AMOR IMORTAL Hidden Moon
Lori Handeland
O SEGREDO DA LUA... Depois de sofrer uma cruel traição, Claire Kennedy retorna...
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AMOR IMORTAL Hidden Moon
Lori Handeland
O SEGREDO DA LUA... Depois de sofrer uma cruel traição, Claire Kennedy retorna a Lake Bluff para recomeçar a vida como prefeita da cidade. Mas logo começam os problemas, na pessoa de Malachi Cartwright, um homem com um passado tão misterioso quanto o presente... Um homem que desperta um sentimento perigoso na sempre ajuizada Claire... Quando um turista dá queixa de ter sido mordido por um lobo, e os ataques se tornam mortais, o comportamento estranho de Malachi desperta suspeitas em Claire. Será que ele esconde algum segredo e tem algum motivo sinistro para estar em Lake Bluff? Malachi é o único homem capaz de fazer Claire se render ao desejo, mas é também a última pessoa em quem ela pode confiar. E, à medida que se aproxima a ocorrência de um eclipse, os segredos da lua escondida vêm à tona, e um inimigo perigoso será finalmente desmascarado... Digitalização: Silvia Revisão: Andréa M.
Bianca Místicos 869 – Amor Imortal – Lori Handeland
SOBRE A AUTORA Lori Handeland tinha dez anos de idade quando decidiu que seria escritora. Desde que conseguiu publicar seu primeiro romance, ela tem escrito histórias que variam entre os gêneros contemporâneo, histórico e mistério. Querida leitora, Prepare-se para uma viagem a um mundo de criaturas noturnas onde o desejo e o perigo se confundem, e para nunca mais olhar para a lua do mesmo jeito que você olhou até hoje... Leonice Pomponio Editora
Copyright © 2007 by Lori Handeland Originalmente publicado em 2007 pela St. Martin's Press PUBLICADO SOB ACORDO COM ST. MARTIN'S PRESS NY, NY — USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Proibida a reprodução, total ou parcial, desta publicação, seja qual for o meio, eletrônico ou mecânico, sem a permissão expressa da Editora Nova Cultural Ltda. TÍTULO ORIGINAL: HIDDEN MOON EDITORA Leonice Pomponio ASSISTENTES EDITORIAIS Patricia Chaves Paula Rotta Silvia Moreira EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Sulamita Pen Revisão: Giacomo Leone ARTE Mônica Maldonado ILUSTRAÇÃO Thomas Schluck MARKETING/COMERCIAL Andrea Riccelli PRODUÇÃO GRÁFICA Sonia Sassi PAGINAÇÃO Estúdio Editores.com © 2008 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 — 10º andar — CEP 05424-010 — São Paulo – SP www.novacultural.com.br Premedia, impressão e acabamento: RR Donnelley
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CAPÍTULO I
Voltei para casa com o propósito de escapar de um inferno e acabei caindo em outro. Suponho que eu merecesse tal situação, por ter saído daqui aos dezoito anos e nunca mais ter olhado para trás. Os cherokee chamam as montanhas onde eu nasci de Sah-ka-na-ga ou Grandes Montanhas Azuis de Deus. Sempre considerei a frase um exagero, mas agora não estou tão certa. No meu presente estado de espírito, as montanhas Blue Ridge me parecem um pequeno pedaço do céu. — Ao mesmo tempo, um lago incandescente seria melhor do que isso — murmurei, fazendo uma carranca para a confusão reinante em minha mesa. — Você já viu algum lago em chamas? Para minha surpresa, Grace McDaniel estava parada na porta. Durante o ensino médio, ela e eu tínhamos sido inseparáveis. Depois, fui para a universidade, consegui um emprego numa emissora de televisão em Atlanta, cidade grande e horrível, e Grace permaneceu aqui. Grace era agora a xerife de Lake Bluff e eu, a prefeita. Os filhos seguindo os passos dos pais... O telefone tocou na outra sala. Antes de sair, com destino ignorado, Joyce, minha assistente, me informara que havia três pessoas esperando por mim. As más línguas afirmavam que Joyce Flaherty vinha sendo assistente do prefeito desde que se estabelecera a prefeitura em Lake Bluff, cidade pequena da Geórgia. Como o município fora colonizado por escoceses e irlandeses bem antes da Guerra da Independência, era possível pensar em Joyce como sobrenatural, se a declaração fosse verídica, é claro. Ela tinha sido o braço direito do meu pai durante os mais de trinta anos em que ele ocupara o cargo, e agora me servia. A mulher tinha o hábito irritante de fazer meu trabalho e relatar o fato mais tarde. Mas, na verdade, ela conhecia a tarefa bem melhor do que eu. — Algum problema? — perguntei. Grace não vinha com frequência ao meu escritório. Ela telefonava, deixava recados, mandava relatórios. Tínhamos sido muito amigas, mas agora... Parecia aborrecida comigo e eu não sabia o motivo. — Digamos que sim — ela sussurrou com o sotaque sulista que eu já perdera. Grace olhou por sobre o ombro, entrou em meu escritório e fechou a porta. Apontei a cadeira vazia, mas ela começou a andar de um lado para o outro. Ela não era o protótipo de policial que se esperava encontrar numa cidade pequena. Alta e forte como nossos ancestrais escoceses, possuía ossos malares pronunciados e cabelos 3
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negros e longos, herdados dos cherokee que habitavam essas montanhas muitos séculos antes de serem arrastados para o Oeste no episódio chamado Trilha das Lágrimas. A pele morena lembrava alguma miscigenação na árvore genealógica, o que era comum, pois os cherokee também haviam possuído escravos afro-americanos. Os olhos verdes eram luminosos e belíssimos. Poderia ter sido modelo de sucesso, mas ela não tinha consciência de sua beleza, assim como eu do cargo de prefeita. Ela amava Lake Bluff acima de tudo e jamais teria abandonado a cidade. — Você tem de vir comigo — ela apoiou as palmas das mãos em minha mesa. Grace não tinha meios-termos. Decidia e executava. Muitas vezes, me perguntei por que ela não era a prefeita. Mas em Lake Bluff, ou as pessoas seguiam a carreira dos pais ou saíam da cidade. — Há uma caravana de ciganos acampada no lago. — Você disse caravana de ciganos? — Pelo visto, você continua escutando direito. Franzi a testa. Era verdade que eu estava inutilizada em outros aspectos, mas ninguém sabia disso, nem mesmo Grace. — Claire, o que houve com você em Atlanta? Você costumava entender sarcasmos e era engraçada. — Agora sou a prefeita. — Ótimo. — Ela piscou. — Logo voltará a ser o que era. Eu nunca mais seria a mesma pessoa de antes, mas talvez pudesse, pelo menos, parar de me assustar com as sombras, agora que estava em casa. A campainha do telefone me fez levantar da cadeira, o coração disparado. Ou não. Grace nunca tivera medo de nada na vida? — Não atenda, deve ser mais um absurdo qualquer. — Ela disse uma imprecação. — Não podemos perder tempo, você tem de vir comigo. Eu havia esquecido o linguajar de Grace. Tinha sentido a falta dela. — Um absurdo qualquer? — Você sabe como são as coisas por aqui. A vaca de Jaraie foi comer o trigo de Haroíd. O gato de Lucy deu uma surra no cachorro de Carol. Algum menino idiota ficou com a cabeça presa nas barras da grade do ginásio e gritou por uma hora. — Esses assuntos são mais seus do que meus. Fiquei aliviada quando o telefone parou de tocar. — ótimo. — Grace abriu a porta. — Assim você não terá de escutar nenhuma queixa sobre demarcação de propriedade, tributos ou injustiça dos impostos municipais. Aqueles eram problemas meus. Deixei um recado na mesa de Joyce, verifiquei a carga do celular e apontei a saída dos fundos com o polegar. — Prefeita? — alguém chamou e Grace empurrou-me pelas costas. 4
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Tropecei por estar usando sandálias, que combinavam perfeitamente com o conjunto de verão cor de pêssego, e quase caí quando abri a porta dos fundos e fui jogada na luz do sol. Grace olhou o estacionamento com um sorriso. — Lembra-se de quando vínhamos fumar maconha aqui? — Grace! — O que foi? — Ela pôs os óculos de sol. — Alguém pode escutar. — E daí? Tínhamos dezesseis anos e estávamos na escola. — Daria má impressão, pois afinal você representa a lei. — E você quer que eu prenda a mim mesma pelo que fiz há dez anos? Desculpe, mas o crime já prescreveu. Grace saiu andando na minha frente com pernas longas e ágeis. Eu era apenas uns cinco centímetros mais baixa do que ela e digamos... Um pouco mais encorpada. Eu não era gorda... Ainda, mas era obrigada a controlar a alimentação. Iogurtes desnatados, molhos com baixas calorias e sobremesa apenas em ocasiões especiais. Ela entrou na viatura policial e sentou-se atrás do volante. Ocupei o assento do passageiro e praguejei quando prendi as pantalonas na porta. — Não sei por que você usa essas coisas ridículas. Aqui não é Atlanta. Grace usava o conjunto de calça e blusa caqui com o distintivo de xerife. — Não diga nada — ela advertiu. — Dizer o quê? — Que vestida dessa maneira ninguém pode dar conselhos sobre moda. — Está bem, não direi. Ela me fitou antes de dar partida no carro. Eu tinha voltado a Lake Bluff havia três semanas para o funeral do meu pai. Com cinquenta e cinco anos, ele nunca dera importância ao peso, ao excesso de cigarros ou de uísque. E o choque com sua morte fora tão grande quanto o de eu ter aceitado a incumbência de cumprir o restante de seu mandato como prefeito. Olhei pela janela conforme saímos da cidade e pegamos a estrada até o lago Lunar. O traçado de Lake Bluff tinha começado e se desenvolvido a partir de uma colina a poucos quilômetros do lago, que refletia seu brilho em toda a cidade. A maioria da população — menos de cinco mil habitantes — trabalhava em lojas, restaurantes e nas graciosas pousadas que se sucediam nas ruas principais. E boa parte dos ganhos se devia ao Festival da Lua Cheia. Turistas viajavam quilômetros para aproveitar a celebração de uma semana, durante o mês de agosto, que culminava no dia e na noite de lua cheia, com desfile, piquenique e fogos de artifício. Este ano, esperávamos um grande afluxo de pessoas, pois um raro eclipse lunar aconteceria naquela noite. A cada ano ocorriam de dois a quatro eclipses, mas poucas vezes a Lua penetrava totalmente no cone de sombra da Terra, deixando de ser visível. Pelo que me lembrava, o festival nunca coincidira com tal evento. Por isso, além do grande número de turistas de verão, estariam presentes astrônomos, tanto 5
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amadores quanto profissionais. Como grande parte da programação ocorreria no lago, era compreensível a preocupação de Grace quanto aos ciganos. Percorremos a rodovia de duas pistas margeada de cascalho e chegamos ao vale onde resplandecia o lago Lunar. Por entre as árvores verdejantes, o sol se refletia na superfície da água. Do lado oposto, as montanhas se erguiam com o mesmo tom do lago. — Você tem visto muitas caravanas de ciganos por aqui? — perguntei. Grace seguiu no trecho de terra que conduzia ao lago. — Nenhuma. Supus que os ciganos tivessem sido extintos junto com os indígenas. — Quanto sarcasmo. Santo Deus. Grace nem sorriu. — Claire, sei que existem ciganos pelo mundo todo, mas muitos nem os notam. Grace brecou na curva e eu pensei haver voltado no tempo, talvez à Romênia de 1700. Deparei-me com uma confusão de carroças, cavalos e uma infinidade de pessoas vestidas com trajes coloridos. — Ainda bem que você me avisou tratar-se de ciganos ou eu nem desconfiaria — murmurei e Grace lançou-me um olhar faiscante visível até por trás dos óculos escuros. Quando descemos do carro da radiopatrulha, todos nos encararam, assim como nós a eles. As pessoas pareciam ter saído da versão Disney do Corcunda de Notre-Dame. Os homens usavam calças negras e camisas coloridas. As mulheres, saias longas igualmente coloridas e blusas brancas, além de lenços na cabeça. Todos usavam braceletes, correntes de contas e brincos de argola, que brilhavam ao sol. Ao longe, em meio à mata, várias carroças amontoavam-se, sendo algumas com barras para transporte de animais. Os cavalos que puxavam as carroças eram grandes e pesados, malhados de cinza. — Xerife, Departamento de Polícia de Lake Bluff. — Grace tirou os óculos, pendurou-os na camisa pela haste e adiantou-se com a mão na coronha do revólver. Os que estavam na frente recuaram e murmúrios em língua estranha se elevaram. — Não precisava ser tão agressiva — cochichei. Eu podia ter mudado, mas ela não. Caprichei no melhor sorriso televisivo CNN e aproximei-me de Grace. — Sou Claire Kennedy, prefeita de Lake Bluff, e gostaria de saber o que estão fazendo aqui. Os murmúrios cessaram e alguns fizeram o sinal-da-cruz, como se estivessem com medo. — Tire a mão da arma — sussurrei para Grace. — Não, — Você os está assustando. — Será ótimo se ficarem com medo da xerife. Pressionei os lábios e os murmúrios retornaram. — Quem é o porta-voz? — perguntei. — Alguém fala nossa língua? — Grace acrescentou. 6
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Um movimento surgiu nos fundos, as pessoas curvaram a cabeça em sinal de deferência e um homem surgiu. Grace sussurrou uma imprecação digna da ralé. Engasguei, não apenas pelo que ela tinha dito, mas por causa do homem. Sobre as calças pretas, ele usava botas longas igualmente negras. O peito desnudo brilhava, de suor ou da água do lago. A pele era bronzeada e lisa por cima de músculos firmes e abdômen definido. Ele ficou tenso e flexionou os bíceps por causa do vento frio das montanhas. E não foi apenas o físico dele que me deixou sem fala, mas também o olhar profundamente negro e o rosto que lembrava uma escultura. Alguém lhe entregou uma toalha e ele esfregou-a no peito com movimentos eficientes e sugestivos. Senti o estômago apertado e tive de fazer um esforço para não seguir o caminho das mãos dele. Passou o tecido felpudo nos cabelos negros e ondulados que cobriam a nuca. Gotas voaram e as mechas brincavam de escondeesconde com uma cruz de prata pendurada na orelha esquerda. Ele jogou a toalha para trás. Alguém a pegou antes de entregar-lhe uma camisa que brilhava de tão branca. Enquanto ele a vestia pela cabeça, fitei Grace, que revirou os olhos. — Xerife, prefeita Kennedy — ele saudou com forte sotaque irlandês. — Sou Malachi Cartwright. — Fez uma ligeira mesura. — Podem me chamar de Mal. — Intimidades são desnecessárias — Grace afirmou. —Vocês não podem ficar aqui. — Não? — Ele ergueu as sobrancelhas. Grace tomou a adiantar-se, apertando o cabo da arma. Estendi o braço para o lado e acertei-o no peito sem querer. — Pare com isso, Grace. Eu resolverei o impasse. Eu sempre tinha concordado com meu pai quando ele dizia que se pegavam mais moscas com mel do que com vinagre, mas o pai de Grace achava que o correto tinha de ser imposto. Grace me ignorou e passou na minha frente, segurando o revólver. — Não será possível acampar aqui, meu caro, pois em poucos dias começará nosso festival. — E foi exatamente por isso que viemos, querida. Cartwright estendeu o braço e algumas folhas de papel apareceram em sua mão, certamente entregues por alguém muito ágil, e ele fez outra mesura, dessa vez caprichada. — Fomos contratados para diverti-las. Senti um calor no estômago pela maneira como ele falou. A ideia dele de diversão devia ser diferente da minha. Ou não. Grace olhou para mim, carrancuda. — Não fui eu — defendi-me. Ela pegou as folhas da mão de Cartwright, espiou a primeira e olhou para mim.
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— Joyce. — Ela me passou o contrato. Minha assistente contratara o grupo para fazer apresentações durante a semana do Festival da Lua Cheia. O planejamento para as festividades havia começado muito antes de eu chegar à cidade e eu deveria ter ficado mais atenta ao que acontecia. Os habitantes de Lake Bluff na certa não ficariam contentes ao descobrir que ciganos itinerantes haviam acampado no lago. E, pelo olhar de Grace, ela também não. Infelizmente, eles tinham sido pagos com dinheiro público e era tarde demais para contratar outras pessoas, mesmo que houvesse verba disponível. Os festivais eram nossa fonte de renda. Sem eles, Lake Bluff não sobreviveria. — Tudo certo? — Cartwright perguntou. Novamente fui atraída por aquele olhar escuro e profundo. Por que ele me fitava daquele jeito? Eu não era a única ruiva de olhos azuis na cidade, embora ali eu fosse. — Sim, parece estar tudo certo. — Devolvi o contrato para ele. Os dedos dele tocaram os meus e eu puxei a mão, quase rasgando as folhas. Os ciganos resmungaram, Cartwright ficou sério e Grace fitou-me com exasperação. A brusquidão de meu gesto deveu-se não ao fato de ele ser um cigano, mas de ser um homem. E isso me apavorava. — Bem, vocês podem ficar — Grace permitiu. — Mas tenho de avisá-los que não será permitido sair daí. — O que está pretendendo dizer, xerife? — Todos na cidade têm uma arma e sabem usá-la. Perambular por aí no escuro será um convite para receber um tiro. — Acha que pretendemos roubá-los ou raptar alguma criança? — Cartwright fitou Grace de alto a baixo sem demonstrar aprazimento, um fato inédito na história dela. — A senhora não deveria acreditar em tudo o que escuta. Nem todos os ciganos são ladrões e sequestradores, assim como nem todos os indígenas são beberrões. Grace corou. — Tem razão, desculpe-me. Mais um fato inédito. — Mas o aviso permanece. Os habitantes da cidade podem não ser tão esclarecidos quanto eu. — Tenho certeza de que não — ele ironizou. Em seguida, falou com os demais no idioma deles, o que causou movimentos, conversas e olhares espantados. — O que disse a eles? — indaguei. — Para ficarem no acampamento à noite. — Alguém mais fala nossa língua? — Sim, mas preferimos usar o romani, o idioma dos rom ou ciganos. Não queremos perder nossa herança cultural. — Compreensível — Grace concedeu. Quando éramos crianças, Grace passava muito tempo com a bisavó, uma curandeira cherokee, e a velha senhora dizia que os conhecimentos antigos deviam ser 8
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preservados. Seria interessante saber o quanto de seu passado Grace conservara, mesmo sendo uma funcionária pública. O xerife de Lake Bluff era eleito, e a população local estava acostumada com descendentes de indígenas na cidade, mas certamente não aprovaria se a autoridade policial executasse uma dança da chuva ao luar, se é que os cherokee tinham esse hábito. — Sobre que tipo de diversão estamos falando? — perguntei a Cartwright. Se fossem dançar despidos, isso não combinaria com nosso festival familiar. — Sacrifícios humanos e coisas do gênero. Eu e Grace ficamos de queixo caído, e alguns ciganos começaram a rir. — Perdão. — Ele espalmou as mãos. — Não pude resistir. — Disse algumas palavras à sua gente e todos se dispersaram. — Nossas apresentações são as mesmas de nossos ancestrais e nós nos empenhamos em trazer o sabor antigo ao mundo moderno. Os rom têm sido viajantes ao longo do tempo. — E por quê? — Grace perguntou. — Foi o meio mais fácil de evitar a prisão por roubo ou sequestro. Dessa vez eu ri com a ironia. — Falando sério — Grace sugeriu — o que há de tão especial nessa sua droga de diversões do passado? — As pessoas gostam porque somos diferentes, e assim não nos falta trabalho. — Diferentes? — Sabemos ler a sorte e fazemos apresentações com animais, entre outras coisas. — Grande porcaria — Grace murmurou. — Sempre a mesma coisa. — Nem sempre. — Ele se voltou para mim. — Se quiser aparecer uma outra hora, prefeita Kennedy, eu poderia mostrar-lhe o que nos torna tão especiais.
— Ele ficou atraído por você — Grace falou quando nós nos afastamos. Espiei para trás e vi Cartwright observando nossa partida. — Que nada. — Ora, vamos. Prefeita Kennedy, venha de preferência sozinha, sem aquela xerife antipática e eu lhe mostrarei os encantos que mantenho dentro da calça. — Grace caçoou, imitando a voz dele. — Grace, por favor — eu disse depois de parar de rir. — Ele estava apenas querendo ser amável e... — Ele não tirava os olhos de você e mal me dava atenção — ela me interrompeu. — Aposto que você não está acostumada com isso. — Não. Mas eu nem queria que ele reparasse em mim. Os olhos dele são negros demais... como os do demônio ou algo assim. — Grace, você andou quebrando de novo o cachimbo da paz? — Ninguém tem olhos absolutamente negros.
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— Nem ele. Os olhos de Cartwright são castanho-escuros. Deve ter sido algum efeito de luz e sombra... — Deve ser. — Discutir com Grace não valia a pena. Era dor de cabeça na certa. Chegamos ao edifício da prefeitura e ela parou o carro. — Você não vai entrar? — perguntei. — Não. Tenho visitas para fazer e alguém para prender. Saí do carro e encostei-me na janela quando Grace me chamou, — Obrigada por ter ido comigo. — Por que você me chamou? — Notei as sobrancelhas erguidas por cima dos óculos. — Não pude fazer nada mesmo. — Apontei as pantalonas sujas e as sandálias estragadas. — Bem, você não carrega uma arma nem sabe atirar... — Xerife McDaniel, seu profissionalismo chega a me assustar. — Mas — Grace continuou — você tem a loquacidade de seu pai... Jeremiah Kennedy fora um político nato. Conhecia todos por nome e endereço, inclusive dos filhos, netos e cachorros. Eu jamais alcançaria a perfeição dele. Aliás, eu atualmente imaginava se chegaria a ser eficiente em qualquer carreira. Na escola, eu fizera parte da torcida, tinha sido capitã dos debates e campeã estadual dos oradores. Ficava excitada diante de uma multidão. Seguindo os conselhos de meu orientador, eu havia feito o curso de Jornalismo, sonhando com uma carreira sob os holofotes da CNN. E descobrira que não era bonita nem talentosa para ter sucesso. — Com exceção de hoje. — Grace me fez voltar ao assunto em questão. — Aquele camarada a fez parecer uma menininha. — Nada disso! Ela me ignorou. — Farei uma investigação no acampamento mais tarde. Veja o que consegue com Joyce. — Certo. — Eu me endireitei e ela soltou os freios. Grace nunca dera importância às brincadeiras de meninas, o que era compreensível. Ela era a caçula de cinco irmãos e a única garota. A mãe dela fugira quando ela tinha três anos, na mesma época em que a minha havia morrido numa estrada montanhosa de gelo na qual não deveria estar. Mamãe sempre sentira falta de Atlanta, sua terra natal. Ela era repórter e conheceu meu pai quando preparava uma matéria sobre prefeitos de cidades pequenas. Eles tinham se apaixonado, ela desistira da carreira que adorava e tinha vindo para Lake Bluff. Passara quatro anos tentando voltar até encontrar a morte. Grace e eu crescemos juntas, sem mãe e ignoradas por pais devotados a objetivos muito mais importantes do que nós. Éramos fascinadas com as diferenças uma da outra e caçoávamos implacavelmente das mesmas. Éramos como irmãs, e essa intimidade era o que eu mais desejava de volta.
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Center Street fervilhava com os últimos preparativos para o festival. Em frente à prefeitura, Bobby Turnbaugh, dono do café Good Cookin, estendera uma faixa com os dizeres: Os melhores jantares de Blue Ridge. Molho de chocolate do Sul e biscoitos. Os petiscos não me agradaram e fiz uma careta. Bobby acenou e eu retribuí. Namoramos quando éramos bem jovens e, no banco da frente da caminhonete do pai, Bobby ensinou-me algumas coisas das quais me lembrei durante anos. Ao lado do café havia uma livraria que também vendia bugigangas indígenas, dos Apaiaches e toda a parafernália da Guerra da Secessão. Do outro lado, um salão de beleza, a loja de armas e uma cafeteria que vendia uma boa variedade de chás e de fumos aromáticos encontrados nas grandes cidades. Mais ao sul, o hotel oferecia um bom restaurante e uma loja de presentes finos. Nas outras ruas, havia lojas onde se vendiam artigos de cama e mesa, velas, doces, joias, bijuterias. Eu sempre me surpreendia como as pessoas em férias podiam comprar tantas bugigangas. Os cidadãos se mesclavam com os turistas e não pude deixar de pensar se Grace contratara mais policiais para a ocasião. — Claire! A voz estridente de Joyce ecoou no recinto de pé-direito elevado assim que entrei no saguão. A prefeitura fora construída antes da Guerra da Secessão, com pedras e mármore. O lugar era tão sólido que certamente resistiria até o final dos tempos. Joyce tinha quase um metro e oitenta, e era sólida como um carvalho, tanto em estatura como em temperamento. Os cabelos muito curtos eram negros desde o dia em que ela nascera, graças aos cuidados da srta. Clairol. Ela se vestia à maneira de seu pai, um lenhador. Jeans, camisa de flanela e botas no outono e inverno. Na primavera e no verão, usava bermudas cáqui, camisas sem manga, manta xadrez e sapatilhas. Começara a vida como professora de Física, mas a má-criação das crianças a tinha levado a trabalhar na prefeitura. Nunca se casara, dedicando-se exclusivamente ao emprego e a meu pai. Muitas vezes cheguei a me perguntar se eles eram amantes, mas logo esquecia o assunto. — Todos foram embora. — Joyce estreitou os lábios em desaprovação. — Todos, quem? — Os que a esperavam até você sair pela porta dos fundos. Ah. — Assim que virei as costas, tive certeza de que você e Grace estariam de volta às antigas proezas. Sorri ao lembrar do que fazíamos e duvidei de que voltaríamos a ficar enjoadas por tomar vinho barato. Pela primeira vez, achei que o retorno fora uma boa medida, e não mais uma estupidez como a que eu cometera antes.
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— Você tem de se comportar com sobriedade, pois a cidade inteira a está observando. — Eu sei. Eu não tinha planejado ficar depois do funeral de meu pai, embora não tivesse para onde ir. Tinha pedido demissão do meu cargo de produtora de uma das mais importantes emissoras de televisão de Atlanta. Havia sido eficiente no trabalho, mas sem maior destaque. E, pela primeira vez, Atlanta tinha perdido os atrativos. O brilho dourado que eu conferira à cidade, talvez por minha nãoe adorá-la, fora embaciado. — Balthazar esteve aqui — Joyce afirmou. — Isso não é novidade. Balthazar Monahan viera do Norte, ninguém sabia de que cidade, talvez com a vontade de se eleger prefeito, pois não ocultara a insatisfação quando o cargo me fora oferecido. Ele passara as três últimas semanas trombeteando meus erros no Lake Bluff Gazette, o jornal que ele adquirira. — O que era dessa vez? — perguntei. Ela deu de ombros. — Sei lá. Quando descobriu que você não estava, começou a cochichar com as pessoas que a esperavam. — Droga! — Relaxe. As pessoas têm de lhe dar uma oportunidade de se acostumar ao cargo. Ser prefeito não é fácil. — Diga isso a Balthazar. — Homens sempre são teimosos e esse é um idiota. Joyce percebera o caráter dele de imediato, como sempre acontecia. Talvez por sua experiência de professora ou pelos anos de prefeitura, ela era capaz de deslindar a mente das pessoas com um olhar. Por isso, ela ainda trabalhava para mim, apesar de sua tendência para agredir, queixar-se e fazer papel de mãe. — Por falar nisso, de onde você tirou a ideia de contratar ciganos para o festival? — Eles já vieram? — Ela se animou. Esfreguei a testa. — Por que ciganos? — Eles me procuraram. — O quê? — O chefe deles... — Joyce franziu os lábios. — O nome está na ponta da língua. — Malachi Cartwright? — Esse mesmo. — Ah, que droga! — É melhor controlar essa sua língua, agora que você está na política. Ela estava certa, como de costume. Em Lake Bluff eu teria de manter a sobriedade, inclusive a verbal.
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— Cartwright fez contato comigo depois que soube do festival e me fez uma oferta irrecusável. — Sim? — Eles trabalhariam todas as noites durante a semana toda e pela metade do preço dos outros grupos que eu consultara. — Por quê? — Não perguntei. A cavalo dado... E você sabe como nossos cofres estão vazios. Eu sabia. Se não tivéssemos um bom lucro com o festival deste ano, tudo ficaria ainda pior. — Eles são bons? — É o que veremos. — E as referências? Joyce desatou a rir. — Eles são ciganos. — É o que se percebe pelas joias, vestimentas e pelas carroças puxadas a cavalo que formavam um cercado. — Essa é a maneira deles de organizar um espetáculo. — Eles podem ser um bando de serial killers — argumentei. — Grace fará uma pesquisa nos computadores. — Ela poderia ter feito isso antes de você contratá-los. — Esqueci de falar com ela. O que não era do feitio de Joyce. O restante do dia foi passado numa azáfama, pois a prefeita de Lake Bluff era encarregada de todos os problemas municipais que não eram resolvidos pela xerife e só contava com a ajuda de Joyce. Eu tinha quatro reuniões semanais com o conselho dos munícipes, o que era um exagero. Mas, como todos os membros eram homens idosos e não tinham o que fazer, eles gostavam de reunir-se. As reuniões seguiam um padrão. Estes perguntavam, eu respondia e raramente decidíamos alguma coisa. Às nove da noite eles se reuniam no American Legion Hall para tomar cerveja e, embora meu pai sempre fosse convidado, eles nunca tinham me chamado. Infelizmente, aquela era uma noite de reunião. Antes de entrar no salão comunitário, escutei as altercações e tive vontade de sumir. Eles notariam a minha falta? — Precisamos de uma nova calçada na frente da escola fundamental. — Sou contra. — Talvez devêssemos esperar um pouco para avaliar os dois pontos de vista. — Os impostos têm de ser diminuídos. — Eles precisam ser elevados... Inspirei fundo e entrei. O recinto ficou em silêncio. — Senhores. — Claire. 13
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Todos me conheciam desde que eu usava fraldas e seria impossível exigir que se dirigissem a mim formalmente, embora chamassem meu pai de prefeito Kennedy. Meu pai tinha apelidos secretos para eles: Não Vejo Maldade, Não Escuto, Não Falo Nada e Não Acho Graça. E na primeira reunião descobri de quem eram os apelidos. — O que está em pauta esta noite? — indaguei. — Calçadas e impostos. Por que tive de perguntar? — Não discutimos sobre calçadas a semana passada? — Não decidimos nada — Wilbur Mcandless afirmou. Depois de ter transferido a loja de ferragens para o filho, passava o tempo inteiro pensando nos passeios públicos. Wilbur nada resolvia e concordava com todos. Na certa era o Não Falo Nada. — Também não terminamos a discussão sobre os impostos. — Hoyt Abernathy, primeiro presidente do Banco Lake Bluff, adorava falar sobre dinheiro. Diziam que, no dia seguinte à sua aposentadoria, queimara todos os sapatos sociais, e agora usava chinelos em todo lugar. O que não era uma má ideia. Hoyt devia ser o Não Acho Graça. Tudo para ele representava um desastre de proporções enormes. — Não podemos aumentar os impostos! — Malcom Frasier gritou, não por estar irritado, mas por ser surdo. Era o Não Escuto. — Por que não? — Hoyt berrou. — Impostos mais altos farão as pessoas saírem de Lake Bluff. — Ninguém faria isso — Joe Cantrell, chefe de bombeiros aposentado, alegou. — Aqui é uma maravilha. Os homens olharam para mim. Eu não soube o que dizer. Eu havia saído da cidade por necessidade e voltara pelo mesmo motivo. Endireitei as costas. Estava na hora de ser uma prefeita de verdade. — Muito bem. — Bati os nós dos dedos na mesa. — Já tagarelamos demais. — Como é? — Malcom levou a mão em concha ao ouvido. — Chega de falatórios — gritei. — Vamos votar esta noite e tomar uma decisão. É para isso que os senhores foram eleitos. — Votar? — Wilbur admirou-se. — Tem certeza de que devemos fazer isso? — Tenho. Senhores, peguem seus lápis. Quinze minutos depois os assuntos antigos tinham sido resolvidos. Novas calçadas na frente da escola e ligeiro aumento de impostos. — Foi engraçado — Joe comentou. — Temos de fazer isso de novo. — Algum outro assunto? — Ignorei o comentário. Todos deram de ombros. — Estávamos tão preocupados com os assuntos antigos que nos esquecemos dos novos — Wilbur admitiu. Felizmente, por ora. Eles logo inventariam outros problemas. — Seu pai nunca nos fez votar — Hoyt resmungou. 14
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— Talvez tenha sido uma falha. Os quatro abriram a boca e eu fiquei tensa, esperando um sermão. Meu pai fizera um ótimo trabalho durante trinta anos. — A sessão está suspensa. — O quê? — Malcom gritou. Os outros três foram até a porta, na certa pensando na cerveja, e Malcom seguiu-os. Olhei o relógio, orgulhosa de mim mesma. A reunião fora concluída em meia hora. Talvez eu me saísse bem no cargo. Era uma questão de tempo.
Uma hora mais tarde, fechei e tranquei a porta da frente da prefeitura. Entardecia e as luzes das ruas ainda não tinham sido acesas. Joyce saíra às seis, apressada para vencer os dois quilômetros e meio para chegar em casa. Meu trajeto era bem mais curto. Eu tinha de virar do lado oposto às lojas da Center Street e subir três quarteirões. Meu pai me deixara a maior casa de Lake Bluff. Branca, imponente, de dois andares, tinha uma varanda que rodeava o primeiro andar e se juntava a um deque nos fundos. O barulho dos saltos ecoava na rua vazia, mas não havia o que temer. Crimes eram virtualmente inexistentes em Lake Bluff. Se algo acontecia, era em geral durante os festivais, devido aos estranhos. Não se via um assassinato havia décadas. Por que, então, esse estremecimento que me fazia andar mais depressa? As montanhas que se erguiam ao longe, majestosas, acabaram por me acalmar. O sol sumia no horizonte, espalhando névoa cinzenta sobre meu mundo. Um pedregulho caiu do meu lado direito e notei uma sombra entre as árvores. Olhei para trás. A prefeitura já estava mais distante que minha casa. Determinada, continuei em frente. Havia três semanas eu fazia esse caminho duas vezes por dia e nunca tinha ficado nervosa. No entanto, era a primeira vez que eu sentia algo diferente. Escutei um uivo incomum. Ouvira coiotes milhares de vezes, mas nenhum som era parecido com esse. Apesar da imensidão de terras e árvores, fazia muito tempo que não se viam lobos naquelas montanhas. Esperei por um novo lamento, mas não houve nenhum, o que também era estranho. Os coiotes não andavam sozinhos e um uivo sucedia o outro. Um barulho ao meu lado assustou-me ainda mais. — Balthazar. — Soltei a respiração. — O que você está fazendo aqui? A presença dele era sufocante. Não sei se era por ele falar demais ou por seu tamanho, que intimidava. Ele devia ter um metro e noventa e pesava cento e trinta quilos. O peito vasto surgiu diante de meus olhos, coberto por uma camisa preta apertada que permitia ver pelos também pretos por entre os botões esticados. Recuei, fitando as narinas pilosas. Finalmente, as luzes da rua se acenderam e o reflexo trouxe um brilho dourado aos seus olhos castanhos.
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Ele deu um sorriso afetado. Provavelmente tinha se escondido entre as árvores para me assustar. Procurei disfarçar meu medo de homens, mas Balthazar, como os animais selvagens, tinha sentido a fraqueza e a explorara. — Quero informações sobre os intrusos do lago. Como ele descobrira tão rápido? Parecendo sentir também minha dúvida, respondeu: — Um de meus repórteres a viu conversando com o chefe deles — afirmou, com um detestável sotaque ianque. Ele era racista e um machista intolerante, atém de outros istas que eu ainda não descobrira, o que desagradava muito a Grace e a mim. Ele se referia a Grace como a chefa de polícia, caçoando. O camarada teria de sair da cidade o quanto antes. — As duas estavam com tanta pressa, que ele resolveu segui-las. Os repórteres de Balthazar assemelhavam-se a espiões. — E imagine a surpresa dele ao deparar-se com os ciganos. — Imagine a minha — murmurei. Ele sorriu e eu quis morder a língua. Pude ver minhas palavras nas manchetes do dia seguinte. — A caravana ficará encarregada das diversões durante o festival. Se quiser mais informações, fale com Joyce. — Prefiro falar com você. Rangi os dentes, pensando no ser que estivera uivando, mas voltei ao problema de imediato. — Eles se dedicam aos entretenimentos ciganos antigos como, por exemplo, ler a sorte. — Se é só isso, por que você e aquela pele-vermelha saíram correndo no meio do expediente? Estremeci, sem responder. Grace lhe daria uma lição em breve e eu pensava em ajudar. Fazia tempo que nós não fazíamos algo engraçado juntas. — Nós pretendíamos dar a eles as boas-vindas — menti. — E você não tinha nada melhor a fazer com seu dia? Procurei lutar contra o medo de ficar sozinha no escuro com um homem, mas de repente a raiva começou a ameaçar meu controle. — Já são quase nove horas e acabei de sair da prefeitura, onde entrei às nove da manhã. Por que não publica isso em seu jornal? Ele apertou os lábios finos e corou. Furioso, tentou agarrar meu braço. Antes que o fizesse, outro uivo irrompeu da mata. O volume e a proximidade do som fizeram-me engasgar e meu coração ameaçou sair do peito. — O que diabos é isso? — Balthazar murmurou. — Parece um lobo. — Olhei o bosque escuro, esperando ver o animal pular para acabar com nossa curiosidade e também com nossas vidas. Pensei que Balthazar fosse ironizar, dizendo que os lobos cinzentos estavam extintos havia muito tempo e que os vermelhos não tinham vingado. Os animais de 16
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grande porte daquelas montanhas eram linces e ursos, e não uivavam. Porém, ele nada disse e saiu correndo. Uma imensa onda de alívio me deixou zonza. Nem me importei de ficar sozinha com... Qualquer coisa, contanto que Balthazar estivesse longe. — Obrigada, cãozinho — sussurrei e recomecei a subida para casa, sem tirar os olhos das árvores. Se eu tivesse que ser estraçalhada por um animal que não deveria estar ali, queria vê-lo avançar. Muitas coisas ruins em minha vida haviam acontecido por eu estar de costas. Subi aos poucos, batendo os saltos no calçamento, arfando. As árvores farfalharam e uma sombra passou. Seria o vento ou algo mais substancial e aterrador? Poderia jurar que olhos me fitavam. Pisquei com força. Eu havia trabalhado o dia inteiro e parte da noite, e estava cansada. Abri os olhos e não vi mais nada. Virei-me e bati em Malachi Cartwright com tanta força que me desequilibrei. Ele me segurou e as palmas ásperas arranharam minhas mangas. Espantada, levantei a cabeça e a beleza dele prendeu meu olhar. Havia passado muito tempo entre homens e mulheres bonitos que lotavam os estúdios de televisão. Aprendi que os mais belos eram os que menos se esforçavam. Cartwright parecia diferente. Seu rosto e seu físico fariam sucesso em qualquer passarela. No entanto, ele percorria o país numa carroça, trabalhando com animais até ficar com as mãos calosas. — Por acaso existe um lobo entre os animais usados nas exibições? — Por que a pergunta? — Escutei um uivo. Ele mirou as árvores. — Agora? — Há poucos minutos. Não escutou? Ele sacudiu a cabeça e continuou fitando a mata. Estranho. — O que está fazendo aqui? — Conhecendo sua adorável cidade. — A xerife McDaniel já o avisou para não sair à noite. — Não aceito ordens da xerife McDaniel. E certamente de ninguém. Lembrei-me de como a toalha, a camisa e o contrato haviam aparecido na mão dele. Sorri, sem querer. — Eu a estou divertindo? — Não. Na realidade, os sentimentos que afloravam toda vez que eu o via eram quase tão assustadores quanto o uivo do lobo que não poderia existir. — Ainda não respondeu à minha pergunta. — Qual delas, minha querida? Ignorei o tom carinhoso. — Existe algum lobo numa daquelas jaulas? — Não. 17
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Ele olhou a mata como se procurasse algo, o que me levou a insistir. — Por acaso ele fugiu? — Não tenho nenhum lobo, eles são... Problemáticos. — Em que sentido? — Eles não se prestam a boas exibições, são difíceis de treinar e assustam os cavalos. — Parece conhecê-los, embora não tenha nenhum. Cartwright parou de investigar as árvores. — Sou domador de animais, e entendê-los faz parte de minha profissão. — Sempre pensei que a habilidade do treinador definisse a atitude dos animais. Ele sorriu com ironia, sem retrucar. — Com quem estava conversando há pouco? — Com Balthazar Monahan, dono do jornal local. Ele queria mais detalhes a seu respeito. — Nós preferimos o anonimato. Avaliei o traje vistoso, os cabelos longos e o crucifixo pendurado na orelha. — Não é o que parece. — O público espera de nós esse tipo de vestimenta. — Como consegue ser contratado sem publicidade? — Nunca nos falta trabalho e até podemos escolher quando e onde desejamos fazer nossas apresentações, ou seja, vamos a locais que gostaríamos de conhecer. O que explicava como ele entrara em contato com Joyce. Devia ser agradável poder definir onde, como e por quanto tempo trabalhar. Cartwright olhou o céu e inspirou o ar refrescante. Quando abaixou a cabeça, os olhos lembraram duas lagoas negras sem fundo. Recuei e o reflexo mudou, tornando-os castanhos. — Eu a levarei para casa. — Não é preciso. Eu moro... — Eu deveria revelar? — Acha que não sei? Ele seria capaz de ler minha mente? — Vamos. — Começou a subir a ladeira. — Não é aconselhável andar sozinha à noite. — Estamos em Lake Bluff. — Cheguei perto dele. — Acredita que está segura aqui? Era o que eu pensava, pelo menos até aquele momento. A segurança fora um dos principais atrativos para que eu aceitasse o cargo que tinha sido de meu pai. Isso e não haver alternativa. — O senhor acumula as habilidades de treinador de animais e de adivinho? — Somente nossas mulheres possuem o dom de predizer o futuro, ou pelo menos, é o que elas pretendem que acreditemos. Viramos a esquina e minha casa apareceu, grande e escura sob o luar que se erguia atrás dela. Imaginei-a mal-assombrada e estremeci. 18
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— Está com frio? Cartwright estava de costas para mim. Na certa, devo ter emitido algum som que lembrasse calafrios. — Não, estou bem. Ele abriu o portão e inclinou a cabeça numa mesura. — Bem, aproveitarei para desejar-lhe uma boa noite. — Desde quando ciganos são irlandeses? — Não me furtei à pergunta. Ele sorriu, exibindo o brilho dos dentes muito brancos. — Passou o dia todo intrigada com isso, não é? Dei de ombros. — Esteve pensando que não sou um cigano de verdade? — Não me lembrava do senhor até vê-lo surgir do nada. Mentirosa. Pensava nele desde o momento em que o havia conhecido. Poderia ser diferente? O sorriso aumentou, demonstrando saber que eu mentira, o que na certa o agradava. A mentira não era um traço característico dos ciganos? Passei a mão na testa. Eu era tão mesquinha quanto Balthazar. Meu conhecimento a respeito dos ciganos resumia-se ao que eu vira no cinema e na televisão. — Somos também conhecidos como rom e provavelmente originários da índia. — E como foram parar na Irlanda? — Sempre morei na Irlanda, de onde saí há pouco tempo. — Quando os rom deixaram sua terra natal, espalharam-se pelo mundo. Grécia, Rússia, Hungria, Inglaterra, Escócia e Irlanda. — E a Romênia? — Lá estão os ludar. — Não são ciganos? — Nós preferimos ser chamados de rom. Os da Romênia são conhecidos como ludar, os ingleses como romnichels, os russos como seres e os húngaros como uZax. — São tribos? — De certa maneira. Éramos um povo único, mas mudamos após séculos de separação. A informação era tão fascinante quanto a voz profunda. Como dentro de casa me esperavam um gato e a televisão, preferi aprender mais sobre os ciganos. — Como são chamados os irlandeses? — Itinerantes. Não gostamos de ficar muito tempo num lugar só. Grace diria que eles estavam fugindo ou escondendo algo. Talvez apenas gostassem de conhecer o mundo, o que não era um crime. O grito agudo de um coiote a oeste foi respondido por outros a leste, e ficamos em silêncio até os sons desaparecerem. — Aquilo não eram lobos, mas coiotes — Cartwright afirmou. — Eu já ouvi centenas de coros de coiotes por aqui. O que escutei antes nada teve a ver com isso.
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— Mas também não poderia ter sido um lobo. Eles não toleram coiotes em seu território. Onde fica um, não encontramos o outro. — Os coiotes tornaram a ganir, dessa vez bem mais perto. — Se houvesse um lobo por aqui, os coiotes teriam fugido. — Seu conhecimento a respeito deles é bem grande. O sorriso indolente e sensual fez com que eu perdesse a estabilidade, e quando ele estendeu o braço, bati o cotovelo na grade. Cartwright apenas segurou minha mão e levou-a aos lábios. Depois, ele me fitou com o olhar ainda mais escurecido. — E também a respeito de muitas outras coisas, prefeita Kennedy— ele sussurrou antes de tocar novamente na minha mão. Dessa vez, senti o roçar dos dentes, a sucção dos lábios, o toque da língua, e um arrepio percorreu meu braço, enrijeceu meus mamilos e causou formigamento em locais havia muito adormecidos. Ele me soltou antes de eu pensar em desvencilhar-me, fez uma mesura e voltou por onde viera, desaparecendo na curva. Eu continuei olhando a rua como uma idiota. Claro que já tinha sido beijada, mas certamente não daquela maneira. Ergui minha mão e a umidade brilhou ao luar, revelando um leve arranhado dos dentes e uma marca mais escura onde a pele fora sugada. Sem refletir, passei os lábios sobre a mão. Os faróis de um carro me iluminaram. Apressei-me a fechar o portão, tirei a chave da bolsa e entrei em casa. Atravessei o saguão e fui para a cozinha sem acender as luzes. Joguei a bolsa no balcão e fiquei no escuro, pensando no jantar, numa tentativa de esquecer Malachi Cartwright. Desisti das duas coisas. Não estava com fome nem conseguia esquecê-lo. Que tipo de homem beijava a mão de uma mulher? Apenas os que abundavam nos romances históricos. E eu nunca soube de um cavalheiro que usasse a língua e os dentes num beijo desses. Mas também a vida não era nenhum romance, e eu aprendera isso duramente em Atlanta. Não deveria esquecer por que retornara a Lake Bluff. Exausta e solitária, subi os degraus e fui para o meu quarto. Acendi a luz e escutei um miado de protesto da minha gata malhada que dormia sobre o meu travesseiro. Oprah, que chegara numa manhã ensolarada de Natal, piscou com desdém e começou a lamber a pata traseira. Atravessei o quarto e puxei o travesseiro. A gata foi para o chão e saiu com a cabeça erguida. Nós duas morávamos na casa, mas eu desconfiava que Oprah me tolerava por falta de coisa melhor. Embora soubesse que eu deveria evitar a rotina de trabalho e cama, que contribuíra para as péssimas decisões tomadas em Atlanta, tirei a roupa e deitei-me sem pensar no pijama. Sonhei que a lua se transformava num nevoeiro e penetrava pela janela do meu quarto. Suave e cinzenta, flutuou e parou sobre mim, trazendo-me paz. Suspirei e 20
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senti em minha pele a névoa fria e aveludada trazendo consigo as fragrâncias do sol do meio-dia e da lua brilhando na água à meia-noite. Virei-me em meio aos lençóis e senti o corpo despertar. A mão que ele beijara latejava e a dor que se iniciara com o toque dos lábios dele aumentava. Eu continuava solitária, mas não sozinha, com a presença do nevoeiro e da lua. Passei as pontas dos dedos por minha barriga, pelas coxas e nos seios. O vapor frio me seguiu, deixando um rastro de umidade. Os mamilos enrijeceram e eu me esfreguei na cama, precisando de muito mais. A sensação que eu experimentara antes — os lábios e os dentes em minha mão — voltou-se para os seios. Observei a névoa assumir o formato de um homem que passou a sugá-los. Senti o calor de sua boca, a pressão da língua e os dentes que mordiscavam os mamilos sensíveis. O gemido de excitação acabou por me acordar. Minha pele formigava e eu não podia suportar os lençóis encostados no corpo. À beira do orgasmo, minha frustração me deixava com vontade de soluçar. Por que o sonho não durara mais um pouco? Uma sombra passou na janela e eu poderia jurar ter visto a bruma desaparecer por ali. Saí da cama devagar e olhei para o lado de fora, esperando ver a cerração que cobria o gramado, as árvores e as montanhas com frequência. Não havia nada. Eu havia sonhado com a névoa e o sexo. Depois disso, o sono foi intermitente. Eu tinha fechado as venezianas e sentia calor. Meu pai considerava ar-condicionado um gasto supérfluo, mas eu certamente instalaria um. Às seis da manhã, tomei um banho quase frio para acalmar o latejar que não me abandonava. Saí do chuveiro, sequei-me com a toalha e peguei o secador, que larguei ao olhar-me no espelho. Estreitei os olhos e avaliei a marca de nascença. Um círculo pequeno rosa-escuro sob o seio esquerdo, no local onde o nevoeiro-homem me sugara. Passei o polegar na mancha. O busto intumesceu e os mamilos formigaram. Eu precisava fazer amor, mas depois dos últimos acontecimentos, nem deveria pensar nisso. Fiz um coque com os cabelos molhados num estilo que me fazia parecer uma contadora ou advogada. Precisava sair daquela casa com urgência para esquecer o que não acontecera e que parecia tão real. Escolhi um dos terninhos, sapatos de salto que combinavam e hesitei. Meu pai usara ternos a vida inteira, mas eu não teria do imitá-lo, Seria melhor chamar a atenção para os contrastes entre ele e mim, ou o povo pensaria que o prefeito apenas mudara de embalagem. Tirei do armário uma calça cáqui, sapatilhas do mesmo tom e uma blusa azul. Vesti as peças e dei-me por satisfeita. Oprah miou na cozinha. Desci a escada, fui até onde a gata rodeava a tigela vazia e coloquei a ração. Lembrei-me de que todas as manhãs eu dava comida para a gata, pegava a mochila e saía para buscar Grace. Meu pai sempre me deixava dirigir o carro até a escola que ficava a um quilômetro e meio da cidade e onde também estudavam as crianças que moravam próximo às montanhas. 21
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Ele caminhava até a prefeitura, fizesse chuva ou sol. Aquilo arejava a mente e dava às pessoas a oportunidade de se aproximarem dele informalmente. Eu tinha tentado seguir o exemplo dele, mas ninguém vinha falar comigo, exceto Balthazar. Enchi a outra vasilha de Oprah com água e comi uma torrada. Apesar de ser muito cedo, fui trabalhar. Não tinha nada melhor para fazer Eu aprendi desde criança com meu pai que as tarefas de prefeito não tinham fim e eu ficava por conta própria na maior parte do tempo. Ele trabalhava até tarde e, muitas vezes, eu estava dormindo quando ele chegava. Não tinham sido poucas as ocasiões em que o solicitavam para emergências às quais atendia, como se eu não existisse. Adolescente, eu acreditava que tudo era mais importante do que eu, que Lake Bluff ocupava um lugar no coração de meu pai que deveria ser destinado para mim. E, junto com os ressentimentos infantis, eu desprezava a ideia de morar na cidade e jamais pensara em ocupar a cadeira dele. As ruas de Lake Bluff estavam mais movimentadas do que na véspera, e a tendência era que a agitação na cidade aumentasse naquela semana. A farmácia da esquina, um estabelecimento à moda antiga, em que o responsável atendia pessoalmente os clientes e conhecia os remédios que tomavam, estava aberta. Felizmente, as grandes lojas não haviam chegado a Lake Bluff. Eu não queria que isso acontecesse, pois a transição certamente não seria pacífica. O povo da Geórgia não gostava de modificações em sua existência, ainda mais envolvendo conglomerados poderosos de outras partes do país. Eu passava todas as manhãs pela farmácia e acenava para a sra. Charlesdown e para um ou mais de seus seis filhos que ali estivessem. Nesse dia, os fregueses começaram a bater na porta com violência. Nem cheguei a perguntar do que se tratava. Escutei um grito que ecoou pela manhã ensolarada. Corri para a entrada, tentando abrir caminho por entre os cidadãos que se misturavam aos turistas. Os gritos continuavam, aterrorizantes, e eu tive vontade de tampar as orelhas. Usei toda a minha força para entrar na loja e tentar impedir um provável assassinato. No entanto, ao me aproximar da caixa registradora, divisei a cena. Uma jovem cigana era a causa dos gritos da sra. Charlesdown. O farmacêutico e o filho mais velho estavam parados a pouca distância, com olhos arregalados. — O que houve? — gritei. A sra. Charlesdown parou de gritar e apontou a jovem que estava de costas para mim. Alta e esguia, a moça tinha cabelos negros que alcançavam a cintura. Em dois dedos dos pés descalços usava anéis de ouro. Não pude entender por que a mulher perdera o controle. Então, a cigana se virou e vi do que se tratava. Ela trazia uma cobra no pescoço e o réptil ondulava o corpo e esticava a língua para fora. A moça deveria ter cerca de vinte anos, a pele azeitonada como todos de seu clã e olhos cor de avelã. Nariz reto, ossos malares altos. Nada de excepcional, exceto a cobra. 22
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— Ela... ela... — A sra. Charlesdown continuava a apontar. — Não fique nervosa. — Tentei acalmá-la, antes de me virar para a garota. — Mocinha? — Observei-a abaixar a cabeça e os cabelos cobrirem seus olhos. A cobra se movia como se dançasse ao som de uma melodia secreta. — Seria melhor não vir para a cidade com... Seu bicho de estimação. Ela sorriu e acariciou a víbora com os dedos longos. O barulho das pulseiras que se agitaram com o movimento assustou ainda mais a esposa do farmacêutico. — Ela estava roubando — afirmou, espiando à procura de apoio do marido, mas ele e o filho já haviam retomado aos afazeres rotineiros. — Estava. A moça sacudiu a cabeça com força num gesto negativo e os cabelos se afastaram do rosto. — Estava, sim! — insistiu. — O que você tem na mão? A moça escondeu uma das mãos atrás das costas. — Viu só? — A mulher mostrou-se triunfante. — O fato de ter algo na mão não quer dizer que estivesse roubando — eu disse. — A senhora não lhe deu tempo de pagar. — Ela estava a caminho da porta quando a chamei e aquela coisa começou a sibilar. Era um caso para Grace, mas como eu estava ali... — Posso ver o que você tem na mão? A cigana tomou a sacudir a cabeça, salivando. — Vou chamar a xerife. — A sra. Charlesdown pegou o telefone. A jovem esticou o braço para a frente, mostrando dedos rígidos e curvos para dentro como se fossem garras. Mas a palma da mão defeituosa estava vazia. A mulher ficou vermelha e pressionou os lábios. — Você não pode me culpar. Todos sabem que os ciganos roubam. — Assim como raptamos criancinhas. Malachi Cartwright estava parado na entrada. O sol projetava um halo ao redor de sua cabeça, mas o rosto permanecia na sombra. Apesar do tom ameno, a postura tensa deixava evidente que ele não se divertia. — Sabina, eu já disse para não vir à cidade sozinha — ele murmurou. A moça saiu correndo, de cabeça baixa, como se estivesse com medo. Mas de quem? — Houve um mal-entendido — tentei explicar. — Acontece, em geral, com pessoas de mente estreita. — Cartwright entrou na farmácia com uma calma que, de alguma forma, parecia mais acusadora do que um olhar teria sido. — Se ela houvesse dito alguma coisa, não teria havido problema — defendeu-se a sra. Charlesdown. — Ela não fala, minha senhora, e também não consegue usar a mão direita. — Ah... — Ela tomou a corar. — Que pena. — Ela e a cobra se entendem bem sem palavras. 23
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— Aquela é uma naja? — Eu sabia que era. Cartwriglit anuiu. — Elas não são venenosas? — Venenosas? — A mulher assustou-se. — O senhor é algum insano? Deixar uma criança parva andar por aí com um animal peçonhento? — Ela não é parva nem criança, e as presas do réptil foram retiradas há muito tempo. Sabina é uma encantadora de serpentes muito habilidosa, mas a segurança é mais importante do que o remorso. — Encantadora de serpentes? — A mulher deu um grito esganiçado. — Só falta o senhor afirmar que trouxe uma mulher obesa e peluda, dois anões e um homem tatuado. — Se queriam um circo, contrataram as pessoas erradas. — Ele virou-se para mim. — Eu lhe disse que representamos à semelhança das caravanas de ciganos antigos. — Nós não conhecemos sua arte. É a primeira vez que contratamos ciganos. — Primeira vez? — O sorriso sugestivo dele me fez corar. A sra. Charlesdown franziu os lábios e eu fiz sinal a Cartwright para me seguir. Um grupo de pessoas aguardava na calçada. — Está tudo bem — anunciei e todos entraram, olhando Sabina por sobre os ombros. A jovem cigana alisava com a mão sadia a crina prateada de um cavalo branco como a neve. — O senhor veio a cavalo? — Espantei-me. Cartwright levantou uma sobrancelha. — Pessoas fazem isso o tempo todo. — Faziam no século dezenove. — Uma época melhor e mais simples. Considerando o preço da gasolina, ele estava certo. O cavalo focinhava a mão de Sabina, apesar da cobra. — Cavalos não odeiam serpentes? Aquele nem parecia notar a presença tão próxima do ofídio. — Treinei Benjamin para trabalhar no espetáculo, e ele não pode ter medo dos outros animais que também participam. — O senhor é adestrador de cavalos. — A verdade tem de ser dita. Ninguém é melhor com cavalos do que eu. — Como assim? Ele hesitou por muito tempo antes de responder. — Tenho muita prática. — Cartwright mirou as montanhas. — Primeiro treinei os cavalos de tração, nossos Percheron, depois mudei para os cavalos do espetáculo, o que requer paciência e tempo. — O senhor adestra cavalos e Sabina encanta serpentes. — E Sabina é ótima com elas. 24
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— Elas? — Minha voz saiu esganiçada. — Por acaso uma cobra apenas seria suficiente para a exibição? Não pensei em números. Na minha opinião, uma seria mais do que suficiente para qualquer coisa. — Quantas são? — É difícil dizer. Sabina recolhe as cobras que encontra em todos os lugares onde acampamos. Ela pegou uma cascavel no Texas e outra no Novo México, Depois veio a píton do Mississippi. Como tinha crescido demais, o dono da casa quis se desfazer dela. — Todos são répteis perigosos. — Qual a graça em amansar os que são dóceis? — Ele se aproximou, invadindo meu espaço, mas eu não tive vontade de afastá-lo, como acontecera com Balthazar. A fragrância de Cartwright lembrava água sob a luz do sol, terra ensopada pela chuva e noite enluarada. Recuei para não ceder à vontade de chegar ainda mais perto dele. Olhei ao redor Ninguém pareceu notar minha súbita fraqueza diante de um estranho. Todos se preocupavam com o festival que se avizinhava. Eu deveria despedir-me. Em vez disso, perguntei: — Por que ela não fala? Cartwright fitou Sabina, que continuava alisando o cavalo. — Essa história só ela pode contar. — Mas como poderá contar se ela não fala? — perguntei, alto demais. Sabina me olhou e eu estremeci. Ela escutava, era evidente. — Perdoe-me — murmurei e ela sorriu antes de voltar-se para o cavalo. — Ela parou de falar de repente. Pensei em algum tipo de trauma e me senti solidária. — Foi depois de ela machucar a mão? — Não, Sabina nasceu sob o signo de Satanás. — Signo do quê? Minha voz novamente alterada fez Sabina esconder o rosto na crina do animal. O cavalo relinchou e bateu as patas, o olhou para mim como se soubesse que eu aborrecera a garota. — Os pais dela quiseram afogá-la, mas eu não permiti que o fizessem. — De que século os senhores vieram? — Os bárbaros estão por toda parte, apesar da nossa era moderna. Olhei-o com atenção e percebi que ele não parecia muito mais velho do que Sabina. Eu tinha ouvido histórias sobre reis ciganos que, na certa, eram tão fantasiosas quanto as que os rotulavam como ladrões de crianças. Ainda assim, Cartwright se comportava como se houvesse herdado o manto real. — Por que não a levam a um médico? — Ela falará na época certa. Só o tempo poderá curar Sabina. Eu conhecia algo semelhante. 25
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— Eu me referi à mão dela. Cartwright não respondeu e caminhou em direção ao cavalo. — Um especialista poderia ajudá-la — insisti. Ele parou, sem se virar. — Não temos seguro-saúde, prefeita, nem condições para pagar um médico. Nossa vida não é como a sua e nunca será. — Fez um sinal para Sabina subir no cavalo e, em um movimento ágil, montou atrás dela. — Obrigado por sua bondade — disse antes de sair a galope.
Passei o dia todo em meu escritório assinando documentos, escutando eleitores que precisavam ser acalmados e atendendo telefonemas que me deixaram com dor de cabeça. Joyce entrava e saía tantas vezes que eu nunca sabia se ela estava dentro ou fora. Nem tive oportunidade de perguntar-lhe para onde ia quando saiu. Também não tive tempo de almoçar e senti um alívio quando Grace apareceu na hora do jantar, até ela começar a falar. — Ouvi dizer que você e Malachi Cartwright estiveram conversando na Center Street esta manhã. — Quem foi o portador da notícia? — Larguei a caneta. — O que você acha? — Grace arqueou uma sobrancelha. — Balthazar — Eu não o tinha visto, mas o escritório do jornal tinha uma bela vista da rua principal. Grace sentou-se. — Ele é um canalha, não tenho a menor dúvida. Também ouvi dizer que você conversou com os dois perto de sua casa a noite passada. — Meu Deus, será que não se tem mais privacidade por aqui? — Você deve estar brincando. — Ela deu risada. Em cidades pequenas os boatos corriam e era difícil escapar impunemente do menor deslize. — Se veio me passar um sermão, Grace, desista, por favor. — Foi um dia difícil? — Como todos os outros. — Empurrei um grampo solto no coque e gemi ao arranhar o couro cabeludo. — Eu pretendia perguntar-lhe por que você aceitou o cargo. — Depois da morte de meu pai, foi o que me pareceu mais indicado. — Não é a melhor razão para uma mudança tão radical em sua vida. — Sei disso. — Você não é obrigada a continuar. Grace estava certa, mas para onde eu iria? Voltar para Atlanta? Jamais. — Balthazar ficaria feliz em assumir a prefeitura. — Nem morta permitirei isso.
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Embora houvesse passado a vida toda evitando o cargo, eu não o entregaria a Balthazar, nem que tivesse de ficar na cidade para sempre. — Era o que eu queria ouvir da prefeita. — Grace bateu as mãos nos joelhos e levantou-se. — Precisamos ir até o lago. — O que eles estarão fazendo agora? — Meu coração disparou de maneira absurda. — Não se anime, não falaremos com os ciganos. — Então, o que vamos fazer lá e por que terei de ir junto? — Ontem à noite um turista fez uma caminhada pela trilha do lago e deparou-se com um lobo. — Impossível — retruquei apesar de ter escutado o uivo do lobo. — Eu sei e foi o que eu disse ao rapaz de Topeka, mas ele não acreditou em mim. Não o culpo, diante do estrago feito em seu pescoço. Afastei-me da mesa com brusquidão e as rodinhas deslizaram até a parede. — Ele foi atacado? — Lobo, — Ela ergueu um dedo. — Turista. — Levantou outro e beijou os dois. — Não é um bom conjunto? — Onde está o homem? — No hospital, é claro. Ele levou pontos e está tomando antibiótico. Se não encontrarmos o lobo, o pobre homem terá de tomar vacina anti-rábica. — E como encontrar um lobo na imensidão das montanhas Blue Ridge? A cadeia montanhosa começava na Pensilvânia e estendia-se por Maryland, Virgínia, Carolina do Norte e do Sul até a Geórgia. Embora mais estreita ao norte, em nosso Estado, Blue Ridge atingia uma largura de noventa quilômetros em alguns trechos. — O turista não era nenhum tolo e carregava uma arma. Afirma que atirou na fera e acho que não será difícil seguir os rastros. Grace conseguiria. Ela era perita no assunto. — Mesmo assim, não entendo por que você precisa de mim. — Eu estava curiosa, embora nem pensasse em deixá-la ir sozinha. — Nós lemos apenas a primeira página de nosso contrato com os ciganos. Na segunda, eles se tornam donos do lago enquanto estiverem aqui. — Joyce! — berrei, com o olhar estreitado. — Poupe saliva. Ela saiu. Joyce nunca estava por perto quando eu precisava dela. — No que implica isso? — Eles terão direitos de proprietários durante o período de apresentações. Em outras palavras, estaremos invadindo área alheia se formos procurar o lobo. Não tenho tempo nem vontade para elaborar um mandado de busca. Eles foram claros. Não querem nenhum estranho perto das terras deles até a noite de estreia. — Muito suspeito. — Também acho. — Mesmo assim, não entendo por que você precisa de mim. 27
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— — — —
Cartwright parece ter certo interesse em você. Quer que eu lhe peça permissão para procurar? Isso ou distraí-lo enquanto faço uma busca. Será melhor elaborarmos um plano.
— Escutei algo estranho a noite passada — eu disse para Grace enquanto íamos em direção ao lago num carro da radiopatrulha sem emblemas. — E o que foi? — Um uivo e não era de coiote. Contei a Grace o que acontecera, omitindo, é claro, a forte atração que senti por Cartwright. Isso não era relevante. — Poderia ter sido um cão, talvez o mesmo animal que atacou o homem. — Como assim? — Além da inexistência de lobos nessas montanhas, não há nenhum caso documentado de lobos atacando homens a menos que estejam famintos, raivosos ou sejam o resultado de um cruzamento com cães. — Esteve lendo almanaques novamente, Grace? — Por acaso seu refinamento condena a leitura popular? — Por que diz isso? — Claire, você não foi feita para morar em Lake Bluff, mas sim na Quinta Avenida. Olhei pela janela. O sol do poente deixava o céu com listras vermelhas, rosadas e cor de laranja. — Não gosto da Quinta Avenida. — Não? — Bem, só se for para comprar sapatos. — Ah, você não existe — Grace ironizou. — Não sei por que isso é ruim. Grace me olhou com um misto de simpatia e compreensão. Imaginei se ela aprendera a ler pensamentos com a avó. Tolice. Isso era tão impossível quanto predizer o futuro ou finais felizes. Momentos depois, paramos próximo ao acampamento e saímos do carro. As carroças estavam vazias e não se via ninguém por perto. As fogueiras preparadas sugeriam um eventual retorno. — Fique aqui, alguém poderá voltar — Grace avisou antes de afastar-se. — Nesse caso, o que devo fazer? — Prenda-os, não demorarei. — Ela sumiu entre as árvores e em meio ao cair da noite. Para onde teriam ido todos? Quando voltariam? O que pensariam ao me encontrar aqui? O que fariam nesse caso? Comecei a perambular pelo acampamento. As carroças ostentavam em sua maioria pinturas da lua, das estrelas, do fogo, e eram verdadeiras obras de arte. Cheguei à 28
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última carroça do círculo. Além delas ficavam as jaulas dos animais, de onde os ocupantes podiam apreciar a floresta onde jamais voltariam a viver. O sol se escondera e a escuridão aumentava apesar de alguma luminosidade a oeste. Alcancei a carroça de animais mais próxima, curiosa e com receio. Eles carregariam leões, tigres e ursos? Nervosa, dei a volta para ver através das grades. A carroça estava vazia.
CAPÍTULO II
A outra também estava vazia. O que seria aquilo? Havia um espaço entre a segunda jaula e a terceira, igualmente desocupada. Dei um passo adiante e virei-me ao escutar o ruído de um mergulho no lago. Muitas coisas podiam fazer barulho na água. Infelizmente, o som forte indicava algo maior do que peixes e tartarugas. Talvez crocodilos... Espiei novamente as jaulas vazias. Os animais teriam escapado? Os ciganos os estariam caçando? Grace encontraria mais do que um lobo? Eu deveria ter trazido um rádio e uma arma. Atraída pela curiosidade, passei pelas tendas e parei no alto do declive arenoso que conduzia ao lago. Ou a lua ainda não se erguera ou não era visível por causa das árvores muito altas. A superfície do lago assemelhava-se a uma lâmina contínua de vidro escuro. De repente, uma ondulação começou no centro, o diâmetro das pequenas circunferências aumentando gradualmente em direção à margem. Em pânico, resisti à vontade de voltar correndo ao carro e fugir. Nada havia naquele lago que pudesse me ferir. A menos que fosse um monstro lacustre ou algum peixe enorme gerado em meio a dejetos radioativos. O primeiro, não passava de uma lenda. Quanto ao segundo, seria pouco provável numa área sem vestígios de radioatividade. Porém, sozinha num local estranho e à noite, não era difícil acreditar em monstros. O causador das ondulações voltou à superfície e nadou rumo à areia com movimentos precisos e suaves. O monstro chegou na parte rasa, e emergiu, pedacinho a pedacinho. A água escorreu pelos ombros largos do homem de peito liso e abdômen reto. Malachi Cartwright ergueu as mãos e tirou os cabelos dos olhos, movimentando os bíceps. 29
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Incapaz de falar ou de fazer um único movimento, eu apenas olhava, embasbacada. Havia muito tempo eu não via um homem desnudo e nunca vira ninguém parecido com ele. Cartwright ergueu o rosto e inspirou fundo a essência da noite. Fiquei parada no alto do declive, escondida nas sombras. Fascinada. A lua irrompeu por cima das árvores, cascateando na superfície da água como um sol. E quando atingiu Cartwright, ele suspirou, como se houvesse encontrado um oásis no meio do deserto, parecendo um deus prateado. Fiquei estática durante um tempo incomensurável enquanto ele se banhava, até ele sair da água e descobrir minha presença. Ele subiu a rampa iluminada pelo luar e me beijou. Eu não deveria ter ficado surpresa. O que esperar depois de ter sido flagrada... espionando? O correto teria sido voltar para o carro assim que o vira. Os lábios frios, úmidos e doces se apossaram dos meus. Gotículas de água caíam de seu corpo ao redor de nós como se estivéssemos sob uma chuva de primavera. Ele tirou os grampos do meu coque e entrelaçou os dedos nos cabelos soltos, segurando minha cabeça para trás para aprofundar o contato. Meu coração bateu em descompasso pelo receio, mas não pude me afastar, seduzida pelas possibilidades que se apresentavam. A língua dele encontrou a minha com força e intrepidez, o que aumentou a excitação e também o medo. Abafei o segundo e concentrei-me na primeira, enquanto decifrava os contornos de sua boca com a minha. Ele mordiscou-me o lábio, causando prazer e dor. O grito sufocado mesclou-se ao marulhar suave da água. Acariciou-me os ombros e as costas antes de apertar-me de encontro ao peito. Minha blusa umedeceu-se, esfriou e meus mamilos enrijeceram. O lago era alimentado por um regato subterrâneo que descia da montanha e por isso, mesmo no verão, a água era quase gelada. Pela ereção que me pressionava, Cartwright não devia ter problemas com a temperatura da água. Ele beijou meu queixo e pescoço. Enfiou uma das mãos por baixo da blusa e acariciou meu seio, roçando um dos polegares sobre o mamilo, antes de abaixá-la, desnudando-me até a cintura. Apavorada, empurrei-o pelo peito e acertei-lhe a canela. Cartwright me soltou e eu caí sentada na areia. Meu queixo ardia pela abrasão da barba e meus olhos lacrimejaram de vergonha e pavor. Senti frio por causa da pele úmida. Olhei para baixo e vi meu seio exposto e brilhante ao luar. Puxei rapidamente a blusa para cima, abracei-me e rezei para não chorar. — Sinto muito — falei, apesar de meu analista ter dito que eu não deveria desculpar-me naquelas circunstâncias.
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Cartwright mirou o lago, e a lua cobriu de prata o físico bronzeado que parecia uma estátua de alabastro, embora eu nunca houvesse visto uma escultura com uma ereção daquele porte. Ele não fez menção de se cobrir, mas também não havia roupas nem toalha por perto. Na certa, ele não imaginara a presença de invasores. — Se não foi por isso, prefeita, por que veio até aqui? — indagou, irritado. — Eu... eu não... — Estremeci. — Claire, eu não pretendia fazer-lhe nenhum mal. Pela primeira vez, ele dissera meu nome, e eu não pude sentir prazer em escutálo, nem mesmo desejar novamente o toque da língua dele. O horror estava de volta e eu não sabia como vencê-lo. Levantei, aflita para me afastar. — Espere. — Ele deu um passo adiante. Saí correndo, mas ele agarrou meu braço e virou-me. Tropecei e apoiei-me no peito suave, liso e quente. Tirei as mãos como se eu as houvesse queimado. Ele me segurou com força e fitou minha boca. Prendi a respiração com medo de que ele me beijasse. Ou de que não me beijasse. — Não. — Não devo beijá-la? — murmurou. — Ou não devo ousar tocá-la? Creio que pessoas de alta classe não se misturam com gente da minha laia. A prefeita e o adestrador cigano de cavalos. Sua família não ficaria nem um pouco satisfeita com isso. — Não tenho família. — Arrependi-me de imediato pela confissão. Ele poderia cometer um estupro, me matar e me jogar no lago. E ninguém se importaria com isso. — Tire as mãos dela, Cartwright. A não ser Grace. — Levante-as devagar. Cartwright levantou os braços e nivelou as palmas com os ombros. — Quer que eu alcance o céu, xerife? — Saia daí, Claire. Fui para o lado e virei-me. Grace estava com a arma apontada para ele. — Para longe, Claire — ela ordenou e eu me aproximei. — Pensei que você tivesse mais juízo. Era o que eu também supunha. No futuro, fugiria quando um homem saísse despido do lago e jamais o deixaria beijar-me. — Não foi culpa dele — gaguejei. — O quê não foi? — Grace não abaixou a arma. — Ele me beijou e eu... Ele arqueou uma sobrancelha. — Eu permiti.
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— Oh, não, que horror. Então você disse pare e ele não obedeceu. — Grace abaixou a arma e o membro dele imitou-a. — Inaceitável! — Não. — É aceitável? — Não. — Claire... — Grace estava irritada. — Eu quis dizer que não pedi para ele parar. Eu estava... Fascinada. Seduzida. Aterrorizada. O último sentimento era comum, os dois primeiros, uma novidade que eu não teria a chance de tomar a experimentar depois daquele fiasco. Ainda bem. Como Cartwright dissera. A prefeita e o adestrador de cavalos cigano! — Posso abaixar as mãos? — ele perguntou. Grace fitou-me e eu anuí. Ela deu de ombros e embainhou o revólver. — Como foi que perdeu as roupas, Cartwrigbt? — Pode me chamar de Malachi, já que nos conhecemos bem agora. — Ele desceu o declive, pegou uma toalha atrás de uma pedra e enrolou-a na cintura com um movimento brusco. — Eu vim sem roupas para tomar banho e não esperava visitas. — Onde está o restante do seu grupo? Ele apontou e seguimos a linha longa de seu braço despido. Do outro lado do lago escuro como breu, formas humanas dançavam iluminadas por chamas. Elas não se encontravam ali antes. — O que estão fazendo? — perguntei. — Comungando com a natureza. Grace o olhou de cima a baixo. — Isso tem de ser feito sem roupas? Ele deu de ombros. — E de que outra maneira se pode fazer isso? — Você trouxe uma caravana de ciganos para dançar sem roupa ao redor do fogo comunal? — E qual o problema? — Bem... Temos leis a respeito disso. — Não nos importamos com leis. — É mesmo? E por quê? Cartwright fitou o céu onde as estrelas começavam a brilhar. — Em 1530, a Inglaterra aprovou uma lei que tomava ilegal a comunidade cigana. Nossa existência passou a ser um crime por mais de duzentos e cinquenta anos até a lei ser revogada, em 1784. — Ora, isso é o mesmo que tomar ilegal quem tiver cabelos escuros, por exemplo — argumentei. — Os ingleses não foram os únicos. Os nazistas afirmavam que os ciganos não eram humanos, e tentaram nos exterminar junto com os judeus. Mais de quatro mil ciganos morreram nos campos de concentração. Apesar de não ser perita nos estudos da Segunda Guerra Mundial, eu sabia que Hitler arrebanhara não só os judeus nos campos. Freiras, padres, deficientes mentais
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e os que discordavam dele eram atirados num trem e levados a postos avançados do inferno. — Por isso, xerife — Cartwright continuou —, não damos muita importância às leis. —Vocês praticam essa dança todas as noites? — Grace fitou-o com menos suspeita e um pouco mais de compaixão. — Não, Amanhã à noite será nossa estreia, por isso estamos pedindo proteção e sucesso aos deuses. — Quais deuses? — Grace sempre fora fascinada por cultos antigos. — Bem, somos católicos e batizados, xerife. — Aposto que a Igreja adora quando vocês dançam pelados — ela comentou, irônica. — Não creio que ela saiba. A punição de tais práticas com a morte na fogueira era coisa do passado, embora a excomunhão ainda existisse. — Esse é apenas um ritual para nossos ancestrais. Algumas pessoas colocam flores nos túmulos, outras comem peru no dia de Ação de Graças e há aquelas que cortam árvores que usam na decoração de suas casas. Nós dançamos em honra de Alako, deus da lua e defensor dos ciganos, aquele que leva nossas almas quando morremos. — E o fogo? — Olhei para as imagens da lua, das estrelas e das chamas que decoravam as carroças, — O fogo purifica, cura e protege. O fogo pune o mal. A segunda parte lembrou-me da Inquisição, outra barbárie da História. Gostei de imaginar os inquisidores dançando de pés descalços no Inferno junto com os nazistas. Grace segurou o punho da arma. — Os ciganos têm castigado todos os maldosos com o fogo? — Os rom não são animais. Costumamos deixar isso para nossos perseguidores. Vai se tornar um deles, xerife? — Não. Não vejo muitos problemas em relação à nudez, mas não se pode andar sem roupas por aí ou as pessoas poderão estranhar. — Por esse motivo redigimos o contrato da forma como ele foi feito. Recordei-me da cláusula estranha que pretendia manter os habitantes da cidade afastados do acampamento até a noite da estreia. Não podia imaginar que se tratasse de um ritual pagão de lua e fogo. — Nós atuaremos a partir de amanhã — ele repetiu. — Quando a lua cheia vier... — interrompeu-se por alguns instantes e franziu o cenho —... Iremos embora. Tive a sensação de que ele estivera prestes a dizer outra coisa, mas o quê? Sacrificaremos uma galinha? Uma cabra? Uma criança? Engasguei e Cartwright fitou-me intensamente. Não suportei e desviei o olhar. E vi as jaulas vazias, o que me lembrou do que eu estava fazendo antes de ele sair da água. 33
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— Os animais também são levados para o outro lado? — Não, por quê? — As gaiolas estão vazias. Ele murmurou algumas palavras em romani e afastou-se. — O que eles guardam ali? — Grace sussurrou. — Não posso imaginar. Cartwright sumiu atrás de uma carroça, ao mesmo tempo em que um grito pavoroso ecoou pela noite. Tropecei ao correr ao encontro dele, que estava na frente da jaula... Não mais vazia. — Mary gosta de descansar no fundo do cercado, e tenho certeza de que não a viu. Um puma grande, que não fazia jus ao nome, deslizou pelas grades. — Por que mantém um puma aqui? Por acaso perdeu o juízo? — Não que eu saiba — respondeu, sem parecer se importar com a pergunta de Grace. As grades das jaulas permitiam que se visse, se sentisse o cheiro e se escutasse os urros dos animais, mas não havia largura para que alguém mais afoito enfiasse a mão entre as barras e a perdesse. As outras carroças também já não estavam vazias. Na seguinte, deparei-me com um urso cinzento, que fixou em mim os olhos escuros. Esticou o pescoço, inclinou a cabeçorra de lado e rugiu. Grace apareceu ao meu lado de imediato, empunhando o revólver, e fitou o animal durante alguns segundos antes de falar com Cartwright. — Você deve estar brincando comigo. — Xerife, nós atuamos com animais. — Ele abriu os braços e a toalha deslizou para baixo, mas não caiu. — Portanto, precisamos deles. — Um macaco, uma cabra ou um elefante. Mas um puma e um urso? São perigosos demais. — Nós os criamos desde o nascimento. — Olhou para o urso que ainda rugia. — Eles são nossa família. — Bem, seu tio parece um pouco irritado. Não poderia mandá-lo calar a boca? — O revólver, xerife. — Cartwright apontou a arma. — Ele não gosta deles. Grace olhou para a mão e guardou a arma no coldre com impaciência, mas não prendeu a tira de couro no cabo. — Ouvi dizer que não trabalha com lobos. — Grace foi até o próximo cercado. Cartwright fitou-me com o cenho franzido antes de segui-la. . — Isso era segredo? — indaguei. Ele me ignorou. — Como expliquei à prefeita, lobos causam problemas. Era evidente que um puma e um urso não poderiam passear na floresta com os ciganos e depois aparecer miraculosamente antes que viéssemos vê-los. Mas também era impossível eu não ter notado a presença na jaula de um animal do tamanho de um urso daqueles. O conflito entre o que podia e o que não podia ser deixou-me zonza. 34
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— Explique-me por que lobos são problemáticos. — Grace olhava a jaula desocupada. — Eles assustam os cavalos — apressei-me a responder. — E os pumas não? — Mantemos os predadores afastados deles — Cartwright retrucou. — Certo, mas eles acabam se encontrando vez por outra — Grace deduziu. — Não nego que possa haver incidentes, mas meus cavalos são muito bem treinados. — Se eles toleram o cheiro de um puma e de um urso, por que não suportariam um lobo? — Lobos são animais de matilha e não vivem em paz quando estão sozinhos. — São mais perigosos do que um puma? — Depende do lobo, xerife. Grace disse uma imprecação e pôs-se a examinar as jaulas. — O que foi que eu disse? Não mencionei o turista que fora atacado pelo lobo, pois tínhamos vindo até ali secretamente à procura dele. — Grace irrita-se com facilidade. — Fui atrás dela. Placas de latão identificavam cada animal com nomes carinhosos apropriados a cachorrinhos e que achei descabidos. — Três macacos, duas zebras e um camelo — Grace disse. — Cinco corvos, uma coruja, uma águia e um falcão — acrescentei. — Haja ração para pássaros. — O que estava na jaula vazia? — Grace perguntou a Cartwright. — Nada. — Ele pareceu confuso. — Por isso está vazia. Grace esfregou a testa, impaciente. — Quero dizer, antes de ela estar vazia. — Nada — ele repetiu. — Precisamos de um espaço vazio quando limpamos os cercados. A explicação fazia sentido e talvez me desapontasse. Ótimo. Eu preferia que Cartwright não fosse confiável. Assim eu teria bons motivos para me afastar e evitar a forte atração que sentia por ele. Isso não acontecia desde... — Vamos, Grace! Ela espantou-se. — Está certo. Boa noite, Cartwright. — Virou-se e saiu a passos largos na escuridão. Acenei com a mão — como uma criança — em despedida e fui atrás de Grace. E fiquei desapontada por ele ter-me deixado ir. Não poderia culpá-lo. Era provável que Cartwright me considerasse maluca, mas não era eu quem mantinha animais selvagens ao meu lado enquanto dormia.
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Para ser justa, não creio que ele pudesse entender minha reação, mas também duvidava que ele houvesse sido enganado por alguém em quem confiava.
— Você descobriu alguma coisa? — perguntei dentro da viatura, a caminho da cidade. — Ah, sim, você está derretida por ele. — Nada disso. Você chegou atrasada para ver isso. — Quem disse que não os observava antes de intervir? Estreitei os olhos e ela riu. — Sossegue, Claire, eu não vi nada, mas não é preciso ser detetive para descobrir o que aconteceu. Não apenas a ereção de Cartwright nos denunciou, mas também meus lábios intumescidos, os cabelos soltos e a blusa amarrotada. — Você disse para eu o distrair. — Era para conversar com ele ou algo parecido. — Ele não parecia disposto a tagarelar. — Posso apostar que não. — Grace olhou-me de viés e concentrou-se novamente na estrada escura. — Encontrei uma coisa. — Rastros? — Nenhum que eu visse. O que significava que não havia nenhum. — Então, o que é? — Eu lhe mostrarei lá dentro. Eu nem havia notado que ela se aproximara da minha casa por outro trajeto. Precisava ficar mais atenta ao que me rodeava. Saímos do carro e Grace esperou que eu tirasse as chaves da bolsa e abrisse a porta. Entrei e acendi todas as luzes conforme me movia pela casa. Oprah assustou-me com um miado e desceu correndo a escada, como não fazia havia anos. Enroscou-se nos tornozelos de Grace e ronronou. — Olá, menina! Ainda está viva? — Ela abaixou-se e pegou a gata no colo. As duas sempre tinham se gostado. Quando Grace dormia na minha casa, Oprah costumava segui-la por toda parte e se aconchegar na cama com ela. Se eu não adorasse Grace, teria ficado com ciúmes. Joguei as chaves na mesa da sala e Oprah assustou-se. Dois olhos verdes me encararam. — Você quer parar de alisar minha gata e me mostrar o que encontrou? Grace esfregou o rosto na cabeça malhada de Oprah e deixou-a no chão, mas a gata não se afastou. — Não vou tomar um drinque primeiro? — Grace perguntou. — Um drinque? — Vinho, cerveja, uísque, qualquer coisa. — Ela consultou o relógio. — Há uma hora estou oficialmente fora de serviço. 36
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Dei de ombros e fui para a cozinha. Assim que pus ração na tigela de Oprah, ela saiu de perto de Grace. Abri a geladeira. — Merlot, Sauvignon Blanc e cerveja. — Tanto faz. — Grace encostou-se no balão e mirou ao redor. Desde criança, ela tinha um olhar atento e investigativo que deixava as pessoas nervosas. Exceto eu. Peguei a garrafa de Merlot e duas taças. — Quer sentar-se no deque? — Com prazer. — Ela abriu as portas e seguiu-me para o espaço amplo de madeira branca rodeada pela floresta. Acendi as mechas das luminárias de citronela que, teoricamente, afastavam os mosquitos, servi o vinho para nós duas e entreguei uma taça para ela, que logo tomou um gole. — Bem melhor do que a porcaria que bebíamos na escola. — Ergueu um brinde. — Ao nosso paladar atual, bem mais refinado. Imitei o gesto e tomei um gole com satisfação. Grace deixou a taça na mesa lateral e tirou algo do bolso. Estreitei os olhos e me pareceu ser um pedaço de casca de árvore. Ela tirou uma lanterna do cinturão e iluminou o pedaço de madeira. Recuei, impressionada. Uma suástica vermelha estava impressa na superfície. — Santo Deus — sussurrei. — Acha que pode ser sangue? — Espero que não. — Onde encontrou isso? — Debaixo da macieira onde nosso turista diz que foi atacado. — Estava ali, sem mais nem menos? — Sim. — Ela mordeu o lábio. — E não vi sangue em lugar nenhum. — Então, o rapaz não acertou o lobo. — Creio que não. — De cenho franzido, Grace fitou o pedaço de madeira. — E o que mais? — insisti. — As marcas eram estranhas. Encontrei os rastros do rapaz e sinais que podem ser de ura cachorro, embora grande. E mais um conjunto de pegadas humanas. — Esquisito. — Muito, principalmente porque os vestígios significativos são humanos. — Não entendo. — Nem eu. Tanto o turista quanto o misterioso visitante saíram de lá, mas e o cachorro? — Para onde ele foi? — O único outro caminho é para cima. — Lobos sobem em árvores? — Nunca ouvi falar nisso — Grace garantiu. — O turista pode ter mentido sobre o lobo? — É possível, mas como explicar o ferimento grave no pescoço? 37
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— Não sei. Você vai falar com ele de novo? — Amanhã logo cedo. — E isso? — Apontei o pequeno pedaço de madeira. — Eu também perguntarei a ele sobre isso. — Vai pedir que ele saia da cidade? Grace ergueu as sobrancelhas. — Por que eu faria isso? — Se ele pertencer a alguma facção neonazista, talvez esteja aqui por causa dos ciganos. Ele estava perambulando muito próximo do acampamento deles. — É verdade. Nós duas bebemos o vinho e eu servi mais uma rodada. — Só me faltavam nazistas. Já tenho problemas suficientes com os membros da Ku Klux Klan. — Desde quando eles a perturbam? — Claire, estamos na Geórgia. Eles sempre causam distúrbios por aqui. — Do que exatamente você está falando? — Da droga de sempre, Cruzes flamejantes nos gramados, ovos atirados nas janelas, mensagens desprezíveis. — Aqui? Grace esfregou as têmporas. — Isso mesmo. Esse tipo de aborrecimento vem se prolongando há décadas. — Não quando meu pai era prefeito. — Tanto nessa época quanto no tempo em que meu pai era xerife. Tínhamos tantas cruzes em nosso jardim que muitas vezes a grama sumia. — Eu nunca soube disso — espantei-me. — Meu pai sabia camuflar os inconvenientes. Nunca pensou em por que ele vivia plantando arbustos floridos no meio do jardim? — Supus que fosse um costume ckerokee. — Em parte era. — Grace me encarou. — A Klan não morria de amores pelo xerife de descendência indígena, ou talvez a questão mais contundente fosse a parte relativa à África. E a organização certamente não aprovava a grande amizade da filha do prefeito, branca como um lírio, e da filha não-tão-branca da autoridade policial da cidade. Tomei mais um gole de vinho. Como eu nunca desconfiara disso? E quantas coisas mais eu ignorava a respeito do que acontecia na cidade? Era preciso inteirar-me dos fatos. — E ultimamente? — Há tempos não temos uma cruz ardendo por aqui. — Isso não é garantia. — Os tempos têm sido melhores. Por isso — Grace girou o pedaço de madeira com a suástica inscrita —, esta porcaria é tão desagradável. A Klan também não gosta de judeus. 38
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— E de quem eles gostam? — De brancos. De protestantes. E de quem se relaciona com brancos protestantes. — Mas que enfadonho. Bem, considerando as vestimentas, sempre imaginei que não tivessem muita imaginação. — Nem estilo. — Muito menos cérebro. — Pedi para examinar a peça e passei a ponta do dedo na lasca de madeira. — Isso parece um talismã, um amuleto ou talvez um feitiço. Farei uma verificação. Antes de eu entrar na atividade de produção, trabalhei algum tempo como pesquisadora e não me saí assim tão mal. — Que madeira é essa? — Tenho a impressão de que é da macieira. Se não fosse pelo símbolo, pensaria que a lasca se soltou sozinha. Há uma mancha negra no tronco, o que me faz supor que a árvore deve ter sido atingida por um raio e conseguiu sobreviver. Muitas vezes a natureza é surpreendente. Grace guardou a peça no bolso e segurou novamente a taça de vinho. — Ficar aqui é muito agradável — ela afirmou. — É, sim. Eu senti muito a sua falta. Grace contraiu os músculos da face. — Você tem uma maneira singular de demonstrar isso. — O que está querendo dizer? — Amigos não vão embora da cidade sem se despedir. Grandes amigos não deixam de telefonar e escrevem mais do que um cartão de Natal. — Eu sei, me perdoe. Mas esta cidade, meu pai, o povo... — Inspirei fundo ao lembrar de como eu me sentia asfixiada em Lake Bluff. — Eu queria começar uma nova vida. — E eu fazia parte da velha. E então, o que mudou? — Eu. O mundo despencou entre nós, uma ponte para um segredo que eu não pretendia compartilhar. — O que aconteceu em Atlanta, Claire? O que a fez voltar para se esconder? — Não acredito que ser prefeita seja uma boa maneira de se esconder. — Você sabe do que eu estou falando. Claro. Somente Grace poderia saber que alguma coisa se modificara em minha vida, e apenas ela teria coragem de perguntar. E era a única pessoa com quem eu poderia desabafar. — Confiei em alguém que me magoou profundamente. — Bem-vinda ao clube — ela murmurou. Eu deveria ter imaginado o quanto minha partida a fizera sofrer. Grace era uma pessoa introvertida e difícil, e eu sempre fui sua melhor e única amiga. Também duvidava que ela tivesse tido muitos namorados.
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Dormir com a xerife em uma terra machista como a nossa provavelmente seria desconcertante. Ter uma prefeita e uma autoridade policial feminina em Lake Bluff era um grande progresso, mas isso não significava que os rapazes da cidade gostariam de ser vistos ao nosso lado. Essa era uma das razões porque eu resolvi voltar para casa. Não teria de me preocupar com o sexo oposto. Ou melhor, não tinha até Malachi Cartwright aparecer. — Verifiquei os relatórios policiais — Grace afirmou com calma. Eu a encarei com o coração em descompasso. Pensei que ela estivesse se referindo a Atlanta, o que era um absurdo. Grace nada encontraria. Depois, entendi que falava de Cartwright e seu colorido bando de ciganos. — O que descobriu? — Nada de anormal em cidades onde se realizam festivais como os nossos e onde muitos estranhos aparecem. — Ela tomou um gole de vinho. — Brigas, assaltos e estranhos aparecimentos noturnos. — Como lobos? — Alguns. Além de grandes morcegos, gatos selvagens, zumbis, fantasmas e até um dragão. — Você não considera nada disso anormal? — Não depois de tanta bebedeira e festança. — Entendo. — Aproveitei também para verificar os relatórios policiais em Atlanta. Meu coração disparou novamente. — Os ciganos estiveram em Atlanta? — Não, mas você esteve. — Você acha que fui presa? — Eu esperava que tivesse prestado queixa quanto ao que aconteceu com você. Neguei com um gesto de cabeça. Eu não podia. — Quando disse que foi magoada, não se referiu aos seus sentimentos. — Por que não? — Minha voz tremia e eu não queria falar sobre o assunto. — Eu a conheço. Você pretendia conquistar Atlanta e o mundo. Agora está de volta e não pretende sair mais daqui. — Eu gosto de Lake Bluff. Grace fitou-me com ceticismo e aguardou. Sentada na varanda da casa de minha infância, com a floresta diante de mim e ao lado de minha melhor amiga, fiz a única coisa que poderia apressar minha cura. Falei sobre o assunto. — Eu namorei um homem muito bonito que trabalhava no gabinete do governador. — Os bonitos são sinônimos de encrenca. Ou se mostram enfadonhos ou não são o que esperamos deles. Onde ele se encaixa? — No segundo caso. — Foi o que imaginei. 40
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— Saímos durante uns três ou quatro meses. Jantar, cinema, festas de cunho político. Grace fechou os olhos e pendeu a cabeça para trás. — Estou roncando. Minha risada me surpreendeu. Normalmente, quando eu pensava sobre aquela noite, ficava paralisada de medo e desgosto. E nunca ria. — Eu o convidei para tomar um drinque em meu apartamento. Entramos, fechei a porta e nem cheguei a perguntar o que ele queria. Meu peito doía e eu não conseguia respirar. Inspirei fundo e tive de parar no meio. — Calma. — Grace usou o tom profissional que certamente empregava com as vítimas de trauma. — Não há muito para contar Ele pensou que eu o tinha convidado por outros motivos. — O que não era verdade. — Não era. — Tentei lembrar-me do que eu pensara e sentira. Talvez eu pretendesse fazer sexo com ele e, supondo tal coisa, ele houvesse se precipitado. Não conseguia me lembrar dos meus sentimentos por Josh Logan antes daquela noite em meu apartamento. — Continue, Claire, pode confiar em mim. Essa era uma verdade. Grace poderia ter-se aborrecido porque eu havia partido, mas ela gostava de mim e faria qualquer coisa para me ajudar. Eu jamais tive outra amiga como ela. — Ele... — engasguei. Grace bateu nas minhas costas e pôs o vinho em minha mão. — Beba. Tomei um gole quando parei de tossir, inspirei fundo e fiz nova tentativa. — Tivemos relações e ele foi embora. — Não foi o que aconteceu. — Você estava lá? — Você não estaria trêmula, não engasgaria nem gaguejaria se apenas isso houvesse acontecido. — Não foi nada agradável. — Ele a estuprou. Eu me assustei e derrubei vinho. Gotas púrpuras escorreram por meus dedos e caíram no piso. Pensei na mãe da Branca de Neve picando o dedo enquanto costurava e gotas de sangue manchando o tecido. Imagens estranhas surgiam quando eu tentava negar a verdade. — Ele era meu... Namorado e eu o convidei para entrar. — Para tomar um drinque e não para fazer sexo. Você explicou isso para ele? — Creio que sim, tudo foi muito confuso. — Você lutou? 41
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— Um pouco. — Eu tive de usar blusas de mangas compridas durante o verão abrasador de Atlanta até desaparecerem os hematomas de meus braços. — Obviamente, não o suficiente. — Não foi sua culpa. Intimamente eu sabia que era verdade, mas não conseguia afastar a ideia de que tinha passado uma falsa impressão a Josh, convidando-o para entrar. Eu gostava dele e sentia atração por ele. Acabaríamos fazendo sexo, Então, qual era o problema? Deus, eu soava como todas as mulheres que tinham sido estupradas por pessoas com quem estivessem saindo. Odiei-me por isso. — Por que você não prestou queixa? — Eu não podia fazer isso. — Claro que podia. Você não tomou nenhuma atitude para que ele não fizesse isso com nenhuma outra? — Ele não é desses. — Pois me parece que é exatamente um desses. — Ele estava prestes a ser promovido e havia boatos de que poderia ser até o próximo governador. — Suspirei. — Ninguém acreditaria em mim, e certamente me tomariam por uma garota desprezada que inventou uma história em busca de alguns minutos de fama. — Você não pensou que o fato poderia prejudicá-la mais tarde? — Como? Nunca contei isso para ninguém, exceto para o terapeuta e agora para você. A não ser que pretenda publicar isso nos jornais, Grace. — Não foi a um médico? — Por causa de alguns hematomas? — Doenças e gravidez, sua idiota. — Obrigada, isso ajuda muito. Ele usou preservativo. — Então, foi tudo planejado. — Homens carregam preservativos na carteira. — O dele estava no local adequado, e não na carteira. — Chega, não quero falar mais nisso. Prefiro esquecer. — Por isso você voltou correndo para casa. — Não corri coisa nenhuma. Meu pai morreu, Lake Bluff precisava de um prefeito e eu aceitei o cargo. — Sua cabeça está cheia de abobrinhas. — Obrigada, seu auxilio é precioso. — Claire, você não esqueceu. Eu vi como estava apavorada esta noite com Cartwright. — Grace tocou o cabo da arma. — Ele tentou fazer mais do que beijá-la? — Não. — Cartwright não serve para você. Homens como ele têm uma mulher em cada cidade. Aproveitam a semana, se divertem e vão embora. Para mim, parecia bom. Nenhum compromisso. Não ter de dizer a verdade, e nada mais que a verdade. Apenas um pouco de diversão e nunca mais ver ou ouvir falar do camarada. Será que eu conseguiria um acordo como esse mais do que uma vez ao ano? 42
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bom.
— Não tem mais nada a me contar sobre Atlanta? Sacudi a cabeça. Eu havia falado muito com o psicólogo e nem sempre fora muito
Grace levantou-se, pegou a taça e a garrafa. — Preciso ir. Ela estava desapontada e eu não podia culpá-la. Grace não apenas teria prendido Josh, ela o teria emasculado. Levantei, peguei a outra taça e fui para dentro. Deixamos tudo em cima do balcão e Grace tocou meu braço. — Se quiser falar, estarei sempre à sua disposição. Se quiser dar queixa, eu a ajudarei a preencher o boletim. — É um pouco tarde para isso. Ela foi até a porta da frente e me olhou por sobre o ombro. — Nunca é tarde demais. — Eu quero apenas esquecer. — Parece que isso não está funcionando muito bem. — Grace saiu e fechou a porta. Ela estava certa. Aquela noite passara a ser um marco divisório. Eu não tinha esquecido. O que acontecera com Josh faria parte para sempre de uma transformação. Fora uma experiência que havia alterado minha vida. Voltei para a cozinha para ligar a lava-louças e fechar a garrafa de vinho quando uma batida leve me fez levantar a cabeça. Um homem espiava pelas portas de vidro. Deixei cair as taças, que se despedaçaram a meus pés. Oprah deu um miado agudo e subiu a escada correndo. O homem abriu a porta e entrou. — Está tudo bem? — Malachi Cartwright ajoelhou-se e começou a recolher os pedaços maiores. — O que diabos está fazendo aqui? Quando ele inclinou a cabeça, os cabelos caíram de lado e o brinco brilhou. Com ele ajoelhado aos meus pés, senti-me a própria Cinderela. Uma lástima que a vida não fosse um conto de fadas. Cartwright se levantou devagar, assim como tinha saído da água. Uma pena que estivesse vestido. O pensamento incomum para mim fez com que eu tivesse vontade de rir. Por que eu desejava aquele homem? Será que justamente porque ele partiria? Meu analista recomendara que eu tivesse relações com alguém em quem eu confiasse. Eu não confiava em Cartwright, nem mesmo o conhecia. A recíproca era verdadeira. O anonimato e a hipótese de que nada além de sexo aconteceria entre nós, era uma ideia irresistível. — Vim até aqui para ver se tudo estava em ordem. Não pude deixar de notar que estava transtornada. Ele não podia imaginar o quanto. 43
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A proximidade de Cartwright aqueceu meu corpo e eu senti a fragrância da água fria do lago e do brilho do sol. O contraste era tentador e senti as pernas amolecerem. Cartwright recuou e olhou ao redor. — Lata de lixo? — Ele levantou as mãos cheias de cacos de vidro. — Ah, desculpe. Embaixo da pia. — Abri o armário e tirei a lixeira. — Eu a guardo aí para a gata não entrar. Fui buscar uma vassoura, varri e abaixe-me para juntar tudo na pá. Um par de pernas vestidas de negro apareceu na linha de visão. Levantei a cabeça e o vi olhar para baixo. Tive de me esforçar para não apertar meu rosto em sua coxa e mordê-lo por cima da calça. Levantei-me com energia desnecessária e os fragmentos de vidro chocalharam na pá. Rapidamente despejei tudo na lixeira e, quando me virei, ele estava tão perto que dei um pulo, batendo as costas no balcão. Ele tirou de minhas mãos a pá e a vassoura e deixou-as de lado. — Claire — murmurou — não tenha medo. — Não... Não estou com medo. Ele inclinou-se para a frente, passou a ponta do nariz no meu pescoço, e a respiração dele me fez estremecer. Ele beijou meu queixo e atrás da orelha. — Está sim — sussurrou. Ele estava muito próximo e, no entanto, não me tocava com as mãos. Eu me estirei para frente, querendo-o, desejando-o. Sua masculinidade roçou-me o ventre com tanta suavidade que nem tive certeza se houve um toque. Ele mordiscou meu pescoço e sufoquei um grito de prazer. Eu precisava agarrar-lhe a cabeça, puxá-la até meus seios, deixar que os sugasse, que me levantasse sobre o balcão e que me possuísse até ambos gritarmos. Senhor! De onde esses pensamentos tinham vindo? Mesmo antes eu nunca me despia, a não ser no quarto. E gritar? Sexo não era tudo isso. — Eu a desejo mais do que a qualquer outra há... séculos. — As palavras dele acariciaram minha pele. — Mas vamos levar isso no seu ritmo. — O quê? — Alguns homens são animais. Eu não sou. Eu o empurrei pelo peito e ele se afastou. Fui até as portas de vidro e espiei o lado de fora. As velas de citronela ainda brilhavam, mas com luz insuficiente para iluminar a mata que rodeava o deque. — Você esteve na floresta. — Sim. Virei-me de maneira abrupta. — Você estava escutando? — Eu não pretendia. — Um cavalheiro não escuta a conversa dos outros. — Não existem mais cavalheiros. 44
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— Saia! Cartwright aproximou-se e eu arregalei os olhos. Pensei que ele fosse me agarrar e me agredir. Afinal, aquilo já tinha me acontecido antes. Foi quando me dei conta de que ele apenas queria passar e eu estava no caminho. Desviando-me, tropecei nas próprias pernas e fui amparada com gentileza. — Jamais deveria ter sido... — Ele parou e inspirou antes de tentar de novo. — Eu não teria sido tão impetuoso com você mais cedo se eu soubesse. — Não sou feita de vidro. — É sim. De vidro modelado no fogo, forte o suficiente para protegê-la da chuva e do vento — ele bateu na janela com os nós dos dedos — mas também frágil para despedaçar-se caso não seja tratada com delicadeza. Ele ia abrir a porta, mas eu não queria que ele partisse. Segurei-lhe o pulso e ele me olhou. O desejo nos envolveu, estranho e forte. — O fogo é sagrado para os rom. — Ele fitou meus cabelos vermelhos. — Pensei que fosse usado para punir o mal. — Isso também. Meus ancestrais adoravam o fogo. — Ele passou a mão em minha face. — E também a lua. Era impossível desviar a vista daqueles olhos negros que ocultavam tantos segredos. E eu estava cansada de ficar sozinha, de ter medo, de não querer ninguém. Eu o desejava. E o beijei. A boca era quente, doce e suave. Ele permitiu que eu liderasse, e gostei disso. Mordisquei os lábios dele, acariciei os contornos com minha língua e ele entreabriu a boca. Fiquei um pouco tensa, esperando a invasão que não veio. Com paciência, ele esperou, deixando-me beijá-lo, mal correspondendo até que aquilo não fosse mais suficiente e eu precisasse saboreá-lo. Imagens se sucederam diante de meus olhos fechados. Água fria de um regato correndo sob o sol escaldante de verão. Flocos de neve caindo sobre um campo de flores silvestres púrpuras. Eu não era uma pessoa dada a belas palavras ou a lindos sonhos, mas beijá-lo despertou muitas ideias estranhas. Fogo sob a lua. Uma tempestade depois de um dia abrasante de agosto. O vapor subindo e passando por meu rosto. Eu me afastei e, trêmula, fitei-o com olhos arregalados. E sem o medo que me acompanhava havia meses. — Eu jamais encostarei em você, a menos que me peça — afirmou com voz quase inaudível. — Talvez você chegue a implorar. Era sedutora a ideia de dizer-lhe o que eu queria, mas... — Pode confiar em mim, Claire. Como ele podia adivinhar o que eu pensava? — Você não acha que sou uma pessoa confiável? Eu o encarei. — Eu não o conheço, 45
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— Você poderia me amarrar. — Ele se inclinou para a frente e eu fiquei tensa, mas ele apenas beijou-me na testa. — Eu não poderia tocá-la, a menos que me libertasse. — Talvez mais tarde — respondi e ele riu. — Preciso ir — Cartwright falou, mas não foi. Estávamos tão próximos que quase nos tocávamos cada vez que ele respirava. — Você ficará aqui apenas uma semana. — Depois de seu festival, iremos para outro na Pensilvânia. Por que diz isso? — Não sei se serei capaz... — Inspirei fundo. — Em uma semana. — Você acha que eu só penso em sexo? Claro que sim. Ergui as sobrancelhas. Ele não poderia se importar comigo. Tínhamos acabado de nos conhecer. — E você pensa que tenho uma mulher em cada cidade? Estremeci com o eco das palavras de Grace e recuei. — Você supõe que me deito com elas e depois vou embora? Creio que não conhece os rom. Nós não temos relacionamentos com gadje, exceto para negócios. — Quem são os gadje? — Os que não são rom. — Parece uma ideia do século XV. — É um costume bem antigo, mas que tentamos manter. O mundo não tem sido muito bondoso conosco. Lembrei-me da sra. Charlesdown acusando injustamente Sabina de furto. — Antigamente, as pessoas deixavam crianças indesejadas perto de nossos acampamentos. Quando cuidávamos delas e ensinávamos a elas nossos costumes, éramos acusados de rapto. — E foi assim que começaram os rumores de que os ciganos sequestravam crianças. — Sim — ele disse. — Não tenho uma mulher em cada cidade. Muito menos uma gadje. Eu seria declarado marime, um prescrito. — Mas você é o líder — Isso não importa. — Ele olhou-me dentro dos olhos e acariciou meu rosto. — Tocá-la é proibido. — Então, por que veio até aqui? — Não pude me manter afastado. Era intrigante pensar que ele não devia me tocar e que poderia ser exilado em pleno século XXI. — Beije-me — pedi. — Você aceitou minha oferta? Hesitei. Eu sabia que seria mais do que um beijo, apesar do que ele prometera. Mas eu queria superar o trauma, esquecer o que acontecera e essa era a melhor oportunidade de tentar prosseguir com uma vida normal.
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E se eu tentasse um relacionamento com alguém de Lake Bluff e não conseguisse? Teria que sair da cidade. Cartwright partiria. E o melhor seria ele não poder contar para ninguém o que acontecera ou se arriscaria ao ostracismo. Passei por ele e puxei o cordão para fechar as cortinas que nos isolaram do resto do mundo. — Beije-me — repeti. — Depois toque em mim, bem aqui. — Apontei a curva do meu pescoço. Ele sorriu e fez exatamente o que eu pedi. Eu não saberia dizer por quanto tempo nós nos beijamos. Ele só me tocou no pescoço e na boca, e meu corpo inteiro implorava por carícias. Meus seios doíam e minhas pernas ficaram bambas. Eu me encontrava desesperada e úmida. — Vamos para o quarto — murmurei de encontro a seus lábios. Ele retrocedeu e eu quase caí. — Ainda não. — Porque não? — Cedo demais. — Ele afastou alguns fios de cabelos de meus olhos. — Você não está pronta. Eu nunca estive tão preparada. — Pensei que eu ditaria as regras — murmurei. — Até certo ponto. Não pretendo cometer nenhuma tolice. Aquele recuo quando eu estava tão ansiosa me deixou irritada. — Tem razão. Fazer sexo com uma pessoa proibida é uma tolice. — Não fiz isso com você. — Abriu a porta de vidro e saiu. — Ainda — murmurou, antes de fechá-la. Abri a porta, atrapalhei-me com a cortina e afastei-a com raiva. Fiquei olhando o deque vazio, o jardim deserto e a mata silenciosa. O sumiço extremamente rápido de Cartwright era intrigante. Talvez fosse a pressa para ir embora. Na certa, ele correra por entre as árvores. Voltei para dentro e tranquei portas e janelas. Quando cheguei no quarto e tirei Oprah de cima do travesseiro, já estava mais calma. Cartwright tinha razão, eu não estava pronta. Contudo... Tirei as roupas e vesti uma camisola, passando a mão nos seios e entre as pernas. Eu estava mais do que disposta. Corpo e mente tinham prioridades diferentes. Podia desejá-lo fisicamente mais do que desejara a qualquer outro. Mas mentalmente... Eu não tinha certeza. Na manhã seguinte, tive dificuldade para acordar. Estava com a cabeça pesada e me sentia estranhamente entorpecida. No chuveiro, estremeci, como se as gotas fossem descargas elétricas. A pressão da água nunca me incomodara, mas, no momento, aquilo me deixava arrepiada. Eu não queria que a água deslizasse em minha pele, mas sim que as mãos dele corressem por 47
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meus braços, tomassem meus seios, acariciassem meus mamilos. Pendi a cabeça para trás, deixando a água bater no meu pescoço. Minhas mãos seguiram a trilha desenhada em minha mente, como havia muito tempo eu não fazia. A ânsia era tão grande que eu não pude resistir. Deslizei os dedos entre as pernas e terminei o que um beijo iniciara. A combinação das memórias, da água caindo e da pressão ritmada de minha mão deixou-me arfante em menos de trinta segundos. Para minha surpresa, aquilo não diminuiu a frustração com que eu acordara. Pelo contrário, ela me acompanhou o dia inteiro e causou-me sobressaltos indesejáveis.
O Festival da Lua Cheia foi aberto oficialmente na praça da cidade às nove horas da manhã. Eu tinha preparado o discurso de boas-vindas, após o qual a banda da escola tocaria Geórgia on My Mind. Depois, prestigiaríamos os comerciantes, assim como a primeira apresentação dos ciganos naquela noite. Em vez de terninho ou pantalonas, eu tinha escolhido um vestido verde curto de saia rodada e complementado o traje com as pérolas de minha avó e sandálias de salto. Terminei o discurso, saí da tribuna sob aplausos leves de cerca de cinquentas pessoas e, quando desci os degraus, o vento levantou a saia que, por pouco, não alcançou minha cintura. O ar quente em minhas pernas e na calcinha me fez dar um grito de excitação e susto. Segurei o tecido leve com as duas mãos e olhei para cima a fim de ver por quantas pessoas o desastre fora testemunhado. Felizmente, a banda tinha começado a execução do clássico de Ray Charles assim que eu terminei de falar e pelo menos meu grito não foi ouvido. Algumas pessoas sorriram diante de meu constrangimento, mas não com malícia. Imprevistos aconteciam. Notei um homem vestido de preto e branco afastar-se da multidão. Mesmo sem os cabelos longos e o andar quase felino, eu teria reconhecido Malachi Cartwright. Ele teria escutado meu discurso? Eu havia perscrutado o agrupamento de pessoas antes, durante e depois, e não o tinha visto. A música terminou e as poucas pessoas que haviam ficado, provavelmente os pais dos integrantes da banda, bateram palmas. Saí dali e fui direto para a prefeitura, onde fui recebida por Joyce. — Uma bela apresentação — ela falou assim que eu entrei. — A banda tem feito progressos. — Estou me referindo à sua. — Ela apontou minha saia. Senti-me corar. — Não pretendi escandalizar ninguém. — Ainda bem, ou eu diria que foi quase pornográfico. Aliás, talvez você esteja precisando de um pouco de diversão e, se quiser, posso indicar... — ela disse, recomeçando a bater no teclado do computador. — Pare com isso — eu pedi, sem graça. — Ora, Claire, posso ser velha, mas não estou morta. 48
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Eu não sabia quantos anos Joyce tinha e nunca tive coragem de perguntar. Sempre imaginei que ela tivesse a idade de meu pai. — Você não é tão velha. Ela levantou as mãos espalmadas. — Mas certamente esse é o pensamento daqueles que chegam à minha faixa etária. Correto. E para alguém próximo de se aposentar, a solidão era um problema a mais. Joyce não tivera sorte com homens e somente conseguiria mudar a perspectiva se resolvesse namorar Joe, Hoyt, ou Malcom. Franzi o nariz. Eu tinha me esquecido de Wilbur. — Por que nunca se casou, Joyce? Ela levantou a cabeça e arregalou os olhos. — Eu? — Sim. Obviamente, você gostava de crianças ou não teria sido professora. Ela fez uma expressão de pouco caso. — Minha querida, na minha época, não havia escolha. Ou éramos enfermeiras ou professoras. Escolhi uma carreira que não envolvia sangue. — Ela franziu os lábios. — Mas tenho de confessar que cheguei a me arrepender. — Você não gostava de crianças? — Eu gostava de você, — Ela sorriu. Eu retribuí o sorriso. — Obrigada. Não sei como eu teria me arranjado na adolescência sem Joyce. Havia muitas coisas que não podia perguntar a meu pai, coisas que Grace não sabia. E Joyce sempre estivera disponível. Embora ela me dispensasse cuidados excessivos que me aborreciam, sempre tinha estendido a mão amiga quando eu precisara. Eu seria eternamente agradecida por isso e desejava que ela fosse feliz. — Não houve ninguém nessa cidade que tivesse despertado seu interesse? Joyce abaixou a cabeça e eu entendi. — Papai. Ela deu de ombros. — Para ele, só existiu a esposa, mesmo depois de ela ter ido embora. — Sinto muito... Ela ergueu a mão. — Não é bem assim. Eu poderia ter forçado a situação e falado em casamento alegando solidão, mas eu não queria ser a outra. Aqui — apontou a mesa e o escritório — eu era a primeira-dama e ele dependia e precisava de mim. — Eu também não poderia fazer nada sem você. — Obrigada, meu bem. Isso é muito importante. — Aonde você vai... Quando deixa a sala? — Ao banheiro, é claro. — Não é isso, Joyce. Refiro-me a suas ausências inesperadas. — Não sei do que está falando. 49
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Decidi não insistir e voltei aos meus afazeres. Com o festival em andamento, eu estava menos atarefada com a administração do que de costume, mas continuava sem tempo livre. Os cidadãos não apareciam para conversas nem marcavam entrevistas, pois tinham muito que fazer. No entanto os forasteiros entravam e saíam da prefeitura como se ela fizesse parte de um roteiro turístico. Muitos queriam conhecer a prefeita, agradecer pelo evento adorável e fazer perguntas sobre Lake Bluff, as montanhas e a história da cidade. Depois da saída da quinta família de turistas de meu escritório, chamei Joyce. — No próximo ano, contrataremos alguém para servir de guia e para explicar... as coisas. — Certo. — Joyce fez uma anotação na agenda. — Você acha que ainda estará aqui no próximo ano? Em cima de minha mesa a montanha de papéis parecia ter aumentado desde a véspera. — O quê? — Balthazar é determinado e, ao contrário de você, quer ser prefeito. — Quem disse que eu não quero? — Seu pai. Não pude evitar a culpa nem o pesar. Eu sentia falta dele. Eu deveria ter assumido o cargo quando ele me pedira. Se eu houvesse feito isso, não teria conhecido Josh e... Endireitei as costas e levantei o queixo. — Não tenho planos de ir embora daqui por enquanto, Joyce. — Mesmo que Balthazar vença? — Não pretendo deixá-lo vencer. — Ah, seu pai teria ficado orgulhoso de você. Finalmente, ele teria tido orgulho de mim. Meu pai ficara desapontado quando eu havia mudado para Atlanta, abandonando o certo pelo duvidoso. Estava tão empolgada com meus planos que deixei de me preocupar com os sentimentos dele. E agora, tarde demais, eu gostaria de ter sido uma filha melhor. Por isso mesmo, tentaria manter a cidade que ele adorava livre de idiotas como Balthazar Monahan. — Eu soube que você fez o conselho votar ontem à noite — Joyce comentou. — Eles não votavam há muitos anos. — Isso foi ruim? — Não, seu pai era um bom homem, mas às vezes era negligente. Eu nunca ouvira falar disso. — É mesmo? — Muitas vezes agimos levianamente sem medir as consequências. Jeremiah era bondoso com os habitantes e os escutava. Eles gostavam dele e confiavam nele. — Ao contrário do que acontece comigo. — De onde você tirou isso? Todos gostam de você, 50
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— Mas não confiam em mim. As pessoas não falam comigo como faziam com ele. — Isso virá com o tempo. Se não acreditassem em seu potencial, não teriam pedido para você assumir o cargo. — E como eles podem supor minha capacidade? — A maçã não cai longe da macieira, Claire. Por mais que você tenha desejado que fosse diferente. De repente, eu me senti mais leve e feliz, como não acontecia havia anos. Em Atlanta, eu tinha sido menosprezada. Em Lake Bluff, era tida em alto apreço. Era quase meio-dia e fazia quinze minutos que ninguém entrava na prefeitura. — Tentarei trabalhar um pouco — anunciei. — Não vai atender aos telefonemas? — Só se for uma emergência. Fui direto para a internet. A descoberta da suástica não era um bom augúrio e eu precisava descobrir do que se tratava. Eu teria de proteger a cidade e seus habitantes a todo custo. Eles tinham me dado um voto de confiança e eu não os desapontaria. Descobri coisas horríveis sobre os nazistas, que teria sido preferível ignorar, e passei adiante. Pesquisando origens da suástica, fiquei sabendo que o signo datava da pré-história, era de origem islandesa e representava proteção e renascimento. A busca por totens, magia e amuletos feitos de madeira incluiu inúmeros sites. Os primeiros faziam referência às tribos nativas americanas — inuit e ojibwe —, mas nenhuma aos ckerokee. O segundo grupo referia-se aos wicca. Encantamentos, curas naturais, boa e má sorte, e assuntos correlatos. Passei a mão na testa. A pesquisa não me levaria a lugar nenhum. Meu telefone tocou e fitei Joyce com olhar acusador pela janela de vidro. Ela fez um sinal aflitivo para eu atender. Eu ergui o fone. — Claire Kennedy. — Vá até o hospital. — Grace? Ela desligara.
Estranhei ao encontrar Grace sentada num quarto vazio do Hospital da Comunidade de Lake Bluff, olhando para as mãos, numa atitude incomum para ela. — O que houve? — perguntei. Ela levantou o olhar. — Ele foi embora. — Ele, quem? — Ryan Freestone, o turista atacado pelo lobo. E sem deixar o menor vestígio. Eu me sentei ao seu lado, pedi explicações e ela abriu as mãos. Em uma delas, segurava o pedaço de madeira com a cruz suástica. — Vim até aqui para saber dele e ninguém o viu desde a noite passada. — Vai ver que se aborreceu e resolveu partir. 51
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— Ele não voltou ao hotel e o carro dele ainda está no estacionamento. — Pode estar apreciando o festival. — Pedi a meu pessoal que o procurasse, mas ninguém o encontrou. — Ele vai aparecer — Talvez. — Grace virava e revirava o pedaço de madeira na mão. — O que a está preocupando, Grace? — Examinei a fita do sistema de segurança. — E? Grace apertou o controle do videocassete. Escutou-se um som surdo e imagens oscilantes apareceram. Um corredor pouco iluminado. O indicador no canto do vídeo marcava 3h23 da manhã. A porta foi aberta e um homem saiu, nu. — É ele? — É. — Talvez ele não gostasse da roupa do hospital. Grace não se dignou a responder. O homem foi até a porta da frente e se abaixou diante da mesa da recepcionista. Virou-se de frente para a câmera e vi seu rosto. Horrivelmente piloso e com olhar desvairado. O filme em branco e preto não permitiu identificar a cor dos olhos ou dos cabelos. — Segundo as enfermeiras, ele estava febril e parecia delirar. Na fita, Freestone foi até uma janela arrastando os pés e pulou para fora. — Estamos no segundo andar — comentei o óbvio. — O que você encontrou debaixo da janela? — Pegadas em direção à mata. — A febre deixa a pessoa fraca. — Em geral é o que acontece. — Grace parou a fita, voltou um trecho e apertou a tecla pause. — Veja isto. — Ela levantou um monte de ataduras da cama. Eu fiz uma careta e peguei na ponta das tiras brancas. A gaze amassada e rasgada não tinha uma gota de sangue. — Não entendo. — Devolvi tudo para ela. — Freestone teve um trauma grave no pescoço, além de lesões defensivas nos braços e mãos. Preste atenção. — Ela apertou a tecla play. Observei Freestone sair do quarto, abaixar-se e Grace congelou a imagem. O homem tirou os cabelos do rosto. Não havia nenhuma marca nas mãos. Levantei-me e cheguei perto da televisão. O pescoço não apresentava o menor arranhão. — Tem certeza de que é o mesmo rapaz? — Absoluta. — O que disse o médico? — Não tem ideia do que se trata. Se eu não conseguir encontrar o lobo, começarão hoje a vacinação anti-rábica. — É dolorida? — Bem mais suave do que o tratamento da raiva. 52
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— Por isso Freestone deu uma de Houdini? — É bem possível. — Grace ejetou a fita. — Não sei mais no que pensar. E isso tinha de acontecer logo agora. Grace e seus agentes trabalhavam sem descanso durante o festival, contando ainda com os policiais aposentados da região que ela contratara. — Tenho de encontrá-lo — ela resmungou. — E se ele contraiu raiva? — Nem queira saber. — Não quero, mas preciso. Grace hesitou antes de falar — Ele terá muita sede, boca espumosa e vontade de morder a todos para espalhar a doença. Nem era bom pensar no rapaz no centro da cidade no auge do festival. — O período de incubação em humanos é de um a três meses Grace continuou. — Ainda bem. — Senti-me aliviada. — Contanto que ele não deixe a cidade e desapareça nas montanhas. Segundo a família, ele é um andarilho aficionado. Costuma ficar sozinho na mata durante semanas. — Péssimo. — O camarada poderia sobreviver indefinidamente. — Existe a possibilidade de mutação do vírus. — E? — Um período de incubação bem mais curto. — Como, por exemplo, de um a três dias? — Ninguém sabe. Vírus são muito instáveis. — Tenho de avisar o Centro de Controle de Doenças. — Já fiz isso. Especialistas estão a caminho. Revirei os olhos e Grace estreitou os lábios. Mas não esperarei por ninguém. Uma vez iniciados os sintomas da doença, nenhuma vacina surtirá efeito. — Imagine uma doença associada com nossa cidade ou com nosso festival. — Ainda mais uma epidemia de raiva. — As vítimas de raiva sempre agem desse jeito? — perguntei. — Nunca vi nenhuma. De acordo com o médico, a infecção humana é rara e creio que ele também não teve experiência com esses casos. Pelo que me consta, pessoas normais querem ficar curadas. — O que poderá haver de errado com Freestone? Lori Handeland — Pessoas normais não saram de ferimentos graves em menos de vinte e quatro horas. — O que está insinuando? — Olhei para o rosto preocupado de Grace. — Que ele pode parecer normal, mas não ser. — O que ele é? — É o que precisamos descobrir. E estou passando o encargo para você. 53
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— Para mim? — Você não é especialista em pesquisa? — Grace não esperou resposta. — Enquanto você sai em busca de informações sobre curas miraculosas, veja se descobre se lobos podem aparecer em locais onde nunca estiveram. — Está bem. Grace balançou o talismã. — E sobre isso? Contei a ela o que encontrara a respeito da cruz gamada. — Proteção e renascimento. — Grace anuiu. — Interessante. — Isso pertence ao nosso fugitivo? Grace negou com um gesto de cabeça. — Avisei a família dele sobre o desaparecimento e a esposa me disse que ele nunca andou com amuletos ou talismãs. E muito menos carregaria uma suástica. — Por quê? — Por que o nome de solteira da mãe dele era Wasserstein. — Meu Deus! Não estou gostando nada disso. — De que parte? O lobo estar onde não deveria? De o lobo atacar um turista? De uma cura miraculosa ou de uma epidemia de raiva em potencial? — De um símbolo como esse ter sido encontrado onde um descendente de judeus foi atacado e perto de um acampamento de ciganos. — Droga! Eu não havia pensado nisso. — E agora? — Organizarei um grupo de busca para encontrar o rapaz. — Irei junto. Grace riu. — Você já esteve nas montanhas? — Eu moro aqui assim como você. — Claire, aos quatro anos de idade eu ia para as montanhas com meu pai. Ele me deixava lá e dizia para eu achar o caminho de casa. É muito diferente. — Você nunca me contou isso. — É um assunto particular. — Mas era um caso de maus-tratos contra uma criança. — O quê? — Se alguém lhe contasse um caso semelhante, o que faria, xerife McDaniel? — Procuraria a criança. — E depois você entregaria a criança de volta às pessoas que a abandonaram sozinha na mata? A criança deveria estar brincando dentro de casa e não ser submetida a aves de rapina que desejam arrancar seus olhos. — Você anda vendo muito Hitchcock, Claire. Pássaros não fazem isso. — Mas as de rapina sempre se aproveitam dos mais fracos. Você poderia ter morrido na mata, e eu teria ficado muito brava. — Obrigada. — Ela sorriu. — O que mais seu pai fez em nome da tradição? 54
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O olhar de Grace me fez desistir de outras perguntas. — Informarei você do que encontrar lá. Enquanto isso, você pode pesquisar as informações, não? — Preciso do talismã. Ela pôs a peça na palma da minha mão. — Não perca. — Eu já perdi alguma coisa? — O juízo. — Grace se virou e saiu.
Não voltei direto para o escritório. Percorri as ruas e examinei as barracas armadas nas calçadas. Falei com os comerciantes e fui cumprimentada por eles, mesmo sem eu nada comprar para não demonstrar favoritismo. Política. Voltei à rua principal e descobri uma fila ao redor do café bloqueando a calçada. As pessoas tinham de passar pelo meio da rua, o que congestionava o trânsito e causava balbúrdia. Fui até lá e sugeri aos clientes do final da fila que procurassem outro lugar para comer. O que provocou palavras iradas de Bobby Turnbaugh. Imaginem a confusão. Consegui acalmá-lo com a promessa de realizar no seu estabelecimento as quatro próximas reuniões do conselho municipal. Três crianças haviam montado um estande para vender limonada na esquina da Center com a Bailiwick. Eram lindas e ficaram encantadas quando dei a elas um dólar em vez de vinte e cinco centavos por um copo. Tomei um gole e cuspi na calçada. As três arregalaram os olhos azuis. — Fizemos a limonada do jeito que nossa avozinha faz. — Qual é o sobrenome de vocês? — McGinty. Misericórdia. A avó deles era a maior falsificadora de bebidas do condado. Não era à toa que meus dentes pareciam ter perdido o esmalte. — Quanto vocês venderam dessa bebida? — Espiei o enorme recipiente térmico de onde eles haviam tirado o meu refresco. —Apenas um copo. — Um dos meninos tirou outro vasilhame igualmente grande de baixo da mesa. — Vocês vão ter de suspender a venda — avisei-os. — Por quê? — os três gritaram. Eu não podia explicar que a avó era uma pilantra e que a limonada estava com graduação alcoólica muito elevada. — Vocês só venderam um copo? Eles anuíram solenemente. Ainda bem, ninguém morreria por causa de um pouco da bebida. E sem ser os habitantes de Lake Bluff — acostumados aos efeitos — ninguém conseguiria terminar a dose. 55
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— Está muito tumultuado aqui — improvisei — e é preciso sair da esquina. — Por que a senhora está discutindo com eles? — Um homem com sotaque de Boston aproximou-se. — Eles são tão engraçadinhos. — Ah, esse é o charme local — uma mulher falou com as mãos abarrotadas de sacolas. — O senhor quer um copo? — uma das crianças gritou. — Não! — exclamei. — Vou precisar de tudo para a... polícia. Os três meninos empalideceram. — Eles estão com sede — continuei — por ficar o dia todo no sol orientando o trânsito. — ótima ideia — o homem concordou. — É preciso manter nossos soldados hidratados. Os turistas se afastaram e dei dinheiro aos meninos. Despejei a bebida num beco próximo e quando voltei, as crianças já tinham ido embora. Nem adiantaria avisar Grace. Quando ela chegasse à casa dos McGinty, a mulher já teria sumido com o alambique. De novo. Em pleno século XXI, velhos hábitos continuavam arraigados nas montanhas Blue Ridge, na parte austral dos Apalaches. Os escotos-irlandeses eram imigrantes que haviam saído da Escócia em 1600 para estabelecer Ulster ao norte da Irlanda e, muito antes da fome das batatas, viajaram pelos mares. Na época da Guerra da Independência, de dez a quinze por cento da população das colônias era escoto-irlandesa, o que contribuiu em grande parte para o levante contra a Inglaterra. — Prefeita Kennedy. — A voz fria de Balthazar deixou-me tensa e pensei em não lhe dar atenção. Não adiantaria. Ele me seguiria até a prefeitura. Virei-me e fui surpreendida pelo clique de uma máquina fotográfica. Droga! — Teremos um belo instantâneo para a nossa primeira página. — Pare com isso. — Ora, uma figura pública sempre vende jornais. Ele apertou novamente o botão. Tive vontade de esconder o rosto ou dar-lhe uma bofetada. Em vez disso, dei meia-volta e saí rumo à prefeitura. — O que acha desse cabeçalho? — Balthazar gritou. — A prefeita Kennedy permite a venda de limonada falsificada na Center Street. Virei-me de novo e encarei-o. — Não adianta me intimidar, Balthazar. Não vou desistir e lutarei por esse cargo! Ele se aproximou ainda mais. — Por quê? A senhora não queria assumir, por que não pede demissão? — Esqueça. — Então será despedida, ou pelo menos, destituída por votação. — Não conte com isso.
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— Se o festival não der lucro ou aqueles ciganos imundos causarem problemas, a senhora estará acabada. Ele tirou mais uma fotografia. — Prefeita Kennedy faz o discurso de despedida.— Outra foto. — Prefeita Kennedy limpando a mesa. — Um novo clique. — Prefeita Kennedy, ou melhor, Claire Kennedy — o que ela fará agora? — Pare de tirar fotografias. Ele abaixou a máquina e eu fechei os olhos. Quando os abri, Malachi Cartwright arrancava a câmera das mãos de Balthazar. — O senhor é insistente demais. — Qual é o problema, cigano? Cartwright soltou a máquina, mas Balthazar não conseguiu apanhá-la. A câmera despedaçou-se no cimento. — Que pena - Cartwright murmurou. Uma multidão se reunira e, imóvel, observava a cena quase sem respirar. — Essa era minha melhor câmera — ele rugiu. — Então, deveria ser mais cuidadoso com ela. — Eu? — Balthazar ficou vermelho. — Eu? Imaginei que ele fosse ter um derrame de tão furioso que estava. Balthazar investiu contra Cartwright, que se esquivou com facilidade. Também tentou socá-lo, mas não conseguiu. As pessoas saíram do mutismo, escolheram os lados e deram gritos de encorajamento. Mais atrás Sabina, sem a cobra, fitava os contendores, apavorada. Pobre criança. — Não façam isso. — Tentei apartá-los, mas de nada adiantou. Apesar de mais alto e muito mais pesado, Balthazar não tinha agilidade. E ficava cada vez mais irado por não conseguir acertar Cartwright. Se conseguisse, o estrago seria grande. Adiantei-me para me interpor entre eles, mas fui puxada para trás. — Eles a matarão — Grace me avisou. Por milímetros, Balthazar não quebrou o nariz de Cartwright, com o punho enorme. — Temos de parar com isso. — Você acha? — Grace murmurou. — A gente nunca encontra uma mangueira quando se quer apagar um incêndio. Ela parou entre eles, como eu planejara fazer. Cartwright recuou e Balthazar investiu com um rugido. Grace puxou a arma e apontou para o peito dele. — Pare. Ele obedeceu e fitou-a. — Está louca, xerife? — E o senhor, está? — Isso lhe custará o cargo. 57
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— Ah, veja como estou tremendo de medo. — Grace exagerou nos gestos. — Agora, pegue seu brinquedo e vá para casa. — E ele? — Balthazar apontou Cartwright com a cabeça. — O que tem ele? — Não vai prendê-lo? — Por qual motivo? — Assalto. — Foi o senhor quem o agrediu. — Ele quebrou minha câmera. — Então, o senhor está quite com ele. Balthazar praguejou, deu um pontapé na máquina e foi embora. Grace guardou a arma. — Vamos embora, pessoal. Acabou a diversão. — Ela pegou a peça estragada e jogou-a numa lixeira, antes de falar com Cartwright. — Enquanto estiver aqui, será melhor ficar longe dele. — Ou ele de mim. — Estou falando sério. Ele parece ser um camarada rancoroso. Cartwright deu de ombros. — Não seria o primeiro que enfrento. — Cuidado — ela recomendou, antes de olhar para mim. — Até mais. Grace caminhou para a floresta e desejei que ela encontrasse o turista desaparecido. Vivo e em condições de iniciar o tratamento contra raiva. Sabina aproximou-se com um maço de papéis na mão. Era a programação para as apresentações dos ciganos. — Você vai distribuí-los? — perguntei, e ela anuiu. — Foi uma boa ideia deixar a cobra em casa. Menos problemas, não é? — Não me pareceu — Cartwright afirmou, observando Balthazar rodear a Gazette e caminhar rumo ao grande armazém dos fundos. — Você não precisava ter se envolvido — afirmei. — Ele precisava de uma lição de boas maneiras. — Duvido que ele aprenda alguma coisa depois de ver a câmera destruída. — Pois aposto o contrário. — Ele poderia tê-lo matado. — Eu? — Ele sorriu. — Acredite, seria o inverso.
À noite, dezenas de panfletos jaziam na calçada e outros tantos voavam de encontro às construções. No caminho de casa, apanhei um deles e li. Venham, venham, todos, para a maior apresentação do mundo. Atuação de animais! Apresentações diferentes todas as noites! Venham duas, três vezes! Tragam seus amigos!
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Naquela noite, a apresentação começaria às nove horas. Fui para casa, jantei, troquei de roupa e dirigi meu carro até o lago. Muitos veículos estavam estacionados no gramado do entorno e, se a atuação dos ciganos agradasse, o número de pessoas aumentaria a cada noite. O que seria ótimo. O festival traria lucro naquele ano e no próximo. Fora erguida uma arena com cadeiras portáteis. As carroças que serviam de jaulas haviam sido dispostas num semicírculo com as grades voltadas para os assentos. Assim, durante a apresentação, a audiência poderia apreciar os animais. Os veículos usados como dormitórios tinham sido afastados e deles só se viam as coberturas. Luzes piscavam nas árvores próximas e holofotes iluminavam a arena e os arredores. No meio do trajeto, uma cabina funcionava como bilheteria. Dentro, um homem idoso e, de cada lado, dois mais jovens e sisudos que desafiavam alguém a entrar sem ingresso. Um deles era troncudo e bem moreno. O outro tinha cabelos castanho-claros e era muito alto e magro. Uma mulher alta, com uma mecha branca nos cabelos negros entregou um cesto de maçãs para um homem de olhar curioso e nariz adunco que mergulhava as frutas numa calda de caramelo. As crianças seguravam balões coloridos. O cheiro de pipoca e algodão doce impregnava a noite. Entreguei meu ingresso ao homem mais corpulento e ele resmungou um agradecimento. Atrás dele, havia uma mesa com quinquilharias à venda. E uma tabuleta chamou minha atenção. AMULETOS. TALISMÃS. MAGIAS. Interessante. Eu tinha deixado em casa o pedaço de madeira com a cruz gamada, pois ciganos não apreciavam um símbolo nazista. Mesmo com a guerra terminada havia mais de sessenta anos, eles certamente não tinham esquecido. E nem poderiam. Examinei todos os itens. Nenhum era sequer parecido com o que Grace encontrara. — A senhora tem alguma coisa de madeira? A mulher idosa era muito enrugada. Na cabeça, trazia um lenço colorido franjado com moedas, e argolas enormes nas orelhas. Anéis em todos os dedos e muitas pulseiras nos braços. Toda vez que se movimentava, soava uma cacofonia. Ela hesitou por algum tempo antes de pegar uma caixa sob a mesa. Aceitei o objeto e quase o deixei cair quando algo se mexeu dentro. — Não, obrigada. — Tentei devolver, mas ela não quis, e me encorajou com gestos a abrir a tampa. A caixa era muito rasa e a noite muito escura para ver o que havia em seu interior. Destampei o objeto e uma pata enrugada caiu na minha mão. Engoli um grito e joguei a coisa fora. A mulher pegou o objeto no ar e, rindo, guardou-o novamente na caixa.
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— O que é isso? — perguntei sem esperar resposta. Talvez ela não me entendesse. — Uma brincadeira, querida. Nunca ouviu falar na pata do macaco? Uma maldição antiga? Três desejos? Inspirei fundo para acalmar meu coração que batia forte e rápido. — Gostamos de dar às pessoas o que elas pedem. — Não pedi uma pata de macaco! — Onde você viu isso, querida? — Na caixa! — Nesta? — Ela abriu a tampa e nada apareceu. Risos e aplausos soaram dos que haviam se agrupado atrás de mim. — Se quiserem que ou leia a sorte, farei isso depois do show. Ela me usara como anúncio publicitário, mas como nós duas precisávamos de lucros, não pude me queixar. Apressei-me até a arena. Vi Joyce acenar do meio da multidão e retribuí o cumprimento. Os assentos estavam quase todos ocupados, mas consegui me espremer no último da primeira fila assim que as luzes se apagaram e começou um rufar de tambores. O puma e o urso rosnaram e eu poderia jurar que houve uma resposta da floresta. Olhei ao redor, mas ninguém pareceu notar nada, tamanha a expectativa. Um dos holofotes foi aceso e iluminou Sabina, que surgira do nada, com uma cobra enrolada no corpo. Tinha sido quase um truque de magia. O fato de ela não poder falar não importava. No palco, parecia ter nascido para dançar. Os olhos brilhavam e os cabelos soltos se agitavam ao ritmo rápido da música oriental. A saia colorida ondulava ao redor dos pés descalços adornados com anéis. Da cintura para cima, ela estava mais coberta pela cobra do que por alguma roupa. Os braços nus faziam movimentos sinuosos, à semelhança de dois répteis. A serpente a imitava, com um brilho nos olhos amarelos, e parecia tão hipnotizada por ela quanto o restante de nós. Escutei um grito e fiquei tensa, achando que o réptil se tornara agressivo, até ver o que fazia a plateia se agitar. Meia dúzia de serpentes deslizavam rapidamente para a arena, entre as quais pelo menos uma cascavel e, se elas prosseguissem, poderiam chegar até a multidão, o que seria um problema. Contudo, pararam perto de Sabina, que sorriu. Quando a música diminuiu o ritmo para um blues, ela se ajoelhou e inclinou-se para trás até a cabeça tocar o solo. Gritos abafados — inclusive o meu — se sucederam quando as serpentes colearam por cima dela. Sabina ergueu o corpo, ficou de joelhos e se levantou, com o torso coberto por cobras ondulantes. No pescoço, estava a mesma que provocara o incidente na farmácia. Havia uma cascavel enrolada em cada braço, como braceletes, e, na cintura, uma píton à guisa de cinto. Ela saiu da arena sob aplausos estrondosos. Depois de a iluminação ter sido novamente reduzida, lembrei-me de nem ao menos ter reparado na mão deformada de Sabina. 60
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A banda recomeçou a tocar em meio ao rufar de tambores, e as luzes foram acesas sobre o picadeiro vazio. O staccato musical confundiu-se com outro som mais forte, o de cascos de animal. De repente, um cavalo branco saiu das sombras e pulou no meio do palco, com Cartwright em pé sobre suas costas. Descalço, ele usava calças negras e blusa vermelha de mangas largas quase toda desabotoada, deixando o peito à mostra. Todos estavam fascinados, em silêncio, admirando a harmonia e o entendimento implícito, que dispensava ordens, entre homem e animal. Sem perder o equilíbrio em nenhum momento, Cartwright ficou em pé, de joelhos, deitou-se e fez piruetas sobre Benjamin, até a música se elevar num crescendo para chegar ao grande final. Então, ele saltou e ficou na margem da arena. Enquanto o cavalo dava voltas cada vez mais rápido, ele correu, parou diante da plateia e fez uma reverência. Os aplausos espocaram e ele virou-se para mim, estendendo a mão. Não entendi o que pretendia e todos aguardaram o desfecho. — Gostaria de dar uma volta? — ele indagou, carregando no sotaque irlandês. Observei o animal, que não parava de galopar em círculos. — Não, obrigada. — Galoparemos juntos. Neguei com um gesto de cabeça, mas a multidão passou a incentivar a aventura com gritos. — Vamos lá, prefeita. — Vá, querida. — Tente, você vai gostar. Curiosa, aceitei a mão estendida. Cartwright estalou os dedos e o animal se deteve no mesmo instante. Como não havia sela nem estribo, ele me ergueu, colocando-me sobre o cavalo, antes de montar. Envolveu-me com os braços e o cavalo empinou. Gritei, e fui lançada contra o corpo dele, minhas costas tocando seu peito, meus quadris aninhados em suas coxas. Ele enrijeceu as pernas e, em vez de me sentir presa ou ameaçada, fiquei ansiosa pelo que se seguiria. Benjamin alcançou o solo com as patas dianteiras, tornou a correr e, num impulso, pulou para fora da arena. Tive a impressão de voar e a sensação de magia envolveu-me antes que o cavalo retornasse ao chão e nos carregasse pela noite em meio aos gritos da audiência que delirava.
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CAPÍTULO III
Não fomos muito longe antes de Cartwright deter o animal com um leve estalar de língua, o que certamente fizera durante a apresentação, sem que ninguém percebesse. O show fora extraordinário e imaginei até onde o talento dele poderia levá-lo. Ajeitei-me e o movimento fez com que eu me encostasse mais no corpo forte e excitado. — Não faça isso — ele pediu, quando tentei afastar-me. A banda começou a tocar uma valsa agradável e suave. Espiei o picadeiro, mas a corrida louca nos levara para dentro da floresta e eu pude ver apenas árvores. — E o espetáculo? — murmurei. — Algumas apresentações com pássaros que voam de um lado a outro. Você não está perdendo grande coisa. — Considerando o que já vi, acho que estou, sim. — Então, você gostou, não é? — Muito. Por que você está aqui? — O que quer dizer? — perguntou, o corpo se enrijecendo. — Você poderia atuar em Nova York, em Las Vegas e até na televisão. Ou poderia dedicar-se a treinar animais. — Não posso fazer isso. Esperei por uma explicação que não veio. — Você gosta de perambular pelo país numa carroça? Ele deu de ombros, esfregando o peito em minhas costas com o movimento, e eu resisti ao ímpeto de enroscar-me nele. — Os rom não são benquistos. Por isso, temos de perambular. — Às vezes você fala como se estivesse preso no século XVII. — E é como me sinto em certas ocasiões. — Seu cavalo é maravilhoso. — Eu sei. Os rom acreditam que um cavalo branco tem dotes mágicos. — Você também acha isso? Ele riu. — Quando sinto Benjamin voar com tanta facilidade, chego a pensar se são anjos que nos carregam. Não pude evitar um sorriso de desdém. Eu nunca tinha acreditado em tais coisas. — Na verdade, animais brancos são melhores para apresentações como as minhas, porque posso disfarçar o giz que uso nos pés para não escorregar. Num circo, os animais são, em geral, brancos ou, no máximo, cinzentos. As mãos dele, que estavam em minha cintura, deslizaram até meu ventre, fazendo-me esquecer de tudo sobre cavalos brancos e magia. Quando ele se inclinou, 62
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senti sua respiração em meu ouvido. Estremeci, mas não pelo nevoeiro que começava a cobrir o lago. Senti seus lábios na curva do meu pescoço, mordiscando e sorvendo gentilmente o sabor de minha pele. Foi uma sensação gloriosa, aguda e suave, que me fez tremer. Benjamim se mexeu e eu dei um pulo, mas Cartwright acalmou-me com doces palavras sussurradas. Encostei a cabeça no ombro dele e fitei a nesga de céu que aparecia entre a copa das árvores. Azul-escuro e pontuado com estrelas cintilantes, onde a lua se erguia coberta pela névoa. Ele acariciou o meu ventre, os braços, o ombro, e só então percebi que desabotoara minha blusa. Era delicioso sentir a brisa noturna na pele aquecida. As palmas de sua mão envolveram meus seios por cima do sutiã, e meus mamilos enrijeceram sob a fricção lenta e firme. — Isso é uma loucura — sussurrei. — Podem nos ver. — Todos estão entretidos no show. Ouvi a música distante, os aplausos e entendi que estávamos sozinhos na floresta. Apenas nós dois. E Benjamin. — Diga-me o que você quer — ele murmurou. Gemi ao senti-lo pressionar, entre os polegares e os indicadores, meus mamilos retesados, e teria me envergonhado se não estivesse tão excitada. Sentia a respiração aquecer minha pele enquanto ele mordiscava o lóbulo da minha orelha. — Onde devo tocá-la e com que intensidade? — Ele passou a unha no bico de um seio. — Assim ou mais suavemente? Peça o que quiser, Claire, e eu farei. Eu desejava vê-lo e tocar o peito que ele exibira sob os holofotes, mas não consegui falar nada. Então, me virei e fitei-o. Ele me segurou e apoiou minhas pernas sobre suas coxas. Desabotoou a camisa vermelha até o fim enquanto acalmava o cavalo, que se mostrava impaciente. Não pude afastar os olhos do peito musculoso. O luar se refletia no brinco de prata e sombras se projetavam na pele que eu desejava experimentar. Toquei-o com a boca, sentindo o frio do nevoeiro que nos rodeava e o calor que emanava de seu corpo. Raspei os dentes em seu pescoço, passei a língua nos mamilos, lambi sua pele, que tinha gosto de verão e de inverno. Eu desejava esfregar meu rosto no peito dele, memorizando seu sabor e seu aroma. Ele inclinou-se para trás, permitindo que eu agisse livremente, o que a maioria dos homens não faria. Eles queriam agarrar e conduzir, preocupados apenas com a própria satisfação. A pele dele brilhava com a umidade deixada pela minha boca e pelo sereno. As calças pretas estavam muito justas na junção das coxas. — Você quer me tocar? Olhei para cima e vi o reflexo prateado da lua no centro dos olhos negros. — Ainda — engoli em seco — não. — Posso tocá-la?
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Hesitei. Até onde iríamos, sozinhos na floresta e sobre um cavalo? Provavelmente não muito longe. Assenti. Ele passou um dedo por meu rosto e minha boca. Raspou a ponta da unha no lábio inferior, acariciou meu queixo, pescoço e o contorno dos seios. Senti minhas roupas apertadas demais e desejei ficar nua em meio à noite para sentir a carícia do ar frio na pele. Havia algo incrivelmente erótico naquela situação: o nevoeiro em meu rosto, o vento em meus cabelos, a música distante e os murmúrios da multidão. Estávamos sozinhos e não estávamos. Eu não me sentia encurralada como no passado. Seria por causa dele, de mim, ou seria por estarmos ao ar livre? Tudo o que eu sabia é que não queria que acabasse. — Posso continuar tocando você? — ele sussurrou, fitando-me e traçando um círculo lento com a ponta do dedo em meu mamilo. Em resposta, pendi a cabeça para trás, oferecendo-lhe mais de mim. Suas mãos pressionaram meus ombros, erguendo-me em direção a ele. Minhas pernas se abriram mais, senti a ereção dele exatamente onde eu precisava e cruzei os tornozelos em suas costas. Se caísse, eu o levaria junto. Senti seus cabelos roçarem minha pele quando ele tomou meu seio com a boca por cima do tecido do sutiã. Entrelacei os dedos nas mechas escuras e sedosas, aproximando-o ainda mais. Ele passou a língua sob a renda, o que enviou uma onda de calor até minha virilha. Apertei-o com as pernas, segurando-me com mais firmeza, e senti seus dedos no fecho do sutiã. Em um instante, ele me deixou exposta para a noite e liberta para ele. E me sugou, fazendo-me contorcer em seus braços. De repente, ele se afastou, e eu quase gritei de desapontamento. — Fique quieta — sussurrou. Foi então que ouvi um farfalhar leve e um passo. Alguém vinha vindo. Cartwright praguejou e eu tive vontade de fazer o mesmo. Arrumei rapidamente a roupa, mas a camisa dele havia voado para uma moita próxima e ali adejava como uma bandeira. — Ruvanush? — um homem chamou. — O que ele está dizendo? — perguntei baixinho. — É meu título e quer dizer o líder ou o mais velho. — Mais velho? — A tradução é imprecisa. Significa que eu dou as ordens e eles obedecem. — Um tanto feudal, não é? Ele franziu a testa, mas antes que pudesse responder, o chamado foi ouvido de novo, ainda mais perto. — Ruvanush? — O que é? — Cartwright perguntou. A pessoa, sem sair das sombras, murmurou algumas palavras no idioma deles e Cartwright retrucou em um tom de voz áspero. — Tenho de ir. — Ele apeou e estendeu os braços para mim. — Agora? 64
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Senti-me corar pela estupidez da pergunta, e fiquei contente que ele não pudesse perceber por causa da névoa e da escuridão. Meu corpo ansiava pela realização e minha mente girava numa combinação de desejo e vergonha. Eu praticamente me joguei do cavalo, mais batendo no corpo dele do que deslizando com graça. Quando tentei passar por baixo de seu braço e fugir, ele me segurou. — Perdoe-me, mas eles estão precisando de mim. — Cartwright suspirou. — Eu sou o líder e você sabe como é isso. Eu sabia. Se alguém tivesse precisado de mim, eu teria ido, independentemente do que eu estivesse fazendo. Ou com quem. — Preciso voltar. — Eu tinha de encontrar Grace para saber o que ela descobrira. Aliás, estava surpresa por ela ainda não ter entrado em contato comigo. — Está bem, eu a verei mais tarde. Comecei a caminhar em direção à arena, imaginando o que eu faria para evitar que ele me seguisse e se despedisse com um beijo. O que não diriam meus munícipes? Virei-me ao escutar um galope, a tempo de ver Malachi Cartwright e seu cavalo sumirem na mata. Quando cheguei perto do picadeiro, a apresentação havia acabado e ninguém dera por minha falta. Para onde Cartwright fora? E o que teria acontecido de tão grave? Provavelmente, eu nunca saberia. A adivinha estava rodeada de gente. Eu não queria saber meu futuro, mas gostaria de fazer algumas perguntas sobre o talismã. Retornaria no dia seguinte com o pedaço de madeira. A corda de isolamento fora afastada da frente das jaulas e muitas pessoas se aglomeravam na frente do puma e do que parecia ser a gaiola do urso. Vários ciganos estavam ao redor, conferindo se tudo estava em ordem. Não encontrei Joyce, que deveria ter saído logo após o término da apresentação. Eu não a culpava, pois ela entrava na prefeitura bem mais cedo que eu. Fui até meu carro e, ao dar a partida, vi Sabina perto de algumas árvores. Acenei, mas ela não respondeu. Senti muito por ela, que parecia perdida e solitária. Imaginei se os ciganos a tratavam com desprezo por causa de seus problemas ou se cuidavam dela como se fosse um animal ferido. Pensei em falar com ela, mas, quando tomei a olhar, não a vi mais. A estrada para Lake Bluff estava escura. As copas das árvores laterais escondiam a luz das estrelas. Dirigi mais devagar que a velocidade permitida, alerta aos movimentos na mata. Um cervo pulou na minha frente e por pouco não causou um acidente. Pelo menos, eu contava com um air bag. Por algum tempo, os faróis dianteiros revelaram apenas o asfalto até que, de repente, uma sombra escura correu em minha direção. Desviei e pisei no breque. Os pneus atingiram o cascalho do acostamento, mas consegui parar o veículo na beira da valeta. 65
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Inspirei fundo, levantei a cabeça e me deparei com um lobo. Felizmente, o vidro estava fechado. Apesar disso, recuei e fechei os olhos, esperando uma chuva de estilhaços sobre meu rosto. Nada aconteceu. Abri um olho, depois o outro, e só vi as árvores. — Santo Deus! Afinal, eu vira ou não um lobo? Não me atrevi a procurar rastros que não saberia distinguir. Esse era um trabalho para Grace. Dei marcha à ré e saí do cascalho cantando os pneus, em direção de onde eu viera. Havia algo estranho em relação ao lobo que sumira tão depressa a ponto de eu ter duvidado de minha visão. Os pelos do animal eram castanhos, dourados e cinzentos, e seus olhos eram diferentes, embora eu só houvesse visto um lobo em livros ou pela televisão. Passei pela curva do lago e segui em frente. Grace morava a um quilômetro e meio dali, numa colina de onde se avistavam as montanhas de um lado e o lago, de outro. A casa pertencia à família dela havia séculos, um verdadeiro milagre ao se considerar a tendência do governo para tomar dos indígenas tudo o que tivesse valor. Um dos ancestrais dela havia se precavido ao transferir a propriedade para um amigo branco. O tal homem conservara a casa quando os cherokee tinham sido deportados pela Trilha das Lágrimas. Durante anos, os aniyvwiya, ou povo superior, como eles se autodenominavam, tinham permanecido isolados num local ermo de Oklahoma, sentindo saudades de suas montanhas. Alguns haviam voltado e se escondido nas colinas, junto com os que tinham conseguido escapar do desterro. Quando chegara o tempo de reaverem o que lhes pertencia, os McDaniel tinham recuperado as terras para sempre. Subi a encosta estreita e íngreme, passando por árvores frondosas que obscureciam ainda mais minha visão. Finalmente, avistei a casa de Grace que, de longe, me pareceu um castelo, embora fosse de madeira e não tivesse nem torres, nem fosso, nem dragão. Talvez a impressão se devesse ao fato de ela se erguer no alto da colina, branca contra a negritude da noite, com o telhado de duas águas e... os morcegos voando ao redor da chaminé. Deduzi que Grace se encontrava em casa por causa das luzes acesas e do carro de radiopatrulha estacionado ao lado do galpão de ferramentas. Eu deveria ter avisado que viria, mas, depois de ver o lobo, não quis tirar os olhos da estrada nem para pegar o celular. Saí do carro e os sons da noite me envolveram. Insetos, o vento, um farfalhar distante. A distância entre meu veículo e a casa pareceu muito grande. Bati a porta e corri. Subi os degraus da varanda, toquei a campainha com tanta força que a fiz soar várias vezes, e torci para que ela não estivesse tomando banho, ou ficaria irritada comigo.
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Grace não apareceu. Olhei o relógio e vi que ainda não eram dez horas da noite. Onde ela estaria? Toquei a campainha mais uma vez, e apurei os ouvidos para escutar seus passos. Comecei a ficar nervosa. A casa iluminada e o carro estacionado. E se ela tivesse caído e não conseguisse se levantar? Mexi na maçaneta. A porta estava trancada. Inclinei-me na lateral da varanda, espiei por uma janela, fiai até o outro lado e olhei pela outra. Mobília nova, mas nada dela. Seria melhor tentar a entrada dos fundos. Fitei o céu e estremeci ao ver uma sombra passar diante da lua prateada. Inspirei fundo e dei a volta na casa... de olhos fechados. Felizmente, ela não acrescentara nenhum enfeite novo no gramado ou eu teria caído no chão depois de estraçalhar algum gnomo de cerâmica. Bati e não obtive nenhuma resposta. A porta e as janelas também estavam trancadas. Resmungando, tirei o celular da bolsa e disquei o número da casa dela. Escutei o telefone tocar até entrar a mensagem da secretária. Liguei, então, para o celular, e escutei o toque ao longe. Virei-me, olhei a floresta e esperei que ela atendesse. Nada. Teria deixado cair o aparelho de telefone durante a busca? Ou teria desmaiado? Ou fora atacada pelo lobo? Ah, como desejei estar armada. E de que adiantaria, se eu nem mesmo sabia atirar? Desci os degraus e parei ao ouvir a mensagem, ao mesmo tempo em que olhava minha sombra projetada pela luz da lua. Eu estava arqueada e combalida, o que era péssimo. Endireitei-me tão depressa que a espinha dorsal estalou. Eu iria para a mata, encontraria Grace e enfrentaria o que houvesse acontecido a ela. Os dias de me encolher e me esconder haviam terminado. Eu era a prefeita, e precisava agir de acordo. — Grace! Eu estava na extremidade da floresta, com a casa vazia e iluminada de Grace atrás de mim e as montanhas escuras adiante. O nevoeiro se desfez e fiapos brancos se insinuaram através dos ramos, rodopiando cada vez mais rápido e chegando mais perto. — O que é isso? Não era o nevoeiro. Fechei e abri os olhos. A nuvem branca permanecia, mais sólida que uma bruma, embora eu não pudesse identificá-la. Eu ainda estava com o celular no ouvido. Nervosa, desliguei-o e enfiei-o no bolso sem tirar os olhos das ondulações brancas. Talvez o local fosse mal-assombrado. O que não me espantaria. Quatro mil cherokee haviam morrido na Trilha das Lágrimas. Por que alguns fantasmas não poderiam ter voltado? Eu não tinha medo de espíritos ou, ao menos, era o que eu pensava. Afinal, nunca tinha visto nenhum. No entanto, prendi a
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respiração e fiquei tensa, indecisa entre fugir ou lutar. Eu nem imaginava como enfrentar um espectro. A preocupação se desvaneceu quando a massa ondulante solidificou-se numa mulher e Grace saiu da mata vestindo um penhoar branco de algodão. Ela parou quando me viu no jardim e nós duas piscamos. — O que você está... — falamos ao mesmo tempo. — Algum problema? — Grace ergueu uma sobrancelha. Eu não sabia se ela se referia a Lake Bluff ou ao fato de andar na floresta vestindo apenas um robe. — Claire — Grace passou por mim — aconteceu alguma coisa na cidade? — Não. Sim. Bem, não exatamente na cidade. Ela olhou por sobre o ombro. Os cabelos soltos pareciam ainda mais escuros em contraste com o tecido branco. Virou o trinco e a porta foi aberta. Incrível. Talvez eu não tivesse girado a maçaneta do modo certo. Casas velhas tinham seus truques. — Tentei falar com você — eu disse. — Escutei seu celular tocando. Grace tirou o aparelho do bolso. — Por que não atendeu? — Não percebi que ele havia caído. Ainda bem que você ligou ou eu não o teria encontrado. — O que você estava fazendo na mata? Eu a segui para dentro da casa, que ainda era como eu me lembrava, uma moradia antiga que tinha sido modernizada no decorrer dos anos. A cor interna fora trocada, um tapete enfeitava o corredor e a nova mobília valorizava a sala. O piso de tábuas brilhava mais que no tempo em que o pai de Grace vivia. A cozinha havia sido remodelada, mas conservava o piso de vinil branco e pêssego, muito charmoso. Escutei a água correr no lavabo e, em seguida, Grace apareceu vestindo bermuda jeans e camiseta azul. — Quer tomar alguma coisa? — Ela foi para a cozinha e, mais uma vez, eu a segui. Ela tirou uma lata de cerveja do refrigerador e jogou em minha direção. Por pouco não a deixei cair. Quando abri a lata, a cerveja espumou e eu tive de tomar depressa alguns goles para não derramar a bebida. Grace bebeu um pouco e olhou pela janela. — Escutei um barulho estranho — explicou. — E saiu correndo de penhoar? Não era uma atitude típica de Grace. Ela encolheu os ombros, mas não comentou. — E se fosse o lobo? — Ele já foi embora. — Não sei, não. Depois de tomar mais um gole e engolir com ruído, ela colocou a lata no balcão. — Você o viu? — Sim — respondi.
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Eu lhe contei o que acontecera, mas ela não saiu correndo com uma arma, como eu esperava que fizesse. — Não encontrei vestígios do que procuramos e também ninguém viu Ryan Freestone. Terei de organizar uma equipe de busca. — Quando? — Amanhã. Estremeci. Como tínhamos a mesma experiência no serviço público, ela sabia no que eu estava pensando. — Manterei em segredo. Sairemos da cidade ao amanhecer, antes dos habitantes e turistas acordarem. — Obrigada pelo empenho, Grace. — Pensei que, a essa altura, o animal tivesse ido para as montanhas. Não é típico de um lobo permanecer perto de pessoas. — Talvez seja um lobo atingido pela raiva. — Ah, quanto otimismo, Claire — ela ironizou. Tomei mais um pouco de cerveja. — Eu o matarei amanhã — anunciou. — Não duvido. O silêncio que se seguiu foi tenso, e eu não sabia exatamente o motivo. Tratei de mudar de assunto. — Sua casa me parece sempre a mesma. — Não tenho tempo nem dinheiro para redecorar. — Está sugerindo um aumento de salário? — Pode se acostumar, estou sempre pensando em aumentos. — Não pretendi ser grosseira. Confesso que eu também não tenho tempo nem vontade de mexer na minha casa. — Eu... — Grace tomou mais cerveja, olhou para o forro e suspirou. — Fiz alguma coisa no andar de cima. — Ah, é? — Transformei o quarto de papai num escritório e redecorei o meu. — Jogou fora o pôster da banda NSYNC? — Tive de fazê-lo, era vergonhoso. — E os lençóis do Barney? — Também. O quarto dela nunca fora tão exagerado quanto o meu, onde abundavam pompons, rendas branca e rosa e unicórnios. Era tão enjoativo que, ao retomar, eu tinha ocupado o quarto de hóspedes. Na adolescência, Grace colecionava panteras. As paredes eram repletas de fotos de revistas. Na penteadeira e no criado-mudo empilhavam-se réplicas empalhadas e estatuetas. Nas prateleiras, livros tanto informativos quanto de ficção. Quem não conhecia a antiga tradição cherokee poderia estranhar. Na sociedade matriarcal, as crianças nasciam como membros dos clãs de suas mães. Eram sete clãs e Grace nascera sob a égide do clã Azul, também conhecido como clã da Pantera. Ela 69
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levava aquilo muito a sério, especialmente porque, nos dias atuais, já se perdera muito conhecimento sobre os clãs, e muito poucas pessoas conheciam sua origem. — Posso ver o que você fez? Ela deu de ombros e levou-me para cima. A casa tinha três pavimentes. O primeiro era a área social, no segundo ficavam os quartos e o terceiro tinha sido ocupado pelo pai dela. As portas do segundo andar estavam fechadas. Imaginei se os irmãos haviam levado os pertences ou deixado para acumular poeira. Grace abriu a porta de seu quarto, que ela transformara numa versão moderna de floresta. A coleção de panteras não mais existia. As paredes tinham sido pintadas de verde-musgo. O tapete era azul e a colcha lembrava um gramado exuberante. Almofadas à semelhança de lírios, violetas e sempre-verde estavam espalhadas a esmo. As cortinas fechadas eram da mesma cor das paredes e com elas se confundiam. Escutei um borbulhar suave de água, que lembrava um regato. Olhando ao redor, descobri que o som vinha de uma fonte em miniatura atrás de um anteparo, que parecia um pântano cheio de musgo e flores coloridas, no tom de um entardecer após uma chuva de verão. Aquele nicho tinha um cheiro diferente do resto da casa, que lembrava grama seca após a queda de um raio. Não havia velas, enfeites ou desodorizadores elétricos de ambientes. — É surpreendente — afirmei. — Aqui eu me sinto em casa. O recinto tinha um efeito tranquilizador. Imaginei esconder-me entre as cortinas verdes, a água borbulhante, as cores suaves, o tapete e a manta grossa durante a primavera, o verão, o inverno ou outono e dormir como um bebê exausto. Refleti que eu também precisava reformar meu quarto. E que tipo de decoração me faria sentir em paz, se a falta de harmonia estava dentro de mim? Um assunto para a próxima visita ao dr. Phil. Se bem que eu estava cansada das sessões de análise. Grace não disfarçou uma espiada no relógio. — Ah, perdão. — Fui até a porta. — Você tem de sair cedo amanhã. Nós nos despedimos e fui para o carro. Só então me lembrei que ela não me mostrara o que tinha feito com o escritório do pai. Olhei a janela solitária do terceiro andar. Em vez da iluminação elétrica que alegrava o resto da casa, ali a luz era mais suave, como se fosse oriunda de velas tremeluzentes, o que não era seguro. Grace poderia ir dormir e se esquecer de apagá-las. Eu estava prestes a sair do carro para avisá-la, quando ela surgiu na janela do escritório e inclinou-se para fora. Ao ver-me, acenou mais uma despedida e fechou a veneziana. A volta para casa me deixou apreensiva, e não apenas por eu perscrutar a mata à procura de um gamo ou do lobo solitário. A visita a Grace me incomodara, embora eu não soubesse precisar o motivo. Por que ela fechara a veneziana no terceiro andar? Quem enxergaria alguma coisa do lado de fora, a menos que fosse um bombeiro ou alguém que pudesse voar? O 70
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que ela fazia lá em cima? Qual a utilidade de um escritório iluminado com velas? Era a maneira mais rápida e certeira de arruinar a visão. Sacudi a cabeça, pois, afinal, o problema não era meu. Grace sempre fora diferente e por isso eu gostava dela. Passando pela curva do lago, reparei que as luzes do palco haviam sido apagadas e que o local parecia deserto. Para onde Cartwright teria ido? Ele já teria retornado? Desci as ruas de Lake Bluff rumo à minha casa. Em geral, a população se recolhia cedo, mas, durante o festival, as calçadas ficavam lotadas até depois da meia-noite. A sorveteria estava aberta, assim como a confeitaria e o café. Casais andavam de braço dado, comendo pipoca comprada na praça da cidade, crianças corriam pelo gramado caçando pirilampos, uma mulher empurrava um carrinho de bebê e tomava sorvete. Vi um dos subordinados de Grace e alguns dos policiais contratados para a festa. Tudo parecia estar sob controle. Eu esperava que o barulho, as luzes e o cheiro de comida não atraíssem um lobo, porém não podia mandar o povo sair das ruas nem os comerciantes fecharem as lojas. Eu confiava na competência de Grace, que certamente avisara seus comandados do que estava ocorrendo. Percebi dois guardas com rifles no final da Center Street, patrulhando a pequena área entre a cidade e a mata. Mais sossegada, fui para casa. Ao me aproximar, admiti que ela não parecia convidativa. Com as luzes apagadas, a construção tinha aspecto hostil. Estacionei o carro na garagem aberta e fui para a porta, esperando abri-la antes de os faróis se apagarem. Não deu tempo. Eu tirei as chaves do bolso quando tudo escureceu. A iluminação pública não alcançava a ladeira e as nuvens escondiam a lua. Escutei um riso ao longe e a batida de uma porta, o que me lembrou da minha solidão. As portas do carro travaram e tive a impressão de ouvir passos. Apesar de saber que era tolice, não conseguia parar de tremer enquanto enfiava a chave na fechadura. Deixei o chaveiro cair no chão e me assustei com o ruído forte. Suspirei, aborrecida. Abaixei-me, peguei as chaves e enfiei uma delas na fechadura. A porta se abriu para a escuridão, de onde dois olhos amarelos me fitavam. Prendi a respiração antes de escutar o miar estressado. — Oprah! O que aconteceu com você? Escutei um arrastar ligeiro no piso — de uma pata ou um sapato — e senti-me zonza. O lobo devia estar atrás de mim, pronto para me atacar. Virei-me e constatei que, infelizmente, eu estava errada. — Claire. Josh Logan aproximou-se e, naquele momento, a lua apareceu banhando em prata o belo rosto. Ele nunca parecera tanto uma sanguessuga. — Eu estava esperando por você. Consegui entrar e encostar a porta, mas Josh foi mais rápido e prendeu-a. — O que houve cora você, Claire? — Ele me seguiu. Afastei-me depressa para ficar longe do alcance dele. Josh fechou e trancou a porta, e acendeu as luzes.
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O aspecto dele não mudara e eu duvidava que ele houvesse perdido sequer uma noite de sono pelo que acontecera. Jovem, loiro, bronzeado, ele era o queridinho de Atlanta. Nascera em Washington, D.C., seu pai era um congressista e a família toda era formada por advogados. Inclusive a mãe, que também era lobista, e a irmã. Josh era a luz e a esperança dos Logan. Cursara a Universidade da Geórgia e depois Harvard, antes de trabalhar para o governador. A corrida para esse cargo seria um passo no caminho dele para a Casa Branca. — O que você quer? — perguntei. — O que eu sempre quis, Claire. Você. Eu me arrepiei. Tinha sonhado com isso centenas de vezes, mas nunca imaginei que pudesse mesmo acontecer. Por que Josh retornaria à cena do crime, digamos assim? Por que ele correria o risco de que, ao vê-lo, eu percebesse minha própria estupidez? E que entendesse que eu deveria chamar a polícia e me assegurar de que ele jamais fizesse de novo o que tinha feito comigo? Talvez ele não fosse tão esperto assim. Na escada, Oprah começou a resmungar e Josh fitou a gata, que arranhou a madeira dos degraus antes de subir e desaparecer. Quando ele voltou a me fitar, desejei ser um gato para seguir Oprah. O mais importante era fazê-lo sair da casa junto comigo. Seria minha única chance. Virei as costas e, como ele não me jogou no chão para rasgar minhas roupas, entrei na cozinha e aproximei-me das portas de vidro. Parei ao escutar a porta da geladeira ser aberta e olhei para trás. — Você não tem champanhe? — Ele procurou e tirou uma garrafa de vinho branco. — Este mesmo serve. Pegou duas das minhas taças e fez sinal para eu continuar. Eu deveria ter aproveitado para escapar e me esconder na mata enquanto ele estava com a cabeça dentro do refrigerador. Meus reflexos não estavam tão rápidos como deveriam. Eu precisava concentrar-me e não deixar escapar a próxima oportunidade de sair dali. No deque, ele deixou a garrafa sobre a mesa, serviu as duas taças e ofereceu-me uma. — Precisamos conversar. — Conversar? — Aceitei o vinho, mas não bebi. Se eu atirasse a bebida no rosto dele, poderia fugir. Josh caprichou no sorriso de campanha que custara uma fortuna em tratamento ortodôntico. — Eu a quero de volta, doçura. Senti muito a sua falta. — Sentiu minha falta? surpresa me fez repetir o que ele disse. — Nós não namoramos muito tempo, mas você me atingiu — ele bateu no peito com o punho fechado — direto aqui. Uma risada histérica ameaçou escapar. Ele estaria falando sério? Por que teria ido a Lake Bluff, a não ser...? Revoltei-me contra a ideia do que ele poderia querer. Eu preferia morrer. Ou matá-lo.
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— A minha candidatura a governador será lançada em breve. Teremos de assumir o compromisso imediatamente. — Sobre o que está falando? — Você é perfeita. Teremos de dar ênfase ao cenário dos Apalaches. — Ele apontou as montanhas com a taça e um pouco de vinho derramou-se pela beira. — Você nasceu nas montanhas Blue Ridge, o que é muito interessante. Será que você não teria uma avó desdentada para exibirmos? — Ali? Ele se aproximou. — Você terá de vir para casa comigo esta noite. Sua permanência aqui foi de poucas semanas, mas já está perdendo aquele refinamento que eu amava. Josh tocou meus cabelos, ignorou — ou talvez nem tenha notado — meu estremecimento, e enrolou uma madeixa nos dedos. — Acho que seria melhor que você fosse loira. Amanhã daremos um jeito nisso. — Ele atravessou o deque. — Arrume suas malas. — Você... acredita mesmo que eu aceitaria o casamento que está me propondo? Ele virou-se devagar. — E por que não? Serei o próximo governador da Geórgia. — Não, não será. Josh deu um suspiro de impaciência. — Claire, pensei que você houvesse entendido o que estava em jogo. — Como é? — Eu a levei a todos os lugares para ter certeza de que todos nos veriam juntos. Depois, meu pessoal fez um levantamento sobre a opinião popular a nosso respeito e elas foram aprovativas. Eu soube do resultado no dia em que fizemos amor. Eu engasguei, abismada. — Aquilo não foi amor. Ele se mostrou inegavelmente aliviado. —Ainda bem que você entende, assim não terei de fingir. Você não se importará se eu tiver uma namorada, não é? Você tem de admitir que é um pouco fria no quesito sexo. Fiquei boquiaberta. Ele era completamente louco. — Os americanos gostam de pobres-diabos. — Ele abaixou a voz, — É claro que não sou um, mas você é. Ter vindo de onde veio — apontou para Lake Bluff com desprezo — e completar com êxito tudo o que conseguiu, como deixar para trás as origens camponesas e perder o sotaque horrível. Se eu não soubesse que você faz parte da gentalha branca do Sul, nem teria desconfiado. Muitos dos entrevistados confiaram em você. Assim, se ficar ao meu lado como minha esposa, se lhes disser que deverão votar em mim... — Ele espalmou as mãos e deu uma piscadela. — Deixe-me ver se entendi direito. — Eu me esforcei para demonstrar calma. — Você namorou comigo para ver como eu me comportava em público. Depois, encomendou uma pesquisa de opinião e... 73
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— Eu a possuí. Nisso ele tinha razão. Possuíra com todas as letras. — Afirmei meus direitos. — Ele abaixou as mãos. — Isso é coisa de homem. — É coisa de estuprador. — O quê?! — Josh não escondeu o espanto. — Você me estuprou. — Não diga asneiras. Eu não estava disposta a perder tempo discutindo com ele. Preferia chamar Grace. Tirei o celular do bolso e Josh agarrou-me, numa reação previsível. — Nós namoramos durante meses, Claire. — Foi meu erro. — Gastei muito dinheiro em espetáculos e jantares e você me devia isso. — Tem razão, Josh, sempre existe a hora de pagar. Ele relaxou um pouco, mas não me soltou. — O que acha disso, Josh Logan? — eu continuei. — Você irá diretamente para a cadeia e não se elegerá governador da Geórgia. Eu sabia que ele não seria preso, pois eu não tinha provas e seria a palavra dele contra a minha, mas foi ótimo dizer aquilo. Minha cabeça foi lançada para trás quando ele me estapeou, e senti gosto de sangue. Meu celular soltou-se de minhas mãos subitamente sem energia e caiu no chão com um ruído seco. Por um momento, havia pensado que poderia enfrentá-lo, que ele pagaria pelo que fizera. E, então, depois de um tapa, eu nem mesmo conseguia mais pensar, muito menos me defender e chamar a polícia. Eu jamais apanhara. Agarrada, sacudida, violada, sim, mas nunca estapeada. Ninguém pode imaginar o choque que isso representa, não tanto pela dor, mas pela frustração de saber que alguém pode atingi-la sem que você consiga impedir. De repente, ele foi puxado para trás. — Batendo em uma mulher? — Cartwright levantou-o no ar pelo colarinho e sacudiu-o. — Sem-vergonha. As pernas de Josh se sacudiram, os sapatos bateram nas canelas e os joelhos nas coxas. Cartwright não pareceu notar. — Quer que eu o mate? — ele me perguntou com doçura. Os olhos de Josh estavam a ponto de saltar das órbitas. — Solte-o — pedi. — Não sei se farei isso — ele falou, com acentuado sotaque irlandês. — Solte-o — insisti. Cartwright arqueou uma sobrancelha. — Tem certeza? — Tenho. Ele, então, atirou Josh para o outro lado do deque, e o grito de protesto foi substituído por um de dor. 74
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— Por que você fez isso? — perguntei. — Ele não deveria estar respirando o mesmo ar que você. Um berro de fúria fez com que nos voltássemos. Em pé, Josh estava com o terno rasgado e sujo, tinha arranhões no rosto e avançava na minha direção, mancando. — Sua rameira, eu a matarei por isso. Cartwright interpôs-se entre nós e Josh rugiu com ódio. Ele não parecia humano até puxar a arma. — Droga — murmurei, procurando meu celular. Não que eu fosse conseguir ajuda com mais rapidez que a trajetória de uma bala, mas, ao menos, podia atirar o aparelho na cabeça dele. — Você acha que isso me mete medo? — Cartwright perguntou. — Deveria. Ele riu e socou Josh no nariz, que levou as duas mãos ao rosto que sangrava, derrubando a arma. — Você quebrou meu nariz. — Fique feliz por eu não ter quebrado seu pescoço. — Ele puxou-o pela camisa. — Atreva-se a chegar perto dela outra vez e eu o farei desejar a morte. A ameaça parecia saída de um filme de John Wayne, mas a fisionomia de Cartwright convenceu Josh de que não se tratava de brincadeira, pois ele arregalou os olhos e empalideceu. Foi largado no chão com um gesto de nojo. — Chame a xerife — Cartwright ordenou. — Não seria melhor uma ambulância? — Não se pode fazer nada a respeito de um nariz quebrado. — Acho que ele está inconsciente — eu disse. — Ele desmaiou. — Cutucou-o com a ponta da bota. — Também não se pode fazer nada a respeito disso. Peguei o celular no chão e olhei o visor. — Quebrado. — Nada durava ultimamente. — Preciso entrar. Ele assentiu, abaixando-se para pegar o revólver. — Ele poderia ter atirado em você, O luar prateou o olhar negro dele. — Não com o dispositivo de segurança acionado — disse, examinando a arma. — Ele poderia ter soltado isso e atirado antes de você o atingir. — É possível. — Ou você é muito corajoso, ou muito estúpido. Ele franziu o cenho. — Homens não devem bater em mulheres. Os que fazem isso não são homens, são bestas. — Virou o rosto para a lua. — Ele merece bem mais punição do que recebeu. Cartwright estava certo. Mas, se eu o deixasse puni-lo, ele acabaria na cadeia. Era assim que a polícia funcionava. — Posso me lavar? — perguntou, mostrando as mãos sujas de sangue. — Claro. — Olhei para Josh, que continuava imóvel. — Ele vai se recuperar logo — Cartwright garantiu. — E, se ele resolver ir embora, você sabe onde encontrá-lo. Nós dois entramos em casa. 75
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Grace atendeu no sexto toque e pareceu bem desperta. — Estarei aí em cinco minutos. Cartwright afastou-se da pia e secou as mãos num pano de prato. — Sinto não ter vindo antes. Eu fiquei... retido. — Está tudo bem em seu acampamento? — Afinal, ele fora chamado às pressas. Ele anuiu e olhou a porta aberta. — Maldição. Josh sumira.
Malachi Cartwright correu para fora e desceu os degraus dos fundos antes de eu conseguir agarrá-lo. — Espere! — gritei. — Ele vai fugir. — Como você mesmo disse, sei onde ele mora, onde trabalha e onde se diverte. Ele não escapará. Cartwright parou com dedos longos no corrimão da escada e as meias-luas das unhas se destacaram na pele azeitonada. — Eu me sentiria melhor se o encontrasse agora. Observei as árvores pré-históricas e lembrei-me do que poderia estar na floresta. — Creio que há um lobo hidrófobo vagando pela mata. Ele se virou e olhou-me com o cenho franzido. — Pensei que não houvesse lobos nessas montanhas. — Alguém se esqueceu de dizer isso ao animal. — Alguém viu a fera? — Eu vi. — Você? — A fisionomia dele ficou carrancuda. — Quando? — Esta noite, um pouco mais cedo. Quase passei por cima dele na estrada, nas proximidades de seu acampamento. — Ele devia estar por lá por causa das jaulas e do cheiro dos animais. — Ou das pessoas. Vocês precisam ter muito cuidado, pois estão muito expostos no acampamento. Grace vai sair de madrugada com uma patrulha em busca do animal. — É mesmo? — Ele pareceu divertir-se. — Grace é a melhor rastreadora da cidade. — E ela pretende caçar a fera à luz do dia? — Caçar à noite é um pouco difícil e ilegal também, embora Grace não se importe muito com legalidades. — Contanto que eles não se aproximem muito do lago ao pôr-do-sol, darei minha permissão.
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Permissão? Abri minha boca para perguntar do que ele estava falando e lembreime do estranho contrato dos ciganos a respeito da privacidade do acampamento no lago. — Por que eles terão de ficar afastados depois do entardecer? Vocês trazem vampiros na caravana? — Há anos não vejo um vampiro — ele afirmou, e riu de meu espanto. — Nós fazemos apresentações à noite. Não acho que seja seguro ter pessoas armadas circulando pelo lago. Aquilo fazia sentido ou, ao menos, mais sentido que abrigar vampiros. — Tenho certeza de que Grace achará o animal amanhã. Ele resmungou, descrente. — Talvez fosse melhor você esperar um pouco. Grace vai querer falar com você. — Não tenho a menor dúvida. — Ele endireitou os ombros, como se estivesse se preparando para uma batalha. — Mas ela sabe onde moro, trabalho e me divirto. Ela poderá me encontrar. — Ela não ficará nem um pouco satisfeita, — Quem não está satisfeito no momento sou eu. — Ele tocou meu rosto. Eu não estremeci nem senti vontade de recuar. Em vez disso, recostei-me nele, procurando carinho e conforto. — Enquanto eu estiver aqui, Claire, eu prometo que ninguém a fará sofrer. Antes que eu pudesse fazer um comentário, ele desapareceu na escuridão. Imaginei se ele pensava mesmo em ir atrás de Josh, que, na certa, viera numa BMW e deveria estar se dirigindo em alta velocidade rumo a Atlanta. Se bem o conhecia, ele traria logo cedo as autoridades para Lake Bluff com um mandado de prisão para Malachi Cartwright. — Essa não — murmurei. Se prendessem o líder cigano, os outros continuariam as apresentações? Caso contrário, nosso festival ficaria arruinado. Eu nem podia acreditar que estivesse me preocupando com isso naquela altura. Mas, afinal, era minha obrigação como prefeita da cidade. Um uivo irrompeu do meio das árvores, elevando-se para o luar prateado. Fiquei na varanda por mais alguns instantes e não escutei resposta, A campainha tocou. Eu entrei e fechei a porta de vidro. Grace estava na entrada, de uniforme. A blusa fora abotoada em viés, os sapatos não estavam amarrados e os cabelos soltos a deixavam com aparência mais jovem. Era possível que estivesse dormindo quando eu telefonei. — Eu estava morrendo de vontade de prender esse homem. — Ela passou por mim pisando duro. — Onde ele está? — Foi embora. — Claire, pare com essa brincadeira idiota. Já é tarde. — Eu gostaria que fosse uma troça. Pensamos que ele estivesse desacordado e, quando vimos, tinha sumido. Malachi foi procurar por ele. 77
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Grace ergueu as sobrancelhas. — Malachi, é? Saíra sem querer. — Parece uma tolice, para não dizer ingratidão, continuar usando o sobrenome depois do que ele fez por mim. — Posso imaginar. — Grace pegou o microfone do ombro. — Enviarei um comunicado para prenderem Logan. — Não faça isso. — Claire — a voz dela tinha um tom de advertência — você tem de processar esse patife. Depois de hoje, poderemos pegá-lo. — Eu sei, e prometo que vou fazer isso, mas não podemos esquecer o comunicado por ora? Não acho que um escândalo desse porte será bom no momento, nem para a cidade nem para mim. Não podemos manter isso em segredo, pelo menos até o festival terminar? Grace pensou por alguns instantes. — Está bem, falarei com o Departamento de Polícia de Atlanta amanhã cedo. Eles o pegarão na surdina. — Obrigada. Está tudo pronto para amanhã? Ela me fitou sem entender. — A caça ao lobo? — lembrei-a. — Ah, sim. Falei com todos depois que você foi embora. — Ela olhou o relógio e estremeceu. — Nós nos encontraremos no lago às quatro da manhã. — Escutei um uivo pouco antes de você chegar. Ela ergueu a cabeça. — Onde? Apontei na direção das montanhas. — Tem certeza que veio dali? — Não muita. Grace anuiu, sem se aborrecer. — Uivos são realmente misteriosos. Só poderíamos dar a localização exata deles se fossemos um lobo. E dois podem soar como uma dúzia. — Mas um soa apenas como um, certo? — Certo. — E eu escutei apenas um. — Ótimo, nem queremos uma matilha. Eu teria de avisar o Departamento de Recursos Naturais. Ninguém gostava muito dos policiais daquela área, muito menos os caçadores. Os afeitos ao esporte de caça e pesca provavelmente retrocediam ao tempo em que caçar e pescar eram meios de sobrevivência. Espíritos pioneiros dessa monta se aborreciam seriamente quando se tentava regulamentá-los. — Então, Cartwright vai voltar? Você podia explicar o que está acontecendo e informá-lo que estaremos naquela área amanhã. 78
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— Já fiz isso. — Qual a reação dele? — Que, se não for depois de escurecer, você tem a permissão dele. — Não preciso da autorização de ninguém. — O contrato — eu a lembrei. — Circunstâncias de exceção têm mais valor do que um contrato. Um lobo hidrófobo pode estar rondando a floresta. Cartwright terá de entender isso. — Tem certeza? Talvez eu devesse pedir a Catfish para dar uma espiada nos termos do acordo. Catfish Waller era o único advogado de Lake Bluff. Numa cidade que vivia do turismo, não havia muitas pendências advocatícias e, como os grandes casos eram encontrados nas grandes cidades, todos os nossos advogados haviam migrado para elas. Catfish, que devia ter setenta anos, passava o tempo livre, ou seja, a maior parte do tempo fumando charuto na varanda de sua casa que também servia de escritório. Nunca se casara, talvez por causa dos charutos insuportáveis. — Não precisa aborrecer Catfish, sei do que estou falando. — Grace foi até a porta da frente. — Você ficará bem? — Claro. Ela virou a cabeça e os cabelos negros balançaram nos quadris. — Quer que eu lhe faça companhia? Podemos comer pipoca e ver alguns filmes. — Obrigada. — Sorri. — Você precisa estar em forma amanhã cedo e já perdeu horas preciosas de sono por minha causa. Grace deu de ombros. — Já fiz mais do que isso sem dormir. Se você está com medo, ficarei. Mesmo ela tendo sofrido com a minha partida e tendo ficado com raiva com a minha volta, estaria sempre ao meu lado, se eu precisasse. — Grace, eu deveria ter mantido contato depois que fui embora. — Com certeza. — Desculpe-me, mas eu pensava apenas em construir uma vida nova. — E eu fazia parte da antiga. Nós já falamos sobre isso. Segurei-lhe o braço. — Eu estava errada. Você foi a melhor amiga que já tive e a melhor que terei. — Eu sei. Dei risada. — Então, somos de novo melhores amigas? — Não. — Ela abriu a porta antes de concluir: — Sempre fomos melhores amigas, Claire, e isso nunca mudou. Esperei que ela desse partida na viatura, saísse da alameda e pegasse a estrada. Fui para a cama e não pensei que conseguiria dormir. O meu pesadelo cruzara minha porta, o que fora... o pior dos pesadelos. Mas tudo tinha saído a contento. Eu me sentia como se, depois de encarar meu demônio, eu houvesse sobrevivido. 79
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Admito que me sentira paralisada no início, mas, com a ajuda de Malachi, eu não ficara encolhida num canto falando sozinha. Eu dera os primeiros passas para acabar com a liberdade de Josh e para ter certeza de que ele não repetiria aquilo com mais ninguém. Eu impediria que ele assumisse uma posição de confiança e poder no meu estado. Afinal, tinha sido uma boa noite de trabalho. Adormeci no momento em que deitei a cabeça no travesseiro, ou pelo menos foi o que supus. O que aconteceu depois do nevoeiro entrar de novo em meu quarto foi muito real. Eu estava deitada na cama quando a névoa passou pelo beiral, pelo chão e por cima de mim. Foi um roçar leve e frio no meu corpo desnudo, fazendo com que eu me contorcesse e quisesse mais. Flutuei acima de mim mesma, como um voyeur, embora pudesse sentir cada toque. Os mamilos enrijeceram e os seios incharam. Entreabri as pernas, permitindo que o nevoeiro tocasse os pelos vermelhos e umedecidos. Senti o toque de uma língua e arqueei o corpo, pronta para a realização que estava próxima, mas que eu não podia alcançar. A névoa voltou pela janela, como se tivesse sido sugada por um remoinho. — Não. — E foi o som de minha voz que me acordou. Empurrei as cobertas, e não estava nua como no sonho. Contudo, eu me encontrava à beira do orgasmo, arfando, com a pele arrepiada e a mente girando. Alguma coisa se mexeu aos pés da cama. Dois olhos amarelos me espiaram em cima do colchão e eu sufoquei um grito. Oprah pulou para o chão e foi embora. O vento agitou as cortinas. Quando me deitara, tinha tido a impressão de que a janela estava fechada. E agora estava aberta. Lentamente, virei a cabeça. — Não tenha medo. Assustei-me, mesmo reconhecendo a voz e a silhueta do homem que entrava pela janela. Puxei as cobertas até o pescoço. — O que você está fazendo aqui? Como foi que entrou? — A janela estava aberta. Estaria mesmo? Talvez, mas... — Este é o segundo andar. — Você achou que, se alguém desejasse, não conseguiria entrar por aqui? Eu tinha achado exatamente aquilo. A casa era grande, de pé-direito alto, o que tornava o segundo pavimento bem mais distante do chão do que o normal. Além disso, não havia cano de drenagem próximo ao meu quarto, por onde alguém pudesse subir. — É impossível escalar a parede. — Não é verdade, ou eu não estaria aqui. O sotaque acentuado e a maneira um pouco forçada de falar fez-me lembrar de que o inglês não era sua língua materna, ou seu único idioma. — Por que você está aqui? Encontrou Josh? Ele hesitou e suspirou. 80
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— Não. — Nenhum rastro? — O sangue do nariz deixou uma trilha até o carro. — Não importa. Amanhã Grace cuidará de tudo. — Homens daquela espécie... têm uma maneira particular de esquivar-se dos problemas. — Não dessa vez, eu garanto. Ele inclinou a cabeça e o luar se refletiu no brinco, provocando uma luminosidade intensa. — Por que você usa um crucifixo na orelha? — perguntei. — E onde eu deveria usar? — Ele sorriu. — A maioria dos católicos o usa no pescoço. — Eu afirmei que éramos batizados católicos. — Mas não são, não é mesmo? — E o que mais poderíamos ser? — Respondendo uma questão com outra? — E o que há de tão errado em retrucar com uma pergunta? — Isso o faz parecer culpado. — Não sabia que você suspeitava de mim por algum motivo. — Estamos apenas conversando. O que mais eu poderia fazer quando um homem escalava minha janela no meio da noite? Na verdade, eu sabia o que fazer, principalmente com ele, mas não tinha certeza de estar preparada. Malachi parecia sentir minha inquietação. Ficou perto da janela, recostado no peitoril, a imagem da tranquilidade, sem representar a menor ameaça. — Nós sempre exibimos os símbolos dos povos que habitam as terras ao redor de onde estamos — explicou. — Por que fazem isso? — Para evitar perseguição. — Hoje em dia, as pessoas não são mais perseguidas por causa de sua religião. Ele sorriu para mim como um pai faria com uma filha querida que acabava de dizer uma tolice. — Acha mesmo que, se os seus conterrâneos soubessem que adoramos o fogo e a lua, concordariam tão rapidamente em contratar nossas exibições com o dinheiro tão arduamente conquistado? Era provável que não, mas... — Eles não os perseguiriam. — Você testemunhou o que houve na farmácia com Sabina. Eu vira, sem dúvida. Fez-se um silêncio constrangedor. Embora eu mantivesse o olhar fixo nos raios de luar que penetravam pela janela e se espalhavam no acolchoado de minha cama, sentia que ele não tirava os olhos de mim. 81
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— Claire? Fitei-o e fui capturada pelo que enxerguei em seu olhar. Ele me desejava, mas não daria o primeiro passo. A iniciativa teria de partir de mim. Havia poder naquilo, controle, força, tudo o que tinha sido tomado de mim por Josh Logan. E eu queria tudo de volta. Para ser sincera, esse homem deveria me aterrorizar. Ele quebrara o nariz de Josh. Levantara-o com facilidade e o sacudira como se ele fosse um boneco. Sua força física não era apenas superior à minha, mas também a de qualquer outro homem que eu tivesse conhecido. No entanto, ele a usara para me defender e eu não acreditava que seria capaz de levantar um dedo contra mim. Não sabia ao certo por que confiava nele, por que sentia como se o conhecesse, como se sempre o tivesse conhecido, por que ele me parecia tão familiar. Atravessei o quarto. Ele continuava recostado na janela, os dedos crispados no batente de madeira. Tinha dito que não me tocaria a menos que eu pedisse ou implorasse. Parei diante dele e encostei meus pés descalços nas botas negras. Estendi minha mão e, quando ele pôs sua palma na minha, instiguei-o a ficar em pé. Estávamos separados por alguns centímetros. Se eu oscilasse um pouco... Ele prendeu a respiração quando meus mamilos enrijecidos tocaram seu peito, e eu inclinei a cabeça para trás. — Beije-me — sussurrei. Quando nossos lábios se encontraram, senti o gosto do nevoeiro. Tive uma vontade absurda de sorvê-lo inteiro e me deliciar com o sabor. Mordisquei e acariciei seu lábio, até sugar sua língua e fazê-lo gemer. Esperava que ele fosse me tomar nos braços, mas ele limitou seu toque ao beijo. Seu controle era fenomenal. Ele fizera uma promessa e pretendia cumpri-la. — Acaricie-me em todos os lugares — eu pedi, afastando minha boca alguns milímetros. — Você tem uma corda? — ele sussurrou. — Para quê? — Prometi que poderia me amarrar para não ter medo. Recuei um pouco. — Não tenho medo. — Não? — Não — disse com firmeza. Eu não estava com receio, o que era um verdadeiro milagre. O que eu sabia a respeito dele, além do que ele mesmo me dissera? E poderia ser tudo mentira. Contudo, ele tivera oportunidade de possuir-me à força como Josh fizera. Em vez disso, tinha sido bondoso e paciente, e me protegera. Eu queria dar-lhe algo em troca. Segurei sua mão e levei-o até minha cama. Eu precisava ver o corpo dele sob o luar, assim como o vira sair do lago. Queria tocar nele, passar as mãos e a boca por toda parte. Quando alcancei o primeiro botão 82
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de sua camisa, ele me encarou com calor, mas também com ternura. Devagar, soltei cada um, revelando um peito glorioso. Depois de jogar a camisa no chão, tracei com a língua o contorno de seus músculos. A pequena elevação dos mamilos, a curva da cintura e as costelas sob a pele retesada. Lambi-o por baixo da faixa já meio solta que cobria sua cintura, e ele estremeceu. O ruído do zíper foi ouvido em meio ao silêncio. Um movimento, e a calça deslizou até as botas. Ele livrou-se dela e das meias. Eu não conseguia parar de olhá-lo, fascinada com o jogo dos raios de luar e das sombras lançadas pelas árvores. Ele se assemelhava a uma estátua de bronze e prata. Com a cabeça atirada para trás, os cabelos alcançavam os ombros, e as madeixas mesclavam-se ao brinco. Ele abria e fechava as mãos ao lado do corpo, entregue às minhas iniciativas. Eu o fitei, querendo memorizar para sempre aquele momento. De joelhos diante dele, a posição deveria ser de submissão, mas não era. Eu estava vestida, e ele, à minha mercê, desnudo e excitado. Senti sua parte mais íntima tocar em mim e, inclinando-me, tomei-o entre os lábios. Ele suspirou levemente, sem segurar-me a cabeça ou instruir-me sobre o que fazer. Agiu de maneira completamente diferente do que faria qualquer homem naquelas circunstâncias. Ele me deixou à vontade. Eu queria aprender tudo a respeito dele. O sabor, a textura, o formato e o comprimento. Qual a melhor maneira de excitá-lo e do que ele mais gostava. Levei-o ao limite, recuei e tornei a excitá-lo. E, durante esse tempo todo, ele não me tocou uma única vez. Foi a melhor maneira de experimentar o sexo que eu já tivera. Aumentei o ritmo e a pressão, mas, no último instante, ele recuou. Estendi o braço, mas ele me impediu com a mão. — Você não precisava parar — eu sussurrei, sentando-me na cama. — Precisava, ou não sobraria nada para você. — Não me importo. — Ainda não está pronta? Hesitei. Agradava-me ficar no controle da situação, mas eu estaria pronta para que ele ficasse? — Quer que eu pegue a corda? Sorri. Ele ficava à vontade comigo, e para ele aquilo era fácil. Eu gostaria que fosse assim comigo, — Deite-se, Claire, quero fazer alguma coisa por você. Para mim, e não comigo. Fiz o que ele pediu. Por alguns instantes, a sombra dele bloqueou o luar, trazendo más recordações. Mas palavras doces murmuradas em romani e em gaélico me acalmaram. Ele se ajoelhou, afastou minhas pernas, ergueu a bainha da camiseta e beijou-me o ventre. Acariciou minhas nádegas, os contornos dos quadris e as coxas trêmulas, passando os polegares na junção sensível da pélvis com a perna. 83
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Eu me abri para ele e senti a boca firme e quente, como no sonho. Eu não estava despida, mas o tecido fino do meu pijama não foi um empecilho. Ele continuou a fazer pressão no lugar certo, o que me fez implorar, como ele prometera. Fui eu quem me livrei das calças, chutando-as freneticamente. Eu agarrei seus cabelos enquanto ele se esmerava em inovações eróticas com a boca e a língua. O brinco fez cócegas na parte interna de minha coxa e prendi a respiração, mesclando o gemido a um risinho. Eu me movi o suficiente para que, no carinho seguinte de sua língua, eu não conseguisse mais rir ou gemer. Eu apenas sentia a aproximação do clímax. Ele não parou, investindo, acariciando, proporcionando-me tanto prazer que eu já não sabia ao certo se tinha tido um ou dois orgasmos. Eu não me importava. Quando os tremores cessaram, ele beijou o meu ventre e recuou. Com os braços largados no colchão, eu abri os olhos. Uma névoa intensa ocupava o quarto e eu nada pude enxergar. Nem mesmo ele. Sentei-me, com o coração disparado. Eu teria sonhado de novo? — Malachi? — Estou aqui. — Uma sombra moveu-se em minha direção. — O que é isso? A cama afundou, e ele me tomou em seus braços, quente e úmido. — Nevoeiro. Eu nunca vira a névoa entrar pela janela, exceto em sonho. E também jamais testemunhara nenhuma tão densa. Parecia sobrenatural e não me agradava. — É das montanhas. — Ele acariciou-me os cabelos. — Não há o que temer. Meu coração continuou a bater forte. — Agora, vamos descansar um pouco. — Ele cobriu-me e deitou-se por cima. — O que houve? — Senti-me menosprezada. Ele me olhou intensamente. — Se ficarmos deitados, pele com pele, não haverá descanso. — Não me importo. — Por enquanto, é o suficiente. Feche os olhos, ghrá — disse, acariciando meu rosto. Senti as pálpebras tão pesadas que mal conseguia abri-las. — O que significa ghrá? Ele hesitou antes de responder. — Fada. Você parece uma fada com os cabelos vermelhos e essa boca tão doce. Sorrindo, adormeci. Acordei antes do amanhecer e olhei para o teto, imaginando o que me perturbara. Recapitulei e concluí que tinham sido muitas coisas. Eu podia ver o teto. Não havia mais nevoeiro. Eu estava sozinha em minha cama e a janela estava fechada. Em algum lugar da floresta, alguma coisa uivava. Levantei-me e estaquei ao ver minhas pernas nuas. Afinal, a presença dele não tinha sido um sonho, embora eu costumasse tirar as roupas dormindo. 84
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Fui até a janela e a abri. Pus a cabeça e os ombros para fora, e escutei os uivos. Mais de um, o que não era bom. O horizonte a leste estava rosado e, em breve, o sol surgiria tingindo o céu por entre as montanhas de laranja, vermelho e amarelo. Esperei, observando, escutando e deliciando-me com o ar frio da manhã sem névoa. Assim que clareou, os uivos cessaram como se os raios do sol os houvessem silenciado. Estremeci com o silêncio repentino e fechei a janela. Grace devia estar em trabalho de campo com seus auxiliares. Ela encontraria o lobo, ou os lobos, e acabaria com pelo menos um de nossos problemas. Espiei ao redor. Nenhum vestígio do que acontecera na noite anterior, nem a camisa dele, nem uma meia, nem um bilhete. Franzi o cenho para o espelho da penteadeira. Ele não era homem de deixar recados, nem eu mulher que precisasse deles. A noite anterior fora de liberação sexual, e eu tinha recuperado minha vida. Eu me satisfizera com o homem que eu desejava e tinha sido... — Fantástico — anunciei, animada com o que ocorrera. Se é que fora real. — Não seja ridícula — adverti à mulher renovada no espelho. — Você não é louca. Não era isso que todas as pessoas insanas diziam? Especialmente quando falavam com o espelho?
Uma hora mais tarde, caminhei pela Center Street, cumprimentando os conhecidos e imaginando por que todos sussurravam. Não demorei a descobrir. Entrei no escritório e Joyce irrompeu cinco minutos depois. Ela atirou a Gazette na minha frente e tive de segurar o jornal para ele não cair do outro lado. — No que está pensando, Claire? — Em nada, apenas que ainda não tomei o café da manhã. — Mas parece que andou fazendo outras coisas. — Você está bem? — Não. — Joyce apontou o jornal. Abaixei os olhos e sufoquei um grito. No centro da primeira página, uma foto de Malachi escalando a parede da minha casa. Numa foto menor, ele aparecia com aspecto desalinhado. Camisa solta, o peito esculpido à mostra, calça com o zíper fechado, mas desabotoada na cintura, e os cabelos desgrenhados. A noite passada não fora um sonho. — Vou matá-lo — murmurei. — Pelo jeito, você não o quer morto, mas sim despido. — Não estou me referindo a Mal. — Notei Joyce arquear as sobrancelhas diante da intimidade.—Estou me referindo a Balthazar. Sem dúvida, ele mandou me vigiar ou ele mesmo fez isso.
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— Estou de pleno acordo, mas onde você estava com a cabeça ao permitir que aquele homem entrasse em seu quarto? Eu nada permitira, o que também não fazia a menor diferença. — Você já olhou direito para ele, Joyce? — Mais bonito impossível. — Essa é a mais pura verdade. — Você dormiu com ele? — Joyce, o que você acha que estivemos fazendo? Jogando Monopólio? — Droga. — Ela passou os dedos nos cabelos. — Como vou reverter isso para que você não perca o emprego e arruíne tudo o que seu pai construiu? — Minha vida privada é de minha competência. Joyce bufou, e estava certa. Eu ocupava um cargo público, era uma política. Minha vida particular jamais poderia ser apenas de minha própria conta. — Se você não houvesse dormido com ele, eu poderia dar um jeito nisso. — Não imagino como. Ela olhou de novo para a foto. — Tem razão. Não tem conserto. — Seus olhos se iluminaram. — Claire, os ciganos irão embora em uma semana e tudo poderá ser esquecido, contanto que você fique afastada dele daqui por diante. Eu nada retruquei. — Claire? — O que é? — Você me promete que não o encontrará mais? Precisei de um minuto para refletir. — Não. — Malachi Cartwright é tão bom assim? Não precisei de nenhum segundo para a resposta. — É. — Maldição! — Se bem que essa foto parecerá insignificante em breve. — Claire, o que mais você fez? Contei a ela sobre Josh, passado e presente. Relatei a história do lobo, do turista desaparecido e da busca que Grace estava efetuando junto com os auxiliares. Quando terminei de falar, Joyce tinha mexido tanto nos cabelos que eles estavam totalmente desarrumados. — Você deveria ter dado uma lição naquele canalha na primeira vez. — Sei disso. — Mal posso esperar para vê-lo algemado. Eu também queria ver isso logo. — Claire, você deveria ter voltado para casa e para os que a amam logo depois do ocorrido. — Eu não queria que ninguém soubesse. — Por ninguém, está se referindo a seu pai? 86
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— Principalmente a ele. — A única coisa boa relativa à sua morte prematura fora ele não ter ficado sabendo a respeito de Josh. — Com certeza, seu pai teria usado o rifle da família e eu teria contribuído com as balas. Sorri. — Obrigada, Joyce. Ela encolheu os ombros. — As pessoas desta cidade sempre foram unidas e eu, em particular, faria qualquer coisa por você. — O mesmo digo eu. Surpreendi-me ao perceber que faria tudo não só por ela, mas por qualquer habitante de Lake Bluff, com exceção de Balthazar. — O que pretende fazer a respeito disso? — Ela ergueu o jornal. — Não há muito que fazer, exceto andar de cabeça erguida e dizer a Balthazar exatamente o que penso. Não pude sair da prefeitura para ir à redação do jornal antes do meio-dia. Joyce não fora a única a ler a matéria. Desconfiei que ninguém em, no mínimo, três cidades vizinhas tinha deixado de ver as fotos. Minha sala transformou-se em cenário de romaria e meu telefone não parou de tocar. — Prefeita, eu diria que essa não é exatamente a imagem que gostaríamos de projetar — disse o diretor da escola. — Sei disso. — Seja mais discreta da próxima vez. — Ele piscou e eu quase caí da cadeira. Catfish entrou mastigando o charuto junto com o bigode. — Deseja processá-lo? — ele perguntou. — Pode contar comigo. Eu gostaria, mas duvidava que pudesse ganhar, e um processo judicial chamaria ainda mais a atenção para o caso. Foi o que eu disse a Catfish. — Provavelmente, mais ainda assim seria divertido — ele respondeu. O teor das visitas continuou o mesmo. Cidadãos expressavam uma leve desaprovação, depois pareciam se esquecer do incidente e começavam a pedir meu conselho, fazer alguma sugestão ou reclamar de algum problema antigo. Imagino que depois do escândalo Monica Lewinsky, a foto do amante da prefeita não seria suficiente para que me castigassem. Eu não via a hora de esfregar isso na cara de Balthazar. Contudo, quando finalmente consegui ir até a redação, não o encontrei. — Saiu correndo depois que o camarada do jornal veio aqui e deu-lhe um safanão — informou um dos subalternos visguentos de Balthazar. Eu o vira me seguindo várias vezes. — Qual camarada do jornal? — A senhorita sabe. — Ele me olhou de soslaio por tanto tempo que imaginei que estivesse sendo vítima de um ataque. — O rei cigano. — Ele levantou o jornal e apontou o rosto de Malachi. — Esse homem. 87
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— Ele esteve aqui? O funcionário estreitou os olhos. — A senhorita não me parece tão sagaz para uma prefeita. Cerrei os dentes e contei até dez. — O que aconteceu? — O cigano veio até aqui e disse para Balthazar tomar cuidado ou coisa que o valha. Então, Balthazar destratou-o. O cigano deu-lhe um soco que o jogou de encontro à parede e foi embora. — E onde está seu chefe no momento? — Não tenho certeza. Ele ouviu dizer que o xerife estava caçando lobos... Quem teria vazado a informação? — Então, foi ao departamento de polícia e ligou dizendo que demoraria, pois precisava descobrir do que se tratava. Se Balthazar resolvesse se meter com Grace, eu não teria mais de me preocupar com ele. Encontraríamos partes dele por todos os lugares. — Avise Balthazar que desejo vê-lo. — Publicar essa foto está nos direitos dele. — O camarada de lábios finos defendeu o patrão. — Além do mais, todos já viram e nada mais pode ser feito. Sem me incomodar em responder, virei as costas para ele e voltei para a prefeitura. Chegando lá, dei a volta no prédio e cheguei ao departamento de polícia. Grace já deveria estar de volta e com novidades sobre o lobo ou lobos, e sobre o telefonema para Atlanta a respeito de Josh. Encontrei-a em seu escritório, falando ao telefone. Passando pela mesa dos funcionários, notei murmúrios e risinhos. Grace me viu pela janela e acenou. Entrei e ela fez um gesto para eu me sentar. — Entendi — ela respondeu ao interlocutor, mostrando-me o jornal. Apontou a foto, mexeu as sobrancelhas e sacudiu um dedo. Em resposta, encolhi os ombros de forma exagerada, e olhei para o telefone com uma expressão interrogativa. Ela sinalizou pedindo mais um minuto e jogou a Gazette no lixo. — Obrigada por sua ajuda, detetive. Eu me manterei em contato. — Ela colocou o aparelho no gancho. — Eles vão pegar Josh? — Acho que não. — Mas porquê? — Eles não conseguiram encontrá-lo. — Com o cenho franzido, ela tamborilou com os dedos na mesa. — Josh Logan desapareceu. Quando liguei para o Departamento de Polícia de Atlanta, recebi a notícia que a família já o procurava. Logan não voltou para casa ontem à noite. — Ela pegou um bloco de anotações. — Claire, tenho de fazer-lhe algumas perguntas. Desviei o olhar da janela e a encarei. — Eu já lhe disse tudo. Por acaso pensa que eu menti? O que está imaginando? 88
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— Acho que Logan fugiu com medo de ser acusado. — Por que ele faria isso? Fugir o faria parecer culpado. — Ele é culpado, Claire. — Mas não é no que ele acredita. Ele acha que eu lhe devia sexo. — Nisso todos acreditam, mas a maioria não força a situação. — Mesmo assim, não creio que ele tenha fugido. — Isso não importa, Claire. Nós o processaremos quando for encontrado. Agora, preciso saber de tudo o que aconteceu em sua casa desde o momento em que ele chegou até o minuto em que ele saiu. Contei-lhe tudo em detalhes. — Cartwright disse que ele entrou no carro e foi embora? — Foi o que ele afirmou. — Então, você não viu. — Não. — Entendo. — O que houve? — Cartwright pode ter feito alguma coisa com ele. — Por quê? — Josh a magoou. Até eu gostaria de matar o sujeito. Arregalei os olhos. — Você está passando de sumiço para assassinato! — Talvez tenha sido o que aconteceu. — Grace, você não pode estar pensando que Malachi tenha matado Josh. — Eu penso em tudo até ter provas em contrário. — Ele não faria... — Claire, você mal o conhece. — Impaciente, Grace mexeu nos papéis sobre a mesa. — Nem pode ter ideia do que ele é capaz. Ela estava certa, portanto mudei de assunto. — O que aconteceu esta manhã, Grace? — Nada. — Você não foi procurar o turista? — Sim. — Adoro suas respostas monossilábicas. Elas me deixam arrepiada. — Não há nada para contar. Fomos para a floresta, andamos durante horas e não encontramos absolutamente nada. Nem lobo, nem rastros, nem turista desaparecido, nem sinais de acampamento. — Isso é esquisito. — Não, não é. As montanhas prosseguem por quilômetros sem fim. Se alguém, ou alguma coisa, quiser se esconder e souber como fazê-lo... Entendi o que Grace pretendia dizer. Poderíamos procurar durante anos e jamais encontrar quem procurávamos, fosse homem ou animal. Exceto... — Esta manhã, antes de o sol nascer, escutei uivos de lobos. 89
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— No plural? — Grace indagou. — Sim. — Droga. Você saberia precisar o local onde se encontravam? Meneei a cabeça. — Quando o sol surgiu sobre as montanhas, eles se calaram, o que foi... assustador. — Cada vez gosto menos disso. Ficamos em silêncio por alguns minutos, pensando no que poderia acontecer com mais lobos além de um. Nada de bom. — Você viu Balthazar na floresta? — indaguei. — Não, por quê? — Ela estranhou. — Um cara de fuinha do Gazette me disse que ele foi atrás de você para conseguir uma história. — Não o vi. Talvez ele tenha sido engolido por uma fera. — Grace! — É uma possibilidade. Levantei-me, me despedi dela e retomei meus afazeres. O restante do dia passou depressa e, ao escurecer, dirigi meu carro rumo ao Parque Lunar. Havia apenas um leão-de-chácara postado ao lado da bilheteria. Imaginei por que Malachi decidira deixar ali menos guardas, uma vez que a multidão daquela noite parecia maior do que na véspera, Quando tirei o dinheiro do bolso, o pedaço de madeira com a suástica inscrita saiu junto. Deixei o talismã na prateleira e enfiei o dinheiro pelo buraco da janela gradeada. — Onde foi que a senhorita conseguiu isso? — o bilheteiro indagou, olhando para o amuleto, com um sotaque irlandês que não tinha nem metade do charme do de Malachi, provavelmente por causa do cenho franzido. — Eu o encontrei perto daqui. — Esse é um poderoso feitiço rom. — Ele tentou alcançar a peça com os dedos esqueléticos, mas eu fui mais rápida. — Uma gadje jamais deveria tocar nele! O guarda inclinou-se para meu lado, e emitiu um som que fez com que eu me afastasse. — Por quê? — A senhora é uma marime — o velho senhor afirmou. — Dê-me isso. — Oh, não. — Grace me mataria. Aquela era uma evidência. — Hogarth — ele chamou, e o grandalhão aproximou-se. Virei-me para sair correndo e tropecei em Malachi. — O que está acontecendo? O guarda tornou a resmungar e o bilheteiro saiu da cabina. — Ela tem uma runa. Malachi fez um gesto raivoso com a cabeça e o velho senhor retomou seu posto. — Hogarth, você não deveria estar cuidando de sua apresentação? — ele sugeriu com rispidez. 90
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O homem lançou-me um olhar faiscante antes de se afastar. Não gostei do olhar dele. Pequeno, escuro e selvagem. — Posso ver isso? — Malachi pediu. Eu lhe entreguei a lasca de madeira e ele apertou os lábios. — Isso é seu? — perguntei. — Meu? — Ele ergueu as sobrancelhas. — Não. — Seu bilheteiro disse que era um talismã rom. — É uma runa da Islândia. Fazia sentido, considerando-se a origem da cruz gamada. — Por que uma runa da Islândia seria usada para feitiçaria cigana? — Não é o que está pensando. Meu povo considera a boa sorte uma espécie de feitiçaria. — Quer dizer que isso é um amuleto de boa-sorte? — Sim. Os rom se apoderaram de muitas tradições dos países por onde passaram. Essa é uma delas. — E como são feitos? — Muito simples. Arvores frutíferas são vistas como geradoras de vida, pois dão frutos.. Um pedaço do tronco, tinta vermelha... — Não é sangue? Ele deu uma risada seca. — Não. — A suástica me parece uma escolha estranha. — É um símbolo antigo. — Proteção e renascimento. Vi na internet. Mesmo assim, considerando o que me contou sobre os nazistas... — Meu povo encara os fatos de maneira diferente. Imaginamos a intenção original e de onde poderia vir esse poder Usar o símbolo é como remover algumas das máculas do passado. Eu duvidava que a mancha da suástica fosse removida algum dia, mas nunca era demais ter esperança. — Isso foi encontrado na floresta onde um homem foi atacado por um lobo — expliquei. — O homem ainda está desaparecido e precisando muito de vacina antirábica. — Não vejo a relação entre as duas coisas. Duvido que um lobo estivesse carregando um amuleto. Eu também duvidava. — Segundo a família do desaparecido, isso também não pertencia a ele. — Hesitei. — Seu bilheteiro afirmou que eu não deveria tocar na runa, por que eu era marime. Prescrita, não é? Malachi deixou de sorrir e, de repente, parecia muito mais velho. — Marime pode ser tanto o ser proscrito por conduta inadequada quanto o próprio estado de impureza. 91
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— Sou impura? — sussurrei, furiosa. — Claro que não, mas... — Você não deveria me tocar, não é? — O que eu deveria fazer e o que farei são duas coisas distintas. — O que lhe aconteceria se seu povo descobrisse que você e eu... — Eu sou o líder e eles nada podem fazer contra mim. Eu tinha minhas dúvidas. — Por isso você foi para a cidade hoje pela manhã e ameaçou Balthazar? — E como soube disso? — Esta é uma cidade pequena da qual eu sou a líder. Malachi suspirou. — Eu vi a foto e tive vontade de... — Ele cerrou o punho. — Eu também. — Pus minha mão sobre a dele. — Sinto muito que tenha sido enredada em nossa pequena guerra. — Do que está falando? — Balthazar quer meu cargo e acha que poderá consegui-lo se me desacreditar. — E por isso ele continuará a nos perseguir? — Provavelmente. Se continuarmos nos encontrando. Esperei que ele dissesse que a noite anterior tinha sido única. Considerando o tabu que nos cercava, como poderia ser diferente? Porém, ele entrelaçou os dedos nos meus, levando as mãos para trás da perna para que ninguém visse. — Quero estar com você de novo esta noite — ele disse suavemente. — Mas talvez fosse melhor eu entrar e sair pela porta dos fundos. — Sem dúvida. — Eu sorri. — Então, até mais tarde. — Ele soltou minha mão quando escutamos a música que indicava o início do espetáculo. — Você vai se apresentar? — Não. Esta noite é de Hogarth e de Mary. — O que ele faz? — Luta com o urso. — E não é perigoso? — Qual a graça do espetáculo se não fosse perigoso? Acha que é seguro para Sabina apresentar a dança com as cobras? — Creio que não. Eu esperava que Hogarth não acabasse como um queijo suíço enquanto se apresentasse na minha cidade. — Pensei que Mary fosse um puma. — Ela é. — E fará a apresentação sozinha? — Eu quis dizer que a noite era de Jared. Ele é o... treinador de Mary. — Os animais não estão soltos, estão? — Sempre tomamos precauções. — De que tipo? 92
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— Encantamos o círculo. Os animais não o ultrapassam. — Diga-me que está brincando, por favor. — Sim e não. Nós encantamos o círculo, à nossa maneira, mas também temos guardas armados. Não se preocupe com seu povo e seus convidados. Nunca tivemos um incidente. Descontraí-me um pouco, embora sem perder a vontade de sacudir Joyce por ela haver contratado um espetáculo potencialmente perigoso. Se eu não estive tão certa de seu carinho, poderia supor que ela desejasse me sabotar, em conluio com Balthazar, ou para ficar ela mesma com a prefeitura. Contudo, Joyce era o mais próximo do que eu poderia chamar de família, exceto por Grace. Além disso, se ela não houvesse contratado os ciganos, eu não teria conhecido Malachi. Ele me arrancara da prisão do medo e estava me conduzindo de volta para mim mesma. Eu não podia me arrepender disso nem sequer por um instante. — Tenho de ir. — Ele apontou em direção ao espetáculo. — Claro. Ele fitou meus lábios e eu os umedeci. Malachi se virou depressa e foi embora. O olhar dele fazia com que eu o desejasse. Se ele ficasse ali por mais um segundo, eu o beijaria. Talvez por isso ele saíra depressa. Os ciganos o apedrejariam se nos encontrassem juntos? Em pleno século XXI, cada um poderia dormir com quem quisesse. Talvez manter o romance em segredo fosse uma boa alternativa. Segredo com fotos estampadas no jornal? A banda iniciou com uma melodia suave e logo passou a uma polca animada. Na arena, Hogarth, vestido com um uniforme justo e vermelho, enfrentava um urso extremamente dócil. Apesar do tamanho dele, perscrutei os arredores e descobri vários homens com rifles que pareciam saber o que faziam. Saí dali e fui em busca da carroça de algodão-doce, mas não para comer. Só em pensar nisso meus dentes doíam, mas eu adorava o caleidoscópio de cores. No caminho, passei pela tenda da adivinha. Cinco dólares e não havia espera. Entrei.
CAPÍTULO IV
Sob a tenda de lona encontrei um cenário típico. Duas cadeiras ladeavam uma mesa coberta com uma toalha vermelha que alcançava o chão. Sobre ela, um baralho e uma bola de cristal coberta por um pano de seda negra. 93
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— O que você deseja? — A adivinha surgiu sem ruído de trás de uma cortina multicolorida que separava a parte da frente da barraca. A mulher havia tirado o lenço debruado de moedas, e seus cabelos castanhos tinham poucos fios brancos. Não usava os braceletes, mas conservava os anéis e as argolas nas orelhas, que brilhavam apesar da pouca luz. Tirei o dinheiro do bolso e deixei sobre a mesa, — Amarre a aba da tenda. — Ela olhou atrás de mim. Fiz o que ela pediu. Quando voltei, o dinheiro havia sumido e ela estava sentada do outro lado da mesa. — Sou Edana. — Ela acenou com impaciência. — Sente-se. Acomodei-me numa cadeira frágil e a mulher estendeu sobre a toalha a mão com a palma para cima. — Dê-me sua mão. A dela era fina, cheia de nervos, escura e semelhante à pavorosa pata do macaco. — Para quê? — Sou uma filidh, uma vidente. Leio as linhas da mão e cartas de taro. Depois consultaremos a bola. Quando ela arrancou o pano preto, a luz da lamparina brilhou na superfície da bola de cristal, em cujo centro se refletiam as cores da cortina. — Por que a senhora precisa de tudo isso? — Eu planejava ficar ali não mais de cinco minutos. — Cada consulta é diferente da outra. Posso ver alguma coisa em sua mão, outra nas cartas e mais um pouco na bola. Tenho de fazer jus ao que me pagam para conhecer o futuro. Ela moveu os dedos, reclamando minha mão, Cerrei os dentes e fiz o que ela pediu. A pele de Edana era quente e seca, em contraste com a minha, fria e úmida. Ela raspou minha palma com uma unha comprida e eu me assustei. — Fique quieta! — ordenou. Ela era bastante mal-humorada para quem dependia da boa vontade de estranhos. Mas, na verdade, não precisava se preocupar com a clientela que se aborrecia, pois a caravana mudava de cidade a cada semana. Imaginei se ela contava o que via para as pessoas, ou se dizia o que esperavam escutar. Ora, claro que ela não enxergava nada e eu viera até ali só para me divertir. Simples curiosidade. Ela acompanhou a linha que ia do polegar até o pulso. — Você terá uma longa vida — ela apontou onde a linha ficava mais fraca — com possibilidade de morte. — O que a senhora quer dizer com isso? — Você pode ou não morrer. Eu me contive para não comentar o quanto a afirmação era indefinida.
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— Logo. — Ela me fitou com intensidade no olhar negro. Senti um calafrio. Logo não era nada indeterminado. — Quando? Edana deu de ombros e voltou a observar minha mão, passando a unha sobre as linhas sob meu anel e o dedo médio. — O cinturão-de-vênus é bem visível. Você gosta de sexo. Puxei a mão, mas Edana não a soltou. — Contudo — ela apontou uma ruptura entre as linhas — isso não acontecia até recentemente por causa de um trauma que já foi superado. Estreitei os olhos. Como ela sabia? Malachi teria dito algo? Não! Ele não faria uma coisa dessas. Será? Eu havia lido sobre adivinhos que tinham cúmplices. Eles falavam com as pessoas das cidades onde o grupo se apresentava para saber de intimidades. Os supostos clarividentes usavam as informações para aparentar mediunidade, quando, de fato, não passavam de indivíduos espertos que fingiam adivinhar o futuro. Eu me encontrava dividida entre sair correndo dali e querer escutar mais. Só assim poderia descobrir onde ela conseguira a informação. A curiosidade venceu. — O que mais? Edana curvou-se sobre minha mão, estreitou os olhos, levantou os ombros e recuou. — Não há nada. — Posso morrer logo e gosto de sexo. Só isso? — Ainda não terminamos. — Ela pegou as cartas, misturou-as e estendeu-as para mim. — Você embaralha. — Quanto? — O quanto achar conveniente. Enquanto eu cumpria o pedido, a cigana abriu um pedaço de veludo azul-marinho diante dela. Alisou-o bem, e eu pensei num céu infinito à noite sobre as montanhas. — Já terminei. — Tentei entregar a ela o baralho, mas ela não aceitou. — Com a mão esquerda, corte-o em três partes. Obedeci. — Agora junte tudo num monte. Obedeci de novo. Edana pegou as cartas e estendeu-as na mesa com as figuras para cima, três fileiras de três cartas, num total de nove. — Este é o passado. — Ela apontou as três de cima. — A roda da sorte. — Ela se calou e apertou os lábios. — A roda traz mudanças, e você esteve numa encruzilhada. Era verdade, mas isso acontecia com muitas pessoas. — Esta carta — ela apontou a do meio — é um seis de copas. Você retornou ao lar da infância. Qualquer um poderia saber disso se passasse alguns minutos em Lake Bluff. — E este cavaleiro de copas diz que você estava ansiando por amor.
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Tossi. Eu queria... o quê? Não tinha certeza se desejava segurança e um lar, mas seguramente não era amor o que eu buscava. Amor era a última coisa em que pensava no momento. Jamais havia considerado a possibilidade de um lar ou de uma família porque estava perseguindo um objetivo. Mesmo sem alcançar o sucesso desejado, eu ainda não ansiava em constituir uma família com filhos, como a maioria das mulheres. Depois do que acontecera, tinha me afundado no passado e não sonhava com o porvir. Evitara propositalmente a ideia de criar raízes, sempre me lembrando da infelicidade de minha mãe e de sua necessidade de procurar outros lugares. Em Atlanta, eu sentira o mesmo desejo de viajar e tinha receado ser muito mais parecida com ela do que gostaria. Havia temido nunca ser feliz em lugar nenhum, independentemente do que eu fizesse. Contudo, depois de voltar para Lake Bluff e começar a sentir que ali era meu lar, entendi que o que realmente tinha desejado era sair de Atlanta. Apesar de sonhar com uma grande cidade como o lugar ideal para mim, tinha compreendido o grande equívoco desse pensamento. Estava cansada da solidão. Um lar e uma família começavam a representar uma atração, e das mais agradáveis. — Vamos ver o presente. — Edana levou a mão para as três cartas centrais. — O idiota. — Maravilha — murmurei, esperando um sermão pelo erro de confiar em Malachi, por deixá-lo tocar-me. Se não por mim, ao menos por causa dele. — Esta é uma boa carta. Recomeço e esperança. Atirar a cautela ao vento e aproveitar a vida. Aquilo não parecia comigo. — Oito de paus — ela continuou. — Tudo fala em mudança. Surpresas, boas e más, a esperam em cada canto. Aguardar o inesperado. O que divergia da minha personalidade. Eu gostava da minha vida organizada, precisava fazer planos. Talvez por isso me sentisse tão insegura. Meus projetos anteriores haviam fracassado. — A lua — ela prosseguiu. A carta mostrava a lua em vários estágios. Cheia, crescente, minguante e um que eu não consegui identificar. Era uma lua redonda, vermelha, como se algo houvesse explodido com impacto. — O que é isso? — Uma lua oculta, uma época muito especial. Ela não me deu a oportunidade de perguntar qual o significado daquela figura estranha. — A lua muda todas as noites. Ela é cheia de mistério e poder. Quando você olha para ela, pode desejar o que nunca teve. — Eu pessoalmente ou um você genérico? — Nunca me ative muito na contemplação da lua. Mesmo durante o festival, sempre houvera muitas coisas para fazer. 96
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— Esta carta indica... — Edana fechou os olhos e passou a mão por cima da carta sem tocá-la. — Desonestidade, infâmia. — Abriu os olhos e, por um momento, o lampião refletiu uma luz vermelha na profundidade negra. — Loucura — sussurrou. — Que ótimo. Ela sacudiu-se como se tivesse saído da água. — O futuro. — Apontou a última fileira. — Morte. — De novo? — Não é necessariamente uma morte literal. — Ela inclinou a cabeça. — Embora exista a possibilidade de ser. A carta da morte indica um fim, cortar laços, prosseguir. Uma coisa familiar sairá de sua vida. — Algo com a minha própria vida? — Nunca se sabe quando o fim vai chegar. E o final que conhecemos não é um fim. Ninguém morre sem renascer. A morte é uma entrada. Se a afirmação deveria ser reconfortante, não foi. — Valete de espadas. — De cenho franzido, ela apontou a carta final. — Você está sendo observada. Na certa, Balthazar e seus homens que nunca desistiam. Ela murmurou algumas palavras em romani que me pareceram uma imprecação. Petrificada, ela olhava a bola de cristal. Dentro do vidro, uma fumaça girava, cinzenta como o nevoeiro. — De novo — murmurei. O que havia ultimamente com o nevoeiro? — Cuidado com o demônio que pode mudar de forma. — Os olhos e a voz dela sugeriam que estava num transe. Mudar de forma? Tornei a olhar a bola de cristal no momento em que o nevoeiro se dividiu. Nas beiradas, sombras de diferentes formatos e tamanhos, nenhum nítido o suficiente para ser classificado como animal ou homem. Até que um lobo esguio e negro surgiu no centro, com uma pata erguida como se estivesse pronto para caçar algo saboroso. O animal curvou a cabeça para trás e encarou-me. Os olhos dele pareciam humanos. — Mas o que é isso? — gritei. Minha voz tirou-a do transe, — Do que está falando? — Edana sacudiu a cabeça, talvez para clarear a mente. — Ali dentro. — Mostrei a bola de cristal... que se encontrava vazia. Ela me olhou com curiosidade. — Você viu alguma coisa? — A senhora não viu nada? — Eu... — Ela esfregou os olhos. — Não me lembro. — Cuidado com o demônio que pode mudar de forma — repeti o que ela dissera. Edana arqueou as sobrancelhas e largou os braços. — Eu disse isso? Aflita, ela olhou para trás de mim e eu me virei, mas não vi nada.
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— Sim, senhora. Havia sombras dentro da bola e um lobo surgiu no meio delas. — Levantei a toalha e espiei debaixo da mesa. — Como a senhora fez isso? Sob a mesa, apenas as pernas de Edana cobertas pelas saias. Observei o forro da tenda à procura de uma câmera ou um projetor. Afastei as cortinas e busquei por um comparsa. Havia apenas uma espreguiçadeira de praia que já conhecera melhores dias e um refrigerador com água e Gatorade. Gatorade? Voltei para a frente da barraca. — O que está acontecendo aqui? — Minha magia se resume a ver o futuro e o passado. Não consigo fazer surgirem coisas que não existem. Eu tinha minhas dúvidas a respeito daquilo, e também quanto às suas predições. Mas, se antes não lhe creditava nenhum poder de enxergar, naquela altura eu não tinha tanta certeza. — O que a senhora sabe a respeito do lobo nas montanhas? — Eu só sei o que as cartas, as mãos e a bola de cristal me dizem. — A senhora não se lembra do que apareceu na bola nem do que me disse? — Sou uma mulher velha e muitas vezes não me lembro do meu próprio nome. Estreitei os olhos. Ela mentia ou realmente não sabia de nada? Estaria com medo? De qualquer forma, eu nada mais arrancaria dela. Fazer perguntas a ciganos era como tentar apanhar uma pluma flutuante no ar. Quanto mais se procurasse agarrá-la, mais ela subia. — Edana? — A porta de lona foi sacudida. — Eu trouxe seu jantar. Desamarrei a corda que prendia a aba e uma jovem entrou carregando uma bandeja. A moça tinha cabelos loiro-escuros e brilhantes, e olhos verde-azulados. Quanto mais eu conhecia os ciganos, mais tinha a impressão de que eles haviam se miscigenado com seus vizinhos irlandeses, a despeito de todos os tabus em contrário. A jovem cruzou a tenda para deixar os pratos diante de Edana. — Desculpe-me o atraso. — É compreensível, minha filha. — Ela acenou, despreocupada. Saí. O espetáculo havia terminado. As pessoas deixavam as arquibancadas rumo aos carros estacionados. Algumas paravam ao lado das quinquilharias expostas, outros compravam pipocas e algodão-doce, enquanto aumentava a fila ao lado da barraca de Edana. Malachi estava sobre o cavalo do outro lado do acampamento e, ao me ver, cavalgou em minha direção. Estava a poucos metros da tenda de Edana, quando a garota saiu de lá. A aparição súbita deve ter assustado Benjamin. A cabeça dele se ergueu e as narinas se alargaram. Malachi tentou controlar o cavalo, mas o animal revirou os olhos e começou a arremeter. Os que estavam nas proximidades se afastaram rapidamente. Benjamin empinou-se e, quando as patas tocaram novamente o solo, ele disparou para a mata.
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A jovem, muito pálida, não saiu do lugar. Corri atrás dele, apesar de não ter esperança de alcançá-lo. Antes que cavalo e cavaleiro desaparecessem na floresta, Benjamin parou bruscamente, apoiou-se nas patas dianteiras e levantou o traseiro. Malachi foi atirado por cima da cabeça de Benjamin, e lançado contra um tronco de árvore. Em seguida, o cavalo abaixou a cabeça e focinhou o corpo inerte do dono. Fui a primeira a alcançá-lo. Quando cheguei ao seu lado, Malachi estava sentado, acariciando o focinho de Benjamin, murmurando palavras em romani e gaélico. Ajoelhei-me, sem saber exatamente o que fazer. Eu não reconheceria um osso quebrado se o tocasse. — Você está bem? — perguntei com voz trêmula. Ele me olhou com espanto. — Por que eu não estaria? — Você voou de encontro a... — Acenei para o vazio. — Já perdi a conta do número de vezes em que fui atirado do cavalo. Sei como cair Parece muito pior do que é na verdade. Ele se levantou e estendeu a mão para mim. O toque em sua pele me fez desejar estar em seus braços e escutá-lo murmurar palavras carinhosas em outro idioma até meu coração se acalmar. Porém, quando eu fiquei em pé, ele me soltou e recuou. Estranhei, até notar que havíamos atraído uma pequena multidão. Você está sendo observada, Edana me advertira. No momento, por muitas pessoas. Quando todos constataram que ele e o cavalo estavam bem, se afastaram. — O que houve com Benjamin? Ele olhou para a tenda de Edana. A jovem que levara o jantar para a vidente não tinha saído do lugar. — Ele nunca gostou de Molly murmurou. — E não sei o motivo. Malachi foi, então, chamado para retomar o que estava fazendo e Molly desapareceu em meio às pessoas. Pobre moça. Voltei até meu carro, um dos últimos que ficara, e dei a partida. Quando Sabina surgiu diante dos faróis, saí do veículo. — Olá. Ela levantou a mão sadia. — Você quer me dizer alguma coisa? Não estava bem certa de como ela se expressaria. A garota negou com um gesto de cabeça. Os olhos dela, fixos nos meus, provocaram uma sensação inquietante de reconhecimento. Ela começou a caminhar em minha direção. — Sabina! O chamado a deteve. Virei e, ao me deparar com Edana, entendi o que me parecera familiar. Elas tinham os mesmos olhos. — A senhora é...
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— Avó dela — ela me interrompeu. — Sou tudo o que tem desde que os pais dela... morreram. Estranhei a hesitação. Eles teriam morrido ou não? Lembrei-me de Malachi ter dito que ele impedira os pais de Sabina de afogar a filha. Mas como ele os tinha detido? — Vamos — Edana ordenou. Sabina aproximou-se da avó de cabeça baixa. Os cabelos cobriam seus olhos e, ao passar ao meu lado, esbarrou em mim. Estendi as mãos para ampará-la, e estranhei os braços frios, embora fosse uma noite quente de verão. — Ela é muito solitária — a velha senhora me disse quando a neta se afastou. — Sabe que não deve se aproximar dos gadje, mas aqui não há ninguém de sua idade. Sabina era a cigana mais jovem que eu tinha visto, e devia ter cerca de dezoito anos. O ritmo normal da vida era que as pessoas se amassem, ficassem juntas ou se casassem, e tivessem filhos. O que acontecera com as crianças daquela comunidade? Não cheguei a perguntar a Edana, pois ela já havia se afastado. Os habitantes de Lake Bluff e os turistas já tinham ido embora. Os ciganos estavam atarefados com a limpeza. Nada mais havia para fazer ali. Voltei ao carro e fui para casa. Assim que entrei, verifiquei portas e janelas. Josh não fora encontrado, e eu não descartava a possibilidade de ele surgir a qualquer momento. Nunca se sabia. Andei pela casa, inquieta. Esperei, olhei, pensei. Malachi viria? Logo depois da meia-noite, escutei um ruído e fui para a cozinha. Ele estava parado do lado de fora das portas de vidro. Imaginei que ele tivesse acabado de sair do lago ou que tomara uma ducha. Os cabelos úmidos colados à cabeça deixavam as maçãs do rosto mais pronunciadas e os olhos mais negros do que o ébano polido. Estava vestido de preto, e a camisa parcialmente desabotoada revelava o peito brilhante sob o luar. Atravessei a cozinha e abri a porta. A brisa trazia cheiro de chuva, e trovejava ao longe. Malachi era uma silhueta escura que se destacava no céu negro e turbulento. Em vez de entrar, ele segurou minha mão e levou-me para fora. — Alguma coisa está vindo. Alguma coisa? Eu o fitei de relance. Era uma maneira esquisita de descrever uma tempestade. Ficamos parados junto à balaustrada de madeira, observando as nuvens, que se acumulavam sobre as montanhas e deslizavam por cima das copas das árvores. A única iluminação vinha dos relâmpagos. Eu sempre fui fascinada pela maneira como eles cortavam a cortina de veludo negra. — Quando eu era criança, achava que o céu se abria — murmurei. — Talvez seja isso mesmo. Ele colocou a mão sobre a minha, que estava apoiada no parapeito. Nossos ombros e quadris se tocavam, e os cabelos esvoaçavam ao vento. Observamos a natureza em 100
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um silêncio amigável. Eu nunca estive em tanta harmonia com alguém, à exceção de Grace, e jamais me senti tão à vontade com um homem. O que havia nele que inspirava confiança? O vento aumentou de intensidade e os raios brilhavam mais próximos. — Deveríamos entrar — sugeri. Ele virou-se e acariciou meu rosto. Notei o brilho em seu olhar, mas não pude ver sua expressão. — Não tenho de ficar. Sorri e tirei alguns fios de cabelos de sua testa. Ele beijou-me a parte interna do pulso e prendi a respiração. — Eu quero. — Que eu fique? — Sim, e tudo o que a sua presença envolver. Entrelacei os dedos nos dele e o conduzi para dentro de casa. Enquanto eu ainda conseguia raciocinar, fechei as portas de vidro e as prendi com a barra de ferro. — Ele não a perturbará mais. — Fitou-me com um olhar sombrio — Eu juro. — Você não pode estar comigo em todos os instantes e, além disso, em breve irá embora. A fisionomia dele alterou-se por alguns segundos, e eu imaginei que pudesse ser tristeza. — Não quero que ele respire o mesmo ar que você. Malachi já tinha dito aquilo antes. A frase à moda antiga trazia calor e uma espécie de segurança ao meu coração. — Nem aquele outro, o grandalhão de mãos cabeludas que mete o nariz onde não deveria. — Balthazar — Ele também não se aproximará mais de você. Suspirei. Aquilo seria maravilhoso. — Balthazar mora e trabalha em Lake Bluff. Tenho de lidar com ele. — Eu não gostaria de ter seu cargo, Claire. Lembrei-me de como ele voara por cima do cavalo e batera no tronco de uma árvore. — Eu também não desejaria o seu. Por um instante, pensei em como éramos diferentes, em como nossas vidas haviam se cruzado de maneira inesperada, e na bênção que nos fora concedida pela convivência durante aqueles poucos dias. — Não percamos mais tempo. — Não quero assustá-la. Mergulhei na profundidade daqueles olhos negros e disse a verdade: — Você não me assusta. — Você está muito confiante, Claire. — Por acaso está planejando me magoar? Ele desviou o olhar. — Como isso pode ter passado pela sua cabeça? 101
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— Não passou. Então, por que não devo confiar em você? — Algumas vezes, as pessoas não são o que parecem ser. Mais do que ninguém, eu sabia disso. Josh não era nada do que aparentava. Eu havia fugido para Lake Bluff e não tinha adiantado, pois ele viera atrás de mim. Estava na hora de deixar o passado para trás. Precisava enfrentar o que restava de meu medo e queria fazer isso com a ajuda de Malachi. — Acredito que você é exatamente o que parece. Um homem que trabalha duro, que toma conta de seu povo e que é honesto em tudo o que deseja. — Eu me aproximei, fiquei na ponta dos pés e rocei minha boca na dele. — Fico feliz em saber que você me quer, pois eu também o quero muito. Jamais tinha dito uma coisa dessas para um homem, embora não houvessem sido muitos antes de Josh. Eu sempre tinha estado muito ocupada com a escola, o trabalho, a universidade e a perspectiva de fazer sucesso. Aquilo tudo parecia tolice no momento. — Venha comigo — pedi. Atravessamos a casa e fui apagando as luzes por onde passávamos. Caminhamos na direção da luz, deixando as trevas para trás, Quando chegamos ao meu quarto, desliguei o último interruptor e, no escuro, mal pude ver o rosto de Malachi. De repente, ele virou a cabeça na direção do corredor Os olhos de Oprah brilhavam de maneira fantasmagórica, pois não se via seu corpo. O movimento dele fez a gata sibilar. Fechei a porta. — Ela não gosta de tempestades. — Pobrezinha — ele murmurou. Com o coração disparado, caminhei em direção à cama. A expectativa fazia meu coração bater com força. Quando Malachi acendeu a luz, eu me assustei. — Quero vê-la. Eu não estava preparada para aquilo. Eu não tinha um corpo feio, mas também não era bonito. E, certamente, não rivalizava com a perfeição do dele. — Por favor — ele prosseguiu — aguardei com ansiedade para ver sua pele clara e seus cabelos vermelhos quando estiver dentro de você. Senti-me corar. — N... não posso. A ideia de fazer sexo em um ambiente iluminado era demais para mim. Seria incapaz de me mexer. Entraria em pânico no pior momento possível e, se isso acontecesse, talvez eu nunca mais conseguisse enfrentar uma situação semelhante. — Você é tão linda — ele murmurou. — Apenas quero admirar cada centímetro do seu corpo. Quando Malachi se aproximou, ergui a mão, detendo-o com o gesto. — Não quero as luzes acesas! Eu estava fazendo um estardalhaço por algo tão pequeno, mas ele não ignorava o motivo. Esperei que se virasse e me deixasse sozinha. Eu era muito complicada para um 102
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homem que certamente escolhia entre as mulheres que se jogavam a seus pés. Porém, mais uma vez, Malachi me surpreendeu, — Está bem, a stor.— Um relâmpago clareou a vidraça. — Juro que nunca a obrigarei a fazer algo que não deseje. — Ele apagou a luz. — Estou falando sério. Quer que eu vá embora? No silêncio que se seguiu, apenas se ouvia o ronronar de Oprah do outro lado da porta e um trovão à distância. A tempestade se afastava. Abri minha boca, sem saber o que dizer. Um forte estalido e um clarão fizeram com que eu fechasse os olhos e esquecesse definitivamente as palavras. Oprah roufenhou e o ruído das unhas que arranhavam o piso de madeira parecia muito alto, chegando a superar o grito que sufoquei na garganta. Quando abri os olhos, Malachi estava em pé diante de mim. A fragrância que emanava dele era de chuva de verão, grania fresca e atmosfera noturna. Não queria que ele fosse embora, nem naquele momento nem depois. Cheguei mais perto, colocando meu rosto em seu peito, e ele me envolveu nos braços com tanta gentileza que tive vontade de chorar. Sabendo que isso acabaria com o clima mais depressa do que o medo, beijei-o apaixonadamente. Eu o acariciava com os lábios e explorava com a língua sua boca, agarrando-o pelos cabelos ainda úmidos, sentindo as madeixas envolverem meus pulsos. A cruz que pendia de sua orelha fez cócegas nos meus dedos. Gemi e recuei abraçada a ele até sentir minhas coxas tocarem na cama. Puxei-o comigo sobre o colchão. — Claire, não tem de ser assim. — Ele se afastou. — Assim como? — Tão depressa, de maneira tão... — Desesperada? — Sei que você não está desesperada e eu também não estou. Com certeza, ele tivera muitas mulheres no último ano. — Iremos devagar. Malachi sentou-se, levou meus dedos aos lábios e beijou-os. — Se eu esperar demais, poderei não conseguir. — Então, não devemos fazer nada — ele disse, soltando minha mão. — Não diga isso. — Toquei em seu ombro. — Preciso disso e preciso de você. Mal, por favor. A pele dele estremeceu sob meus dedos, mas talvez por causa dos hematomas provocados na colisão com a árvore. Devia estar com contusões por toda a parte. Eu teria de ser mais gentil. Sentei-me devagar, encostei minha face em seu ombro e pressionei os seios em suas costas. — Faça-me esquecer de tudo, exceto de você — sussurrei. Ele se virou em meus braços. Um raio distante o iluminou, e ele parecia angustiado, — Há muitas coisas a meu respeito que você ignora, Claire. — Não quero saber. Nada mais importa a não ser eu e você, juntos. 103
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Ele hesitou, parecendo, de alguma forma, ferido. Imaginei o que ele poderia confessar Centenas de amantes? Roubo? Assassinato? Ideologias macabras? — Não vá embora — pedi, sem saber se me referia àquela noite ou à próxima semana. Malachi beijou-me como se fizesse isso havia séculos, e tivesse se aperfeiçoado ao longo do tempo. Acariciou meus lábios com intensidades diferentes e mordiscou-os de leve, mas não usou a língua. Tocava apenas em meu rosto com seus dedos longos e fortes. Traçou a linha de meu queixo, das faces e da testa. Quem diria que ser tocada na testa poderia ser tão erótico? Assim como tudo o que ele fazia. — Toque-me — pedi. — Eu estou tocando você. Ele beijou minhas pálpebras fechadas. Agarrei suas mãos e pressionei-as em meu ventre. — Em todos os lugares. Fazendo-me deitar na cama com cuidado, ele se levantou e tirou as roupas. A tempestade havia passado, deixando para trás apenas nuvens. O quarto estava tão escuro que eu apenas podia imaginar o que ele fazia pelos sons. Por um instante, lamentei a necessidade da ausência de luz. Gostaria de vê-lo. A cama afundou e eu me sentei, — Aonde você vai? — Mesmo na escuridão total, ele conseguiu segurar o meu braço. — Quero sentir sua pele na minha. — Vai sentir, a ghrá, prometo. — Fez-me deitar de novo. — Espere um pouco. Inseriu os dedos no cós da minha calça. Passou a superfície lisa das unhas sobre meu ventre e, com o polegar, abriu o zíper. Arqueei o corpo, gemi e ele me desnudou rapidamente da cintura para baixo. Ajoelhou-se para tirar minhas meias e beijou minhas pernas no caminho de volta, passando a língua na parte interna das coxas. Evitou a região mais sensível e pressionou a boca em meu ventre. Apoiava o peso em uma das pernas, e eu sentia a pele quente de encontro à minha. Envolvi suas costas com os tornozelos, esfregando os calcanhares na base de sua coluna. Ele marcou minha pele com os dentes e inseriu a língua em meu umbigo. Nunca tinha imaginado que uma carícia como essa pudesse ser tão excitante. Vi minhas peças íntimas se unirem à camisa na pilha de roupas, antes que ele escondesse o rosto entre meus seios. Uniu-os com as mãos e tocava ora um, ora outro, com a língua, enlouquecendo-me com as carícias úmidas nos mamilos. Precisei me controlar para não implorar que ele se apressasse e nunca parasse ao mesmo tempo. — Sonho à noite com seu corpo macio e bem-feito — ele murmurou. — Gostaria de ver todas as suas curvas. Fiquei tensa, imaginando que ele estivesse sugerindo de novo que acendêssemos a luz. Apesar de estar muito excitada, a ponto de concordar com qualquer coisa, ainda não me sentia preparada para tamanha exposição. Ele me acalmou, passando as mãos em meus braços. 104
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— Vou aprender tudo sobre você dessa maneira. Cada centímetro de minha pele foi explorada pelas pontas de seus dedos, e cada contorno de meu corpo foi traçado por sua língua. Ele segurou meus pés e pressionou os arcos com os polegares até que eu sentisse a tensão desaparecer e gemesse. Com as palmas das mãos, acariciou minhas panturrilhas e coxas, passando pela cintura, antes de provocar meus seios até que eles latejassem. Mordiscou minha orelha. — Vire-se, Claire. Apesar de relaxada, eu me encontrava no limite da excitação. Não queria que ele parasse, e obedeci. Ele recomeçou, então, as carícias nos pés, em caminho ascendente. Nunca tinha imaginado como era delicioso ser beijada nas costas e massageada nos ombros enquanto a nuca era sugada. Senti a ereção de encontro às minhas nádegas, e me esfreguei em seu corpo. Quando ele deslizou um pouco para dentro de mim, ofeguei, deleitada com a sensação, mas logo senti que ele recuava. — Não —Arqueei as costas, tentando aprofundar o contato. — Espere um pouco — disse com voz rouca, afastando-se, fazendo com que eu me sentisse fria e solitária. Pelos sons, percebi que ele pegava o preservativo e, pouco depois, estava de volta. Virou-me de lado e acomodou-se atrás de mim. Nossos corpos se encaixavam com perfeição. Afastando meus cabelos, ele beijou minha orelha sem deixar de acariciar meu corpo todo, provocando e me tentando. Eu não via nada na escuridão total da noite. Era como se estivéssemos presos num universo sem luz, em que se realçavam o som, o aroma, o sabor e o toque. Os beijos tornaram-se ainda mais eróticos conforme ele mordiscava e sugava minha pele. Eu me sentia em chamas, percorrida pela eletricidade remanescente dos relâmpagos desvanecidos. Tornei a roçar meu corpo nele e, de repente, me vi deitada de costas, escutando seus murmúrios em três idiomas. Ele se inclinou e me beijou intensamente. Os cabelos roçavam minha face e o membro ereto pressionava meu quadril. — Não posso esperar mais, Claire. — Não tem que esperar. Abracei-o e me abri para ele, permitindo sua entrada. Mesmo assim, ele hesitou. — Se você não estiver pronta... — Malachi — gemi. — Estou tão pronta que vou continuar sozinha se você não parar de falar. Quando ele riu, senti a respiração doce e quente acariciar meu rosto. — Está bem, então. Não posso deixar isso acontecer. Ele me penetrou devagar, mas com firmeza e cuidado, procurando não largar o corpo sobre mim. Acariciei lhe os braços, e os músculos estremecerem sob meu toque. — Não se preocupe, eu não vou quebrar — sussurrei, querendo sentir o peso dele, assim como seu calor e sua rigidez dentro de mim.
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Ele me deu o que eu desejava, investindo e recuando, numa fusão de corpos tão completa e perfeita que logo era difícil discernir onde um de nós terminava e onde o outro começava. Por mais que tentasse, a escuridão me impedia de vê-lo. Não discernia um movimento sequer, nem ao menos o reflexo de seus olhos. Tinha a impressão de estar sonhando, como se ele fosse uma fantasia, um fantasma, a névoa. Fiz coisas que jamais teria feito com a claridade. Inseri a mão entre nossos corpos, acariciando-o, provocando-o até que ele pronunciasse meu nome, como uma prece ou talvez uma maldição. Suguei sua língua, raspei meus dentes na veia que pulsava em seu pescoço, agarrei-o pelos quadris, aprofundando a penetração. Eu estava no controle, e me deleitava com isso, a sensação de poder quase tão excitante quanto ele. Malachi beijou minhas pálpebras e encostou a face em meus cabelos. — Não posso esperar mais. — Ele arquejou, retesou o corpo, e eu o senti pulsando dentro de mim. Sem parar de se mover, ele me provocava reações instintivas, aumentando a tensão, me conduzindo em uma espiral de prazer que parecia não ter fim. Tremendo e gritando, atingi o clímax. Larguei-me em seus braços, livre do medo, enquanto ele me embalava, no ritmo suave dos murmúrios de palavras desconhecidas, até que eu adormecesse. Acordamos algumas horas mais tarde e fizemos amor de novo. Deixei-o dormindo e fui procurar Oprah, que ressonava tranquilamente sobre o sofá. Voltei para o quarto e vesti uma camisola. Apesar de tanta intimidade, eu me sentia envergonhada. Não queria que ele acordasse, me visse nua e me encarasse como se não se lembrasse do meu nome. Isso poderia realmente acontecer? Não. Mas não custava me prevenir. Deitei-me ao lado dele na cama, mas não o toquei. Lembrei de que não deveria me envolver muito, pois ele partiria em poucos dias. De costas, fitei o teto e não consegui adormecer. Logo depois, ele se virou e me abraçou, pressionando a face em meus cabelos. Imaginei que quisesse fazer amor mais uma vez, mas ele apenas me apertou nos braços cálidos e musculosos. — Claire, a chroi — murmurou em meu ouvido. — Malachi? — chamei baixinho, mas pelo ritmo de sua respiração, percebi que estava dormindo. Aconchegando-me a ele, também dormi. Despertei com o sol incidindo sobre a cama. Malachi, de olhos abertos, sorriu e acariciou meu rosto. — O que é a chroi? Ele ficou sério e afastou a mão. — Onde foi que ouviu isso? — Você murmurou dormindo, depois de dizer meu nome. É gaélico? — Sim. A resposta seca me fez imaginar que se tratasse de um termo depreciativo. — Malachi? — Significa... muito bela. 106
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Dei risada. — Não sou bonita. — Quem lhe disse isso? — Malachi sentou, e as cobertas deslizaram até a cintura. Admirei, fascinada, o contraste da pele bronzeada com o lençol branco, e as ondulações do abdômen firme quando ele se moveu. Ele era a chroi. Muito mais do que eu jamais seria. — Claire? Quem ousou dizer que você não era bela? — Parecia irritado, capaz de quebrar o nariz de quem tivesse dito aquilo. — Tenho apenas que olhar no espelho para saber disso. Em um dia bom, posso até me achar bonitinha. — Ergui a mão para impedi-lo de contestar. — Já pretendi estar diante das câmeras e ser uma estrela, mas eu não estava á altura. Se eu for honesta, não fiquei tão desapontada. Gosto de administrar as coisas. Talvez por isso o cargo de prefeita não me parecesse tão tedioso. Estava resolvendo muitos problemas e não me saía tão mal. — A beleza é muito mais do que o aspecto exterior. — Ele começou a brincar com a fita que fechava o decote da camisola. — Engloba também energia, honra e lealdade. Cuidar das pessoas que dependem de você e não desapontá-las. Nesse aspecto, você é mais encantadora do que eu conseguiria expressar em palavras. Os olhos dele encontraram os meus enquanto ele lentamente abria o laço da camisola. — Você sabia que isso não a cobre tão bem assim? Olhei para baixo. A seda branca não era transparente, mas moldava meu corpo, evidenciando os mamilos e a curva dos seios. Ele me tocou com as mãos bronzeadas. Novamente o contraste sensual no tecido imaculado. — Somente me faz querer tirá-la. Posso? — indagou. De repente, passei a não me importar que ele visse minhas imperfeições à luz do dia. Um grande progresso. — Sim — sussurrei, fazendo-o arregalar os olhos com a resposta inesperada. — Claire, talvez... — Afastou as mãos. — Pensei que me quisesse nua. — Eu quero. Segurei a bainha da camisola, e a maldita campainha soou. Pensei em ignorar, mas podia se tratar de uma emergência. — Espere um pouco. — Vesti o penhoar e desci. Oprah ronronou alto no pilar da escada. Ela nunca ficava tão contente quando me via. Espiei pelo olho-mágico e a razão da alegria da gata ficou evidente. Grace estava na varanda. — Claire? Sei que você está em casa! Franzi a testa. Como ela podia saber? — Os degraus rangeram e vi sua sombra no olho-mágico — ela disse. Abri a porta e Grace olhou-me de cima a baixo. 107
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— Eu a acordei? — Que horas são? — Seis da manhã. — O que acha? — Esfreguei a testa. — Desculpe-me. — Grace pegou Oprah no colo, e a gata encostou o focinho no nariz dela. — O que há entre você e Oprah? — Somos almas gêmeas. — Grace entrou, deixando-me para trás. — O que houve para me acordar tão cedo? — Balthazar ainda está sumido. — Espero que seja para sempre. Grace deixou Oprah no chão. — Tem que tomar cuidado com o que diz. — Eu estava brincando. Você disse a mesma coisa ontem. — Sei disso, mas... — Só você pode ser a rainha do sarcasmo? — Claire, as pessoas da sua lista negra estão desaparecendo. Primeiro foi Josh, agora é Balthazar. — Não tenho nenhuma lista. Acha que sou responsável pelo sumiço das pessoas? — Não. Você tem visto Cartwright? Procurei não olhar para cima. — Por quê? Grace deu uma tossidela. — O que você acha? Ele discutiu com os dois homens antes que eles desaparecessem. Tenho de falar com ele. Fui até o lago, mas não o encontrei lá. — Grace franziu a testa. — Embora com eles, nunca se saiba a verdade. Os ciganos não gostam da polícia. — Talvez tenham boas razões para isso. — Não disse que não possam ter motivos, mas eles estão me criando problemas, o que me faz ficar com vontade de retribuir na mesma moeda. Os degraus rangeram. Olhei para cima. Malachi estava parado no alto, felizmente vestido. O que pouco significava, pois com os cabelos desgrenhados e as roupas amarrotadas, qualquer um saberia que ele viera de meu quarto. — Você pretendia me contar? Dei de ombros, sem saber o que dizer. — O que você escutou? — Grace perguntou conforme ele descia a escada. — Tudo. — Vou ter de levá-lo ao departamento de polícia. — Grace... — comecei. Ela ergueu a mão. — Sei o que estou fazendo. Não vou ajudar nem você nem Cartwright se eu conceder a ele algum privilégio nesta altura dos acontecimentos. 108
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— Eu? Pensei que tivéssemos concordado que não tenho nada a ver com isso. — Eu disse que não acreditava que você estivesse envolvida. Mas isso foi antes de saber que você estava se relacionando com o principal suspeito. — E daí? — Dois homens que a agrediram, física e profissionalmente, desapareceram. Você o contratou? — Para dormir comigo? — Claro que não. Para dar um fim nessas pessoas. — Não! Por que eu faria isso? — Você não queria que Josh sumisse? Eu não me lembrava de ter dito isso para Grace. — Eu também queria — ela afirmou. — Então, suspeite de si mesma. Bem ou mal, eu estava lidando com as coisas. Não precisei que ninguém me ajudasse, muito menos que alguém os matasse por mim. Grace arqueou as sobrancelhas. — Quem disse alguma coisa a respeito de matar? Pouco depois, nós três nos dirigimos ao departamento de polícia, e Malachi logo entrou com Grace para ser interrogado. Eu suspeitava que seria a próxima. Passei na prefeitura para deixar um bilhete a Joyce explicando que eu tinha ido à polícia e que ela deveria manter contato comigo apenas em caso de emergência. Até o momento, ninguém havia me procurado, situação que certamente não se prolongaria pelo resto do dia. A porta da sala de interrogatórios foi finalmente aberta e Grace saiu. Ela sinalizou para um dos policiais, que entrou. Pelo olhar que ela me dirigiu, entendi que havia algo errado. — O que aconteceu, Grace? — Um corpo foi encontrado. Por um instante, pensei que ela diria que Malachi confessara a autoria do crime. Por que eu imaginaria aquilo? Não acreditava que ele fosse capaz de matar alguém. Porém, enquanto estava esperando, a expressão dele, pouco antes de quebrar o nariz de Josh, não saía da minha mente. Tinha visto o olhar de um matador. Depois, ele seguira Josh, que nunca mais fora visto. Balthazar, por sua vez, também desaparecera após a discussão com Malachi. Ele tinha ido para a floresta à procura de Grace, segundo o funcionário do jornal. Grace tinha um álibi, pois havia mais gente na busca. Se Balthazar a tivesse aborrecido e ela o houvesse matado, alguém teria notado. Recordei-me das coisas que Malachi dissera aos dois homens, que poderiam ser interpretadas como ameaças. Também me lembrei da promessa de que ninguém mais me magoaria. Seria uma esperança ou uma promessa? Sacudi a cabeça para afastar os pensamentos fantásticos e improdutivos. — Quem foi encontrado? — Nós descobriremos. — Como assim, nós? 109
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— Temos três pessoas desaparecidas. — Grace levantou um dedo. O turista. — Levantou o segundo. — Josh Logan. — E o terceiro. — Balthazar Monahan. — E daí? — A equipe da emergência teria reconhecido Balthazar, o que nos deixa Josh e Ryan Freestone, o turista que foi mordido. Aposto no último. Mas, se for o primeiro, quero que você o identifique. Murmurei meu desagrado e a segui pelo estacionamento até a casa funerária. O necrotério do hospital não era um recinto capaz de prover o isolamento necessário para preservar as evidências, por isso a casa funerária funcionava também como laboratório médico-legal. — Você avisou Bradleyville? — perguntei. Lake Bluff compartilhava de um médico-legista com a cidade mais próxima. Nenhuma das duas precisava de um especialista de tal magnitude em tempo integral. — Recebi um chamado do local onde foi cometido o crime. Dr. Bill já esteve lá e vem vindo para cá. — Onde foi encontrado o corpo? — Em uma ravina perto de Brasstown Bald. Brasstown Bald era o ponto mais alto daquelas paragens e, coincidência ou não, aquela parte mais larga das montanhas era conhecida como colina do Lobo. — Quem o encontrou? — Uma pessoa que estava fazendo caminhadas por aquelas trilhas. Um dos policiais de Grace montava guarda na porta, um procedimento padrão nesses casos. Embora eu não me lembrasse da última vez que houvera uma morte inexplicável ou um assassinato em Lake Bluff. — Você alguma vez teve de esclarecer uma morte suspeita? Grace lançou-me um olhar enviesado. — Sou muito qualificada para isso, madame. — Por acaso está insinuando que eu não sou? — Você é uma das suspeitas! — Então, por que você me pediu para vir até aqui? Se eu tivesse matado o homem ou pedido para alguém fazer isso por mim, provavelmente não teria vindo. — Droga. — Grace se deteve. — Com certeza empurrei a porta do laboratório — a senhora é muito qualificada. Entrei na sala, fui até a mesa central e puxei a lona que cobria o cadáver. Era Josh, embora eu não soubesse dizer como o reconhecera em meio a tanto sangue. Senti tontura e as pernas bambearam. Grace aproximou-se de imediato, tornou a cobrir o corpo, puxou uma cadeira e sentou-me com a cabeça entre as pernas. — Menininha — ela murmurou com o intuito de ofender. — Você que é. — Eu não desmaio quando vejo sangue. — Eu não desmaiei. — Por pouco — ela falou, e a porta foi aberta. — Doutor, obrigada por ter vindo. 110
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Endireitei o corpo e pisquei para tentar me recompor. O médico-legista de Bradleyville, William Cavet ou dr. Bill, como o chamavam, atuara por mais de cinquenta anos como clínico geral no tempo em que os médicos sabiam de tudo. Com as especializações e o sistema de seguro-saúde deteriorado, ele tinha migrado para a Medicina Legal. — A senhorita está bem? — Ele me fitou sob as sobrancelhas brancas que lembravam os pelos de uma lagarta. Sentia-me zonza, mais pelo horror do que pelo conflito de emoções. Havia desejado a morte de Josh e sonhara com ela, mas jamais poderia avaliar meus sentimentos diante da realidade. — Sim, estou. — Engoli em seco quando ele foi até a mesa e puxou a lona. Ir direto ao assunto era uma das muitas coisas que eu apreciava nele. — Estive na cena do crime. O corpo foi arrastado até a margem de uma ravina e atirado dali. — Terei de prender seu namorado — Grace avisou-me. — Isso estragará o espetáculo. — Não posso deixar um assassino à solta só porque o show deve continuar. — Lake Bluff precisa de dinheiro — afirmei. — Por acaso você só pensa em dinheiro, prefeita? — Foi para isso que fui contratada, xerife. — Crianças, vamos parar com isso? Grace e eu nos encaramos com o cenho franzido. Dr. Bill colocou um par de luvas descartáveis e começou a examinar o cadáver de Josh. Logo, as luvas ficaram ensanguentadas, e tive de virar a cabeça. — Não é preciso prender ninguém. — O quê? — Grace espantou-se. — Por quê? — perguntei, abismada. — Estão vendo isso? — O médico-legista apontou o pescoço de Josh e empurrou a cabeça dele para trás até o ferimento fazer um ruído desagradável de sucção. Mordi o lábio ao me sentir mal novamente. — O que temos aí? — Grace curvou-se sobre a mesa para ver melhor. — Não é um corte simples, mas uma mordida que deixou a carne dilacerada. — O médico tirou as luvas e tornou a cobrir o corpo. — Este homem não foi morto por um ser humano, mas sim por um animal. Provavelmente uma espécie canina e das grandes. Grace e eu nos entreolhamos. Isso já nos ocorrera. — No entanto, animais não costumam atirar suas vítimas de um despenhadeiro — o médico comentou. — Ainda que possam enterrá-las para comê-las mais tarde. Fiz um ruído abafado, que os dois ignoraram. — Quem atira as vítimas numa ravina? — Grace perguntou. — O homem. — Então, um animal o matou e depois um homem o atirou num buraco? Por quê? — Uma boa pergunta, xerife. 111
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O médico ficou ensimesmado durante alguns minutos, como se procurasse uma boa resposta para a boa pergunta. Depois suspirou e estremeceu. — Se as senhoritas me derem licença. — Fez uma ligeira mesura. — Preciso voltar ao trabalho. Uma vez que o ofício dele envolvia facas, serrotes e a remoção de partes do corpo e seus fluidos, apressei-me até a porta. Grace seguiu-me, mais devagar. — Como o senhor pode ter certeza de que ele foi morto por uma espécie canina e não por um urso ou um felino grande? — Fiz alguns treinamentos para reconhecer os diferentes ataques de animais. — Esse não me parece um treinamento comum para um clínico geral — Grace observou. — Houve uma época em que cheguei a considerar uma mudança para o Oeste, com um emprego no Parque Nacional de Yellowstone. Mas minha esposa não quis sair da Geórgia. Agora ela já se foi e eu estou muito velho. — O que o fez chegar à conclusão de que o atacante foi um canídeo? — Grace insistiu. — Felídeos usam as garras para imobilizar as vítimas. Pense no que o gato doméstico faz com um rato. — Eles brincam com os coitadinhos — falei junto à porta. — Oprah faz isso sempre que encontra um ratinho e me deixa louca. — Então, podemos afirmar que a vítima não apenas teria a garganta estraçalhada, mas também exibiria arranhões bastante sérios se tivesse sido atacada, por exemplo, por um puma — o médico explicou. Observei Grace e entendi sua linha de raciocínio ao fazer as perguntas. O puma ou o urso de Malachi poderiam ter sido usados para matar Josh antes que ele empurrasse o corpo do barranco. — E ursos? — Grace pressionou. — Eles dão pancadas em suas presas. — Entendi por que o senhor não acredita que se trate de um urso ou de uma pantera, mas o que lhe dá a impressão de que se trata de uma espécie canídea? — O modus operandi dos caninos é jogar as vítimas no chão e estraçalhar a garganta. Estou certo de que, ao examinar o corpo, encontrarei fundamentos para a minha afirmativa. Tem havido notícia de hidrofobia na região? Grace fitou-me de viés e voltou-se para o médico. — Por que o senhor pergunta isso? — Os felídeos são conhecidos por atacar seres humanos. Lembram-se do caso na Califórnia onde um puma agarrou uma mulher que andava de bicicleta? — Anuímos. — E não faz muito tempo outra mulher foi morta tentando proteger o filho de um urso em Yellowstone. Esses animais eram sadios, mas canídeos não atacam a menos que estejam hidrófobos. — O senhor tem alguma ideia de qual seria a espécie que atacou esse homem? — Grace indagou. 112
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O médico mordeu o lábio, observando o corpo. — Eu estaria inclinado a supor que se trata de um lobo, exceto que não se ouve falar de nenhum nestas montanhas desde que nasci. — Isso pode ter mudado — ela afirmou. — Temos o caso de um turista que foi atacado pelo que ele jurou ter sido um lobo. — Verdade? — Ele pareceu se interessar bastante, embora mantivesse a fisionomia descontraída. — Eu gostaria de dar uma olhada nesse turista. Grace estremeceu e o médico notou. — Ele morreu? — Não exatamente. — O que está querendo me dizer? — Bem... ele se levantou da cama no hospital, no meio da noite, e nunca mais foi visto. Eu esperava uma reação de espanto, mas o médico continuou mordendo o lábio e olhando para o corpo de Josh. — Os ferimentos dele cicatrizaram? Grace e eu nos entreolhamos. — Pela fita de segurança temos essa impressão, mas as imagens estão ruins. — Ah, que droga — o médico murmurou. — O senhor parece saber de alguma coisa sobre... — Grace espalmou as mãos. — Sei lá o quê. — Não vejo nada igual desde que estive na Alemanha. — Quando foi isso? — indaguei. — Em 1944 e 1945. — O senhor esteve na guerra? — Ele não parecia tão velho. — Menti sobre a minha idade. Algo estúpido de se fazer. — O que houve na época? — Grace perguntou. — Vencemos — A resposta foi seca. Grace sorriu. Ela apreciava um sarcasmo bem colocado. — Eu quis dizer o que o senhor testemunhou lá que o lembrou do... — Acenou na direção do corpo. — Já faz tanto tempo que às vezes penso que tudo não passou de imaginação. O médico esfregou o ponto entre o nariz e os olhos como se estivesse com dor de cabeça. Imaginei que não gostaríamos do que ele tinha para dizer, mas, de qualquer modo, nada do que eu escutava ultimamente me agradava. — Eu fazia parte da tropa de paraquedistas que foi descarregada atrás das linhas francesas, enquanto os outros vinham pelo oceano. E posso garantir-lhes que flutuar no ar entre as bombas e os tiroteios não foi exatamente uma diversão. — Aposto que não. — Tive de concordar. — Depois de aterrarmos, teríamos de encontrar nossa unidade e ir para o Leste, libertando as cidades que encontrássemos pelo caminho. Não vou me deter em quanto
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tempo levou, essa empreitada ou quantos se perderam no ar e em terra, mas acabamos atravessando a Alemanha. — E o que aconteceu depois? — Ah, Grace, muitas coisas estranhas. Víamos lobos por toda parte, centenas deles. — E o que há de estranho nisso? — Foi a minha vez de inquirir — A Floresta Negra, berço dos contos de Grimm e de muitos lobos, não está situada na Alemanha? — O problema é que não estávamos na Floresta Negra e os lobos não eram exatamente lobos. — Como lobos podem não ser lobos? — Os animais eram muito mais espertos do que a maioria e nos acompanhavam de longe o tempo todo. Eles pareciam saber o que pretendíamos fazer, como se escutassem nossas conversas e as entendessem. E quando eles nos matavam... alguns de nós não morriam. — Olhei o corpo sobre a mesa e desviei rapidamente a vista. — O que o senhor está falando é uma insanidade — murmurei. — Por que acha que jamais contei esses fatos para ninguém? — Quando o senhor diz que alguns não morriam... — Procurei entender. — Eles eram atacados, tinham as gargantas destroçadas, depois os ferimentos cicatrizavam e os homens saíam andando. Aquilo parecia estranhamente familiar — O senhor nunca os viu de novo? — Eu tentava raciocinar O médico ficou em silêncio, olhando para os pés. — Doutor? — Grace pressionouo. — Eu os vi de novo. — O médico levantou a cabeça. — Na forma de lobos. Comecei a sentir dificuldade para respirar. — Doutor, o que está nos dizendo? — Não poderia estar mais chocada. — Ele está afirmando que seus amigos foram mordidos por lobos, tiveram os ferimentos cicatrizados e se transformaram em lobos — Grace recitou em tom monocórdio. — Correto, dr. Bill? — Correto — ele afirmou. Depois, tirou da maleta um bisturi brilhante e, sem avisar, deu uma estocada no peito de Josh. Gritei e retrocedi. Grace adiantou-se, colocando uma das mãos na arma e a outra no ombro do médico. — O que foi isso? — ela perguntou. — Carrego isso comigo há sessenta anos — ele explicou. — É um instrumento de prata pura. — Isso os matará? — Sim. — De quem estão falando? — indaguei com voz trêmula. — Daquele que mata nas quatro patas e dispõe do cadáver em duas? — Um homem e seu cão? 114
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— Claire, você sabe muito bem do que ele está falando. Eu sabia. — Dizem que Hitler exigira uma tropa de lobisomens e Mengele executou a ordem. — Mengele... — repeti. — Esse não é o homem que... — Eles o chamavam de o Anjo da Morte, pois ele fazia experiências mortais com os prisioneiros nos campos de concentração. Malachi havia mencionado os campos de concentração. Pela expressão de Grace, ela também se lembrava disso. — Continuo afirmando que isso é uma loucura. Esperei que Grace concordasse comigo, mas ela e o médico trocaram um olhar que me excluía. — Não é? — insisti. Grace tirou a mão da arma quando o médico puxou o bisturi de prata do peito de Josh. — Todas as culturas têm suas lendas a respeito de metamorfoses — ela disse. — Lendas são faz-de-conta. — Nem sempre. Muitas vezes as lendas são uma forma de transmitir a verdade. — Grace, você acredita nisso? — Claire, uma série de coisas estranhas ocorreu desde que o turista ferido pulou a janela do hospital e desapareceu. Eu não tinha ligado o fato a um lobisomem. — Ainda temos a considerar a suástica — Grace lembrou. Também havia me esquecido daquilo. — Do que estão falando? — dr. Bill quis saber. — De uma runa, ou melhor, um talismã de origem islandesa. Antes de os nazistas se apossarem do símbolo da suástica, ele era usado para invocar proteção e renascimento — expliquei. — A cruz gamada também pode ter sido usada pelos nazistas pelo mesmo motivo Grace murmurou, e notou minha expressão de dúvida. — Se Hitler exigiu um exército de lobisomens, talvez a suástica tenha algo a ver com isso. — Não estou entendendo. Hoje em dia, talismãs são usados para dar sorte, mas houve um tempo em que eram considerados feitiço. — Continue, Grace. — Hitler não pretendia parar com apenas uma tropa. — Concordo — o médico anuiu. — Depois de Mengele ter descoberto a fórmula necessária para a metamorfose, ou sabe-se lá o que ele fez, eles poderiam transformar todo o exército nazista, assim como os outros que haviam conquistado, em alguma coisa muito difícil de matar. Estremeci, apesar de Hitler e de seu auxiliar Mengele estarem mortos havia muito tempo. 115
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— Talvez eles tenham escolhido a suástica como símbolo não apenas para adornar suas bandeiras — Grace considerou. — É possível que isso tenha a ver com a transformação do homem em animal. Renascimento e proteção contra os inimigos. — Ela olhou para mim e deu de ombros. — Isso pode ter acontecido. Esfreguei as têmporas. — Vocês dois me deixaram com dor de cabeça. — Tenho pesquisado a respeito de feitiços e mudança de forma — ela revelou. Eu sabia que a bisavó de Grace fora uma curandeira, mas, pelo jeito, as duas conversavam sobre outras coisas além de ervas e raízes. — Cada cultura tem suas lendas a respeito de mudança de forma — ela continuou. — A maioria das tribos nativas americanas acredita ser descendente de algum tipo de animal. — Acreditar e ser são coisas diversas. — Estou tentando explicar que essas crenças a respeito de mudança de forma não são novas e existiam muito antes de os nazistas aparecerem. Talvez eles tenham apenas se apropriado delas. — Grace, você acha que temos um lobisomem nazista perambulando entre nós? — Não sei. — Ela voltou-se para o médico. — Como poderíamos reconhecê-los? — Se atirarmos neles com balas de prata, eles explodem, nas duas formas — dr. Bill explicou. — Não existe nada menos violento? — questionei. — Sob a forma animal, o lobisomem mantém olhos humanos. — Céus, eu já vi isso! — Onde? — Grace fitou-me. — Bem... numa bola de cristal. Fui ler a sorte e um lobo apareceu rodeado por sombras e névoa dentro da bola. Edana, a adivinha, disse-me para tomar cuidado com o demônio que pode assumir diversas formas. — Um bom conselho — Grace murmurou. — Os olhos daquele lobo se pareciam com os do nosso turista ou com os de outra pessoa? — A bola é muito pequena. Pude ver o branco dos olhos, mas não a cor deles. — Então você viu um lobisomem — o médico concluiu. — Os lobos normais não têm o branco ao redor da íris como as pessoas. — Vamos rememorar — Grace falou após alguns momentos de silêncio. — O talismã foi encontrado no local do ataque ao turista. Ele foi beneficiado por um salvamento milagroso e desapareceu nas montanhas. Teoricamente, renasceu como lobisomem e terá de ser morto com prata. Como eu poderia explicar para a população de Lake Bluff balas de prata e lobos explodindo? — Não existiria uma maneira de curá-lo? — indaguei. — Não conheço nenhuma. — Ele nos fitou com olhar sombrio. — Não creio que vocês tenham percebido a extensão do que temos pela frente. — Ora, o turista é um lobisomem — Grace sentenciou. 116
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— Pode ser. — Apertou os lábios antes de continuar. — Mas há uma questão que ainda não foi levantada. — Qual? — Grace arqueou as sobrancelhas. — Quem o mordeu? Grace e eu murmuramos a mesma imprecação em sincronia. — A mutação pode não ser consequência da mordida — ela alegou. — Isso mesmo — concordei. — Se a runa é um feitiço, ela não pode ser a responsável por essa metamorfose? — Na Alemanha, tínhamos certeza de que a mordida era necessária e nunca vi nenhum talismã por lá. — A runa poderia ser a causadora das transformações por aqui. — Então por que a... coisa teve a preocupação de morder o turista? Ele tinha razão. — Posso ver o amuleto? — perguntou, estendendo a mão. Procurei no bolso direito e depois no esquerdo. Arregalei os olhos. — Sumiu. — E agora? — Grace se aborreceu. — Eu deveria ter adivinhado que você acabaria perdendo a prova. — É mesmo? E eu aqui imaginando que você tinha deixado o amuleto comigo para que eu o perdesse. Ela franziu o cenho diante do meu sarcasmo. Eu não podia acreditar que houvesse perdido o pedaço de madeira. Que burrice! — Estava com o amuleto no acampamento dos ciganos. Eu o mostrei para o bilheteiro e... — Para Malachi e para o grandalhão, pensei comigo. — Para alguns outros — terminei. — Por acaso não o deixou lá? — Tenho certeza que não. — Os ciganos são larápios experientes — o médico afirmou. Suspirei. — Claire, alguém pode ter se apossado do amuleto no lago ou na sua casa. Entendi a ênfase de Claire. Malachi teria dormido comigo só para pôr as mãos no talismã? — Grace, você o revistou no departamento de polícia. Por acaso encontrou a peça com ele? — Não, mas ele pode ter escondido a runa esta manhã, antes de descer. — Se está na minha casa, então Malachi não a roubou. Grace não respondeu. — Eu gostaria de saber como Mengele conseguiu o primeiro lobisomem. Talvez todo o mistério tenha começado com ele. — Não necessariamente. — Dr. Bill, o senhor afirmou que Hitler encomendou a seu cientista uma tropa de lobisomens.
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— Isso não exclui a possibilidade de se formar um exército a partir de outro lobisomem — ele explicou. — Hitler era fascinado por lobos e lobisomens. Adolf, seu pronome, pode ser traduzido como lobo nobre. — Está insinuando que Hitler poderia ter sido ele mesmo um lobisomem? — Personalidade para isso, ele tinha. Uma vez mordidos, os humanos ficam possuídos por uma licantropia demoníaca e se tornam doentes mentais. Hitler era um psicopata. — Hitler morreu por ingestão de cianureto — comentei. — E com um tiro na cabeça, segundo dizem. Mas é possível que tenha morrido por ingerir um veneno à base de prata. — A explosão em contato com a prata é um eufemismo? — Difícil afirmar, Claire. Os amigos o queimaram junto com a amante antes que os russos chegassem. — Não importa muito se Hitler era um lobisomem e deu origem a seu exército — Grace interveio. — Mas se o exército e seus descendentes estão de volta e ameaçando nossas vidas, temos de fazer alguma coisa. — Tem razão. Se os fatos se confirmarem, em pouco tempo teremos mais do que um ou dois lobisomens nessas montanhas. — Por que diz isso, doutor? — A mulher cigana estava certa ao chamá-los de demônios. Lobisomens adoram matar e se multiplicam com facilidade. Se não cortarmos o mal pela raiz, em breve eles vão proliferar pela cidade, pelo Estado e até pelo país. — Não posso acreditar que estejamos falando sobre isso. — Sacudi a cabeça. — Pior ainda, que eu aceite a história como verdadeira. — Acha que conseguirei balas de prata pela internet? — Grace olhou para mim. — Por acaso não estará precipitando as coisas? Você não pode andar por aí matando lobos a esmo. Será presa. Os lobos por aqui estão em extinção e têm de ser preservados. — Aquilo não era um lobo. — Segundo você, é uma pessoa que se metamorfoseou em lobo. Acha que essa explicação será levada a sério? — Se eu vir um lobo com olhos humanos e caninos à mostra, não vou esperar para me tornar um deles. Prefiro ser presa. Grace era muito teimosa. O médico girou o bisturi de prata entre dois dedos. — Um lobisomem sob forma humana será queimado em contato com a prata. — Interessante — Grace aprovou a sugestão. — Você vai andar por aí espetando pessoas com prata só para ver se escapa delas alguma fumaça? — perguntei, espantada. — Se for necessário. — Grace, escute o que acabou de dizer! Ela me ignorou.
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— Dr. Bill, obrigada por tudo. Manterei contato. — Ela acenou para o médico e saiu.
— Ah, obrigada, doutor. — Eu a segui. Não queria ficar no mesmo quarto com Josh, estando ele morto ou não. Alcancei Grace no estacionamento e segurei-a pelo braço. — Aonde você vai? — Falar com nosso suspeito. Franzi a testa. — Ele não é mais suspeito. Josh foi morto por um lobo ou quase isso. — E se Malachi for o tal lobo? Pisquei, aturdida. E se ele fosse? — Claire, eu o prendi pelo desaparecimento de duas pessoas que a ameaçavam e isso o torna o principal suspeito. — Você acha que temos um lobisomem vagando pelas montanhas? — Acho. Grace saiu andando a passos largos e tive de correr para alcançá-la de novo. — Grace, digamos que esteja certa, apenas para efeito de argumentação. Por que o lobisomem matou Josh em vez de transformá-lo num igual como fez com Ryan Freestone? — Teremos de perguntar a ele, quando descobrirmos de quem se trata. Tive vontade de gritar Quando entramos no departamento de polícia, Malachi ergueu o olhar, e a expressão de boas-vindas se transformou em preocupação. — O que houve? Grace hesitou antes de falar. — O que você sabe a respeito de lobisomens? Ele franziu a testa. — Não entendi a pergunta. — Grace... — Fui interrompida por um aceno irritado de mão. — Lobisomens. Homens ou mulheres que se tornam maus e matam. Já ouviu falar disso? — Nós temos lendas, como todas as culturas. Histórias para serem contadas ao redor da fogueira, para assustar crianças e impedi-las de se embrenhar na mata. — Por que não há crianças em sua caravana? — perguntei, lembrando-me do fato. — É verdade. Por quê? — Acha que seria uma boa ideia arrastá-las pelo país de cima a baixo? Qualquer um que tenha filhos prefere deixá-los com parentes durante as excursões. — Os olhos negros lançavam faíscas, — Por acaso acha que as comemos, xerife? Grace não se dignou a responder. — Tivemos alguns ataques de lobo na região. — Alguns? — Ele olhou para mim. — Ouvi falar apenas de um. Ah, houve outro hoje, então? Grace não confirmou nem negou. 119
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— Há séculos não temos lobos por aqui e você garante que não trouxe nenhum entre os seus animais. — Continuo afirmando. Nossos animais estão nas jaulas. — Você pode ter algum escondido. — Não é tão simples ocultar um animal selvagem. No entanto, xerife, não é um lobo que a está interessando, mas sim um lobisomem. — Pegarei qualquer um. Malachi não pareceu preocupado com o fato de a xerife ter perdido o juízo. Ele nem ao menos parecia pensar que ela o tivesse perdido. — Nossos problemas começaram quando vocês apareceram aqui — ela continuou. — Nós viemos para o festival, junto com centenas de outras pessoas desconhecidas. — Você nos disse que Hitler levou ciganos para os campos de concentração. E acabamos de descobrir que Mengele reuniu um exército de lobisomens naqueles campos. Ele não respondeu. — Não acho que seja uma mera coincidência — Grace afirmou. — Xerife, meu povo não é formado por lobisomens. — Então, creio que não se importará se eu fizer uma busca em seu acampamento. — Isso será ótimo. — Malachi levantou-se. — Vamos? — Terei de falar com as pessoas em particular. — Não haverá problema. Pode ir. Assim que saímos, Grace se aproximou de mim. — Encontre algum objeto de prata — ela pediu. — Está bem. Você não tem algum brinco... — Antes de concluir a pergunta, comecei a rir, fazendo-a se deter. — Ficou louca? — Malachi não é um lobisomem! Ele usa um crucifixo na orelha. — O crucifixo é usado contra vampiros e não contra lobisomens. — O brinco é de prata e Malachi ainda não explodiu. Grace apertou os lábios e deu de ombros. — Acho que isso é um álibi para ele. Por enquanto — ela enfatizou. Escutamos passos no final do corredor. Ficamos tensas ao ver o legista. — Algum problema? — eu quis saber. — Problemas? — Ele pareceu confuso. — Com Josh. Não faltava mais nada a não ser uma resistência de Josh à prata. Não seria ótimo ter de passar a vida inteira fugindo dele? — Oh, não. Ele está bem morto. — ótimo. — Grace pareceu aliviada. — Em que podemos ajudá-lo, doutor? — Lembrei-me de meu amuleto de boa sorte. — Tirou do bolso uma pequena bala de prata. — Mandamos fazê-las no dia em que chegamos a Berlim. 120
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— Não posso aceitar, dr. Bill. — Grace se recusou a pegar a bala na mão estendida. — O senhor ficará sem nenhuma. O médico levou a outra mão ao bolso e tirou mais uma. — Desde que deixei a Alemanha, nunca mais saí de casa sem levar algumas. Ela aceitou a oferta. — Obrigada, isso virá a calhar. Quando ele se afastou, Grace continuou a fitar a bala de prata. — Grace, você não pretende usar munição que tem mais de sessenta anos, não é? — Não em uma arma, mas... Grace atirou o artefato na minha direção e tive de pegá-lo ou ele acertaria em meu nariz. — Nenhuma fumaça. Portanto, está fora de suspeita. — Você pensou que eu fosse... — Daqui por diante pensarei que todos são, até prova em contrário. O restante do dia foi passado em buscas e em interrogatórios no acampamento dos ciganos. Eles não se mostraram satisfeitos, mas, como Malachi exigira a cooperação de todos, se submeteram às perguntas. Mesmo assim, escutei murmúrios em romani e em gaélico que não pareceram elogiosos, Grace estava acompanhada de vários policiais a quem ela deu poucas explicações. Como todos sabiam que havia um lobo solto nas redondezas e ninguém confiava nos ciganos, o acampamento e arredores foram vasculhados sem reclamações. Nenhum lobo ou qualquer outro canídeo foi encontrado. Nas jaulas, estavam os mesmos animais anteriormente vistos por nós. Depois disso, Grace mandou os auxiliares para a cidade e fez ela mesma as perguntas, na presença de Malachi. Sem ele, ela teria sido obrigada a jogar a bala em cada um dos interrogados. Com ele ao seu lado, a providência era desnecessária. Eu tinha a impressão de que seu povo o temia, e todos seguravam o projétil sem reclamar. Imaginei o que Grace faria se um dos ciganos pegasse a bala e começasse a queimar. Enquanto ela se dedicava àquele processo tedioso, resolvi andar pela área. Havia recebido ordens dela para ficar atenta, o que parecera uma redundância. Mais do que ninguém, eu tinha interesse em esclarecer o assunto. Grace imaginava que o lobisomem apareceria no acampamento e ficaria à disposição para que atirassem nele? E, se fosse o caso, atirar com quê? Com uma bala solitária de mais de sessenta anos que não se adaptava em nenhuma de nossas armas? Ainda que eu tivesse sido a única pessoa com vida a ver um lobisomem, e apesar das palavras do médico e da aceitação de Grace, ainda tinha dificuldades para acreditar naquilo. Aproximei-me da jaula das serpentes, que era diferente das outras. Sem barras, era fechada com vidro. Estreitei os olhos por causa do brilho do sol e contei os ofídios. Pareceu-me haver uma cobra nova. Malachi dissera que Sabina as apanhava onde as encontrasse. Uma garota estranha.
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Uma altercação de vozes masculinas despertou minha curiosidade e segui o som até a carroça maior e mais enfeitada da clareira. Num dos lados, uma pintura chamava a atenção. A mesma lua misteriosa e vermelha que eu vira no baralho de Edana, Devia tratar-se de uma simbologia especial para os rom. Malachi e Hogarth discutiam na frente da carroça, usando dois idiomas. Naquela altura, Grace deveria ter concluído o interrogatório e eu tinha que voltar. No entanto, fiquei ali, presa pela tensão que pairava no ar. Até então, nunca vira nenhum cigano se dirigir a Malachi sem ser com respeito. O homenzarrão inclinou-se, aproximou o rosto falando em romani, antes de concluir, gritando: — Você tem de se decidir, ruvanush, ou todos nós continuaremos a sofrer. — Acha que não sei disso? — Ele não escondeu a angústia. Sem me conter, adiantei-me, sendo vista pelos dois ao mesmo tempo. Malachi apertou os lábios e fitou Hogarth com raiva. O homem retribuiu com olhar idêntico e virou-se para mim antes de se afastar rumo à mata. — Desculpe-me, eu não pretendia interromper. Malachi caminhou na minha direção e parou a alguns centímetros, segurando uma mecha de meus cabelos entre os dedos. — Fogo e gelo. Você é tão linda, Claire. Quando ele me olhava daquela maneira, eu me sentia bela. E talvez fosse, aos olhos dele. — Claire! Eu me virei e ele soltou meus cabelos, recuando. Grace aproximou-se e moveu rapidamente a mão na direção dele. Mesmo sabendo o que ela estivera fazendo nas últimas horas, assustei-me quando uma coisa pequena e brilhante quase atingiu o rosto de Malachi, que apanhou a bala no ar e devolveu-a com um sorriso irônico. — Sinto desapontá-la, xerife. Grace deu de ombros e pegou o artefato. — Você não pode me culpar. — Nem pretendia. — Fazendo uma mesura, ele se afastou. — Grace... Ela me interrompeu com um gesto. — Ninguém queimou com o toque da prata. Eu estava desesperada. Voltei à estaca zero. Não posso interrogar todos na cidade. — Grace deu um suspiro profundo. — Estou pensando em cancelar o festival. — Você não pode fazer isso! — Creio que posso. — Ela me olhou com determinação. — Você vai destruir a economia de Lake Bluff. — E você acha que um lobisomem voraz não faria isso? Há tantas pessoas reunidas na cidade que o animal deve ter imaginado um banquete raro. Não me surpreende que tenha sido atraído pelo faro. Ergui as mãos. 122
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— Escute bem, Grace. Você está pensando em cancelar nossa principal fonte de renda só porque está convencida da existência de um lobisomem. Diga isso aos comerciantes e ao povo da cidade e lhe garanto que estaremos desempregadas depois da próxima eleição. — Não me importo. Além do mais, não terei de falar em lobisomem. Mencionar um lobo hidrófobo fará o mesmo efeito. — Grace, você não pode forçar as pessoas a deixarem a cidade. Ela pareceu desanimada. — Eu esperava que tudo fosse mais simples, mas não é. Vamos embora. Olhei a carroça que supus ser de Malachi, mas não o vi. — Vai ficar para a apresentação? — Grace quis saber. Refleti um pouco antes de negar com um gesto de cabeça. Queria fazer mais pesquisas sobre a runa e também sobre o hipotético exército de lobisomens de Hitler. Nada me prendia ali. Nenhum dos ciganos, exceto Malachi, me via com bons olhos. E, além de Sabina, que eu não vira o dia todo, ninguém me inspirava simpatia. Segui Grace até a radiopatrulha estacionada ao lado do meu carro. Antes de ir até o acampamento, tinha passado em casa e procurado o talismã, mas não o encontrei. Nós nos despedimos e ela foi embora, mas eu fiquei dentro do carro por alguns minutos, pateticamente esperando ver Malachi mais uma vez. Poderia ficar para o espetáculo, mas acabaria adormecendo após duas noites quase sem dormir. Telefonei para a prefeitura, mas, como já passara do horário de expediente, não houve resposta. Liguei para a casa de Joyce, sem resultado. Era possível que ela tivesse vindo para o show. Talvez fosse melhor esperar, ela certamente me avisaria caso houvesse uma emergência. Telefones celulares eram feitos para isso. Dei a partida no carro e rumei para casa. Deixei o caminho de pedregulhos e subi a colina que levava até a cidade. O sol se escondia e sombras se espalhavam pela estrada. Não vi sinal das lanternas traseiras da viatura de Grace. Vários carros passaram por mim na direção oposta e a estrada ficou deserta. As últimas luzes do dia apareciam por entre os pinheiros, revelando os grãos de poeira que dançavam no para-brisa. Tudo estava quieto. Não havia vento nem se escutava o canto dos pássaros. O ar parado fazia pensar na atmosfera que antecedia um tornado. Pisei no acelerador, com vontade de chegar em casa e trancar a porta. Uma sombra escura surgiu na frente do carro e eu freei bruscamente. A parada atirou-me para a frente e o cinto de segurança estalou, mas o impacto não tinha sido suficiente para acionar o air bag. Desafivelei o cinto e saí do carro. Um lobo negro e grande estava sob o para-choque. O sangue escurecia o asfalto e o pescoço do animal estava torto, possivelmente quebrado. Quando me aproximei, ele abriu os olhos. — Balthazar — sussurrei.
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O animal virou o pescoço e o forte estalido me fez recuar. Ele se sacudiu e sangue espirrou dos pelos, caindo no asfalto e na frente do carro. Entrei no veículo, e o som do fechamento automático deu-me segurança por um instante, antes de o lobo se jogar na capota do motor. Eu não conseguia pensar no que deveria fazer. O lobo arremeteu e bateu o focinho no para-brisa, deixando uma mancha de sangue fresco e coagulado no vidro. Gritei e me encolhi no assento. — Ele não conseguirá me vencer — assegurei a mim mesma com voz trêmula e nada convincente. — Para-brisas não quebram com tanta facilidade. Alcancei a ignição e Balthazar investiu de novo. O vidro estilhaçou-se. Ele enfiou o focinho para dentro, babando e rosnando. As garras arranhavam o capo no esforço para se levantar. Eu sempre soube que Balthazar guardava rancor e, horrorizada, não conseguia me mexer. Endireitei-me. Eu não permitiria que ele me vencesse! Coloquei o cinto, dei a partida e pisei no acelerador. O carro deu um solavanco para a frente, trazendo o lobo para mais perto. Pisei no breque e o animal caiu de costas, espalhando cacos de vidro por cima da capota. Ele deslizou e foi para o chão. Acelerei novamente e passei por cima dele. Os pneus da frente subiram e caíram com forte ruído, o mesmo acontecendo com os traseiros. Brequei de novo e dei marcha à ré. Em vão. Balthazar se levantou. Tornei a bater nele e a passar por cima do corpanzil. Ele ficou outra vez em pé. — Eu deveria ter um carro de prata. O lobo parou diante da luz dos faróis dianteiros. Eu poderia passar por cima dele a noite inteira e de nada adiantaria. Ele pretendia me matar. Peguei o celular, mas não podia desviar os olhos. Ele atacou e eu investi. Um jogo de gato e rato. De repente, escutei um estampido e o lobo explodiu. Sem poder parar, passei por cima dele. Fiquei apavorada ao imaginar que meu carro também poderia ir pelos ares. Freei a uma boa distância do fogo e espiei no retrovisor. O animal continuava queimando. Perscrutei a floresta, mas nada vi. Acelerei rumo à minha casa e deixei para trás o corpo caído em chamas. Poderia ter ligado para Grace e ter esperado por ela dentro do carro, mas a ideia de ficar naquela estrada solitária apenas com Deus por testemunha não me agradava. Chegando em casa, liguei para ela. — Tem certeza de que era Balthazar? — Grace perguntou. — Eu reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar, até mesmo na pele de um lobo. — Bem, é uma pessoa a menos desaparecida. — Eu a escutei entrar na viatura policial. — E uma dor de cabeça a menos para você. — Grace! Eu não desejaria isso a ninguém. — Eu sei, mas continuo a achar estranho que o morto e o não-morto pertençam à sua lista de pessoas desprezíveis. — Mas não todos. Não conheci Ryan Freestone. — Certo. Bem, mas temos no mínimo dois lobisomens. A menos... 124
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Prestei atenção ao barulho dos pneus no asfalto. — O quê? — Que Balthazar seja o lobisomem original. Ele era muito peludo e grandalhão. — Você acha isso possível? — Pelo menos tornaria as coisas mais ordenadas. — Ela suspirou. — Mas a vida nunca é tão fácil. Escutei o carro parar, a porta abrir-se e os passos de Grace no cascalho. — Estou iluminando o local... Nada de fogo... Espere... — Mais passos. — Um pouco de cinzas e marcas no chão. Alguém esteve aqui. — É óbvio, Grace. Não fui eu quem atirou nele. —Vou tirar meu carro da estrada e tentar encontrar o homem. Ligarei mais tarde. — Espere. Quem atirou em Balthazar pode ser um doido. — Pois para mim ele é perfeitamente são. Eu gostaria de ter acertado a besta com uma bala de prata. — Tome cuidado, ele pode estar rondando por aí. — Confie em mim. Agora, fique aí dentro e, se escutar algo suspeito, ligue para a polícia. — Para um de seus policiais se tornar uma isca para a fera? Ela desligou. Eu tinha corrido para casa, pois me parecera um lugar mais seguro que o carro. Porém, na cozinha, olhando para a porta de vidro, não tinha mais tanta certeza. De qualquer forma, para onde mais poderia ter ido? Depois de verificar portas e janelas, liguei o computador. Na internet, encontrei muitas coisas curiosas. Como Grace dissera, lendas sobre metamorfose medravam por toda a parte. Feiticeiros falavam em se transformar em seus espíritos animais e alguns carregavam talismãs que continham a essência de sua outra natureza. Ah, como eu desejava não ter perdido aquela runa. Os cherokee tinham uma lenda de mutação envolvendo uma pantera. Os ojibwe contavam histórias sobre Weendigo, um lobisomem canibal, e sobre lobos invisíveis que guardavam as sepulturas dos guerreiros. Os navajos acreditavam em seres, tanto feiticeiros, quanto lobisomens, que se apossavam da pele de um animal e nele acabavam se transformando. No Haiti, havia a lenda do Lougaro, um feiticeiro mutante que só aparecia à noite bebendo o sangue das crianças. Também existiam histórias a respeito de Egbo, uma comunidade na África que atemorizava os escravos por meio da transformação em leopardos. Quando pesquisei curas milagrosas, esbarrei nos sites religiosos, o que era compreensível. Um deles falava em teorias conspiratórias, em que curas milagrosas eram atribuídas a alienígenas, a Satã e a complicadas conspirações governamentais. Procurei por locais onde lobos haviam desaparecido de seu habitat natural e encontrei informação sobre animais de estimação exóticos. De acordo com a teoria ali exposta, pessoas que haviam criado lobos desde filhotes tinham se livrado deles pela 125
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dificuldade em controlá-los. Também descobri uma página que falava sobre animais lendários, em que se dizia que existiam lobisomens por toda a parte. No item ciganos havia um sem-número de informações, e decidi pedir dados a uma antropóloga da Califórnia que estava escrevendo um livro sobre lendas e folclore dos rom. Ela pedia inclusive que lhe fossem enviadas novas histórias a respeito daquele povo. Ela também mantinha ali uma listagem dos capítulos já escritos de seu livro. Um em particular me interessou. Strigoi de Lup. Lup devia significar "lobo" em romani. Digitei uma mensagem pedindo que ela esclarecesse a dúvida e a enviei. No mesmo instante, um rangido na escada deixou-me apreensiva. Virei a cabeça e escutei com atenção. Duvidava de que um lobisomem subisse os degraus tão silenciosamente, mas, como eu sabia que tinha sido capaz de quebrar com facilidade o para-brisa, fiquei nervosa. Enfiei o celular no bolso e olhei ao redor, à procura de algo que pudesse usar como arma. Na falta de coisa melhor, peguei o peso de papel de cristal e fui para o corredor. Acostumada com a natureza econômica de meu pai, eu deixei todas as luzes apagadas e a escuridão imperava na escadaria e no térreo. Na obscuridade, as sombras pareciam lobisomens. Resolvi voltar por onde viera, quando escutei mais um estalar de madeira. Colada na parede para não ser vista, retornei ao primeiro degrau e espiei para baixo. Tudo vazio. Um ruído de raspagem do outro lado me fez virar a cabeça. Oprah estava sentada no meio do tapete, piscando solenemente. Ora, era apenas a gata. Como eu me esquecera dela? Assustada, eu tinha pensado em mil outras coisas. De repente, Oprah olhou atrás de mim, sibilou e fugiu. Tive um mau pressentimento de que algo subia a escada. Algo que eu não podia ver, mas que Oprah sentia. Queria segui-la para o esconderijo, mas lembrei de que o medo me fizera fugir em Atlanta. Não permitiria que esse mesmo medo me acuasse em minha própria casa. Virei-me e vi Malachi subindo a escada. Soltei a respiração com ruído exagerado. O alívio de não me ter deparado com um homem-lobo rosnador e salivante transformou-se em raiva. — Você ficou louco? — Agitei o peso de papel. — Eu poderia tê-lo matado! Ele se aproximou devagar. — Não creio que isso pudesse me matar. — Pois está enganado. Meu nível de adrenalina estava altíssimo. Certamente eu teria feito um estrago grande se tivesse atirado o peso de papel com a raiva que estava sentindo. — Como foi que você entrou? — Acha que uma simples fechadura poderia me manter do lado de fora? — Você não podia bater na porta ou tocar a campainha? — Eu não queria acordá-la. — Mas quase me matou de susto. — O peso de papel deslizou de minha mão e as pernas fraquejaram. 126
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— Claire! — Ele subiu correndo, segurou-me pela cintura e levantou-me no colo. — Estou bem. — Não está. O que houve? — Além de você invadir a minha casa e assustar-me desse jeito? — Sim, além disso. — Malachi fitou-me com o cenho franzido. Como ele sabia? Tinha lido minha mente ou estivera na floresta com uma arma? Não. Se ele tivesse atirado em Balthazar, teria me dito. Malachi sabia das suspeitas de Grace e não tinha se chocado. Quando terminei de contar-lhe tudo, ele me levou até o quarto e fechou a porta. Deixou-me na cama, acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira e deitou-se a meu lado. — Eu poderia tê-la perdido — ele sussurrou. — Você acredita em mim? — Tenho visto muitas coisas, a stor, muitas. E por que não um homem se transformar numa fera? — Ele deu de ombros e depois me abraçou. — Nunca deveria ter perdido você de vista. A vontade dele de me proteger não causava irritação como acontecera em relação ao meu pai. Eu teria mudado? Teria passado a perceber que a proteção era bem-vinda? Afinal, eu tinha voltado para casa em busca de segurança e não encontrara nenhuma. — Você não pode estar ao meu lado o tempo todo — murmurei. Em breve, ele me deixaria. Senti um nó na garganta. Oh, Deus, eu não devia me apaixonar por ele. Seria uma grande estupidez. Porém, admitia que, em matéria de homens, a estupidez era minha marca registrada. Ele me olhou como se lesse meus pensamentos. Eu queria que ele me beijasse e me fizesse esquecer. Segurando meu rosto em suas mãos grandes e bronzeadas, ele me beijou. Malachi me saboreou como nunca tinha feito antes, mordiscando levemente o lábio inferior, sugando-o, passando a língua sobre meus dentes. Entrelaçou os dedos nos meus cabelos e fiz o mesmo nos dele. A cruz na orelha refletia a luz no teto, dando a impressão de estrelas cadentes. Puxei a camisa branca dele para fora da calça e acariciei a pele macia e quente do peito. Na certa, a experiência quase mortal me deixara corajosa, pois deslizei a mão entre nossos corpos, roçando com o polegar a extensão de sua masculinidade latejante, até ele segurar meu pulso. — Pare com isso, ou terminaremos antes de começar. Ele se afastou para tirar as botas, as calças e as meias, antes de me fitar, hesitante. — Posso tirar sua roupa, a chroi? — ele indagou em um sussurro como se estivesse esperando uma negativa de minha parte. — Pode. — Tem certeza? — Sim. 127
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Malachi deitou-se na cama e começou a desabotoar lentamente minha blusa. Quando a peça foi tirada, senti a calidez de seu olhar como uma carícia. Ele passou o indicador no centro de meu ventre, abriu o único botão de minha calça larga, desceu o zíper e deslizou-a por meu corpo. O resvalar do tecido na pele me fez estremecer. Ele abaixou a cabeça e me beijou com avidez sobre a calcinha. Arqueei o corpo e a boca tornou-se exigente. O roçar da barba por fazer acrescentava uma nova sensação ao contato. Retesei-me e ele removeu a calcinha, jogando-a no chão sobre nossas roupas. Fiquei apenas com o sutiã branco e, naquele momento, quis ter e usar algumas roupas íntimas sensuais. Imaginei que ele fosse abrir o fecho, soltar meus seios e provocá-los. Excitada com as carícias lentas e sensuais de suas mãos e lábios, faria o que ele desejasse. Quando ele deitou-se sobre mim e penetrou-me com gentileza, eu suspirei e o recebi em meu corpo com um prazer que jamais havia imaginado sentir. A luz brilhava em sua pele, as pupilas aumentaram, confundindo-se com as íris negras, conferindo-lhe uma aparência de um ser de outro mundo. Mas não me assustei. Tratava-se de Malachi, um homem honesto e gentil, que me resgatara do frio e do medo em que minha vida tinha se transformado. E, apesar das coisas estranhas que vinham acontecendo, eu me sentia mais forte, realizada e feliz por causa dele. As investidas tornaram-se mais lentas, como se ele pretendesse prolongar eternamente o ato. Entreguei-me à necessidade de tocá-lo, passando os dedos em seus cabelos, no rosto, no peito, nos ombros e nas costas. Mostrei a ele um outro ritmo, mais rápido, mais profundo, e logo estávamos no limite da excitação. — Claire — ele gemeu. Acariciou meus seios, parecendo notar pela primeira vez que o sutiã ainda estava no lugar. Com uma das mãos, abriu o fecho, que raspou em minha pele, revelando meus seios. Ele os tocou quase com reverência. Com a ponta do dedo, roçou minha marca de nascença, e algo brilhou em seus olhos. — É você. A voz dele parecia angustiada, mas, antes que eu pudesse perguntar algo, ele investiu de novo, fazendo-me esquecer de tudo ao sentir a intensidade do orgasmo que tomou meu corpo. Malachi não parou. Continuou a se mover, o rosto em meu pescoço, os cabelos sobre meu rosto, a fragrância de água e terra tomando conta de meus sentidos conforme ele completava meu corpo com o dele. Com carícias de seus dedos, lábios e língua, ele me conduziu de novo ao êxtase, que atingi gritando seu nome. Quando os tremores cessaram, mal percebi que ele apagava a luz e nos cobria antes de adormecer. Acordei antes do amanhecer e ele já não estava mais ali. Imaginei se tudo não tinha passado de um sonho. Não. Sentia o cheiro dele no quarto, nos lençóis e em mim. Espreguicei-me e senti o corpo dolorido. Não me incomodei. Pelo contrário. Rezei para que tudo se repetisse.
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Lembrando de que Grace não telefonara, saí da cama, me vesti e liguei para ela. Não houve resposta. Tentei no celular e no departamento de polícia, também sem resultado. Calcei sapatos próprios para andar na mata, mas, quando estava começando a descer as escadas, escutei o ruído do computador indicando o recebimento de uma nova mensagem. Decidi checar e encontrei a resposta da antropóloga.
Srta. Kennedy, Agradeço seu interesse por meu livro. Cópias estão disponíveis no meu site ao preço de 29,99 dólares. Respondendo à sua pergunta, a Strigoi de Lup é uma feiticeira romena. Em geral, ela é descrita como uma jovem bonita, vestida de branco e que provavelmente conduz os lobos. Algumas lendas dizem que ela faz isso se transformando em um deles sob a luz do luar. Ela protege sua identidade matando qualquer um que a veja sob essa forma ou que fale sobre isso. Uma lenda interessante, mas não tínhamos nenhuma bruxa romena por aqui. Tirei uma cópia do e-mail, guardei-a no bolso e saí.
CAPÍTULO V
O sol começava a despontar enquanto eu dirigia a caminho da casa de Grace. Com o para-brisa do meu carro destruído, tirei o do meu pai da garagem. O veículo ainda tinha cheiro dos cigarros dele. — Olá, papai. — Dei uma pancada leve no assento. Quanto mais tempo eu ficava em Lake Bluff, mais nossos desentendimentos perdiam a importância. Passei a enxergar o quanto ele amava a cidade, o trabalho e as pessoas. Lamentei não ter dado maior atenção ao que ele fazia e, por isso, não tê-lo ajudado. Compreendi que eu desempenhava a contento o cargo de prefeita, muito melhor, aliás, do que tudo o que já fizera. — Agora estou aqui. — Por um segundo, imaginei que ele pudesse me escutar. O alto das montanhas ainda estava encoberto pela névoa que se coloria de rosa, dourado e laranja em um mar de azul e verde. Pelas janelas da casa de Grace não se via luz. Ela se levantava na última hora, bebia uma caneca de café enquanto tomava banho e saía correndo com os cabelos molhados.
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Com uma sensação de déjà vu, subi os degraus da varanda, toquei a campainha e aguardei. Nenhum sinal de vida. Espiei pelas janelas laterais e nada vi. Dei a volta pelos fundos e bati com força. A porta se abriu. — Grace? — Entrei na cozinha e a casa estava silenciosa como um túmulo. Estremeci, acendi as luzes e tomei a gritar. — Grace! A mesa estava coberta com armas e munição em caixas de uma loja especializada em armas do Tennessee, cuja propaganda dizia que executava qualquer pedido. Eu detestava estabelecimentos desse tipo, mas em alguns casos era uma sorte existirem. Grace deveria ter gastado um bom dinheiro para conseguir tudo aquilo em tão pouco tempo. O mais interessante era a loja manter um estoque para pronta entrega que lhes permitisse enviar tanta coisa mediante um pedido de última hora. Ou nós tínhamos sido lentos demais em aceitar a existência dos lobisomens. Ela não costumava largar armas carregadas onde qualquer pessoa pudesse encontrá-las, nem deixar aberta a porta dos fundos quando não estava era casa. E jamais faria as duas coisas ao mesmo tempo. Peguei uma das pistolas, certifiquei-me de que estava travada e dei uma volta pela casa. Ela não se encontrava no térreo. Subi a escada. O banheiro estava vazio e seco. Grace não podia ter saído para o trabalho sem tomar banho, deixando armas e munição para trás e se esquecendo de trancar a porta. Além disso, a radiopatrulha estava parada do lado de fora. Por um lado, a presença da viatura deixou-me aliviada. Ela voltara para casa depois de perseguir o misterioso atirador da noite passada. Por outro, fiquei nervosa. Onde estaria ela? — Grace! — gritei com medo e com raiva, uma combinação frequente nos últimos dias. Ela não estava no quarto e a cama não fora desfeita ou já fora arrumada. Tirei o celular do bolso e liguei para o dela. Uma campainha distante levou-me a subir o segundo lance de escada, que conduzia ao ático, onde o pai dela costumava ficar. Eu estava curiosa para ver as modificações feitas ali. Subi a escada em caracol pensando se deveria fazê-lo. Não havia escolha. Grace poderia estar ferida... ou pior. Cheguei ao segundo pavimento, virei o trinco e a porta abriu com um rangido. Não encontrei o interruptor. Felizmente, os primeiros raios de luz foram suficientes para atravessar a única janela e iluminar os livros, os béqueres, os tubos de ensaio e o sapo morto em um aquário. Vasilhames se espalhavam pelo recinto e havia objetos pendurados no teto que talvez fossem de origem cherokee. Em cima da mesa, o pedaço de madeira com a suástica pintada. Apanhei a runa, mas sem a certeza de ser a que eu havia perdido ou outra. Desci correndo as duas escadas e saí pela porta dos fundos. Grace emergiu novamente da mata vestindo apenas um penhoar branco. Contudo, daquela vez, o significado foi mais profundo. Ergui a arma. — Strigoi de Lup, presumo? Despreocupada, ela fez pouco caso e caminhou em minha direção. Agarrei com as duas mãos o cano da arma. 130
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— Grace, você é um lobisomem. — Não sou. — Ela parou e me encarou. — Mas você pensa que eu sou. Diga-me uma coisa, grande gênio. Se fosse uma mulher-lobo, como eu teria conseguido segurar uma bala de prata até investigar cinquenta ciganos ou carregar as armas que você viu aí dentro sem fritar meus dedos? — Tenho apenas a palavra do dr. Bill que a prata causa queimaduras na forma humana. — Você terá de confiar em mim. — O que está pretendendo fazer? — Nada que possa afetar nosso caso. — Não? — Mostrei a ela a runa que eu encontrara. Grace resmungou, aborrecida, e arrancou a arma de minha mão. Sorte dela que eu não tinha removido a trava. — Não seja idiota. — Ela entrou na casa. — Vamos, precisamos conversar. Eu a segui. Ela foi para a cozinha e pôs café na máquina. — O que você está fazendo aqui a esta hora da manhã e por que pensa que sou um lobisomem? Entreguei a ela a cópia do e-mail da antropóloga e sentamos à mesa. Quando ela terminou de ler, devolveu-me o papel. — Não sou romena. — Eu a vi sair da floresta duas vezes vestida de branco. — Sou cherokee e gosto de comungar com a natureza. — Por que não acredito nisso? — Ontem você discutia comigo sobre a existência de lobisomens e agora você pensa que sou um deles? — Vi aquele lobo com os olhos de Balthazar. E ver é a forma mais rápida de acreditar. — Muito bem, enquanto você não me vir com rabo e caninos expostos, promete não atirar em mim? — Eu não teria atirado. — Certamente não com a trava acionada. Eu deveria ter suposto que ela notaria aquilo. — O que é aquele sapo morto? — Era de minha avó. — E tem quantos anos? Ela fixou em mim os belos olhos verdes por cima da segunda xícara de café. — Não creio que gostará de saber. — Grace tomou um gole, deixou a xícara na mesa e revelou manchas de terra no pulso. — O que houve? Ela virou a mão para cima. Estava suja. — Caí. Grace nunca caía. Ela apoiou um pé sobre o joelho. A sola estava arranhada. 131
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— Eu não deveria andar descalça pela mata. Tropecei numa pedra e caí. — Você precisa de um banho. — Claro, e depois iremos até o acampamento. Claire, estive pensando que talvez a prata não cause nenhum dano a eles. — Não foi o que aconteceu com Balthazar — Se é que se tratava de uma bala de prata. — Pelo testemunho do dr. Bill, eu diria que era. — E se a prata não fizer nenhum efeito na forma humana? Pensei no brinco de Cartwright e nos testes que Grace fizera com os ciganos. — Isso poderá representar um problema. — Ou talvez nosso acusado seja um superlobisomem, capaz de resistir à prata, ao acônito e ao pentagrama. Fitei-a com curiosidade e ela continuou: — Também fiz algumas pesquisas e descobri que o acônito afugenta os lobisomens. Isso faz sentido por ser uma erva extremamente venenosa. — E o pentagrama? — Sobre isso há diversas crenças. Algumas afirmam que o pentagrama afasta os lobisomens como a cruz repele um vampiro. Outras, que um pentagrama é, na verdade, o que distingue os lobisomens. Você viu alguma tatuagem no peito, na palma ou em qualquer outra parte do corpo de Cartwright? — Por que você está com a ideia fixa de que o homem-lobo tem de ser um cigano? — Nossos problemas tiveram início quando eles chegaram a Lake Bluff. Os ciganos viajam com animais. Quem garante que eles não tenham mais um escondido, um que não seja animal o tempo inteiro? A runa foi encontrada perto do acampamento e eles insistiram em privacidade completa no território deles nos dias em que o dito lobo foi visto ou escutado. E o fato de os ciganos terem estado no campo de concentração onde Mengele produzia lobisomens é uma coincidência grande demais para ser ignorada. — Não esses ciganos. — Não necessariamente. — Grace deu de ombros. — Mas, se aqueles fossem lobisomens, poderiam viver para sempre. — Você esteve pensando muito a respeito. — É o meu trabalho, Claire. Então, notou algum pentagrama em Cartwright? — Não e posso garantir que vi muita coisa dele. Grace arqueou as sobrancelhas. — Ele é tão bom quanto parece? — Melhor. — Ele poderia ser um lobo que você nem enxergaria. — Poderia. — Mas você não acha que ele seja. — Dr. Bill disse que os humanos infectados tornam-se diferentes, maldosos. Malachi é um dos melhores homens que já conheci. 132
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— Menos quando resolve quebrar o nariz de alguém. Era verdade. Ele se portara de maneira violenta com Josh e Balthazar. Mas certamente o termo "animal assassino sedento de sangue" não se aplicava a Malachi Cartwright. — Voltando aos pentagramas, eles podem ser usados para invocar o bem ou o mal, Uma ponta ascendente é para o bem, duas pontas dão as boas-vindas ao Diabo. — Se alguma vez eu vir uma, vou me lembrar disso. E, já que estamos falando de símbolos, por que não me diz como pôs as mãos nesse? — Apontei a runa sobre a mesa. — Eu o encontrei na mata ontem à noite. — Ah, no escuro e no meio de todas aquelas árvores e da vegetação exuberante? — Você diz isso como se não acreditasse em mim. — Ela estreitou os olhos. — Não acredito. — Acha que eu roubei isso de você e que me transformei num strig de qualquer coisa? — Pareceu-me estranho, só isso, Grace. — E ultimamente não tem sido assim com tudo? — Você sabe que eu não me importaria se me contasse a verdade. — Que sou uma fera uivando para a lua, que matei Balthazar, Josh e o turista? — Bem, eu me importaria, mas não deixaria de gostar de você, nem de ser sua amiga. — Você já deu as costas para mim. — Mas que droga, Grace, eu não faria isso agora. De repente, estávamos sorrindo uma para a outra como duas tontas. — Está bem. Obrigada, Claire, Essa provavelmente foi a coisa mais bonita que alguém já me disse. Grace precisava conhecer mais gente. — Por que não me conta o que houve ontem à noite? — Está bem. — Ela pensou por um minuto. — Depois de seu telefonema, fui até o local do crime. Encontrei a terra remexida e cinzas, e segui um rastro problemático. — Rastro do quê? — De lobo. — Nenhum sapato? — Não. Pelo que me constava, lobos não sabiam atirar. Quem atirara em Balthazar e por que não deixara rastros? — Esquisito. — Muito — ela concordou. — Demorei para terminar a busca, pois estava escuro e as marcas eram leves. Mas elas acabaram me levando de volta ao acampamento. — Qual acampamento? — O que você acha, Claire? — De verão? — Sorri sem graça. — Balthazar, o lobo, saiu do acampamento dos ciganos? 133
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— Ao que tudo indica. — E o talismã? — Encontrei-o debaixo da mesma árvore da outra vez que, por sinal, marcou o final dos rastros. — Aquela árvore tem algum mistério. — Você acha? Claire, mesmo que o seu belo amante não seja a fonte original do lobisomem, ele está escondendo alguma coisa. Malachi tinha mentido e eu não poderia estar mais desapontada. Pensei que ele seria diferente, mas ele não passava de um homem. Talvez. — Nós reviramos o acampamento de cabeça para baixo ontem e nem sinal de lobo. — Isso foi antes do espetáculo. Todos estiveram lá naquela noite. — Então, qualquer um poderia ter feito surgir um lobisomem naquela mata, e não necessariamente um cigano. — Teoricamente sim. — Mas não é o que você pensa. — Bem, temos muitas provas circunstanciais que apontam para os ciganos. O que me faz suspeitar de um plano para incriminá-los, mas quem faria isso? Os dois maiores suspeitos de querer acabar com o rei cigano estão mortos. — O que nos traz de volta aos próprios ciganos. — Exatamente. — Grace levantou-se. — Estarei pronta em alguns minutos. Fiel à promessa, ela voltou dez minutos depois, de uniforme e com uma trança úmida e longa que dançava nas costas. — Você nunca ouviu falar em secador? — perguntei. — Eles quebram as pontas dos cabelos. — Ficar com os cabelos molhados ainda vai lhe render uma pneumonia. — Você sabe muito bem que isso não provoca doença. — É o que dizem. — Mas nunca tinham me convencido. O trajeto até o lago foi feito em silêncio até Grace virar numa trilha estreita de caça, a cerca de oitocentos metros do acampamento. — O que está fazendo? — Se quisermos encontrar alguma coisa, precisamos ter mais cautela. — Rastejar e espionar? — Acertou. Se você for ficar com a consciência pesada, pode esperar aqui. A ideia de enfrentar lobisomens me agradava bem menos do que a de espionagem, por isso segui Grace pela floresta. Nuvens escuras esconderam o sol e sombras dançavam através das folhas. Olhei para os lados, sentindo algo mais sólido do que um bruxuleio fugaz entre as árvores. — Estou com um mau pressentimento — Grace murmurou. Eu também estava, mas mantive segredo. Falar nisso me deixaria ainda mais assombrada.
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Alcançamos o alto de uma ladeira pouco inclinada. Grace deitou-se de bruços, espiou na beirada e eu fiz o mesmo. Embaixo, o local usado como estacionamento estava vazio, assim como as carroças. Olhei o relógio. Ainda era cedo, mas não havia explicação para a ausência total de pessoas. — O mau pressentimento está ficando cada vez mais forte — ela disse. Esperamos mais alguns instantes antes de Grace levantar-se e descer com a mão na pistola, uma das que estavam carregadas com projéteis de prata que eu vira na mesa da cozinha. Eu a segui e, quando chegamos à margem do acampamento, ela se deteve, levando um dedo aos lábios. Fechou os olhos, inspirou fundo e se aprumou. Segundos depois, soltou a respiração e abriu os olhos. Como sempre, o brilho intenso e verde de seu olhar em contraste com a pele azeitonada era extraordinário. — Não há ninguém aqui. Embora eu desconfiasse disso, a afirmativa me surpreendeu. — Como é que você sabe? — Lugares desertos têm uma aura — disse, desviando o olhar. — Uma aura? — repeti. — Não seria um cheiro de bolor? — Maldição! — Ela caminhou a passos largos na direção das jaulas. Apressei-me atrás dela, passamos pela curva e nos deparamos com um imenso vazio. — Isso não está me parecendo um bom sinal — ela resmungou. — Essa é uma afirmativa atenuada. Onde estarão todos? — O que você acha? — Grace fez um movimento largo com o braço e quase bateu em meu nariz. — Vamos precisar do Departamento de Controle Animal. — Ela começou a andar e a pensar em voz alta. — Armas com tranquilizantes. Se o urso ou o puma se aproximarem da cidade... Grace não teve de concluir a frase nem dizer para eu me apressar. Escalei a ladeira por onde tínhamos vindo e cheguei ao alto, seguida por ela. Paramos juntas, como se houvéssemos combinado, nos viramos... e caímos sentadas. Animais desciam das árvores e entravam no acampamento cigano. Ela puxou a arma, mas o número de animais era grande. Não adiantaria dar um tiro e chamar a atenção sobre nós para sermos atacadas. Havia muito mais animais do que tínhamos visto nas jaulas no primeiro dia. Estaríamos com problema de visão dupla? Em volta das árvores, dois ursos se moviam pesadamente em meio a dois pumas, duas zebras... e muitos outros animais que continuavam a surgir. Havia macacos, cobras e pássaros de espécies diferentes. Para minha surpresa, os pumas não atacavam as zebras e os ursos não ameaçavam comer nenhum outro bicho. Todos aparentavam ser uma grande família feliz que aguardava um acontecimento. Nesse momento, Malachi surgiu por entre as árvores.
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Fiquei petrificada. Os ursos podiam ser treinados, ou pelo menos um deles era, mas ele representava uma bela refeição. Malachi caminhou tranquilamente por entre os animais, acariciando alguns deles. Abaixou-se e passou os dedos numa das serpentes. Endireitou-se e abriu os braços como se os abençoasse. Uma névoa espalhou-se a partir de seus dedos e rodeou o ajuntamento. Eles tremeluziram e começaram a se mexer. Um dos ursos bocejou, olhou para o céu e em segundos Hogarth, desnudo, endireitou-se nos dois pés. Um puma transformou-se em Molly. Uma zebra, na jovem esguia com uma mecha branca nos cabelos negros. Dois macacos deram lugar a dois homens idosos, um deles, o bilheteiro enrugado. Outro se transformou em Edana, a adivinha, o que de certa forma explicava a brincadeira com a pata. Uma das serpentes cresceu e se contorceu até Sabina aparecer no lugar dela. — Oh, Deus — Grace sussurrou. Muda, eu olhava para Malachi rodeado pela névoa. Ele não era um animal, mas também não era totalmente humano. — Podem descer — ele disse, olhando-nos. — Ninguém machucará vocês. Os animais e as pessoas se encaminharam para as carroças. — Sabina! — chamou a moça que nos encarava. Ela segurou as cobras nas mãos, enrolou algumas no pescoço, pôs outras sobre os ombros e foi para o cercado delas. Malachi caminhou em nossa direção. Grace e eu nos levantamos, e ela manteve a arma na mão, apontada para baixo. — Quando você ia me contar? — perguntei, agastada, e notei certa culpa em sua fisionomia. — Eu acabei de contar. — Você não me disse nada. Nós descobrimos. — Ele sabia que estávamos aqui — Grace afirmou. — Como? — Se ele transforma homens em animais e vice-versa, acha que não se dá conta de tudo o que o rodeia? — Isso é verdade? — indaguei. — Não tenho o poder de transformá-los em animais. Só posso reverter a situação. — Talvez fosse melhor explicar tudo desde o início — eu disse com firmeza. — Está bem. Malachi nos convidou a entrar na carroça dele. A cama arrumada sugeria que ele passava muitas noites na minha e as outras certamente na mata. Sob a cama, gavetas com roupas. Sobre uma mesa, papéis e livros cujos títulos lembravam os que eu vira no sótão de Grace. Muitos sobre fenômenos paranormais, encantos, magia e maldições. — Quem é você? — perguntei, depois de nos sentarmos. — Digamos que... sou capaz de fazer coisas. 136
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— Feitiçaria? — Grace inclinou-se para a frente. — Sim. — Por quê? — Sou um rom. — Todos os ciganos, isto é, os rom, fazem bruxaria? — Supus que a pergunta fosse tola, após o que havíamos presenciado. — Somente os puros. Estreitei os olhos. — Em que sentido? — Sangue rom sem miscigenação com os gadje. — Creio que isso é muito difícil de conseguir hoje em dia. — Não somos exatamente desta época. Esfreguei as têmporas que começavam a latejar. — Você viajou no tempo? — Grace indagou. Malachi teve a ousadia de rir — Não, eu nasci em 1754. — Cartwright, por favor! —Xerife, depois de testemunhar um urso assumir a forma humana, é difícil de acreditar que nasci há duzentos e cinquenta anos? — Está bem. — Grace mordeu os lábios, — Continue. — Havia uma chovhani, uma feiticeira e ela... — Malachi olhou para mim, franziu a testa e desviou o olhar — me amava, mas eu não retribuí esse amor. Aquilo seria uma dica? Importaria realmente? Qualquer futuro com que eu pudesse sonhar ao lado dele estava perdido. Ele era um feiticeiro e seu povo sofria metamorfoses. Aquela era ou não uma boa desculpa para evitar compromissos? — Você desprezou uma feiticeira e ela o amaldiçoou — Grace concluiu. — A mim e ao meu povo. Os lábios de Grace tremeram, mas eu não achei graça nenhuma. — Como isso é possível? — perguntei. — Simples — Grace retrucou. — Com a fórmula mágica certa e com um pouco de poder. — Muito poder — ele a corrigiu. — Ela tinha muito mais do que eu. — Você deveria ter dito o que ela queria escutar. Teria evitado séculos de problemas. — Eu não pude mentir, dizendo que a amava. — Ah, você é mesmo de outro século — Grace ironizou. — E onde está ela? — resmunguei. — Morreu. — E você continua vivo. Malachi abaixou a cabeça com olhar amargurado. — Ela o condenou à imortalidade? — Grace fitou-o com curiosidade. — Sim. — E quanto a seu povo? 137
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— Nós éramos uma kuimpa'nia. Uma caravana e uma família. Eu não os abandonaria para ficar com ela. — Ele me olhou de relance. — Tocá-la era proibido. Mas ela era bela e eu, um fraco. — Ou simplesmente um ser humano — disse Grace. — Ela os transformou em Jel´sutho'edrin, animais de companhia ligados a mim. Eles não podem me abandonar e nem eu posso deixá-los. Se não fosse por minha magia, eu não poderia reverter a situação e teria ficado completamente sozinho pela eternidade, sem companhia humana. — Então você conseguiu fazê-los recuperar a forma humana. — Meu poder permite mantê-los como seres humanos por alguns dias de tempos em tempos. — Uma espécie de revezamento — deduzi. — Sim. — Teria sido uma maldição mais fácil se todos fossem transformados numa única espécie animal — Grace disse. — O encantamento deu-lhes a oportunidade de escolher em que animais preferiam se transformar. Muitos se decidiram por bichos com quem se pareciam antes, como Hogarth e Moses, que são irmãos gêmeos. Casais como Molly e Jared escolheram o mesmo animal. — Molly é o puma Mary? — Molly é o nome irlandês para Mary. Muitos preferem ser chamados das duas formas para lembrar a si mesmos e aos outros que têm duas naturezas. Como se fosse possível esquecer. — Onde está seu cavalo? — Na floresta. Benjamin não gosta de ver tantos animais de uma vez. — Ele não é amaldiçoado? — Não, ele é apenas um cavalo. — Por que Sabina resolveu ser uma cobra? — indaguei, curiosa. — Serpentes não precisam de braços. — Não haveria uma maneira de curar a menina na metamorfose? — Grace sugeriu. — Xerife, essa é uma maldição, não uma bênção. Olhei pela única janela em direção à gaiola das cobras. — Por que outros escolheram ser serpentes? — Todas as outras são cobras verdadeiras. Sabina sempre teve afinidade com elas, mesmo antes de ter sido amaldiçoada. — Por que ela não fala? — Ela não fala, Claire, desde que sofremos o infortúnio. A culpa em sua voz refletiu-se em seu rosto. Eu me comovi, mas nada disse. Nem mesmo sabia o que fazer com o que acabava de descobrir a respeito dele. — Testei cada um de vocês com a prata — Grace mencionou. — Mas ninguém reagiu. — A prata não tem efeito sobre nós. 138
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— E o que poderia ter? — Não faço a menor ideia. — Onde está o lobo? — perguntei. — Não existe nenhum — respondeu, com uma expressão confusa. — Cartwright, por favor não minta, ou perderei o bom humor. — Bom humor? — ele murmurou com ironia, fazendo-a estreitar os olhos. — Não há lobos entre meus animais. — E o que mordeu nosso turista? — Ela se irritou. — Um lobo. — Cartwright, eu juro... — Existe um lobo, mas ele não é um de nós. Alguns perceberam a presença dele, mesmo de longe, mas ninguém conseguiu se aproximar. — Segui os rastros do lobo que atacou Claire até seu acampamento. — Grace mostrou-lhe a runa. — Encontrei isto sob a mesma árvore onde foi encontrada a outra, exatamente onde as pegadas terminaram. Acredito que alguém está usando este talismã para criar um lobo ou para se transformar em um. — Nunca ouvi falar disso. — O que não quer dizer que não possa acontecer. — Meu povo já tem suficientes metamorfoses para enfrentar. Por que haveria de preocupar-se com isso? — É o que estou tentando descobrir — Grace suspirou. — O lobo parece atraído por nossa caravana, talvez pelas transformações. Iremos embora imediatamente. — Ele não me olhou. — Podemos fazer com que nos siga até as montanhas que são desabitadas. — E daí? — Grace ergueu uma sobrancelha. Malachi se levantou, foi até a janela e observou os picos distantes. — Faremos o que tiver de ser feito. — Irei com você. — Não, xerife. — Sou uma boa caçadora, excelente rastreadora e tenho muita munição de prata. — Mas acredito que será mais útil aqui. E se a fera nos iludir e voltar? E se ela se multiplicar e os lobos se espalharem pela cidade? — Misericórdia! — Isso poderá acontecer. — Você me parece um profundo conhecedor de lobisomens. — Conheço um pouco de tudo, xerife. Tenho duzentos e cinquenta e três anos de idade. Agora, se me permitir, vou preparar meu povo. Grace e eu fomos até a porta. — Você me contará o que houve? — ela pediu. — É claro. Ela saiu e eu me virei.
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Malachi estava atrás de mim. Olhei seu pescoço e os músculos que se movimentaram quando ele engoliu, e resisti ao impulso de beijá-lo. — Eu o verei novamente? — Isso não seria uma boa ideia. — Por acaso a noite passada foi? — Não pude resistir. — Sou assim tão irresistível? Por favor... Malachi agarrou meus braços e me beijou. Ele tinha sabor de canela e sol, e a fragrância do oceano ao amanhecer. Eu nunca fora beijada com tanta paixão, desespero e uma pontada de tristeza. Retribuí da mesma forma. Desejava tocá-lo, mas ele me segurava com tanta força que não pude levantar os braços. Duas semanas antes, teria me apavorado em situação idêntica. Agora, apenas pensava em prolongar o momento. Do lado de fora, um dos ciganos chamou-o e ele rompeu o contato. Na profundidade daqueles olhos negros, enxerguei meu reflexo, uma minúscula versão de mim mesma, presa ali para a eternidade. Quando ele soltou meu braço, segurei seu rosto. A barba por fazer arranhou minhas palmas. — Não existe nenhuma maneira de romper a maldição? Malachi estremeceu e meneou a cabeça. — Vou com você. — Não! — ele respondeu, os olhos arregalados. Afastando-se, deixou-me sozinha ao lado da porta. — Por que sou uma gadje? — Meu povo jamais a aceitará e não posso me separar deles, assim como eles não podem me deixar — Curvou os ombros. — Eu jamais morrerei, Claire, e você chegará ao fim. — A morte ainda vai demorar — Às vezes, ela vem mais depressa do que se imagina. Lembrando-me da predição de Edana, de que eu poderia morrer logo ou não, estremeci. — Isso não é amor — ele murmurou. — Nós nos conhecemos há uma semana. Malachi estava certo. As emoções excitantes que eu experimentara tinham sido consequência de uma extraordinária noite de sexo. Sua despedida pareceu ensaiada. Naqueles mais de dois séculos, quantas mulheres tinham se apaixonado por ele? Grace esperava por mim no carro e me olhou antes de dar partida no veículo. — Hoje é a noite da fogueira — ela comentou. A agenda de comemorações era a mesma havia quarenta anos, e certamente não mudaria nos próximos quarenta. A menos que Lake Bluff fosse à falência, — Dei alguns telefonemas — ela continuou. — O agente da campanha de Logan concordou em manter segredo sobre os detalhes da morte dele. — Como você conseguiu isso?
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— Ameacei divulgar na imprensa a verdade sobre o garoto de ouro. Um truque que sempre funciona. Mesmo depois de morto, eles não gostariam que sua imagem fosse denegrida. — Sempre podemos levar o caso do estupro a público, mas, no momento, pretendo manter a imprensa fora da cidade. Embora a ideia de alimentar o lobisomem com alguns jornalistas tenha lá seus encantos. Sem querer ofender. — Não se preocupe. — Muitas pessoas compartilhavam essa opinião, inclusive eu, sobre alguns repórteres. — Deixemos o caso como está. Josh não fará mais nenhum mal a ninguém. Quero esquecer. — Você poderá mudar de ideia. — Ela me olhou com preocupação. — Essa parte da minha vida morreu com ele. — Ao menos, era o que eu esperava. Sei que deveria ficar feliz de não precisar me expor ao mundo, mas nada conseguia me alegrar. — Também falei com dr. Bill. A pele encontrada no corpo de Josh é de lobo. — Foi o que imaginamos, Grace. — É sempre bom ter dados para fundamentar uma teoria. — Ela mordeu o lábio. — Não sei o que fazer com Balthazar — Ora, junte o que sobrou dele e coloque numa urna. — Isso seria difícil de explicar. — Como tudo ultimamente. — Ele faz parte de uma lista de desaparecidos e será melhor que todos pensem assim. Eu não saberia como explicar a explosão, muito menos a cauda. Tomarei a mesma atitude em relação a Freestone, embora ninguém o tenha visto peludo. — Ele pode ter saído daqui. — Se ele for um lobisomem... — Nós sabemos que ele é. — É verdade. — Grace suspirou. — Se ele rumar para as montanhas, ou pior, para uma cidade grande... — Em breve haverá muitos homens-lobo. — Seria ótimo se pudéssemos contar com um pelotão especializado. — Mas como não temos... — Terei de ir atrás dele. — Eu sei. Prosseguimos em silêncio, escutando o ruído dos pneus no asfalto. — O desfile é amanhã às dez. — Grace avisou-me, como se eu não soubesse. — Piquenique ao meio-dia e fogos de artifício ao anoitecer. Depois, o eclipse e estaremos livres. Uma vez que o lobisomem ou os lobos seguiriam as carroças de Malachi para fora da cidade. — Grace, é preciso equipar todos com balas de prata. Ela virou na entrada de sua casa.
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— Trata-se apenas de um pequeno lobisomem, talvez dois. O que poderá acontecer? Eu detestava quando as pessoas falavam aquele tipo de coisa. Como tinha deixado o carro do meu pai na casa de Grace, pude ir direto para o escritório. Vazio. Com o desaparecimento de Balthazar, seus funcionários haviam se acalmado e os pedidos de entrevista tinham minguado. Consultei meu relógio. Joyce já deveria ter chegado. Uma espiada na mesa dela revelou que ela estivera lá e saíra. Para onde fora? Procurei no banheiro, na sala de descanso e perguntei por ela a todos que encontrava na prefeitura. Quarenta e cinco minutos mais tarde, encontrei-a no porão, onde eu não pisava desde criança, e por um bom motivo. No passado, eu costumava ir com meu pai à prefeitura, e uma vez resolvi fazer algumas explorações. Desci as escadas escuras e úmidas de cimento como fazia agora, sentindo calafrios na espinha quando as teias de aranha tocavam meu rosto e se colavam em meus cabelos. Tinha dez anos e ficara poucos minutos no porão antes de voltar correndo e fechar a porta atrás de mim. Escutara ruídos estranhos, exatamente como acontecia agora. Talvez tivessem sido apenas ratos, mas eu não gostava deles. Em todo caso, teria de encontrar Joyce. Eu desconfiava que era ali que ela se escondia toda vez que sumia. Considerando o que vinha acontecendo em Lake Bluff, precisava descobrir do que se tratava. Com várias lâmpadas queimadas, havia pouca luz. O lugar era usado principalmente para estoque e manutenção. Caixas de papelão, estantes enferrujadas, vassouras, esfregões, caixas com fusíveis e mil outras coisas. Escutei um rosnado à distância e parei. Talvez eu não devesse ter descido. Mais adiante, havia um compartimento antigo usado para refúgio em caso de furacões, com acesso para a rua. A prefeitura era o abrigo mais utilizado pelos habitantes da cidade nesses casos. As pessoas podiam entrar pela rua, se necessário, ou sair do edifício, caso o vendaval obstruísse a porta. Qualquer um ou qualquer coisa poderia se esconder naquele local. Pensei em telefonar para Grace pelo celular, mas ali embaixo não havia sinal. O estranho rosnado aumentou de intensidade, parecendo mais mecânico do que selvagem. Talvez o ar-condicionado estivesse com defeito. Prossegui a busca, deslizando a mão pela parede úmida e fria. Depois de mais uma curva, ali estava ela, debruçada sobre uma mesa como uma velha. — Joyce? — chamei em voz baixa. Ela deu um grito que ecoou pelos corredores de cimento e me deixou arrepiada. Quando se virou, a luz da lâmpada sobre sua cabeça deixou seu rosto com um aspecto fantasmagórico o os olhos completamente negros. Recuei com o coração disparado tanto pelo aspecto dela como pela faca afiada e brilhante que estava em sua mão. — Claire! Você quase me mata de susto.
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Ela saiu do foco de luz, e era a mesma Joyce de sempre, embora ainda segurasse a faca. — O que você está fazendo com isso? Ela olhou a mão, franziu o cenho, voltou à mesa, pegou um envelope e rasgou-o com a lâmina. — Abrindo a correspondência. O que mais eu poderia estar fazendo? Por um instante, pensei que ela estivesse se entregando a estranhos rituais bem diante de meu nariz, mas a mesa estava lotada de cartas. Por precaução, verifiquei se não havia o símbolo da suástica por perto. Não havia. Joyce espiou a missiva que tirara do envelope, franziu a testa, e atirou ambos na máquina de retalhar papéis. O engenho rosnou com ruído baixo e profundo, tão ameaçador quanto um lobo. — Por que você não faz isso lá em cima? Sem responder, ela continuou a abrir envelopes e a alimentar a máquina com refugos. — Joyce, está acontecendo alguma coisa que você não quer me contar, mas que eu deveria saber? Algo além do que já estava ocorrendo, na verdade. Duvidava que Joyce estivesse ciente dos últimos acontecimentos, e eu nada pretendia contar-lhe. Ela pensaria que eu estava louca ou tentaria fazer qualquer coisa para ajudar. Para mim, já era suficiente me preocupar com Grace e comigo mesma. Não desejava que Joyce decidisse caçar na mata como o pai dela fizera e virasse isca de lobo como Balthazar. Lembrar daquilo deixou-me fisicamente enjoada, consciente de como nossa situação era desesperadora. Se não impedíssemos a coisa de assustar nossa cidade, em breve as pessoas que eu conhecia e amava deixariam de ser pessoas. Ela mordeu o lábio como se estivesse evitando falar O que estaria escondendo? — Você não está negociando pornografia pelo correio, está? - alterei a voz, pensando no que os jornalistas poderiam lucrar com o escândalo. — O quê? — Joyce olhou para mim e desatou a rir. — Oh, por Deus, não é nada disso. — Estou apenas tomando conta das coisas. — Que coisas? — Bem, você acabaria descobrindo mesmo. — Joyce, você está me assustando. — O que era grave, considerando-se o que eu já sabia. — Venho fazendo um trabalho extra sempre que posso. — Que tipo de trabalho? — Há muito mais para administrar em Lake Bluff do que tenho deixado transparecer. Eu não queria que você se assustasse e fugisse antes de acertar o passo. Eu olhei para ela durante alguns minutos, antes de digerir a informação.
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— Deixe-me ver se entendi direito. Você está trabalhando aqui para eu não descobrir que o cargo é mais exaustivo do que parece e não fugir como uma pessoa inconsequente? — Correto — ela concordou, abrindo mais um envelope. — Pois eu pensei que tivesse mais confiança em mim. — Eu tenho, mas para que desafiar a sorte? De maneira alguma quero Balthazar no cargo. — Você não tem de se preocupar com isso — falei com voz trêmula. Ela me fitou com suspeita, mas não perguntou como eu poderia ter tanta certeza. — Isso é ridículo. — Apontei a pilha de correspondência sobre a mesa. — Vamos levar tudo para cima e eu a ajudarei. — Quer mesmo saber? É gostoso ficar aqui embaixo. Não há telefone e não tenho de atender ninguém que venha se lamentar. Eu podia entendê-la. — Quer mesmo ficar aqui? — Algumas horas durante o dia. — Assim mesmo, eu gostaria de ajudar. O trabalho não me assusta. — Quando o festival terminar, lhe darei uma lista de tarefas. — Joyce não escondeu a preocupação. — Quais? — Haverá algumas reuniões que você terá de presidir. Não contive um gemido. — As reuniões do conselho não são suficientes? Ela sorriu. — Nada tão ruim, embora Hoyt tenha deixado um recado. — Suponho que eles tenham pensado em um punhado de negócios novos. — Sem dúvida. Mas ele também quer ter certeza de que você os acompanhará até a American Legion Hall após a próxima reunião. — Eu? — Sim, senhorita. Você tem sido elogiada, minha jovem. Parabéns. Voltei para o escritório. Embora não tivesse ficado satisfeita em descobrir que havia muito mais obrigações do que eu tinha imaginado, entendi a obsessão de meu pai pelo trabalho. E também me espantei com o convite do conselho para que eu fizesse parte do grupo. No entanto, conviver com eles não seria uma tarefa muito simples, mesmo depois de várias canecas de cerveja. Joyce chegou logo depois. Tanto a minha sala quanto a de espera continuavam vazias. — Marcou reunião com alguém hoje? — perguntei. Ela negou com um gesto da cabeça, já preocupada com o volume de correspondência que se acumulava. — Por ora, não quero receber chamadas — avisei.
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Entrei na minha sala, fechei a porta, sentei-me junto à escrivaninha e olhei meu bloco de anotações. Deveria voltar ao trabalho e ajudar Joyce, mas não consegui, Minha mente estava nas noites que eu passara ao lado de Malachi Cartwright. Lembrei-me de cada toque, de cada palavra. Eu me recordaria disso para o resto da vida? Liguei o computador, mas não me ocupei com os e-mails que devia responder Em vez disso, passei os dez minutos seguintes procurando um site de tradução para o gaélico, idioma céltico falado na Irlanda e na Escócia. — A ghrá — murmurei e teclei as letras no tradutor. Meu amor, minha querida. Estranhei. Malachi dissera que significava "fada". Procurei lembrar-me de outras palavras que ele tinha dito. — A stor. Minha amada. Na verdade, ele nunca tinha explicado o que aquela palavra significava. — A chroi — disse enquanto digitava. Meu coração, meu coração amado. Um pouco mais pessoal do que muito bela. Por que ele não dissera a verdade? Certamente por que as palavras demonstravam carinho. Se ele houvesse me tocado e sussurrado meu coração, eu saberia o que estava guardado no dele. A respeito de que outras palavras ele mentira? Forcei minha memória, mas nada me ocorria em gaélico além daquelas. Recordei de ter pedido para ele traduzir mais alguma coisa. O que teria sido? Ah, fora Ruvanush. O título pelo qual os ciganos o chamavam. Era o nome romani para o líder, para o mais velho. Pelo menos fora o que ele tinha afirmado. Passei a procurar um site para traduzir o romani, idioma indo-ariano falado pelos ciganos. Demorei quase uma hora para encontrar o que desejava. — R-u-v-a-n-u-s-h. — Olhei para a palavra. — Será que entendi a pronúncia corretamente? Dei de ombros e teclei enter. Se estivesse errada, o tradutor não a identificariaPorém, não foi o que aconteceu. Dei um pulo e saí correndo do escritório, ignorando os gritos de Joyce. Segundos mais tarde entrei no meu carro e disparei em velocidade rumo ao lago, arriscando-me a ser multada e presa, se alguém me surpreendesse. Eu tinha de encontrar Malachi Cartwright com urgência. Porque, na língua romani, ruvanush significava lobisomem.
Acionei com uma das mãos a discagem rápida de todos os telefones de Grace, enquanto dirigia com a outra, e consegui ser atendida num deles. — Ela está numa ronda — o auxiliar informou. Deixei recados na casa dela e no celular. — Encontre-me no lago — eu disse, sem contar o que havia descoberto. Teria muito tempo para explicar quando ela chegasse.
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Os ciganos comandados por Malachi o chamavam de lobisomem bem na nossa frente, certos de que os estranhos desconheciam o significado da palavra. Até que eu descobrira a verdade. O que ele diria quando eu o confrontasse? Nessa altura, eu poderia jurar que ele agia como a Strigoi de Lup, matando qualquer um que soubesse a verdade. Então por que não tinha me matado? Pelo que eu encontrara na internet e segundo o dr. Bill, os lobisomens eram malévolos e incapazes, mesmo se quisessem, de manter encurralada a natureza assassina. No entanto, Malachi sempre fora paciente e gentil comigo, nunca havia me maltratado e sempre tinha se preocupado com meu bemestar. Se ele era um lobisomem, como conseguia permanecer na forma humana noite após noite? A menos que apenas a lua cheia fosse a responsável pela metamorfose em lobo. Qual, então, seria a desculpa para a transformação dos outros? Como ele tinha evitado se queimar quando Grace atirara nele a bala de prata, e como ele usava um brinco de prata? E se "lobisomem" fosse apenas um apelido e o teste da prata fosse inútil? Os raios de sol se insinuavam entre as árvores, lançando sombras pintalgadas na capota de meu carro e reflexos brilhantes no para-brisa. Quando saí da estrada e entrei na clareira, surpreendi-me com o cenário que me aguardava. Malachi tinha dito que partiria imediatamente e cumprira a promessa. Saí do veículo e dei uma volta pela área. Se não fosse pela grama pisoteada, tanto no estacionamento como na margem do lago e no local onde a arena de espetáculos estivera montada, eu poderia jurar que a presença dos ciganos tinha sido fruto de minha imaginação. Voltei para o carro. Se eles viajavam em carroças puxadas por cavalos, não deveriam estar longe. Pus a mão na maçaneta e notei um leve movimento pelo reflexo no vidro da janela. Virei-me e senti uma forte pancada. O sol sumiu e a noite tomou conta do mundo. Acordei numa escuridão total e fiquei desorientada. A cabeça latejava e me impedia de raciocinar Eu estava deitada numa superfície lisa e fria que não era chão de terra nem o piso de madeira da minha casa. Onde eu estava? Quem me agredira? Continuei imóvel, pois a dor não me permitia fazer nada mais. Devo ter voltado à inconsciência, pois acordei de novo... minutos, horas, dias mais tarde. Eu não tinha ideia de quanto tempo se passara. Porém, consegui sentar sem gritar de dor. Não podia ver minha mão diante dos olhos, mas sentia o movimento. Rastejei pelo chão, estendi um braço e bati num metal roliço. Acima dele havia outro igual e mais outro, com espaços idênticos entre eles. Barras. Passei o braço à minha volta e nada encontrei a não ser o vazio. Comecei a ficar nervosa ao supor que não estivesse dentro de uma gaiola, mas fora dela. O que significava que eu enfiava meu braço para dentro e ele poderia ser arrancado por sabe-se-lá-deus quem. Recuei depressa e bati numa parede sólida, que ficava a uns dois metros de distância. Passei as palmas das mãos sobre a superfície; 146
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cheguei a um canto e a mais uma parede. Estava dentro de uma jaula, logo tinha de haver uma porta. Com dificuldade, consegui me levantar e arrastei os pés, agitando os braços na minha frente. A ideia de colidir com Hogarth em qualquer uma das formas me assustou, e quase voltei a me encolher num canto. Tropecei em alguma coisa e esperei por um rugido selvagem. Nada aconteceu. Ajoelhei-me, tateei e tirei a mão depressa. Eu tinha sentido um corpo quente. Não era um morto ou pelo menos não alguém que tivesse morrido havia muitas horas. Precisava saber de quem se tratava. Mordi o lábio e abaixei-me. Cabelos longos e sedosos, nariz reto, lábios polpudos. Compreendi de quem se tratava antes de tocar no brinco. — Malachi? — Bati de leve no rosto dele. — Malachi? Nenhuma resposta. — Malachi! — Pus a mão em seu peito. Ele respirava. Por que ele estava inconsciente? Levara uma pancada na cabeça como eu? Malachi Cartwright era imortal, embora não houvéssemos esmiuçado os detalhes da história dele. Imortal significava que não podia morrer, o que não excluía ficar desacordado. Por que alguém teria nos golpeado e trancado numa jaula? Onde estaríamos? Num local grande o bastante para acomodá-la, mas também bem fechado a ponto de impedir a entrada de qualquer fonte de luz. Malachi gemeu e começou a se mover. Estendi a mão para ajudá-lo, mas recuei. Tinha vindo procurá-lo por ter descoberto que seu povo o chamava de "lobisomem" e havia um deles rodeando nossa cidade. Naquela altura, eu me encontrava trancada numa jaula com ele e a lua cheia se aproximava. Dependendo de quanto tempo estivéssemos ali, a lua já poderia estar redonda e no alto. Voltei para o canto mais afastado e escutei. Gemidos, movimentos, uma imprecação. Alguns momentos de silêncio e... — Claire? Eu não respondi e procurei não respirar, mas foi inútil. — Sei que você está aqui. Eu posso enxergar no escuro. — F... fique onde e... está. — Detestei demonstrar pavor. Animais eram muito sensíveis. — Como foi que você descobriu? — Descobri o quê? — Que eu sou um lobisomem. Eu não esperava que ele admitisse. Ora, o comportamento dele nunca correspondera às expectativas. — Ruvanush — murmurei. — Quem traduziu para você? — Procurei na internet. Ele suspirou. — Eles foram avisados para não se dirigirem a mim dessa maneira, mas, após alguns séculos, é difícil perder o hábito. Só você escutou a palavra e certamente ninguém se incomodaria, mesmo se a percebessem. 147
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A raiva se infiltrou, superando o sofrimento do coração partido. Eu tinha esperança de que ruvanush fosse uma espécie de apelido, mas não era. Teria de enfrentar Malachi, assim como a realidade. — Ninguém se importou que pessoas sumissem de suas cidades? Nunca se percebeu que lobos apareciam fora de seu hábitat? Por que Lake Bluff é tão diferente? — Espere um pouco. Não ataquei ninguém aqui. — Então, como explicar o turista-lobo, o Balthazar-lobo e a morte de Josh? — Não fui eu. — Quando você muda de forma, por acaso sabe o que está fazendo? — Será melhor explicar que tipo de lobisomem eu sou. — Há diferentes tipos? — Centenas ou milhares, não tenho certeza. — Você não foi feito por Mengele para a tropa de Hitler? Senti um movimento no escuro e recuei depressa, batendo a cabeça na parede, o que me fez ver estrelas na escuridão. Fora um engano. Malachi não tinha se movido na minha direção. — Como foi que você descobriu isso? — A voz dele ainda vinha do lado oposto da jaula. — O médico que examinou Josh esteve na guerra e os viu. — Sou um lobisomem há muito mais tempo. Lembre-se, fui amaldiçoado há duzentos e cinquenta anos. — Isso é verdade? — E por que eu mentiria para você? — Malachi, você tem mentido desde que nos conhecemos. — Tive vontade de bater em mim mesma por parecer tão frustrada. — Eu não menti, apenas não contei toda a verdade. — É uma mentira do mesmo jeito. — Esfreguei os olhos que ardiam pelo esforço de tentar enxergar no escuro. — Agora não importa mais, termine sua história. — Eu não estive na Alemanha durante a Segunda Guerra. Apenas atuamos na Europa e ouvimos falar sobre os campos de concentração. Soubemos que ciganos tinham sido presos e usados nos experimentos doentios de Mengele. — Como é que ficaram sabendo? — Somos bruxos, Claire. Acha que Mengele poderia conseguir uma tropa de lobisomens sem usar de meios sobrenaturais? — Não tenho ideia de como ele chegou a essa barbárie. — Talvez não me interessasse saber. — A licantropia é um vírus transmitido pela saliva como outros tantos vírus e, por isso, a mordida infecta as vítimas, embora comer a carne as leve à morte. Mengele combinou vírus mutantes com o sangue de um rom puro para criar lobisomens. — Como é que as pessoas podem imaginar tais coisas? — perguntei num fio de voz.
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— Pessoas perversas cometem atrocidades inacreditáveis. Lobisomens não foram as únicas coisas que ele fez. — O que mais? — Tudo o que se possa imaginar e o que não se pode. Seres que apenas apareciam em pesadelos, mas agora caminham pela Terra. — Agora? — Estremeci. — Ele libertou suas criações antes que os Aliados encontrassem seu laboratório. — Por que Mengele se preocupou em criar um lobisomem? Segundo você, eles existem há muito tempo. Não seria mais fácil capturar alguns e reproduzi-los? — Não sei o que ele pensava. Talvez pudesse exercer algum tipo de controle sobre os lobos que criava. Nós nunca saberemos, pois ele destruiu os arquivos. — O que aconteceu com ele? — Fugiu da Alemanha com outra identidade e morou o resto da vida na América do Sul. Morreu no Brasil de um ataque nos anos setenta. — Que decepção. — E como acha que ele deveria morrer? — Enforcado, arrastado e esquartejado. Não deveria ter sobrevivido nem um dia depois do que fez. Você ouviu falar que Hitler era um lobisomem? — Sempre houve rumores. Quando as pessoas vão além do mal e frustram atentados à sua vida, histórias como essas florescem. — Se você não é um dos lobos de Mengele, quem é você? Por que não se queima com a prata? Ela realmente não tem efeito nenhum? — A prata age nos lobos infectados com o vírus. Em mim, não. Fui amaldiçoado por uma feiticeira. Ela invocou a lua para me transformar numa fera. — E depois? — Eu a matei. A voz fria e impessoal era terrível naquela escuridão completa. — Você disse que não matou ninguém. — Aqui em Lake Bluff. Estremeci. — Você escolheu ser um lobo. — Escolheram para mim. — Como era o nome dela? — Ela se chamava Rhiannon como a deusa celta da lua e, como os ciganos, cultuava o satélite da Terra. — Ainda não entendi por que ela escolheu o lobo como maldição. — Rhiannon era a contrapartida celta para Diana e Artêmis. — Eu fui uma péssima aluna de mitologia. — Deusas da caça, elas comandavam a lua e a noite, e controlavam os lobisomens. Aquilo fazia um pouco mais de sentido. — Ela achou que poderia me controlar se me transformasse num lobo... — É difícil manter o domínio, se estivermos mortos. 149
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— Além de ser mi'zak, cruel, Rhiannon tinha um grande poder e é compreensível ela ter acreditado que pudesse controlar os lobos como ela comandava a lua. Não pude evitar um acesso de riso. — Ela não podia fazer isso. — No dia em que ela me amaldiçoou, Rhiannon ergueu os braços e a lua ficou vermelha. — Não entendo. — Você nunca viu uma lua oculta? Lembrei da carta que Edana havia me mostrado. Uma lua encoberta, flamejando clarões vermelhos. — Um eclipse total — Malachi continuou. — Um fenômeno muito raro. Ocorreu-me então que ele não viera a Lake Bluff por um capricho, mas sim por um motivo sério. — O que acontece com você quando há um eclipse total? — A lua leva minha alma e eu me torno um animal assassino. — Malachi, a lua não pode levar sua alma, da mesma forma que Rhiannon não poderia ter causado aquele eclipse. Você sabe disso, pois deve ter aprendido muitas coisas nesses duzentos e cinquenta anos. — Na noite em que Rhiannon escondeu a lua, em termos astronômicos, o eclipse não era esperado. Não gostei do que eu tinha acabado de escutar. — Os rom acreditam que Alako, o deus da lua, leva nossas almas para a morte. — Você não está morto. — Eu estava. Quando ela me amaldiçoou e a lua ficou vermelha como sangue, a vida deixou meu corpo e eu renasci como um lobo. — Está me dizendo que você somente sofre a metamorfose durante um eclipse lunar? — Sim. — Então quem...? — Não sei. — Ele elevou a voz, frustrado. — Não existe nenhum lobo na minha caravana. Fui sentenciado a ficar sozinho, fadado a ser um lobo solitário, sendo que os lobos são animais de matilha. Meu povo foi amaldiçoado e teve de permanecer comigo. Eles assumem a forma de outros animais e me culpam pela imortalidade. Embora me respeitem como líder, eles me temem por eu ser um ruvanush. E também me odeiam. — Onde estão todos? Você disse que eles não podiam ficar longe de você. — Não mais de um quilômetro ou dois, ou, no máximo, cinco. Como animais, eles precisam perambular. — O que acontece se eles se afastarem muito? — Sentem como se estivessem andando sobre carvão em brasa, a cabeça gira e o peito dói. Os poucos que tentaram não repetiram a proeza. — Se o lobisomem não é cigano, então por que a runa?
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— Não sei. O renascimento aponta a metamorfose; a suástica nos leva de volta aos nazistas e, como eles criavam lobisomens com o sangue dos rom... — É muita coincidência vocês terem aparecido aqui às vésperas de um eclipse. — É. — Alguém está preparando alguma coisa e nós não sabemos o que é. Ele hesitou, como se quisesse dizer mais alguma coisa, e suspirou. — Sim. — Alguma coisa a ver com você? — Não tinha certeza, mas como acordei numa jaula... — Você disse que não havia cura. — Não há. As luzes foram acesas. — Há, sim — disse uma voz feminina desconhecida. Meus olhos se adaptaram à luz e vi quem as acendera. — Sabina? A jovem cigana estava parada junto à porta que revelava uma nesga do mundo exterior, o céu escuro e a lua cheia, prateada. Inquieta, olhei para Malachi, sentado no canto da jaula, de costas para o anteparo. Quanto tempo tínhamos passado ali? Ainda era a noite do eclipse ou seria a noite seguinte? De qualquer forma, supus que eu fora presa com ele por um motivo que certamente não me agradaria. Sabina fechou uma porta de correr e se aproximou do recinto grande que parecia ser um depósito. Eu já estivera ali antes. — Estamos atrás da Gazette — afirmei. — É o depósito onde os caminhões são carregados. Sabina sorriu e, de repente, ela não me pareceu tão doce e indefesa. Talvez nunca tivesse sido. — Balthazar teve a bondade de me dar sua chave antes... um pouco antes. Antes de ele se tomar um lobo? Antes de ele explodir e virar cinza? E o que importava isso? — Como é que você consegue falar? — indaguei, desconfiada. — Sempre pude falar, mas decidi não fazê-lo. As pessoas pensam que o mudo é idiota e, assim, descobrimos muitas coisas. — E você não tem falado há séculos? — Era tão inacreditável como tudo o que vinha ocorrendo. — Não falo com ninguém em quem não confio. — Edana — Malachi murmurou. — Deixe-me sair daqui — pedi. — Não. — Sabina, você sabe o que vai acontecer era poucos minutos — ele disse. — Em poucos minutos? — Fitei-o, inquieta. — Sinto que o eclipse está vindo. Meu Deus! Sabina nos olhava do outro lado das barras de ferro. 151
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— Sabina! — ele chamou-a em voz alta. — Você tem de fazer isso, ruvanush. — Ela o encarou. — É a única alternativa. — Não posso. — Mas terá de fazê-lo. — Ela apertou os lábios. — Você não será capaz de evitar. — Fazer o quê? — perguntei, ainda mais receosa. — Ele não lhe contou? Pois eu tinha certeza de que ele havia dito por que teria de matá-la. Se fosse eu, teria feito o que fosse necessário, como, aliás, sempre faço. Mas ele... — Sabina fitou-o com desgosto. — Passou duzentos anos procurando por você e agora se recusa a executá-la. — Não entendo. Como ele pôde me procurar esse tempo todo? Eu não sou imortal. Sabina meneou a cabeça. — Também não lhe disse isso, ruvanush? Que vergonha. Podia ao menos ter revelado por que dormiu com ela. Estremeci. Eu gostava mais de Sabina muda. — E também por que ela permitiu — ela concluiu a ideia. Malachi abaixou a cabeça entre os joelhos, e os cabelos cobriram seu rosto. — Do que ela está falado? Ele não respondeu, mas Sabina não precisou de estímulo para prosseguir. — Ultimamente você não tem visto muito nevoeiro, Claire? — Sempre existe nevoeiro, por causa das montanhas. — Ou por causa do ruvanush. O nevoeiro é o feitiço dele. Franzi o cenho, lembrando-me do vapor que saíra dos dedos dele ao transformar os animais de sua caravana em seres humanos. Lembrei também de como ele vagueara por meus sonhos com um amante misterioso. — Malachi não teve tempo de cortejá-la — ela afirmou. — Ele precisava fazer com que você o desejasse. Em geral, as mulheres o procuram, mas isso não aconteceu com você. Ele estivera brincando comigo o tempo todo, como todos os outros! — A névoa faz parte dele e carrega seu cheiro e sua essência. Assim, quando se encontraram, ele lhe pareceu familiar e confiável. Eu queria agredir alguém ou alguma coisa. — Ele precisava ver se você era a pessoa que poderia pôr um fim á maldição dele e à nossa. Fitei-o com raiva. Mentiroso! Merecia morrer queimado. — Claire — ele começou, mas eu desviei o olhar. — Como ele saberia se eu era a pessoa certa? — Você tem uma marca de nascença — ela afirmou. Vi, em minha mente, Malachi dentro de mim, beijando a marca e sussurrando é você. Eu o desejara com uma rapidez muito maior do que seria esperado, e nem mesmo imaginara o motivo. Tinha apenas ficado feliz. — Ele provavelmente a fez implorar pelo que ele procurava esse tempo todo. 152
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Engoli em seco, mortificada ao entender que ela estava certa. — É verdade? Você me seduziu com o nevoeiro e dormiu comigo para ver se eu tinha a marca de nascença? E depois tinha dito ao povo dele que eu tinha? Fiquei ainda mais mortificada. — Ele precisava fazer isso. Cerrei os punhos. — Não lhe perguntei nada! Sabina deu uma risada. Voltei-me para ele. — Você sabia o que tinha acontecido comigo, e ainda assim me estuprou? Malachi ergueu a cabeça. — Eu não faria isso. — Se o sexo não é a manifestação livre da vontade, foi exatamente o que você fez. — Há dias eu parei de usar o feitiço. Antes de... — O quê? Tocar-me, beijar-me ou abusar de mim? — Fazer amor com você. — Amor? — Eu ri. — Parei mesmo — ele insistiu. — Não a possuí graças a um feitiço. — Você entrou em minha cabeça e me fez desejá-lo. — Isso foi antes de eu saber... — Saber o quê? — Que eu preferia ficar assim para sempre a magoá-la. — Imbecil — Sabina murmurou. — Você vem tentando possuí-la há mais de dois séculos. — Tem de haver outra maneira! — ele gritou. — Eu não vou machucá-la. Sabina deu um sorriso maldoso. Malachi deu um soco nas barras e a jaula chocalhou. — Deixe-me sair daqui! — Não. — O que minha marca de nascença tem a ver com tudo isso? Sabina voltou a atenção para mim e Malachi desistiu de convencê-la, mas, por seu olhar, não de tentar uma escapatória. — Em cada geração, uma mulher descendente da bruxa que nos amaldiçoou traz essa marca. Eu não me lembrava da existência de feiticeiras em minha árvore genealógica, mas isso não queria dizer que elas não tivessem existido. — Rhiannon teve muitos filhos com diferentes homens, e seus descendentes se espalharam pelo mundo. Nós os investigamos da melhor maneira possível, mas os registros daquela época não eram muito bons. Há muito tempo tentamos encontrar alguém que tivesse a marca. Espiei Malachi, que continuava fitando Sabina com um olhar mortífero.
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— Ele vem seduzindo mulheres ao longo dos séculos apenas para olhar os seios delas? Sabina deu de ombros e eu concluí que era verdade. Não sei por que a ideia de Malachi dormindo com tantas mulheres ao longo do tempo me aborrecia. Afinal, não íamos nos casar e viver felizes para sempre. — Você nunca encontrou nenhuma que tivesse um sinal igual ao meu? — Um senso de oportunidade falho parece ser o carimbo da maldição. — Sabina, por que está fazendo isso? — ele murmurou. —Você sempre foi uma criança doce. Como se transformou nesse poço de... perversidade? — Você levou tempo demais para entender, ruvanush. — Sabina atirou a runa marcada com a suástica para cima. — Não entendo. Você é uma cobra. — Enquanto eu tiver isso, posso me transformar em lobo — Ela parou de jogar o talismã e rolou-o entre os dedos. — Eu posso renascer. — Como assim? — Seguro o talismã sob a lua, digo o encantamento e me transformo em lobo. — É mesmo? — Sim, e alimento a cruz gamada com o sangue dos puros. — Alimenta. — Apertei os lábios. — Traço o contorno. — Então isso não é tinta vermelha. Ela ergueu uma sobrancelha. A runa sempre me parecera horripilante. — Faz quanto tempo que tem se transformado em lobo? — Uma semana. — Ela se contorceu como uma cobra. — Ah, eu amo isso. — Por que aconteceu justo agora e aqui? — A árvore. A árvore também nos intrigara. — Para fazer algo tão poderoso, eu precisava de uma árvore que fosse tão velha quanto essas montanhas, uma que suportasse o teste do fogo sob a lua. Lembrei-me da marca do raio no tronco. — Eu não tinha certeza de que daria certo, mas há muito poder aqui... a tempestade, a terra e o céu. Feitiçaria. Agora tudo vai dar certo. Para ela, sim. Minha vida estava por um fio. — Uma vez lobo, eu quis transformar outros. Estava cansada de ser sozinha. — Você nunca esteve sozinha — Malachi disse. — Você sempre permaneceu junto aos que a amavam. — Mas ninguém era como eu. Eu era uma cobra entre mamíferos. Sabe que eu nunca tinha experimentado sexo até que eu fosse um lobo? Eram muitas informações de uma só vez! Tive vontade de tampar os ouvidos. — Mas não foi o que fez com Josh.
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— Não. Ele era desprezível demais para merecer a bênção da vida eterna. Eu resolvi andar um pouco pelos arredores do lago quando ele me viu, parou o carro e me ofereceu carona, Expliquei a ele que eu vivia numa estrada deserta e sem saída... Eu o teria feito ser como eu, mas ele me agarrou antes que eu me transformasse e tentou... — Eu sei. — Não pude deixar de me sentir solidária por um momento. — Eu me transformei e matei-o. Depois, bebi o sangue para ter certeza de que ele não ressuscitaria. Minha compaixão teve um fim rápido. Josh não merecera aquilo, embora algumas vezes eu tivesse imaginado coisa pior. Sabina fitou Malachi com severidade. — Depois de você encerrar a maldição que pesa sobre mim, fazendo o que deve ser feito, poderei ser um lobo quando eu quiser. — E por que você quer ser um lobo? — perguntei. — Estou cansada de ser fraca. Quero correr livremente, quero que todos tenham medo de mim. — Mas seu braço... — O que tem ele? — Transformar-se não vai curá-lo. — Ora, eu mancarei um pouco, mas, ainda assim, serei mais forte do que qualquer ser humano. — Sabina lançou o amuleto no ar pela última vez e guardou-o no bolso. — Edana me avisou para tomar cuidado com o demônio que podia mudar de forma — eu disse. — Ela se referia a você, e até me mostrou o lobo na bola de cristal, mas a figura era muito pequena e não pude reconhecer os olhos. Embora ele mantivesse a pata erguida, imaginei que estivesse caçando. Jamais me ocorreria que o lobo pudesse ter um membro aleijado... nas duas formas. — Aquela mulher! Ela me paga! — Sabina foi até a porta. — Não importa, logo terei o que eu quero e você estará morta. Olhei para Malachi de viés. Arfando e suando, ele lutava contra si mesmo. — Eu os deixarei a sós, pois não quero testemunhar o que acontecerá. — Ela me olhou. — Gostei de você, Claire. Não posso negar que foi bondosa comigo. — Então me deixe sair daqui! — Meu afeto não chega a tanto. — Ela abriu a porta. O luar entrou e a luz prateada banhou lhe a face. Sabina inspirou como se sorvesse o néctar dos deuses. — Quando a Lua estiver totalmente no cone de sombra da Terra, ele se transformará. — Os olhos dela brilharam, embora seu rosto estivesse encoberto. — A lenda diz que, ao beber a vida daquela que o fez sob a lua coberta, ele voltará à forma antiga e a maldição será rompida. — Não fui eu quem fiz isso com ele. — Mas descende dela e vai servir. Sabina tirou a runa do bolso e começou a cantar em romani, tirando as roupas. Completamente nua, ergueu o talismã e os últimos brilhos do luar a iluminaram. Ela caiu no chão, enrodilhada. 155
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Malachi se contorcia, apertando o estômago em agonia, e lutava contra a metamorfose. Eu não sabia quanto tempo ele aguentaria, mas duvidei que fosse o suficiente. Quando tornei a olhar para Sabina, um brilho prateado traçava desenhos sobre seu corpo, que assumia a forma selvagem. Um lobo negro e esguio se levantou do chão onde a mulher estivera, encarou-me com olhos humanos, e me deixou entregue ao meu próprio destino. Virei-me para Malachi e recuei com um grito. Ele se aproximou, agarrou meu pulso e me puxou. Ossos mudavam de lugar sob a face; o nariz e a boca se projetavam para a frente. Mas não foi a mudança física que me assustou a ponto de eu não conseguir pensar, e sim a modificação em seus olhos. Eu não o reconhecia mais. — Tenho esperado séculos por isso. — O som de sua voz ecoou como um terremoto em seu peito, deixando-me arrepiada. Ele se inclinou, pressionou o nariz nos meus cabelos e inalou. — É você. — Ele lambeu meu pescoço. Tentei desvencilhar-me e ele riu. — Quanto mais você lutar, mais o sangue correrá em suas veias. Sinto o cheiro do medo. Ele passou os dentes no local que acabava de lamber. Depois, roçou a ponta de um dedo, que parecia uma garra, no meu queixo, no pescoço e, com um movimento rápido, cortou meu vestido. O sutiã foi aberto e meus seios se projetaram como uma oferenda ao sacrifício. Não havia o menor arranhão em mim. Tive a sensação de que ele tinha feito isso outras vezes. A respiração dele aqueceu minha pele fria. Ele encostou com suavidade os lábios acima do meu coração, quase com reverência. — Claire. — A voz compungida me emocionou. — Você tem de fugir. — Pressionou o rosto em minha pele. — Tenho vontade de fazer coisas terríveis. Malachi soltou meu pulso e me abraçou pela cintura. Eu passei as mãos nos cabelos dele. — Acalme-se — murmurei. — Estou aqui. — Você não pode ficar. — Ele me empurrou e voltou para o canto escuro da jaula. — Também estou presa aqui. — Oh, Deus. — A voz dele oscilava entre o humano e o animal. — Eu a matarei, Claire, e beberei seu sangue enquanto sua vida se esvai. Eu preferia morrer, mas não serei capaz de me controlar. — Não será você. — Engoli em seco, procurando afastar aquelas imagens. — Não se culpe. Eu não o culparei. Não posso odiá-lo. Quaisquer que fossem os motivos dele para fazer o que fizera, ele havia me curado, e devolvera minha vida. Eu jamais tinha sentido por ninguém o que passara a sentir por ele. Se eu ia morrer logo, queria que ele soubesse a verdade. — Malachi, eu amo você. 156
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— O quê?! — Dessa vez, a voz dele soou muito mais humana. — Eu o amo e sei que você me ama. — Eu... — Ele passou a mão já deformada nos cabelos, que pareciam mais longos. — Você estava disposto a condenar a si mesmo e ao seu povo à vida eterna como monstros por minha causa. O gemido de dor veio do fundo da alma. — Eu não queria fazê-la sofrer... mas serei obrigado a... — Concentre-se em mim, não na lua nem nessa voz sussurrando dentro de você. — Claire, você precisa se afastar. — Não. — De repente, compreendi com uma clareza extraordinária o que eu deveria fazer para salvar a ele e a mim mesma. — Tenho de estar perto de você. — O cheiro de seu sangue me faz desejá-la. — Eu também o desejo. — Acariciei sua mão já coberta de pelos e com as unhas mais crescidas. — Eu a machucarei. — O amor é mais forte do que o ódio. Foi o ódio que o fez ficar assim. Ela não o amava. — Eu não podia amar Rhiannon, nem qualquer outra. Ela disse que minha incapacidade de amar me transformava em fera. — Você me ama e isso faz de você um homem. Eu esperava ter razão. Esperava que o amor dele por mim fosse suficiente para combater o que o ódio tinha feito dele. Nesse instante, a Terra se moveu entre o Sol e a Lua. O armazém tornou-se vermelho e sinistro. Era como se um banho de sangue lavasse o céu. Malachi se soltou de mim e um uivo horripilante por pouco não estourou meus tímpanos. O ruído de sua roupa se rasgando afetou minhas terminações nervosas, e precisei de toda a coragem para não correr para um canto. O que também não adiantaria. Se ele quisesse me matar, poderia fazê-lo em qualquer lugar da jaula. E eu não queria fugir. Não deixaria aquela feiticeira vencer. Murmurando o nome dele, segurei o rosto que se modificava. Malachi grunhiu, mas não me mordeu. Com movimentos vagarosos, inclinei-me para a frente e beijei-o. Parecia que cobras se retorciam sob a pele dele, mas, quando o beijei, os músculos se aquietaram e entendi que estava fazendo a coisa certa. — Beije-me, Malachi. Aguardei, tendo esperança, rezando, quase implorando. Quando, por fim, ele pressionou os lábios nos meus, senti a boca de um homem. Eu o beijei e o segurei, murmurando palavras doces, enquanto a Terra sombreava a Lua. Felizmente, aquele eclipse seria um dos mais curtos de que se tivera notícia, e duraria cerca de vinte minutos. Se fosse um dos mais longos, em que a Lua ficasse encoberta por horas, eu não sabia o que poderia ter feito, e certamente teria morrido. Malachi se afastou, respirando fundo. Quando falou, sua voz pareceu um rosnado, o que me levou ao desespero. 157
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— Não vou conseguir. O desejo está invocando a fera. — Não é desejo. — Entrelacei meus dedos em seus cabelos que já haviam voltado a ser negros e sedosos. — Isso é amor. Malachi, diga que me ama. — Eu... eu... O restante das palavras transformou-se num rugido bestial. Ele me empurrou de costas no chão, jogou-se sobre mim e começou a rasgar minhas roupas. Fechei os olhos e me concentrei nos tempos bons, quando esse homem gentil tinha me tocado e me completado, deixando-me feliz por ser mulher. Não permitiria ódio. Entre nós, haveria somente amor. — Malachi — sussurrei e pressionei a boca em seu rosto, sentindo os ossos se movimentarem sob meus lábios. — Pense em me amar, apenas nisso. Ele se acalmou e suas mãos se tornaram mais suaves, retirando minhas roupas até que eu estivesse nua como ele. Nos beijamos, as línguas e os corpos se entrelaçando. Passei as mãos nas costas dele e senti que nada mais restava do animal, nem no exterior nem no interior. Malachi me possuiu murmurando meu nome. Agarrei-me nele, segurando-o com força, e o recebi dando-lhe tudo o que podia. O corpo dele estava tenso no esforço para a realização. Passei os dedos por seu rosto, pescoço e peito, receando vê-lo se transformar, prendendo o fôlego, maravilhada, quando isso não aconteceu. De repente, a luz mudou, e o vermelho pulsante tornou-se prateado quando o eclipse aproximou-se do fim. Malachi enrijeceu-se, gemeu e atirou a cabeça para trás. Fiquei aterrorizada ao pensar que ele poderia sofrer a metamorfose ainda dentro de mim e... Minha mente rebelou-se contra aquela ideia. E algo maravilhoso aconteceu. Ele me abraçou quando o orgasmo tomou conta de mim, espalhando-se por todo o meu corpo. — Eu amo você, Claire. — A voz não poderia ser mais humana. — E a amarei até o dia em que eu morrer. Ao pronunciar essas palavras, senti-o pulsar e atingir o clímax, entregando-se a mim como ninguém antes fizera. Naquele instante, a Lua ficou livre de todas as sombras. Ficamos deitados, maravilhados, admirando o céu. — Fui amaldiçoado para me tomar uma fera sob o eclipse total da lua e, por mais de duzentos anos, fui incapaz de resistir ao impulso. Virei o rosto dele para o meu. — Você nunca amou antes. Ele me beijou. — Nunca. — Sabina, na verdade, nos fez um favor ao trancar-nos aqui. — Vou matá-la. — Não creio que você a encontrará. — Pode apostar que sim.
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As luzes foram acesas de repente. Nós ficamos em pé e Malachi me escondeu atrás dele. Espiei por sobre seus ombros o casal que se aproximava. O homem era alto, magro e muito idoso. Os cabelos brancos ainda mostravam alguns fios loiros e os olhos eram azuis, penetrantes. O arsenal que ele carregava era assustador. Duas pistolas, uma de cada lado, um fuzil no ombro e um rifle nas mãos enrugadas. Quem seria aquele homem? A mulher era alta e usava botas negras de salto alto. Apesar de esguia, era curvilínea. Loira e muito bonita. O jeans era de marca e a blusa azul-cobalto, de seda. Ela afastou os cabelos do rosto e vi um pentagrama tatuado na palma da mão. — Ela é um lobisomem — balbuciei. A mulher ergueu as sobrancelhas. — Andou fazendo pesquisas, não é? — Você não vai negar? — Não, mas também não sou uma besta sedenta por sangue humano. — Ela levantou a mão, revelando um pentagrama com uma ponta ascendente. — Isto os liberta. — Quem? — Os lobisomens. Como ele. — Apontou Malachi e franziu a testa. — Por que você não está peludo e ela não está morta? — Se me permite, prefiro me vestir antes de você se apresentar — Malachi foi irônico. — Fiquem à vontade — o velho falou, com forte sotaque germânico. Nós nos ajeitamos da melhor forma possível com o que restara de nossas roupas. Dei um jeito de cobrir os seios com a blusa rasgada e ele fez uma espécie de saiote com a calça, mas a camisa ficara inutilizada. — Vocês não poderiam deixar-nos sair? — perguntei. — Você, talvez, mas ele ainda não — a mulher falou. — Pois ficarei com ele. — Cruzei os braços. — Como quiser, mas agora conte o que aconteceu. — E com quem estou falando? Os dois se entreolharam, o homem anuiu e a mulher pôs-se a falar. — Ele é Edward Mandenauer, líder de um grupo chamado Jäger-Suchers, ou Caçadores-Pesquisadores. Sou Elise Hanover. Caçamos monstros. — Ela nos fitou com expressão divertida. — Vocês não parecem surpresos. — Depois do que tenho visto ultimamente, nada mais me surpreende. — Na Segunda Guerra Mundial, havia um projeto iniciado pelos nazistas... — A tropa de lobisomens de Mengele — antecipei-me. — Prossiga. — Você sabia disso? — Ela fitou Mandenauer de esguelha e ele me olhou com ferocidade. — Temos um médico que serviu na guerra e viu muitas coisas. E Malachi está aqui há algum tempo.
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— Ouvimos falar disso, — Mandenauer lançou a Malachi um olhar igualmente furioso. — Como souberam? — Senhorita, estou na cidade há mais de um dia — a resposta foi seca. Uma luz fez-se em minha mente. — Então foi o senhor quem matou Balthazar! Ele deu de ombros. — Alguém teria de fazê-lo. — Vocês não poderiam ter nos avisado que estavam aqui? Dado uma pista do que estava acontecendo? — Nossa meta é completar o trabalho e desaparecer. Quanto menos pessoas souberem sobre os monstros, melhor. — Caso contrário haveria pânico — Elise explicou. — Ainda bem que não houve. Foi melhor eu ter ficado trancada numa jaula com um lobisomem. — Você não me parece desesperada e eu gostaria de saber por quê — ela disse. Enrubesci. Como explicar a ela que o sexo me salvara? Bem, não tinha sido o sexo, apertei a mão de Malachi, mas o amor. — Ele foi amaldiçoado por uma feiticeira para se tornar um monstro — expliquei. — Mais uma maldição — Elise murmurou. — Odeio essas coisas. — Houve outras? — Várias e cada uma tem de ser desfeita de maneira diferente. Infelizmente ninguém tem a bondade de deixar instruções. — Se assim fosse, não teríamos maldições, não é? — Tem razão — Elise concedeu. — Então como foi que desfez essa? — Eu estava amaldiçoado porque não podia amar — ele explicou. — Claire mostrou-me que eu a amava e quando o amor se tornou... palpável, pude lutar contra o apelo da lua e a maldição foi rompida. — Amor palpável — Elise repetiu. — Você entendeu isso durante o eclipse? — Exatamente — eu disse. Elise franziu os lábios, pensando no que havíamos feito. — Ele se tornou uma fera por não poder amar e amar tomou-o humano, capaz de resistir à maldição e derrotá-la. — Essa é a teoria — concordei. — E bastante perigosa. Imagine se tivesse falhado. — Eu tinha certeza de que daria certo. — Fitei Malachi e vi o reflexo de seu amor. — Eu nunca duvidei. — Talvez por isso tenha funcionado — Elise afirmou. — A fé é muito poderosa. Mandenauer fez um gesto de pouco-caso. — Elise, toque-o de qualquer modo, para termos certeza. — Tocá-lo? — Espantei-me. — Lobisomens são capazes de sentir uns aos outros — ela explicou. — Se minha pele tocar na dele mesmo na forma humana, eu saberei. 160
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Elise levantou a mão tatuada como para dizer Pare. — Sua mão, por favor. Malachi hesitou. — Você quer sair daqui nos próximos cinquenta anos? Ele estreitou os olhos, mas concordou. Os dois esticaram a mão e se tocaram pela grade. Nada aconteceu. Elise abaixou o braço e recuou. — Ele está livre. — Tem certeza? — Alguma vez eu me enganei? — perguntou com impaciência. — Não — Mandenauer resmungou. — E ela? — Eu? — Arregalei os olhos. — Pelo que sabemos, ele a mordeu e infectou durante um de seus... episódios amorosos palpáveis. — Não carrego o vírus como os outros lobisomens. Nunca infectei ninguém e não podia ser morto pela prata. — Estranho — Elisa comentou. — Outras maldições afetaram o DNA das pessoas, transformando-as em licantropos verdadeiros. Eu gostaria de fazer alguns testes em você. — De que adiantaria isso, se ele já está curado? — indaguei. Elise deu de ombros. — Prefiro ter certeza. Nisso eu concordava com ela. Mandenauer fitava Malachi com ferocidade e eu temi que o homem idoso disparasse um projétil de prata só para testar a verdade. — O que mataria você? — ele perguntou. — Nada — Malachi afirmou. — Sempre há alguma coisa que funciona. — Fui amaldiçoado com uma perambulação eterna e a transformar-me em lobisomem quando a lua ficasse coberta. Se a prata me matasse, eu não seria imortal, não é? — Nunca ouvi falar de uma bruxa com tais poderes. — Duvido que haverá outra tão poderosa e malévola. — Mas o poder dela não o impediu de matá-la — eu disse. — Amaldiçoar alguém num acesso de cólera em geral produz um efeito indesejável para quem roga a praga — Elise afirmou. — Por mais de duzentos anos, eu nunca soube quando um eclipse poderia ocorrer. Isso também é uma praga. Tentei me matar várias vezes ou fazer coro que outros me matassem, mas nada adiantou. Eu podia imaginar a incerteza dele toda vez que anoitecia, sem saber se a metamorfose aconteceria e se acabaria por matar um inocente. Isso durante mais de duzentos anos poderia levar qualquer um ao desespero. — Não gosto dessas conversas de imortalidade — Mandenauer falou. — Se houver mais monstros imortais, o mundo terá um fim precoce. 161
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— Coragem — Elise animou-o. — Encontrará uma maneira de matá-los, como sempre. — É verdade. — A fisionomia taciturna do homem iluminou-se e ele apontou para mim com a mão esquelética. — Toque-a também. — Você se importa? — Elise fitou-me. Estendi minha mão, tocamos os dedos e Elise recuou. — Limpa. — Podemos sair agora? Mandenauer anuiu com um gesto imperial. Elise não chegou a abrir a jaula. Grace surgiu pela porta aberta do armazém e estacou ao ver-me presa na jaula junto com Malachi. Olhou para Mandenauer, para as armas dele e desembainhou o revólver, — Ergam as mãos devagar — ela ordenou. Mandenauer ignorou-a. Elise postou-se diante dele e abriu os braços. — Viemos em paz. — Então levantem as mãos pacificamente. — Grace ordenou. — Quem são vocês e por que os prenderam nessa jaula? — Grace, não foram eles — apressei-me a explicar. — Eles vieram ajudar. Expliquei-lhe tudo sob a supervisão feroz de Mandenauer e, quando terminei, ela fitou Elise com olhar feroz. — O que vocês vieram fazer em Lake Bluff? — Você ligou para o Centro de Controle de Doenças e perguntou por vírus mutantes de hidrofobia. Chamadas desse tipo são dirigidas a nós. — Não estou gostando disso. — Ela demonstrou antipatia imediata por Elise. — Para nós isso pouco importa. — Elise também não se esforçou para agradar Grace. — Meu povo... como estão todos?— Malachi perguntou. — Estão bem. — Grace afastou-se de Elise com alívio. — Estão no lago e sob a forma humana. — Eles não eram humanos? — A voz de Mandenauer deixou-me arrepiada. — Creio que todos foram responsáveis por esse sequestro. — Grace apontou a jaula. — Eles querem ficar curados. Atrás da fisionomia impassível de Malachi, pude notar seu sofrimento. Ele fora o líder do grupo por mais de duzentos anos e, mesmo assim, os ciganos tinham se revoltado contra ele. Eu entendia o motivo. Eles não gostavam de mim. Para eles, eu não passava de um meio para atingir um objetivo, uma descendente daquela que os transformara em animais. Contudo, isso não significava que eu os perdoava por terem me trancado numa jaula para ser devorada por uma fera. — Conte-nos tudo — Mandenauer ordenou. — Agora mesmo. Expliquei toda a história e Elise não escondeu a excitação. — Nunca ouvi falar de uma maldição como essa. 162
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— Você tem de verificar todos eles para ter certeza de que estão recuperados — disse Mandenauer. — O senhor é cientista ou algo parecido? — Grace indagou. — Virologista — Elise retrucou, seca. — Doutor em viroses. — Deve ser por isso que o senhor é tão bem-humorado — Grace ironizou. Elise se controlou para não rir. — Irei para o lago, senhor. Antes de sair, ela destrancou a jaula, e nós saímos. — Quantos lobos acha que a mulher pode ter feito surgir? — Mandenauer perguntou. — Não sei. — Fitei Grace de viés. — Sabemos de dois que morreram. Um outro, não. —Provavelmente mais do que isso — Malachi conjeturou. — Havia noites em que eu escutava um coro nas montanhas. — Mas eles não podem ter retornado à forma humana como os ciganos? Mandenauer meneou a cabeça. —A maldição foi desfeita, mas, pelo que você me contou, Sabina mordeu outros para criar seres semelhantes a ela. Portanto, pode ter feito uma feitiçaria para adquirir o vírus da licantropia. Eles não se recuperarão com tanta facilidade. — Ele carregou o fuzil e saiu. — Ele é assustador — Grace comentou. — Preciso voltar ao trabalho. — Pôs a mão no meu braço. — Você está bem? Eu anuí e nós nos abraçamos. Ela me apertou tanto que eu mal conseguia respirar. — Claire, você nem imagina como eu me assustei. Quando aqueles idiotas do lago me disseram o que haviam feito... Os ciganos certamente acreditavam que voltariam a ser humanos por Malachi ter me matado e a maldição ter sido desfeita. Pobre Grace. Ela viera até ali imaginando o pior. E que pior! — Pensei que nunca mais a veria — ela comentou. — Agora já sabe que não será tão fácil ver-se livre de mim. Ela recuou. — Você ficará aqui? — Acho que ficaremos. — Então, conversaremos amanhã. — Olhou para Malachi e para mim. — Nós? — ele perguntou assim que Grace saiu. — Creio que será assim daqui por diante. Nós. Se você não quiser ficar, irei com você. — Não seria fácil. Eu pertencia a Lake Bluff quase tanto como pertencia a ele. — Sei que seu povo... Malachi segurou-me pelos ombros e me fitou. — Não apenas a maldição foi desfeita, mas também a lealdade que eu lhes devia. Eles me traíram. — Ele beijou minha testa. — Meu povo não precisa mais de mim. Acho que já vaguei demais durante muito tempo. Nunca tive um lar. Ele acariciou meus braços e se deteve na minha cintura. Roçou os polegares em meu ventre e minha pele se arrepiou. Ele estacou e franziu o cenho. 163
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— O que foi, Malachi? Ele arregalou os olhos, maravilhado. — Uma criança. — O quê? — Você está grávida. — Como você sabe? — Sou um bruxo, não sou? — Ainda? — Estar livre da maldição não quer dizer que deixei de ser um rom autêntico. Eu estava abismada. — Os que sofrem metamorfose podem ter filhos? — Em duzentos e cinquenta anos, meu povo não teve nenhum. — Então? — Eu estava curado antes... — A voz dele sumiu e eu podia jurar que ele corava. Eu me lembrava da ordem em que as coisas tinham acontecido. A lua passara de vermelha a prateada. Ele tinha dito que me amava e atingira o clímax. Houvera mais do que um pouco de magia em tudo isso. — Um bebê, Malachi... Como você se sente a respeito? — Achei que jamais teria uma esposa, filhos, um lar. Nunca ousei sonhar com isso até que a conheci. De repente, o futuro tornou-se claro. — Quer se casar comigo? — indaguei. — Não seria eu quem deveria perguntar? — Estamos no século XXI. — E agora as mulheres pedem os homens em casamento? — Algumas vezes. Ele sorriu. — Creio que vou gostar. — Isso é um sim? Malachi pôs a mão em meu ventre e eu a cobri com a minha. Eu poderia jurar que algo se movimentava sob elas. — É um sim.
Fim
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