse rompido em cima de sua cabeça. Era Domingo. Passou silenciosamente como uma sombra e veio sentar-se na cadeira do centro. Vestia-se simplesmente, de branco imaculado e terrível, e seus cabelos eram como uma chama prateada em sua fronte. Durante muito tempo — parece que durante horas — a imensa mascarada saracoteou e sapateou ao ritmo de uma marcha alegre e arrebatadora. Cada par era um romance isolado; podia ser uma fada bailando com um marco postal, ou uma camponesa Rançando com a lua; mas cada caso era, de certo modo, tão absurdo como Alice no País das Maravilhas e tão grave e delicado como uma história de amor. Por fim, a turba espessa foi rareando. Pares enveredavam pelos passeios do jardim, ou se transportavam para aquele recanto do edifício onde fumegavam, em possantes caldeirões, cálidas e aromáticas misturas de cerveja velha ou vinho. Acima desses vasos, sobre uma armação negra do telhado, rugia numa cesta de ferro uma gigantesca fogueira que iluminava muitas milhas em derredor. O clarão desse lume doméstico alcançava a face de vastas florestas pardas ou escuras e parecia mesmo encher de calor o vazio
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da abóbada noturna. Todavia, em pouco tempo, a fogueira também arrefeceu; os grupos negros agregavam-se cada vez mais em volta dos grandes caldeirões, ou entravam rindo em algazarra nos corredores daquela mansão centenária. Em breve, havia somente dez ociosos no jardim; pouco depois, apenas quatro. Finalmente, o último desgarrado folião entrou em casa gritando pelos companheiros. A fogueira apagou, e lentas e fortes as estrelas brilharam no céu. Os sete estranhos personagens ficaram sós, como sete estátuas de pedra assentadas em cadeiras de pedra. Nenhum deles pronunciara uma palavra. Parecia que eles não tinham pressa de falar. Apenas ouviam em silêncio o zumbido dos insetos e o canto longínquo de um pássaro. Então Domingo pôs-se a falar, mas tão suavemente que se podia pensar que eles antes continuavam que iniciavam uma conversação. — Comeremos e beberemos mais tarde, disse. Fiquemos um momento aqui, juntos, nós que nos temos amado uns aos outros tão amargamente e nos temos combatido tanto tempo. Suponho recordar os séculos da guerra heróica em que vocês foram sempre heróis: epopéia sobre epopéia, ilíada sobre ilíada, e vocês sempre como irmãos d'armas. Não sei se foi recentemente (porque o tempo nada é), ou no princípio do mundo, que os enviei para a guerra. Eu estava sentado na treva, onde não existe coisa criada, e fui para vocês apenas uma voz que exigia coragem e virtude sobrenatural. Ouviram minha voz no escuro, e não a ouviram de novo. O sol, no céu, negava-a, a terra e o céu negavam-na, toda a sabedoria humana negava-a. E quando os encontrei em plena luz do dia, eu mesmo neguei-a. Syme agitava-se vivamente em sua cadeira, mas tudo o mais continuava em silêncio, e o impenetrável prosseguiu: — Mas vocês foram homens. Não esqueceram intimamente a noção de honra, embora todo o cosmos, transformado em máquina de tortura, tentasse extirpá-la de seus corações. Sei que vocês estiveram às portas do inferno. Sei que você, Quinta-feira, cruzou espadas com o Rei Satã, e que você, Quartafeira, invocou meu nome na hora do desespero. Houve completo silêncio no jardim iluminado pelas estrelas, e então o Secretário de negras sobrancelhas,-implacável, volveu-se em sua cadeira para contemplar Domingo, e perguntou com áspera inflexão: — Quem e o que é você?
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— Sou o Sabat, disse o outro imóvel. Sou a paz de Deus. O Secretário ergueu-se de um pulo e com as mãos começou a amarrotar o suntuoso manto. — Sei o que você é, bradou, e é isso precisamente que não lhe posso perdoar. Sei que você é contentamento, otimismo, reconciliação final, ou que outro nome se dê a isso. Pois bem, não estou reconciliado. Se você era o homem do quarto escuro, porque era também Domingo, uma ofensa para a luz do sol? Se desde o começo você era nosso pai e nosso amigo, porque era também nosso maior inimigo? Nós nos lamentávamos e fugíamos aterrorizados; o ferro penetrou em nossas almas... e você é a paz de Deus! Oh, eu posso perdoar a Deus Sua ira, embora ela destrua as nações; mas não posso perdoar a Deus Sua paz. Domingo ficou calado; apenas voltou para Syme seu rosto pétreo, como se o interrogasse. — Não, disse Syme, não estou tão enfurecido. Manifesto-lhe minha gratidão, não só pelo vinho e pela hospitalidade, mas também pelas belas correrias e pelos combates leais. Contudo, eu gostaria de conhecer. Minha alma e meu coração sentem-se tão felizes e quietos aqui como este velho jardim, mas minha razão ainda clama. Eu gostaria de conhecer. Domingo olhou Ratcliffe, cuja voz clara se ouviu: — Parece-me tão estúpido que você tenha estado dos dois lado e tenha combatido a si mesmo! Buli disse apenas: — Não entendo nada, mas sou feliz. Na verdade, vou dormir. — Não sou feliz, disse o Professor com a cabeça entre as mãos, porque não compreendo. Você permitiu que eu me perdesse a poucos passos do inferno. Gogol falou, então, com toda a simplicidade de um menino: — Gostaria de saber porque fui tão maltratado. Domingo continuava mudo e imóvel. Fincava o queixo poderoso numa das mãos e fitava a distância. Por fim rompeu o silêncio: — Ouvi suas queixas uma a uma. Penso que vem aí outro para lamentar-se, e devemos ouvi-lo também. O fogo moribundo na grande trempe emitiu um derradeiro e alongado clarão, feito uma barra de ouro ardente, que se espalhou por todo o escuro relvado. Sobre esta meia-lua infla-
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mada projetavam-se totalmente negras as pernas avançadoras de um vulto de preto. Parecia usar um belo traje com bragas, do mesmo modo que os criados da mansão. Só que seu traje não era azul, mas autêntico sable. Como os criados, trazia uma espada à cinta. Foi somente quando êle chegou muito perto dos sete homens colocados no crescente e ergueu o rosto para contemplá-los, que Syme viu, com fulminante nitidez, que o rosto era o rosto largo, quase simiesco de seu velho amigo Gregory, com os mesmos exuberantes cabelos vermelhos e o mesmo sorriso insultuoso. — Gregory! arquejou Syme quase de pé. Ah, eis o verdadeiro anarquista! — Sim, disse Gregory, com um grande e ameaçador constrangimento, sou o verdadeiro anarquista. — "E vindo um dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles", murmurou Buli, que parecia realmente ter caído no sono. — Tem razão, disse Gregory, olhando em volta. Sou um destruidor. Destruiria o mundo se pudesse. Um sentimento de compaixão, vindo das profundezas da terra, excitou Syme e levou-o a falar aos borbotões e sem seqüência. — Oh homem infelicíssimo! exclamou. Tente ser feliz. Você tem os cabelos vermelhos de sua irmã. — Meus cabelos vermelhos, como as chamas vermelhas, incendiarão o mundo, respondeu Gregory. Pensei que odiava tudo mais do que os homens geralmente odeiam qualquer coisa, mas estou vendo que não odeio tudo tanto quanto o odeio. — Eu nunca o odiei, disse Syme melancòlicamente. Em seguida, os últimos trovões dessa criatura ininteligível ribombaram. — Você! gritou êle. Você nunca odiou porque nunca viveu. Sei o que são todos vocês, do primeiro ao último. Vocês são os poderosos! Vocês são a polícia, os homens gordos, sorridentes, dos uniformes azuis cheios de botões! Vocês são a Lei, e nunca foram derrotados. Mas haverá uma alma viva e livre que não deseje derrotá-los, ao menos porque vocês nunca foram derrotados? Nós, os revoltados, sem dúvida dizemos toda a espécie de disparates acerca deste ou daquele crime do Governo. Tudo isso é loucura! O único crime do Govêr-
O HOMEM QUE FOI QUINTA-FEIRA
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no é governar. O pecado imperdoável do poder supremo é ser supremo. Não os amaldiçôo por serem vocês cruéis. Não os amaldiçôo (embora eu pudesse) por serem bondosos. O que amaldiçôo é a sua segurança. Vocês se sentaram em suas cadeiras de pedra e nunca desceram delas. Vocês são os sete anjos do céu, e nunca provaram das vicissitudes. Oh, eu lhes poderia perdoar tudo, a vocês que governam toda a humanidade, se uma vez, pelo menos, eu pudesse sentir que vocês sofreram uma hora de agonia real, tal como a que eu. . . Syme levantou-se com um salto, tremendo da cabeça aos pés. — Compreendo tudo, bradou, tudo quanto existe. Por que todas as coisas desta terra vivem em guerra umas com as outras? Por que cada ínfimo ser deste mundo tem de lutar contra o próprio mundo? Por que deve a mosca combater todo o universo? Por que deve um dente-de-leão combater todo o universo? Pela mesma razão que eu tinha para estar só no terrível Conselho dos Dias. Assim, cada coisa que obedece à lei pode partilhar da glória e do isolamento do anarquista. Assim, cada um que combate pela ordem pode ser tão bravo e bom como o dinamiteiro. Assim, a mentira de Satã pode ser lançada à face deste blasfemo e assim, pelas lágrimas e pela tortura, podemos conquistar o direito de dizer a este homem: "Mentes!" Todas as agonias não dão para comprar o direito de dizer a este acusador: "Nós também temos sofrido!" Não é verdade que nós nunca fomos derrotados. Fomos, sim, fomos esmagados. Não é verdade que nunca descemos destes tronos. Descemos até aos infernos. Estávamos a lamentar nossas inesquecíveis misérias no momento mesmo em que este homem entrou insolentemente para acusar-nos de felicidade. Repilo a calúnia; não temos sido felizes. Posso responder por cada um dos grandes defensores da Lei que êle acusou. Pelo menos. . . E volveu os olhos a fim de observar o enorme rosto de Domingo, que se abria num estranho sorriso. — E você, bradou Syme com voz terrível, você terá sofrido alguma vez? Enquanto observava, o enorme rosto adquiria uma espantosa proporção, tornando-se maior do que a máscara colossal de Memnon que o fizera gritar de medo quando menino. O rosto, cada vez maior, ia enchendo todo o Armamento. Depois, tudo enegreceu. E antes que a escuridão anulasse completa-
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G. K. C H E S T E R T O N
mente seu cérebro, Syme julgou ouvir uma voz distante recitar um lugar-comum ouvido antes nalguma parte: "Podes beber na mesma taça em que eu bebo?" * * *
Quando, nos livros, os homens despertam de uma visão, encontram-se geralmente em algum lugar em que podiam ter adormecido; bocejam, se estão numa cadeira, ou se levantam com os membros doídos, se estão deitados no campo. A experiência de Syme foi, psicologicamente, muito mais estranha, visto que houve realmente, no sentido físico, algo de irreal nas coisas que lhe tinham acontecido. Pois, conquanto mais tarde lhe fosse sempre possível recordar que desfalecera ante o rosto de Domingo, não podia lembrar-se do instante em que voltara a si. Só podia lembrar-se de que pouco a pouco e com toda a naturalidade tivera consciência de estar passeando por uma azinhaga ao lado de um companheiro agradável e palrador. Esse companheiro fora parte de seu drama recente; era Gregory, o poeta dos cabelos vermelhos. Caminhavam juntos como velhos amigos e estavam entretidos com alguma banalidade. Mas Syme sentia no corpo uma vivacidade sobrenatural e no espírito uma simplicidade cristalina que pareciam superiores a tudo que dizia ou fazia. Sentia que estava na posse de uma inefável boa nova e que ela fazia de tudo uma trivialidade, mas uma adorá vel trivialidade. Rompia a aurora, revestindo tudo de cores claras e tímidas, como se a natureza fizesse uma primeira tentativa em amarelo e uma primeira tentativa em rosa. Soprava uma brisa tão límpida e suave que se podia até imaginar que ela não provinha do céu, mas filtrava-se através de uma frincha rasgada no céu. Syme maravilhou-se um pouco de ver em ambos os lados do caminho os vermelhos e irregulares edifícios de Saffron Park. Não sabia que andava tão perto de Londres. Instintivamente tomou por uma estrada branca, onde os pássaros madrugadores gorjeavam saltitantes, e achou-se defronte do gradil de um jardim. Ali viu a irmã de Gregory, a moça dos cabelos vermelhos e dourados, colhendo lilases antes do café, com a gravidade inconsciente e magnífica das moças.
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