EMÓBIA e SOCIEDADE
Norbert Elias nasceu: na 5HIII"™"™ estudos de medicina, psK
NORBERT ELIAS tendo feito em diversas
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EMÓBIA e SOCIEDADE
Norbert Elias nasceu: na 5HIII"™"™ estudos de medicina, psK
NORBERT ELIAS tendo feito em diversas
universidades. IniciouLos. seus trabalhos de sociologia com Karl Mannheim, tendo elaborado as suas obras de base — A Sociedade de Corte c O Processo de Civilização •— ainda nos anos 30". Refugiado em Inglaterra devido ao nazismo, aí se manteve até aos anos 60 a leceíonar na Universidade de Leicester. O reconhecimento internacional da sua obra dá-se apenas a partir dos anos 70, facto que o levou a iniciar um novo ciclo de publicações que o transformaram numa das grandes figuras de referência do pensamento contemporâneo ainda antes da sua morte em 1990. A Condição Humana, um dos textos mais significativos dessa fase, apresenta uma reflexão profunda sobre o problema do controle da violência nas relações internacionais.
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EMÍRU Coleccão coordenada por Francisco Beitíencouri e Diogo Ramada Curto
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A colecção M E M Ó R I A E SOCIEDADE dirige-se a um público diversificado, composto por professores dos diversos graus de ensino, estudantes dos anos terminais do ensino secundário e do ensino universítáric, quadros e empregados de serviços, novas profissões urbanas, profissões liberais, agentes culturais de diferentes sectores, etc. Cobrirá um campo muito vasto, procurando apresentar estudos de teconhecida qualidade sobre problemas pertinentes do presente e do passado. Os autores previstos para a primeira fase da colecção constituem uma garantia da diversidade de temas e de pontos de vista. As suas obras têm vindo a instalar rupturas e a pôr em causa as divisões tradicionais do saber. Ao mesmo tempo, está em preparação um conjunto de obras sobre a realidade portuguesa que, elaboradas no silêncio do gabinete ou no colorido trabalho de campo, interessam vastos círculos de opinião. Contra uma falsa idéia que faz da obra de difusão sinônimo de simplificação forçada, serão dados a conhecer os resultados de cuidadas investigações, porque só estas estimulam reflexões aprofundadas. Finalmente, haverá que revalorizar textos clássicos, tanto no seu estatuto, como na força da sua actualidade. Critério que implica recuperação do olvidado ou recolocação do d e m a s i a d o conhecido, na linha da conciliação das obras pertencenres ao patrimônio internacional com as obras portuguesas.
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CONDIÇÃO HUMANA
NORBERT ELIAS
CONDIÇÃO HUMANA Considerações sobre a evolução da humanidade, por ocasião do quadragésimo aniversário do fim de uma guerra (8 de Maio de 198 5) Tradução de MANUEL LOUREIRO Revisão literária e técnica de RAFAEL GOMES FILIPE
Memória e Sociedade DIFEL
Elias* Norbert Condição humana consideração s obre a evolução da humanidade, por ocasião do q.uadragesimo a 3I6/E42c _ (153931/99) v Titulo original: Humana Conditio © 1985, NORBERT ELIAS Todos os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa reservados por:
DIFEL
Dilusáo EBiloiial, Lda
Denominação Social Sede Social
Capital Social Contribuinte n." Matrícula n.° 3007
— DIFEL 82 — Difusão Editorial, Lda. — Rua D. Esteíania, 46-B 1000 LISBOA Telefs. 53 76 77 - 54 58 39 - 352 23 10 Telex: 64 030 DIFEL P Telefax:(01)545886 - 60 000 000$00 (sessenta milhões de escudos) - 501 378 537 - Conservatória do Registo Comercial de Lisboa
Todos os direitos de comercialização no mercado brasileiro reservados a:
EDITORA BERTRAND BRASIL, S.A. Av. Rio Branco, 99-20° 20040 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 263 20 82 Telex (21) 33799
Fax(021)263 61 12
Memória e Sociedade Colecção coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto Capa: Emílio Távora Vilar Seteccão de cores: Meiotam, Lãa. Revisão: Ayala Monteiro Composição: Textype — Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu, 1991 Depósito Legal n.D 43958/91 ISBN 972-29-0201-6 PgoibidaàxeprcidHCão total ou parcial sem a prévia autorização do Editor
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Para Micbael Scbrõter, cuja amizade tornou possível esta publicação
NOTA DE APRESENTAÇÃO Norbert Elias nasceu em 1897 na Alemanha, tendo feito estudos de medicina, de psiquiatria e de filosofia em diversas universidades. Seguiu os cursos de Honigswald, Rickert, Husserl ejaspers, tendo defendido a sua tese de doutoramento sobre Idéia e Indivíduo. Uma pesquisa crítica sobre o conceito de História. A ascensão do nazismo obrigou-o a abandonar a Alemanha no início dos anos 30, não tendo sequer defendido a sua tese de «habilitation» sobre A Sociedade de Corte que lhe teria dado acesso ao posto de assistente da cátedra de Karl Mannheim na Universidade de Frankfurt. Depois de uma breve estada em França estabeleceu-se definitivamente em Inglaterra. Aí encontrou trabalho como psicoterapeuta de grupo, profissão que exerceu durante vários anos até ser convidado a leccionar sociologia na Universidade de Leicester. O reconhecimento internacional da obra de Norbert Elias é tardio. Durante os anos 30 trabalhou, com o apoio de Mannheim, numa vasta obra sobre O Processo de Civilização, publicada em dois volumes por um pequeno editor suíço em 1939, tendo sido muito limitada a sua difusão. Só em 1969, sete anos depois da sua jubilação de Leicester, foi feita uma reedição alemã desta obra, que permitiu a sua «descoberta» pela comunidade científica e mesmo pelo grande público: seguiram-se traduções em França (1973-75), em Inglaterra (1978) e em Itália (1982-83). Também em 1969 foi publicado o texto inédito sobre A Sociedade de Corte, que passou a constituir com os dois volumes de O Processo de Civilização um tríptico de referência obrigatória no quadro das ciências sociais. Contudo, a actividade de Norbert Elias não ficou por aqui. Estabelecido em Amesterdão, onde criou uma espécie de academia platônica com um conjunto de discípulos, continuou a proferir conferências
CONDIÇÃO HUMANA
NOTA DE APRESENTAÇÃO
em universidades, nomeadamente em Bielefelã. Paralelamente, iniciou um longo ciclo de publicações até à sua morte em 1990 que o transformou num dos casos de longevidade criativa mais significativos deste século: O que é a sociologia (1970), A solidão dos idosos (1982), Envolvimento e distanciação (1983), Ensaio sobre o tempo (1984), A Condição Humana (1985) e A Busca da Excítação (com Eric Dunning, 1986). Este breve excursus biobibliográfico permite situar melhor o sentido de uma obra como A Condição Humana; trata-se de uma espécie de testamento espiritual de uma das grandes figuras do nosso século, formada no rico ambiente intelectual da Alemanha de Weimar, onde o contacto com as primeiras abordagens fenomenologistas da teoria do conhecimento caminha a par da reflexão sobre a obra de Freud ou da análise crítica dos legados de Auguste Comte e de Max Weber. A sua tripla formação — filosófica, psiquiátrica e sociológica — está inscrita, desde logo, na sua obra sobre O Processo de Civilização (traduzido pela Dom Quixote), onde coloca no centro da evolução humana a passagem de mecanismos de coacção externa para mecanismos de autocontrolo. Já então procura identificar as raízes sociais do domínio crescente dos sentimentos e das emoções no processo de curialização dos guerreiros medievais. Este método inovador de abordagem sociogenética já tinha sido ensaiado na Sociedade de Corre (traduzido pela Estampa), onde Elias mostra como as refaçoes de interdependência forjadas pelos círculos de corte implicam a criação de novos modelos de comportamento baseados no domínio das pulsões, na dissimulação, no cálculo estratégico e na vigilância mútua dos actores envolvidos. O Ensaio sobre o Tempo assinala a aplicação deste método a um problema mais geral: a origem das concepções do tempo, materializadas na elaboração de calendários e na definição de períodos cíclicos modelados pelo movimento aparente ao sol e da lua. De novo deparamos com uma valorização das funções reguladoras da actividade humana, representadas aqui pela interiorização do tempo cíclico — o homem pode dominar o ciclo das actividades agrícolas ou organizar o ciclo das actividades religiosas, geralmente ligadas às primeiras. Mas se Elias sublinha, por um lado, a necessidade de previsão que implica o trabalho da terra, por outro, alerta para o significado social da criação e da gestão deste poderoso sistema regulador, protagonizado pelo grupo dos sacerdotes, como função suplementar de poder. O caracter inovador do pensamento de Norbert Elias reside, em grande medida, na análise dos sistemas de conhecimento e dos modelos de comportamento enquanto quadros de experiência socialmente produzidos. No seu percurso
encontramos a revalorização crítica da obra de Auguste Comte, explicitada no livro O que é a sociologia (traduzido pelas Edições 70) e incorporado nas suas abordagens de longuíssima duração, como na célebre conferência realizada a 26 de Novembro de 1985 no Collège de France a convite de Pierre Bourdieu, onde falou sobre «Continuidades e descontinuidades da transmissão do saber» da Babilônia aos nossos dias. Mas esta perspectiva, que fundamenta uma crítica cerrada, tanto às visões compartimentadas da historiografia tradicional como à transferencia selvagem do relativismo cultural antropológico para o estudo do passado, é cruzada pela assimilação do legado de Max Weber, como o demonstra a análise dos agentes interessados nos processos de conhecimento ou da origem social das formas de comportamento. A importância da obra de Norbert Elias na renovação das ciências sociais é atestada pela influência exercida no trabalho de alguns dos autores mais significativos da actualidade, como Pierre Bourdieu, Roger Chartier ou Vitorino Magalhães Godinho. A sua longevidade criativa, já atrás referida, permitiu desenvolver um pensamento original e produtivo. E por isso que considerámos A Condição Humana como um texto duplamente significativo, por um lado do pensamento de Elias, por outro, de uma conjuntura específica, o final do pós-guerra. E no contexto da celebração do 40." aniversário do termo da Segunda Guerra Mundial que devem ser compreendidas as numerosas referencias aos dois blocos e à ameaça de uma catástrofe nuclear provocada pela sua rivalidade — traços anacrônicos que mostram à saciedade como a análise prospectiva trabalha sempre e apenas com possibilidades. Mas a reflexão profunda sobre o recurso constante à violência nas relações internacionais ganha uma nova actualidade no quadro da fragmentação do Estado soviético, da emergência de conflitos nacionais no leste europeu e da ameaça de guerras regionais. Com efeito, Norbert Elias retoma neste texto um dos temas centrais da sua obra, a violência e os meios de a controlar. As suas considerações sobre a guerra como a expressão mais brutal das relações de violência inserem-se na linha anterior de raciocínio: incorporada até aos nossos dias na «condição humana», a guerra constitui o último reduto de relações entre povos marcadas pela imposição bruta da força. Se a evolução da humanidade é caracterizada, como pensa Norbert Elias, pelo domínio crescente das pulsões, trata-se agora de estender os processos de autocontrolo ao relacionamento entre os povos, introduzindo de uma maneira sistemática mecanismos de regulação pacífica dos conflitos em lugar da destruição massiva.
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Memória e Sociedade - Os coordenadores
l Por vezes é útil, para compreender melhor as questões da actualidade, afastarmo-nos delas em pensamento para depois, lentamente, a elas regressarmos. Compreendemo-las, então, melhor. Pois quem se embrenha apenas nas questões do momento, quem nunca olha para além delas, é praticamente cego. Este é um dia em que celebramos a paz, a paz depois do fim de uma guerra terrível. Este dia é também, propriamente, o dia do nascimento da nova República Federal da Alemanha, cujo aniversário, assim, simultaneamente, festejamos. Celebramos, portanto, um período de quarenta anos de paz — nós, povos da Europa. Outros povos da Terra são menos felizes — onde não cessam as guerras e as revoluções, as violências dos homens entre Estados ou dentro deles. Podemos considerar-nos felizes por vivermos numa região da Terra em que durante quarenta anos não houve uma única guerra. Mas que espécie de mundo é este em que nos podemos congratular por durante quarenta anos, menos de meio século, não termos sido atingidos directamente pela * Este pequeno livro nasceu da elaboração duma conferência sobre o mesmo tema que proferi, a convite da Universidade de Bielefeld, em 8 de Maio de 1985. Um registo gravado da conferência propriamente dita será publicado no n.° 2 dos Bielefelder Universitátsgespráche. A Rudolfo Knijff devo um particular agradecimento pelo seu auxílio na preparação do trabalho. Também Gottrief Hermelink me prestou uma grande ajuda, pelo que lhe estou muito agradecido. O volume aparecerá no âmbito dum projecto editorial (dirigido por Hermann Korte, Rhut-Universitat, Bochum) patrocinado pela Fundação Fritz Thyssen, à qual dirijo, igualmente, os meus agradecimentos.
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ameaça e pela fúria do homicídio recíproco a que chamamos guerra, e onde, além disso, temos permanentemente de contar com o deflagrar de um próximo conflito, ainda mais terrível que os anteriores? Que espécie de homens são esces que não cessam de se ameaçar com a guerra, o assassínio e o extermínio? Humana conditio, o destino do homem. Escolhi este título como ponto de referência para o que me proponho dizer, entre outras razões, porque os conflitos violentos entre homens a que chamamos guerras, até onde os podemos observar retrospectivamente, fazem parte do destino, das condições de vida dos homens. São sofrimento criado pelo homem, horror criado pelo homem. E, contudo, até hoje, as guerras têm ido e vindo como as inundações e as tempestades, e sem que o homem as possa controlar. Sejam quais forem as particularidades que distinguem a guerra de Hitler de todas as outras, não faremos justiça ao problema humano de que aqui se trata se o nosso olhar se detiver, fascinado, nesta última guerra européia ou na possível próxima guerra mundial, se não perguntarmos: porquê, em geral, a guerra? O homem elevou o assassínio recíproco dos povos a uma instituição permanente. As guerras pertencem a uma sólida tradição da humanidade. Estão arraigadas nas suas instituições sociais, assim como no habitus social, na imagem colectiva dos homens, mesmo dos que mais amam a paz. Masf agora, chegámos ao fim do caminho. Vivemos numa época de evolução da humanidade em que uma próxima guerra traria consigo a destruição de uma parte significativa dessa humanidade, quando não mesmo de coda a Terra habkável, incluindo os próprios beligerantes. Muitos homens sabem-no e, provavelmente, também o sabem alguns membros dos governos que preparam a próxima guerra. No entanto, a pressão das instituições sociais e do babitus social, que compelem à guerra, é tão grande e, ao que parece, tão inevitável, que o medo duma próxima guerra, ainda mais horrível, começa novamente a atormentar-nos, a nós que recordamos com lutuosa tristeza a última guerra, ao mesmo tempo que festejamos, com alívio, um escasso período de quarenta anos de paz.
Curiosamente, se pensarem nisto a longo prazo e numa perspectiva ampla - os homens aprenderam, em muitos aspectos, a domar as forças selvagens da natureza. Os espíritos e os deuses imaginários com que a mente humana povoava, outrora, a Terra indomada, com as suas florestas sombrias, as suas montanhas solitárias e os seus mares perigosos, regressaram aos sonhos dos homens, donde tinham saído. O desenvolvimento das ciências naturais — o que não deveria esquecer-se em especial nas universidades — pôs nas mãos dos homens, em relação a vastos domínios do acontecer natural, um saber sobre os fenômenos naturais relativamente objectívo e próximo da realidade. Estas ciências trouxeram à luz do dia, como dantes se dizia, a «verdade» acerca da natureza, acabando tanto com o temor-pânico face à natureza demoníaca como com a representação idealizada de uma sempre generosa Mãe Natureza. Segundo parece, há muita gente que não pode perdoar às ciências da natureza o facto de terem desencantado a natureza. Também isto pertence à humana conditio. Creio que, no contexto do que tenho para dizer, não deixa de ser importante mencionar expressamente este facto. Muitos homens dizem que querem saber a verdade, que querem saber como é, efectivamente, o mundo em que vivem. No entanto, observando com mais rigor, revela-se com freqüência que o mundo, tal como ele é realmente, está longe de corresponder aos desejos humanos. Quando se apercebem disso, muitos homens ficam assustados com a verdade e recuam. Preferem embalar-se nos seus sonhos e enganar-se a si próprios. Esta é, de facto, uma das questões centrais da existência humana: será que se quer ver o mundo, na medida do possível, como
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ele é realmente, mesmo quando se revela pouco satisfatório do ponto de vista emocional, e se verifique que não está feito como se desejaria? Ou preferiremos envolver-nos nos nossos desejos e ideais como num agasalho quente que nos protege do frio da vida, correndo o risco de que a realidade não desejada irrompa um dia, subitamente, nos sonhos acalentadores, de modo a termos depois de continuar a viver amargurada, desiludida e cinicamente dos sonhos perdidos e dos ideais carcomidos e despedaçados? Dou-vos um exemplo, talvez suficientemente distante para poder ser entendido sem grande dificuldade. A visão global do universo em que vivemos, tal como ela emerge, lentamente, do progressivo trabalho de investigação dos cosmólogos, está muito longe da imagem do mundo suave e harmônico de Newton - é tudo menos atractiva. A meda de lenha atômica do Sol, que consome continuamente o seu próprio material combustível e que um dia se há-de transformar num «anão branco»; as formações, chamadas «buracos negros», que absorvem elas próprias raios de luz e não os devolvem — numa palavra, o automatísmo brutal e sem orientação do universo real, que os cosmólogos começam a descobrir, está deveras distante da harmoniosa uniformidade da bela natureza regida por leis, cuja imagem imperava no Século das Luzes e inspirava a fantasia dos seus filósofos. Para exprimi-lo numa frase: aquilo que os homens das sociedades mais desenvolvidas sentem e experimentam nesta mesma Terra enquanto natureza, nada tem a ver com a natureza indómita e nunca desbravada pelo homem; trata-se, exclusivamente, da natureza já domesticada pelos homens, transformada por eles para alcançar fins humanos. Refiro-o, aquí, pelo facto de esta circunstância possuir um certo valor simbólico. Hoje em dia, muitos homens das sociedades mais desenvolvidas divinizam a natureza. No entanto, dificilmente o fariam se tivessem de viver na natureza ainda não trabalhada pelos homens, ainda não domesticada pelos seres humanos. Visto não terem plena consciência do papel que o trabalho dos homens, tanto o trabalho físico como o científico, desempenhou para lhes tornar suportável o processo da natureza, no meio da qual eles vivem, pensam segundo uma escaía de valores invertida. Fecham os olhos ao facto de que, para os homens, o mais importante neste mundo, pelo menos enquanto não formos alvo de uma chuva de meteoros, não é o processo físico, o processo pré-humano da natureza. O mais importante
•para os homens são os próprios homens. Eles podem domesticar e embelezar a natureza selvagem, ou, também, estropiá-la. Talvez eu esteja a remontar demasiado longe no tempo. No entanto, parece-me importante, para o que tenho a dizer sobre as questões da actualidade, ajustar correctamente o quadro amplo em que se desenrolam os problemas de hoje. Não é por acaso que «Conditio Humana» é o título de um poema que resume, do seu ponto de vista, alguma coisa do que eu procuro aqui dizer. E um poema pequeno. Permitam-me que o cite:
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Nór não ouvimos o bramião da Terra peregrina fechamos os olhos perante a distância inconcebível e perante a viagem sem fim nem nome só às vezes quando lá em cima a calva Lua irradia o brilho da sua luz emprestada quando a hoste cintilante das estrelas sem vida nos olha do alto na sua fria beleza quase sentimos na língua este sabor da Terra solitária com a carga viva que transporta e a tarefa inconcebível dos homens industriosos na sua viagem pelo deserto do mundo é-nos familiar então o tempo funde-se, os falsos portões desencantados ficam o princípio e o fim e cai o bastidor que dissimula os fins homicidas dos homens. Onde estamos?
Aí têm a humana conditio, nua e crua — a Terra solitária com a sua carga viva. O universo em desenvolvimento ou, o que significa o mesmo, a «natureza», donde os homens saíram para nela nascerem, este universo é completamente insensível. Não é nem bom nem mau para os homens; trata-se de uma evolução cega, sem sentido e sem objectivo, cuja violência e cuja força, comparadas com as da humanidade, são avassaladoramente grandes. Este acontecer decorre numa indiferença perfeita face à humanidade e a cada ser humano. Os processos naturais que ocorrem em todos os homens e que muitas vezes designamos, metaforicamente, como o seu corpo, seguem com bastante freqüência o seu próprio rumo sob a forma de doenças,
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ou de um declínio genético predeterminado, rápido ou lento — que determina o envelhecimento e a morte. Os homens procuram sempre dissimular esta completa indiferença do curso cego e não humano dos fenômenos da natureza através de imagens fantasiosas que correspondem melhor aos seus desejos. Eu considero esta tendência para ocultar o conhecimento da realidade ou, se quiserem, da «verdade», por ela ser inoportuna, com imagens idealizadas, uma atitude perniciosa e perigosa. Através de um tal encobrimento da indiferença para com os homens de todo este mundo não humano, oculta-se, simultaneamente, o facto de, dentre todos os seres do mundo, os únicos que, em todo o caso, podem não ser indiferentes ao destino dos homens são, precisamente, os outros homens. Neste mundo nu e indiferente, é somente dos homens que os homens podem esperar dedicação, calor de sentimentos e ajuda nas dificuldades da vida. Seja por puro desejo de saber, seja na busca de ajuda ou consolo fora da humanidade, os cientistas procuram hoje, neste universo sem vida, sinais de outros seres que, como os homens, sejam capazes de comunicar uns com os outros por meio de símbolos aprendidos, de armazenar conhecimentos e de os utilizar na prática. Mas é perfeitamente possível que somente na Terra se tivessem reunido as circunstâncias que permitiram que do processo cego, sem desígnio nem objectivo, da natureza emergissem homens dotados de conhecimento, de sentimentos e de imaginação, e capazes de estabelecerem metas. É perfeiramente imaginável que, em todo o universo, não existam mais nenhuns seres desta espécie, mais nenhumas «inteligências superiores». Pode ser que estejamos a gritar inutilmente para um universo vazio: «Está aí alguém?» Talvez os homens façam isso na esperança de encontrar algures alguém que seja mais forte e sábio do que nós, alguém que nos alivie do peso da responsabilidade. Já não somos, porém, nenhumas crianças. Ali, não está ninguém. Talvez,pensem que, para a comemoração de uma paz de quarenta anos, eu esteja a remontar demasiado no tempo. No entanto, a minha percepção do significado momentoso deste dia da paz não é perturbada pela minha preocupação de compreender a situação da humanidade neste mundo. A insensatez das guerras, e portanto, também, da que os nacionais-socialistas fizeram, o significado singular que os homens revestem uns para os outros, só se tornam plenamente evidentes se se
tiver perante os olhos a imagem de uma humanidade ávida de saber, em busca do sentido e da alegria, habitando um pequeno planeta do sistema solar, no deserto gigantesco deste universo desprovido de sentimentos. É certo que os homens também podem destruir a habitabilidade do seu planeta para os seres humanos, e talvez já estejam em vias de o fazer. Não deixa, porém, de ser um tanto assustador ver-se que muitos homens tiram daí a conclusão de que a natureza ainda não tocada pelo homem é amiga e generosa, e de que só a intervenção dos homens nos processos da natureza é perceptível de provocar os perigos que ameaçam a humanidade. A verdade é que, devido ao mal-estar que a natureza neles provoca, os homens vêm trabalhando, há muitos milhares de anos, com objectivos a curto prazo, no sentido de domesticarem a selvática, indómíta e perigosa natureza da Terra. Eles desbravaram as florestas primitivas e transformaram-nas em campos de cultivo e em jardins. Em algumas regiões, lograram exterminar os lobos, os gatos selvagens, as cobras venenosas, tudo o que lhes era hostil. Agora, nestas regiões, podem caminhar pacificamente e sem perigo pelos campos e achar bela a natureza, entretanto domesticada e pacificada pelos homens. As feras podem ver-se no jardim zoológico, atrás das grades. Só os próprios homens, por exemplo, quando se encontram ao volante de um carro, constituem um perigo uns para os outros. Todavia, a ameaça indubitável que representam para os homens as modificações que eles involuntariamente provocam no seu habitai natural — em parte devido à sua quantidade incontrolavei, em parte devido ao seu gosto pelos automóveis e a outras características sociais do nosso tempo — é apenas a última fase de um processo milenário de transformação do meio natural pelos homens. Em todas as épocas, esta progressiva transformação realizada pelos homens do seu habitat não humano teve conseqüências imprevistas que, a longo prazo, se revelaram em parte favoráveis e em parte desfavoráveis para os seres humanos. O facto de, actualmente, as conseqüências prejudiciais da transformação do habitat natural pelos homens possuírem uma dimensão eventualmente superior à de outros tempos prende-se com duas particularidades do desenvolvimento da humanidade que, parece-me, também são importantes neste contexto. Quero referir-me a elas sucintamente.
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3 A situação dos homens na fase actuai do seu desenvolvimento social é fortemente influenciada por uma peculiar desigualdade no desenvolvimento do seu arsenal de conhecimentos. E sobretudo nas universidades onde melhor se pode observar esta desigualdade, embora ela não seja, de uma maneira geral, entendida nestes termos. O saber objectivo, próximo da realidade, sobre as conexões não humanas da natureza aumenta hoje devido ao crescimento dos institutos de investigação, numa proporção que ultrapassa em muito o saber acumulado em todos os séculos anteriores. Ao mesmo tempo, regista-se um análogo crescimento da tecnologia física, um aumento imenso do controlo e da manipulação pelos homens de processos naturais não humanos para fins militares e pacíficos que, simultaneamerite, determinam modificações significativas da vida social e colectiva dos homens. A aplicabilidade prática, não só no domínio da técnica mas, principalmente, no da medicina, é a melhor prova da adequação à realidade de uma parte considerável do saber das ciências da natureza. Ponderem, por favor, sobre o que neste domínio está a acontecer. Através do avanço do trabalho científico, a natureza tem vindo a ser, progressivamente, desmitificada. Neste âmbito, os homens aprenderam que, quando a sua busca de saber é influenciada por ideais preconcebidos, por ilusões e por fantasias, o caminho para um conhecimento ajustado às coisas, próximo da realidade ou, como antes se dizia, para um saber «verdadeiro», fica obstruído. As ciências da natureza já desistiram, efectivamente, há muito de aceitar como ponto de partida que o universo natural corresponda aos seus próprios ideais ou aos desejos dos homens. Talvez não seja ainda uma coisa muito divulgada,
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mas eu já chamei a atenção para o seguinte: a imagem global do universo que vem gradualmente emergindo do trabalho de investigação dos cientistas não é particularmente atraente para os homens. Tivemos um pequeno antegosto disso quando vimos de perto, na televisão, a paisagem lunar. O satélite da Terra, que, visto de uma grande distância, brilha qual astro dourado dos namorados num céu de Verão, observado mais de perto revela-se como um deserto sem vida e coberto de calhaus. Considero perfeitamente possível quef no decorrer do próximo século, os homens comecem a enriquecer este miserável deserto com plantas, a criar atmosferas onde possam viver e, assim, a transformar paulatinamente a Lua numa residência agradável para os seres humanos. A recompensa oferecida aos homens pelo abandono dos seus medos e desejos quando da busca de conhecimentos, portanto, a coragem de ver e descrever a realidade deste mundo sem véus embelezadores, é a capacidade de, dentro dos limites da sua esfera de poder, transformarem o mundo assim conhecido de modo a ele corresponder melhor aos seus desejos e necessidades. E este, se assim quiserem, o segredo da ciência: através da renúncia ao pensamento guiado pelo desejo, às fantasias embelezadoras ou, eventualmente, também ao receio e à angústia, desenvolver o saber sobre o mundo de modo a que ele se adapte o mais rigorosamente possível ao mundo real. Se possuirmos um tal saber, poderemos empreender a transformação de um mundo não desejado e, talvez, até atemorizador, por forma a fazê-lo melhor corresponder às necessidades humanas. Os homens têm memória curta. Nos países mais desenvolvidos já quase se desconhece como foi difícil e cheia de perigos a vida dos nossos antepassados no meio das estepes selvagens, dos rios indomáveis — que, com freqüência, inundavam de repente as terras — e das florestas gigantescas, onde todos os seres vivos, plantas, animais e homens, se encontravam permanentemente em guerra entre si. A omnipresença dos perigos e do medo perante as incompreensíveis forças da natureza encontrou a sua expressão na multiplicidade de espíritos com que a previdente imaginação dos homens povoou o mundo ameaçador e opaco. A desmitificação da natureza foi um longo processo, um trabalho esforçado e não planeado, que durou séculos. Hoje, já quase o esquecemos. A dèsmítifícação da natureza tornou-se óbvia. Are mesmo a doença mais dolorosa já não é atribuída aos feitiços de uma bruxa; a loucura só raramente é atribuída à possessão por espíritos malignos.
Mesmo a erupção de um vulcão ou um terramoto devastador já não são atribuídos à ira dos espíritos da montanha ou da Terra. Em muitos países, os homens tornaram-se a tal ponto senhores da natureza que a superioridade e a periculosidade não mitigadas desta só excepcionalmente, e como que à margem da sua vida, lhes vêm à consciência. Eles vêem agora os tremores de terra e as inundações como acontecimentos naturais, cuja causa e ocorrência se podem investigar cientificamente e cujo perigo pode ser diminuído com a ajuda de previsões científicas. Estamos actualmente ainda tão pouco conscientes da morosidade deste processo de desmitificação, deste desenvolvimento de um saber altamente ajustado à realidade no domínio da natureza não humana que, para muitos homens, a elevada adequação à realidade destes seus conhecimentos sobre a natureza parece-lhes ser, simplesmente, o resultado da sua razão natural ou, mais geralmente, da racionalidade humana universal, Por isso, mostram-se depois perfeitamente incapazes de explicar porque é que os seres humanos, apesar de serem capazes de pensar e actuar «racionalmente» em relação ao processo da natureza exterior, não estão manifestamente habilitados para se comportarem com igual «racionalidade» em relação à sua própria vida social e colectiva. Se se tratasse aqui, verdadeiramente, de uma questão de «racionalidade» humana, da «razão», natural ou do «entendimento» universal, seria pura e simplesmente incompreensível porque é que os homens fazem uso da sua «razão» da sua «racionalidade», apenas em relação à natureza, mas não, ou pelo menos não em igual medida, em relação à sua vida social colectiva. A inevitabilídade com que os homens, precisamente na altura em que festejam uma paz de quarenta anos, se encontram de novo confrontados pelo perigo de uma nova guerra ainda mais terrível que as anteriores é um bom exemplo desta típica diversidade de comportamento e de pensamento em relação à natureza e à sociedade. Se conceitos como «racionalidade» ou «razão» tivessem, de algum modo, um significado claro — e eu duvido que seja esse o caso —, então, teríamos de explicar porque é que, actualmente, a «racionalidade» humana se restringe à orientação no domínio dos processos da natureza, parecendo, porém, recuar ante a ponderação e o comportamento relacionados com a vida social colectiva dos homens, à qual, de resto, também pertencem as relações entre os Estados. B bastante evidente que, com conceitos como «razão», «racionalidade» e «irracionalidade», não avançamos muito no sentido da solução de tais problemas.
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A diferença com que aqui somos confrontados é elucidativa. Se um fenômeno da natureza, como, por exemplo, uma epidemia ou um meteoro que se aproximasse da Terra, colocasse a humanidade perante um perigo tão grande como aquele a que ela esrá exposta pela utilização de armas atômicas para fins militares, muitas equipas de cientistas ver-se-iam então confrontadas com a tarefa de investigar a melhor maneira de fazer frente a este perigo natural e, caso ele não pudesse ser afastado, de como se poderia reduzir a grandeza do perigo, procedendo, por exemplo, à transferência de grupos humanos. Por outras palavras, tentar-se-ia, sem se deixar enganar por ilusões e outras fantasias, encontrar uma explicação do perigo o mais próxima possível da realidade e, com base neste saber ajustado às coisas, seriam tomadas as correspondentes medidas práticas. Assim, quando se trata de debelar perigos a que estão expostos pelo acontecer não humano da natureza, os homens, unidos em determinadas organizações sociais, já quase se comportam como adultos. Já não se põem à procura de terceiros que os possam ajudar. Não praticam nenhuma política de avestruz. Não se iludem, pensando que o perigo irá desaparecer, desde que proclamem em coro o desejo de que ele desapareça. Nestes casos, ao enfrentarem perigos de ordem física e biológica, os homens já adquiriram o discernimento de que só eles podem fazer alguma coisa para conjurar o perigo, ou para reduzi-lo, precisamente com base num saber o mais próximo possível da realidade. Deste saber faz parte, no entanto, como é óbvio, um distanciamento consciente do fenômeno ameaçador, uma exclusão de todas as fantasias e ilusões. Com isto, já nos aproximamos mais do cerne da questão. Em face de uma ameaça por fenômenos naturais exteriores ao homem, os seres humanos são já capazes de refrear os seus desejos e fantasias. A evolução que para tal os habilitou foi prolongada e trabalhosa. Agora, porém, nos países industriais mais desenvolvidos, alcançou-se um padrão social do falar e do saber que possibilita até mesmo às crianças destas sociedades sentirem e experimentarem a natureza domesticada, no meio da qual vivem, sem medo dos espíritos ou de feiticeiros. Elas aprendem muito cedo que as criaturas que se movem no ecrã não são nenhum feitiço, que os computadores são aparelhos criados pelo homem e que podem ser por ele reparados quando teimam em falhar, E, para os adultos destas sociedades, a desmitificação da natureza não humana, bem como uma intervenção colectiva dos homens relativa-
mente audaciosa e ajustada às coisas, no caso de perigos naturais de natureza física e biológica, são já, em geral, uma coisa óbvia. Eles já quase se não dão conta de que os homens de gerações anteriores experimentavam e sentiam a natureza muito menos domesticada e muito mais ameaçadora, tanto à sua volta como neles próprios, num grau muito superior, através do véu dos seus desejos e do seu medo, portanto, de uma maneira mítico-mágica. Todavia, no que respeita ao esforço para debelar os perigos que os homens representam uns para os outros e, particularmente, em face da ameaça recíproca de grupos associados em Estados marcados por tradições militares, os seres humanos comportam-se de maneira inteiramente diferente. Verificai-o vós mesmos: relativamente aos perigos terríveis a que os homens se expõem uns aos outros — sobretudo, mas decerto não só, através da ameaça recíproca com a força física ou, directamente, através da sua utilização -, a humanidade encontra-se hoje, fundamentalmente, ainda tão desamparada como os nossos antepassados perante as ameaçadoras forças da natureza, como, por exemplo, os relâmpagos, as epidemias ou as inundações gigantescas, a que devemos o mito da Arca de Noé. Numa palavra, na fase actual do desenvolvimento da humanidade, faz parte do destino dos homens o ter-se conseguido em alguns países, graças, sobretudo, às ciências da natureza, tanto puras como aplicadas, diminuir muito substancialmente as intempéries e os perigos a que os fenômenos naturais incontrolados expõem os seres humanos. Em resumo, pode, por isso, hoje dizer-se que são os próprios homens que constituem o maior perigo uns para os outros. Levados pela emoção, muitos homens responsabilizam hoje os cientistas pelo facto de os Estados se ameaçarem com armas nucleares de uma força destruidora até agora desconhecida. Isso, porém, é apenas um dos mitos com que se dissimula a realidade social. O impulso para o desenvolvimento de armas nucleares militarmente utilizáveis foi dado pela corrida aos armamentos desencadeada pela guerra cujo fim hoje festejamos. Tal como hoje acontece, na véspera de uma possível guerra, também durante o último conflito uma das parte em guerra, os Americanos, receava que a outra parte, Hitler e as suas hostes, se lhes antecipasse no desenvolvimento de uma arma nuclear utilizável. E a inimizade recíproca entre grupos humanos e, particularmente, a instituição social das guerras que impulsionam o desenvolvimento científico de armas sempre mais perigosas. E de supor que, já na Idade da
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Pedra, grupos humanos rivais se estimulavam reciprocamente no sentido do aperfeiçoamento das suas armas de pedra. Nessa altura, porém, a ameaça que as forças da natureza representavam para os grupos humanos era, provavelmente, tão grande, se não mesmo maior, que a de outros grupos de homens. Hoje, como já se disse, nas áreas habitadas por muitas sociedades, aquela primeira ameaça decresceu. Assim, a ameaça que os homens representam uns para os outros surge-nos, com particular acuidade, como o maior perigo ainda não debelado e que urge conjurar. Talvez devêssemos ainda acrescentar que a atitude dos homens em relação a novas descobertas, ao alargamento dos seus conhecimentos sobre o mundo desconhecido, em que estão inseridos, nem sempre é alegre e positiva. Os mitos antigos dão testemunho de que os novos conhecimentos foram desde sempre suspeitos aos olhos dos homens. Era melhor aferrar-se ao velho. Nunca se podia estar seguro de que os deuses omniscientes não ficariam zangados se os homens presunçosos se apropriassem de mais um pouco do seu saber. Nunca se podia prever que perigos acarretaria a nova descoberta, que vingança os deuses iriam perpetrar sobre os homens, por estes se terem apropriado de um pouco* do seu saber. Chamo a isto o complexo de Prometeu. Prometeu roubou o fogo aos deuses e confiou-o aos homens. Eis, pois, um grande benfeitor da humanidade. Mas ele foi, por isso, punido pelo deus supremo da maneira mais terrível. Foi agrílhoado a um rochedo, e uma águia devorava-lhe diariamente um pouco das entranhas. Também Adão foi expulso do Paraíso porque provou o fruto da árvore da sabedoria, ainda por cima instigado pela sua mulher. Igualmente neste caso havia o perigo de os homens poderem compartilhar do saber divino. Do mesmo modo, não são poucos os que, ainda hoje, suspeitam dos homens e das mulheres de ciência que continuamente promovem novos conhecimentos. Falando com mais rigor, eles esquecem as ciências quando os respectivos frutos contribuem para o seu bem-estar, quando elas contribuem para que os jovens cresçam mais saudáveis e os velhos vivam mais tempo, e apenas lhes imputam a responsabilidade pelo que não lhes agrada, como, por exemplo, as chuvas ácidas ou a poluição dos rios. No entanto, em relação a muitos destes fenômenos que, justamente, são objecto de reprovação geral, trata-se não de problemas científicos, mas de problemas sociais, ou, mais precisamente, de problemas de poder. Investigá-los nessa qualidade e apresentá-los à
opinião pública é a função das ciências sociais. No entanto, é difícil aos seus representantes penetrarem o envoltório dos mitos encobridores que actualmente ainda condicionam em larga medida a imagem que os homens formam das sociedades por si constituídas. Como vêem, depara-se-nos aqui o rasto de uma singularíssima cisão do saber, altamente caracterizadora da actual situação dos homens nas sociedades mais desenvolvidas. Ela tem conseqüências do maior alcance para a nossa vida e para o nosso habitus, que não poderei agora abordar. A nossa relação com a natureza não humana está marcada por uma desmitificação e uma secularização muito avançadas do saber social sobre as conexões da natureza. O alto grau de adequação deste saber à realidade torna possível um exrenso controlo do acontecer natural e a sua sempre maior plasmação em conformidade com as necessidades humanas. Em contrapartida, a atitude dos homens em relação à sua vida em comum, em sociedades de diversos níveis, é ainda muito determinada por imagens de desejos e de medos, por ideais e contra-ideais, numa palavra, por representações mítico-mágicas. A orientação objectiva das representações é muito menor no domínio da sociedade do que no da natureza, sendo tanto maior a sua subjectividade e o peso do seu significado emocional para o respectivo sujeito do saber.
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O nacional-socialismo foi, por certo, um exemplo particularmente terrifícante e perigoso de um mito social. Mas foi apenas um exemplo, entre muitos outros. Claro que é assustador que um mito social tão bárbaro e implacável, só por lisonjear o egoísmo nacional do seu próprio povo e satisfazer a necessidade de confirmação do valor incomparável da própria nação, pudesse encontrar aceitação entre tantos homens. No entanto, tratou-se apenas de um exemplo particularmente terrível da insaciável necessidade dos homens de criarem mitos sociais que demonstrem o valor incomparável da sua nação. Homens que se emanciparam, em larga medida, dos mitos naturais entregam-se depois, repetidas vezes, a semelhantes mitos sociais. Olhem só à volta. Acaso, hoje em dia, não somos de novo impelidos para uma guerra em nome de mitos colectivos ou, como também se diz, em nome de ideologias sociais que, ao mesmo tempo, também justificam o valor incomparável da própria nação? Não serão esta enredada teia e esta deriva em direcção à guerra tão inevitáveis, devido precisamente ao facto de a substância real do conflito, sobre a qual se poderia discutir, ter sido de tal maneira exagerada por mitos sociais repletos de cargas emotivas que se torna impossível falar sobre ela? As estratégias dos responsáveis políticos são, elas próprias, com freqüência, determinadas decisivamente por esses mitos e ideologias. Serão eles dignos de que, em seu nome, se condenem de novo à morte milhões de homens e se tornem inabitáveis enormes extensões da Terra? Permitam-me que diga duas palavras sobre a função destes mitos. Penso que eles se coadunam com o contexto destes dias comemorativos. Além disso, elas não serão inteiramente prescindíveis, caso se
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queira, como é minha intenção, falar um pouco sobre o futuro da Europa e, portanto, também, sobre o da República Federal. Antes de mais, algumas idéias quanto ao diagnóstico do nosso passado próximo. Tem-se dito de vez em quando, mas talvez valha a pena repeti-lo, que o terrível episódio do nacional-socialísmo só pode ser entendido no contexto duma situação social que sempre se nos depara no desenvolvimento das relações entre os Estados, bem como, em geral, entre unidades de sobrevivência relativamente autônomas. Repetidamente se verifica que semelhantes unidades de sobrevivência, sejam elas Estados ou tribos, se organizam, ao cabo de uma série de lutas, no sentido de uma hierarquia de status e de poder. No decurso duma série de lutas eliminatórias, dois ou três dos Estados envolvidos ascendem ao topo desta configuração de Estados como os mais poderosos e envolvem-se, então, a isso forçados pela própria configuração, numa luta entre si peia supremacia. O desfecho duma tal luta hegemônica pode ser muito diverso. Pode conduzir, como no caso das antigas cidades-estado gregas, a uma situação de empate. Nem Esparta, nem Atenas, nem Tebas ou Corinto alcançaram a hegemonia na respectiva esfera estatal pela qual tinham lutado. Já este exemplo, porém, mostra bem o caracter forçado da situação. Se, numa tal esfera, outros Estados se tornam mais fortes através de alianças ou da dominação sobre outros grupos humanos, então os Estados que não se tornam mais fortes ficam, obviamente, mais fracos. A história de Roma é um bom exemplo da ascensão dum poder hegemônico durante uma série secular de lutas eliminatórias. Roma é, também, um bom exemplo daquilo que eu gostaria de chamar a embriaguez hegemônica, o furor begemomalis, a febre da hegemonia. Se um Estado conseguiu vencer em lutas eliminatórias anteriores dois ou três concorrentes mais ou menos da mesma força e logros forçá-los a uma aliança ou a prestarem-lhe vassalagem, as suas camadas dirigentes são, quase invariavelmente, arrebatadas pela idéia de que para a sua segurança é necessário ser mais forte do que qualquer outro Estado à sua volta. A configuração que formam com outros Estados exerce constantemente sobre eles, em cada etapa da luta eliminatória, uma forte pressão no sentido de desafiarem qualquer possível adversário da mesma igualha e garantirem, com uma vitória sobre ele ou com a sua destruição, a segurança do seu próprio Estado. O que conduz então, precisamente, à afirmação da sua posição hegemônica face a Estados e a
tribos que se encontrem no seu horizonte e ao seu alcance, e à integração forçada destes em formações estatais sempre maiores. A Terra, porém, é demasiado vasta, e a humanidade é constituída por uma abundância demasiado grande de tribos e de Estados heterogêneos. Até hoje, todas as tentativas de um povo para alcançar a segurança absoluta através da hegemonia sobre todos os possíveis rivais acabaram por fracassar devido ao facto de, para além de cada fronteira alcançada por um Estado hegemônico - graças à derrota de cada um dos adversários que, eventualmente, poderia pôr em perigo a sua própria segurança -, aparecerem sempre novos grupos humanos, até então ainda não derrotados, que, por isso, representam para o povo conquistador uma possível ameaça às suas fronteiras e, assim, a sua segurança. O destino do Império Romano, progressivamente mais dilatado, mostra com muita clareza o caracter ilusório mesmo da mais bem sucedida série de lutas eliminatórias com possíveis rivais. Evidentemente, os Romanos tornaram-se incrivelmente ricos graças à longa série de guerras, na sua maioria bem sucedidas, bem como aos despojes de guerra, aos escravos, aos tributos ou às contribuições de povos subjugados e por fim integrados no Império Romano. Porém, no que diz respeito à segurança do seu Estado, foram confrontados com aquilo com que, nos tempos modernos, se deparou a todos os povos que se deixaram ganhar pela febre hegemônica. Descobriram que, para lá de cada fronteira que tinham alcançado através da derrota dum povo que, eventualmente, ameaçasse a segurança do seu Estado viviam povos ainda independentes e que representavam uma renovada ameaça à sua própria segurança, enquanto se não conseguisse chegar com eles, a quem porventura animaria o mesmo desejo de viver em paz, a um entendimento pacífico sobre relações de vizinhança. Um dos exemplos mais ilustrativos desta pressão de luta concorrencial entre unidades humanas de sobrevivência no sentido da dilatação ilimitada do respectivo espaço de dominação, e, assim, da formação de unidades de dominação sempre maiores sob a égide dum povo conquistador hegemônico, é o destino de Alexandre, o Grande. As luras eliminatórias das cidades-estado gregas entre si, apesar do perigo comum de serem conquistadas pelos reis persas, ficaram empatadas. O pai de Alexandre, Filipe da Macedónia, e depois o próprio Alexandre obrigaram, em parte pela persuasão, em parte graças ao seu poder militar superior, os Estados gregos, tão diferentes entre si pelo
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seu caracter nacional e pelas suas tradições, a submeterem-se à hegemonia macedónica e, assim, à unificação. Os exércitos gregos, reunidos sob o comando macedónico, viraram-se então contra aquela porência que havia séculos ameaçava de facto a segurança e a independência tanto das cídades-estado gregas como do reino macedónico e dos seus vizinhos tessálios e rrácios. Sob o cornando de Alexandre, os exércitos gregos invadiram os domínios senhoriais dos reis persas, como que em vingança pela constante ameaça e pelas invasões ocasionais dos Persas nos territórios dos povos de língua grega. No entanto, uma vez definitivamente derrotado o rei persa, Alexandre não se satisfez com o facto de, com a destruição do Império Persa e a edificação dum império unificado greco-persa, ter eliminado o perigo para os Gregos. Nos confins asiáticos do Império Persa, depararam-se-lhe povos que ainda não estavam submetidos ao seu domínio e que, por isso, representavam um perigo para as suas novas fronteiras. Depois de ter derrotado também estes povos e de ter assim alargado as fronteiras do seu império ainda mais para o interior da Ásia desconhecida, encontrou outros povos, do outro lado das novas fronteiras, que poderiam pôr em perigo a segurança do império. E, depois de também ter Vencido estes últimos, o processo repetiu-se. Alexandre esperava, manifestamente, através da sua marcha, atingir algures os confins da Terra ou, em todo caso, o fim do continente habitado pelos homens, o oceano que rodeava a Terra, garantindo, assim, ao seu império, uma fronteira absolutamente segura. Quando ele, levado por esta febre hegemônica — e certamente também por uma curiosidade toda pessoal, quase científica, por este vasto mundo desconhecido —, chegou à índia, os seus fiéis veteranos opuseram-se ao constante prolongamento da sua campanha de conquista. O sonhado oceano não estava à,vista, a fronteira absolutamente segura era inalcançável. Eles estavam fartos. Alexandre foi obrigado, depois de ter garantido a segurança de fronteiras tão dilatadas, a voltar para trás e a contentar-se em consolidar a organização do império gigantesco que ediflcara através de uma série de conquistas bem sucedidas. Recordamos o destino de Alexandre, neste contexto, como uma parábola. Na ânsia de chegar aos confins da Terra e, assim, encontrar a fronteira absolutamente segura do seu império, Alexandre reunira um vasto domínio que, muito provavelmente, em face do nível do saber de então, era demasiado extenso e povoado por demasiados povos para
que pudesse ser dirigido com eficiência e em paz a partir de um único centro, bem como defendido duradouramente de ataques exteriores. Existe uma relação muito estreita entre a grandeza do território conquistado e a população de um Estado governável a partir de um centro único e o respectivo nível do desenvolvimento do saber, de que dependem, entre outras coisas, o estado dos meios de comunicação e de transporte, da técnica física em geral, mas também das técnicas de administração, bem como a produtividade da agricultura. A grandeza e as fontes de poder do povo conquistador também têm nisso um papel importante. Talvez a desintegração do império de Alexandre pudesse ter sido retardada, se ele tivesse vivido mais tempo. No entanto, é improvável que pudesse ter sido impedida. O mesmo se aplica, mutaiu mutanãis, ao Império Romano. A conquisca deste império processou-se muito mais devagar do que a do império de Alexandre, e o seu declínio foi também lento. Todavia, a estrutura do desenvolvimento do Império Romano foi, em certo sentido, a mesma. Em primeiro lugar, aos Romanos também se deparou, em cada fase, uma potência rival que ameaçava a existência dos seus domínios. Finalmente, também eles, na sua embriaguez hegemônica, chegaram ao ponto de considerar qualquer grupo ainda independente, situado para lá das fronteiras por eles sucessivamente alcançadas, como um perigo para a segurança dos seus domínios, a eliminar através de uma campanha militar e de uma conquista. As tribos celtas independentes da Gália representavam uma ameaça para o território até então conquistado pelo Estado romano na Península Itálica. Por isso, toda a Gália teve de ser conquistada e submetida à dominação romana. Algumas tribos celtas da Bretanha prestaram auxílio as tribos gaulesas durante a sua resistência contra Roma. Logo, a Bretanha teve de ser conquistada. Já nas Ilhas Britânicas, tornou-se necessário defender o patrimônio romano das tribos selvagens do Norte. Até à época de Trajano, prosseguiu a dilatação do império sob o estímulo da ameaça constante. Ele consolidou o Danúbio oriental como fronteira do império e repeliu ainda as tribos rebeldes do Norte dos Bálcãs para lá do Danúbio. No entanto, já no tempo de Marco Aurélio os Marcomanos e outras tribos atravessaram o Danúbio, penetraram profundamente no território do império e só com grande esforço puderam ser repelidos. Seguindo as pisadas de Alexandre, Trajano procurou estancar a ameaça que representavam para o império os sucessores dos Persas, os Partos, e sofreu uma derrota devastadora.
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O império gigantesco desmoronou-se tão gradualmente quanto os Romanos o tinham edificado. Já o imperador Diocleciano reconheceu que o império de então era demasiado extenso para poder ser eficientemente administrado, pacificado e defendido de inimigos externos, a partir de um único centro. Ele próprio entregou Roma, onde raramente pôs o pé, enquanto capital do império ocidental, a um imperador adjunto, e limitou-se, tanto quanto possível, à governação das províncias orientais do império. Constantino transferiu depois, oficialmente, a capital imperial para Bizâncio, cuja situação à entrada do Bósforo, juntamente com as fortificações necessárias, conferia doravante à capital do império um grau de segurança contra os inimigos externos impossível de encontrar na velha Roma, mesmo com as melhores fortificações. Roma é um exemplo, extraído da Antigüidade, de um Estado cujos grupos dirigentes — primeiramente, por uma exigência de segurança e de integridade físicas, depois levados cada vez mais por um sentimento de superioridade e de invencibilidade — são impelidos» sucessivamente, para novas lutas com Estados rivias, eventualmente ameaçadores, ou então com tribos que lhes parecessem perigosas. Eles são impelidos de uma guerra para outra, de conquista em conquista, até uma derrota os deter ou uma nova expansão do seu campo de soberania ameaçar com a ruptura os seus recursos militares e econômicos, fazendo assim, talvez, perigar o controlo das áreas até então conquistadas. Para a sua ascensão de pequena cidade-estado até se converter no centro de um império mundial, o maior da Antigüidade, Roma precisou de uns bons quinhentos anos de guerras eliminatórias. A derrota na floresta de Teutoburgo impediu a expansão do Império Romano até ao Elba a decidiu a sua limitação às fronteiras do Reno e do 'Danúbio. É difícil dizer como é que tudo acabaria se os Romanos lograssem estender o seu domínio aos territórios a norte do Danúbio, até ao mar Báltico e até ao Elba. Há muitos exemplos posteriores de lutas hegemônicas deste tipo. Houve, por exemplo, a luta pela hegemonia entre a Suécia e a Rússia, ou a luta entre os Habsburgos e os Bourbons, numa altura em que os grupos de Estados do Norte e do Sul da Europa, em conformidade com o nível dos armamentos e dos meios de transporte e do conjunto das técnicas organizatívas, ainda formavam duas hierarquias de poder e de concorrência relativamente independentes. Na época da Guerra dos
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Trinta Anos, as duas hierarquias de Estados começaram a fundir-se uma na outra e o império alemão tornou-se no teatro das guerras de ambos. A França foi a primeira a ascender à posição de mais forte poder militar, alcançando, assim, uma posição hegemônica entre os Estados do continente europeu. Napoleão faria, mais tarde, com o seu exército revolucionário, a última tentativa para unificar a Europa sob a hegemonia francesa. A tentativa fracassou devido, em larga medida, a uma política muito coerente da Grã-Bretanha em relação a todas as tentativas de unificação dos Estados do continente europeu. A Inglaterra ocupou um lugar especial neste jogo terrível das lutas européias pela hegemonia. Os Ingleses, na sua ilha, nunca procuraram exercer a hegemonia sobre a Europa, e também não estavam em situação de a obter. Em vez disso, seguiam a célebre política do equilíbrio de poderes, que começou por se impor aos estadistas ingleses em cada caso concreto, mas que se transformaria depois numa espécie de princípio teórico. A Inglaterra considerava ser seu interesse vital impedir por meios diplomáticos e, se necessário, militares que uma única potência continental obtivesse a hegemonia sobre todos os outros Estados do continente. Assim, aliava-se sempre à segunda potência mais forte, para impedir a vitória do pretendente mais poderoso da altura à hegemonia sobre a maioria dos outros Estados continentais, bem como a unificação deste pela força. E, deste modo, vendo as coisas pelo outro lado, nunca se alcançou a unificação da Europa. Esta foi uma das razões mais importantes pela qual a Europa não foi unificada pela força, nem sob a hegemonia da França nem, mais tarde, da Alemanha.
5 Os pormenores das subsequentes lutas hegemônicas européias são suficientemente conhecidos. No entanto, a estrutura destas lutas hegemônicas, a sua dinâmica específica, o seu variável automatismo nem sempre são hoje, segundo me parece, pensados com aquele rigor conceptual que tão útil é à compreensão de tais fenômenos, tanto no passado como no presente. Sob a liderança de Bismarck, o reino da Prússia conquistou a hegemonia dentro do império alemão dividido através de uma luta eliminatória com a monarquia austríaca. Os Habsburgos, dantes imperadores do grande império alemão, retiraram-se da confederação de Estados alemães com todos os seus domínios dinásticos. Num império alemão tão reduzido, a Prússia, enquanto potência militar mais forte desse império, foi-se guindando, sempre mais inequivocamente, a uma posição de hegemonia. Em correspondência com a dinâmica imanente às lutas eliminatórias entre Estados, ao império alemão, agora sob a liderança da Prússia, oferecia-se, assim, a oportunidade duma luta concorrencial com o mais forte poder militar da Europa continental - a França. Os pormenores históricos são, para o caso, secundários. Basca mostrar a coerência da dinâmica do desenvolvimento das relações entre os Estados. Correspondeu perfeitamente à tradição até agora vigente o facto de a federação de Estados alemães, agora fortalecida pela liderança militar e econômica da Prússia, não ter começado por promover, no seu interior, uma maior unificação e integração dos Estados alemães, antes preferindo desafiar o império francês. O esforço da França para alcançar uma posição hegemônica da Europa fracassara devido à vitória da Inglaterra
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e dos monarcas absolutistas coligados do continente europeu sobre os exércitos revolucionários de Napoleão. Agora, porém, um novo Napoleão reinava como imperador dos Franceses e como símbolo vivo da tradicional posição hegemônica da França no continente europeu. Os homens de Estado do império inglês — envolvido desde há séculos, dentro e fora da Europa, numa luta concorrencial com o poder continental mais forte, com o seu inimigo hereditário, a França - tinham visto geralmente a ascensão da Prússia com bons olhos. Como sempre, simpatizavam com a segunda mais forte potência do continente. Ela era-lhes bem-vinda como contrapeso às pretensões hegemônicas da França. No entanto, a Alemanha saiu unida e fortalecida, enquanto império, da guerra de 1870/71, e a França, pelo contrário, enfraquecida. Assim, o equilíbrio de poderes na Europa alterou-se. É um pouco assustador ver a precisão com que os estadistas fazem as jogadas que lhes são sugeridas por uma tal modificação da estrutura das relações entre os Estados. Para as camadas dirigentes alemãs, não foi suficiente terem alcançado, finalmente, a unificação estatal e a paridade com os velhos grandes Estados europeus, acompanhados de um desenvolvimento econômico acelerado. Surpreendentemente depressa, no decorrer de menos de trinta anos, desenvolveu-se também, em largas camadas da nobreza e da burguesia alemãs - para o que não terá contribuído pouco a liderança ainda fortemente autocrática de um novo imperador alemão -, a partir da exigência de paridade com as outras grandes potências européias, agora satisfeita, a pretensão a uma hegemonia entre os Estados da Europa. «A Alemanha à frente!» «A segurança da Alemanha exige o exército mais forte e, sobretudo, também uma armada que seja tão forte e, se possível, ainda mais forte do que a inglesa.» Não posso traçar aqui em pormenor a dinâmica social que sempre conduz os Estados a passarem da exigência de liberdade em face da hegemonia de outros Estados e da igualdade perante eles à pretensão a serem mais fortes do que todos os outros e a alcançarem a hegemonia sobre eles - numa palavra, que os conduz a uma luta pela hegemonia que, mais cedo ou mais tarde, acabará sempre por ter de ser decidida pela força das armas. Todavia, a regularidade, digo-o mais uma vez, com que os Estados, e talvez já antes as unidades de sobrevivência pré-estatais, se envolvem, se de qualquer modo o podem fazer, em lutas eliminatórias pela hegemonia é, se a observarmos ao longo de milhares de anos, precisamente nestes dias, um tanto assustadora.
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No caso da Alemanha, acrescentava-se o facto de muitos dos seus cidadãos terem sofrido com a situação decorrente da multiplicidade e da pequenez dos respectivos Estados, bem como com a fraqueza tantas vezes humilhante da Alemanha no concerto dos Estados europeus. O sentimento nacional, talvez exacerbado à sombra da grandeza passada, foi durante muito tempo ofendido e ferido. Logo após a unificação do império, certamente já nas últimas décadas do século XIX, ele começou a transformar-se no oposto. O pêndulo oscilou para o outro lado. Em vez da consciência nacional humilhada, surge agora, sob múltiplas formas, uma consciência nacional que excede em muito a realidade. O exagero da autovalorização nacional nos tempos do Kaiser ainda não ia tão longe quanto o mito da raça de senhores dos tempos de Hitíer. No entanto, a embriaguez com a imagem da própria grandeza, que se podia encontrar na Alemanha da época do Kaiser, portanto, antes da Primeira Guerra Mundial, foi, certamente, uma forma precursora da embriaguez desmedida dos tempos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Como esta última, embora ainda não nas mesmas proporções, o reforço do sentimento nacional na época do Kaiser fez-se acompanhar de um notório crescimento do anti-semitismo. A imagem ainda não estabilizada e, por isso mesmo, muito exagerada do valor da própria nação, e, também, do próprio indivíduo, encontrou a sua formação numa contra-imagem, na imagem do grupo minoritário mais visível do império do Kaiser, os Judeus, cuja perversidade e inferioridade ilimitadas deveriam fazer sobressair, por contraste, a grandeza e o valor superior dos Alemães. O período antes da Primeira Guerra Mundial foi, também, um período de corrida aos armamentos. Também neste caso, as potências dominantes se envolveram reciprocamente numa corrida aos armamentos que tornava sempre mais próximo o perigo de um conflito bélico. Depois da fundação do império do Kaiser, os Ingleses compreenderam bastante depressa que o seu inimigo figadal, agora, já não era a França, mas sim o império alemão, que constituía o poder militar mais forte do continente; e as palavras do Kaiser, as vozes dos pangermanistas e de muitos outros grupos nacionalistas mostravam bem claramente que se reclamava para a Alemanha uma posição hegemônica na Europa. Mais uma vez em perfeita correspondência com a dinâmica das coníiguraçoes entre Estados, a rápida embriaguez hegemônica da Alemanha conduziu a uma aproximação e, finalmente, a uma aliança entre a
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Inglaterra e a França. A Inglaterra reivindicava a hegemonia no mar, e os seus estadistas não permitiam a ninguém duvidar de que qualquer ameaça a essa hegemonia conduziria à guerra. No entanto, o imperador da Alemanha, em colaboração com o almirante Tirpitz, dedicou grande parte da sua considerável energia a igualar o potencial militar da marinha de guerra alemã ao da inglesa. Camadas dirigentes cegas pela embriaguez da hegemonia! Vendo as coisas com realismo, era seguramente uma imprudência fazer da Inglaterra um inimigo. De facco, pode talvez dizer-se que isso foi o princípio do fim do império alemão. Quando hoje olhamos para esta época anterior à Primeira Guerra Mundial, temos uma imagem particularmente impressionante de como é difícil, não só naquele tempo mas na generalidade dos casos, para os governantes e os governados, que são arrastados para a guerra envoltos no manto protector dos respectivos mitos nacionais, fazerem uma idéia de algum modo ajustada à realidade do possível curso da guerra e das suas próprias possibilidades de vitória. Eles, sobretudo, dificilmente serão capazes de imaginar o aspecto que o seu país e a humanidade em geral terão depois da guerra. De facto, é como se nos tempos anteriores a guerra de 1914 o mito nacional e a embriaguez de hegemonia que ele despoletou — parafraseando a conhecida expressão do «sonho americano», poderia dizer-se «o sonho alemão» — tivessem lesado fortemente o sentido da realidade dos responsáveis militares e políticos da altura pelo destino alemão, mas também, muitas vezes, o das camadas dirigentes inglesas, francesas e russas. Igualmente na véspera da Segunda Guerra Mundial, deparam-se-nos, entre homens em posições de chefia, como Hitler, Chamberlain, Pérain e mesmo Estaline, perdas semelhantes do sentido da realidade, com perturbações desse sentido devido às próprias ilusões. As camadas dirigentes da Alemanha do Kaiser não faziam, manifestamente, uma idéia clara do que poderia significar para o decurso da guerra a possível — e, em face da ofensiva alemã, provável — entrada dos Estados Unidos na guerra. Sociologicamente impreparados, não faziam, certamente, urna idéia das possíveis e talvez prováveis conseqüências sociais de uma guerra. Bismarck tinha uma idéia definida de que a política externa alemã necessitava de um cuidado especial para evitar que a Alemanha, enquanto «país do meio», se visse envolvida numa guerra em duas frentes, ou seja, a oeste e a leste. Ele entendia mesmo que a solidariedade lingüística e histórica da América com a Inglaterra, e assim, tam-
bem, a sua posssível intervenção numa guerra ao lado da Inglaterra, poderia ter uma influência decisiva no equilíbrio de poderes na Europa. A Guilherme II e aos seus conselheiros faltava, manifestamente, este sentido da realidade. Pode parecer estranho dizer-se isto do representante duma velha linhagem aristocrática - mas o certo é que este imperador tinha algo de arrivista, como, aliás, Hitler, que o era de facto. O Kaiser ajustava-se a uma época em que o ouro velho e a sólida patina do antigo povo civilizado tinham sido reiteradamente ultrapassados pela ascensão da nova riqueza, em conseqüência das rápidas industrialização e modernização. Face ao velho imperador, ao avô, que ainda se mantivera aferrado à simples tradição militar da nobreza prussiana, o neto encarnava a nova mentalidade arrivista, que encontrava representantes por todo o país. Os novos alemães de então falavam alto, eram fanfarrões, enérgicos e brutais.
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E não estavam sozinhos. Na Inglaterra, manifestavam-se tendências análogas. No entanto, ali, tal era designado com uma palavra algo ridicularizadora —jingoism: We don't want tofight; but, byjingo, ifwe do! A Grã-Bretanha tivera um desenvolvimento do Estado bem menos acidentado do que a Alemanha. Os Britânicos de então tinham o seu lugar ao sol e estavam muito seguros do seu próprio valor. Em França havia grupos bastante activos que reclamavam uma desforra da derrota de 1871. Havia monárquicos inteligentes que advogavam a restauração da Grande França mediante o reatar da velha e gloriosa tradição monárquica francesa. A febre hegemônica alemã revestia-se de um tom peculiar, talvez, entre outras razões, porque para os Alemães se tratava de uma coisa nova. Isto tornou o avanço da Alemanha em direcção a uma posição de hegemonia, para além da paridade com as outras grandes potências européias, particularmente arrebatador. E sobejamente conhecido como muitos milhares de jovens, quando a guerra esperada veio por fim em Agosto de 1914, marcharam cheios de entusiasmo para o campo de batalha. No entanto, os militares de ambos os lados tinham-se enganado nos cálculos. Como se sabe, eles haviam especulado sobre uma guerra curta, na base de um poder militar muito concentrado, que acabaria numa vitória rápida e esmagadora. De uma maneira geral, a imagem de guerra que se tinha à frente dos olhos era a da guerra de 1870/71. Ao embate das duas massas de exércitos inimigos, sucedeu o
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martírio da extenuante guerra de trincheiras. Todavia, o sentimento de que a Alemanha estaria predestinada para a vitória não se desvaneceu imediatamente. «Venceremos, porque temos de vencer», dizia cada um para si. Não é de todo inútil recordarmos a aparente segurança fornecedora de certezas deste mito social. Se não levarmos em consideração a certeza absoluta na vitória que tinham largas camadas dirigentes aristocráticas e burguesas no ano de 1914 e ainda em 1915, não poderemos entender a reacção destas camadas à derrota de 1918. Aqueles grupos da burguesia e da aristocracia particularmente atingidos pela embriaguez da hegemonia, e que mesmo quando a derrota já estava próxima ainda reclamavam a anexação de territórios econômica e estrategicamente importantes da Bélgica e, talvez até, da França, nunca tinham sequer considerado a possibilidade de um desastre. O mito da vocação natural da Alemanha para a grandeza estava profundamente arraigado em muitos espíritos. Por fim, quando aconteceu, a derrota era incompreensível. As pessoas negavam-na. Não fora propriamente uma derrota. A Alemanha tinha sido traída. Uma punhalada nas costas, sobretudo por parte do operariado (e talvez também dos judeus), tornou impossível aos soldados da frente impedir a ruptura das linhas pelo inimigo. Desejaríamos às gerações de hoje que tivessem experimentado a firmeza de convicção com que muitos homens, naquele tempo, para se enganarem, para ocultarem de si próprios a embriaguez hegemônica subjacente, acreditavam na lenda da punhalada, por forma a que vissem como uma tal embriaguez pôde arrebatar tantos homens, também na Alemanha. Já referi, noutro contexto, que, se os mitos desapareceram em larga medida devido ao saber sobre a natureza, já o conhecimento dos acontecimentos sociais ainda está muito impregnado de mitos. A célebre lenda da punhalada é um exemplo do papel e da função dos mitos na vida social dos homens. A lenda pode ter sido posta conscientemente em circulação pelos homens, porque a idéia de uma derrota lhes era insuportável. O encobrimento da realidade assim provocada, tenha ele sido posto em circulação pela astúcia propagandística de círculos nisso interessados ou não, correspondia a uma situação emocional que já estava presente em largos círculos da nobreza e da burguesia alemãs enquanto força determinante da acção política. Esta situação emocional explica a disposição para acreditar no apunhalamento; explica a
receptividade a mitos sociais mais globais, de que a lenda da punhalada foi um primeiro ensaio. Em íntima ligação com a embriaguez hegemônica que, numa situação determinada, se pode propagar a vastas camadas de um povo encontram-se, normalmente, fantasias colectivas, segundo as quais o povo a que se pertence e, assim, o próprio indivíduo estão destinados à grandeza - o que significa, habitualmente, à dominação de todos os outros povos à sua volta -, seja por ordem divina, seja pela história ou pela natureza. A luta pela hegemonia sobre outros povos encontra uma legitimação na crença numa missão desse povo entre os outros povos. Em tempos passados, esta crença na missão de um povo como justificação da guerra de conquista tinha, normalmente, um caracter religioso. A embriaguez hegemônica dos Árabes encontrou a sua expressão na crença na missão das tribos árabes de lutarem pela expansão da doutrina de Maomé; a dos cruzados, na fé na missão de lutarem pela propagação da doutrina de Cristo e, particularmente também, pela libertação da Terra Santa do domínio dos infiéis. Em tempos mais recentes, Franceses e Ingleses justificaram a extensão da sua hegemonia a povos de outros continentes através da respectiva missão na qualidade de representantes da civilização. E, nos nossos dias, tendências missionárias semelhantes desempenham novamente um papel na luta hegemônica entre a União Soviética e os Estados Unidos. Faz parte das características da tardia pretensão hegemônica alemã o facto de, tanto quanto o podemos observar, a sensibilidade dos seus representantes dispensar qualquer justificação através de uma missão objectiva, de uma tarefe impessoal. A conversão ao islamismo levantou uma barreira às carnificinas das campanhas de conquista árabes. A luta de Napoleão pela unificação da Europa sob a hegemonia da França ligou-se, inicialmente, a uma luta pelos ideais da Revolução Francesa, mais tarde, a uma luta contra o velho absolutismos não esclarecido e a favor do absolutismo esclarecido, que teve a sua expressão no Código Napoleómco. Depois de 1870f a luta da Alemanha por uma posição hegemônica entre os Estados europeus foi entendida pelos seus representantes, pelo que se me afigura, em maior medida que a de Napoleão, sem a idéia de uma missão objectiva, antes, directamente, como uma luta pelo poder. O que estava, talvez, ligado ao facto de os Alemães terem sofrido, nos séculos da sua impotência política e militar e, particularmente, durante a Guerra dos Trinta Anos, as conse-
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quências do poder mais forte dos outros Esrados num grau muito superior aos outros povos europeus. O que, no encanto, conduziu a que a ambição de alcançar o poder por todos os meios parecesse a muitos alemães uma coisa justificada. Recordo-me de que já em tempos anteriores a 1914 se ouvia expressões do gênero: «O palavreado sobre a humanidade é um disparate. O que interessa na política externa de um Estado e na política interna das classes e dos partidos é, simplesmente, o poder.» Esta nudez na ambição de poder por todos os meios criou uma certa cegueira em relação ao facto de, ao primado indubitável da luta pelo poder na política dos Estados mais velhos e, se se pode dizer assim, nacionalmente mais saciados, serem impostas determinadas barreiras por uma mais ou menos sólida educação de consciência nacional. Já no tempo do imperador Guilherme II e, depois, de uma forma mais desenvolta, no tempo da República de Weimar, nos círculos que se denominavam a si próprios «círculos nacionais», foi rejeitada a idéia de que pudessem existir restrições civílizacionais, fronteiras da consciência em relação à ambição de poder no interesse nacional. Como testemunho da mentalidade do período imperial, ficou-nos na memória a expressão «sonolência humanitária». Não era necessária nenhuma legitimação — a Alemanha queria, simplesmente, como se dizia, ter o seu «lugar ao sol». O mito nacional-socialista desenvolveu esta atitude fundamental, já rnuito difundida entre os círculos «nacionais» durante o último imperador, num sistema de crenças que, em conformidade com a estrutura democrática da República de Weimar, pudesse encontrar ressonância em largas camadas populares. E possível que não se tenha dedicado tanta atenção quanto a devida à característica ruptura com a tradição burguesa alemã verificada depois de 1870. No período do absolutismo pré-revolucionário, as figuras mais representativas da burguesia alemã tinham desenvolvido uma tradição cultural, em que os ideais do humanismo desempenhavam um papel central. No Segundo Império, e particularmente durante o terceiro e último imperador, os expoentes desta tradição, que sem dúvida ainda existiam, foram gradualmente postos à margem no seio da burguesia, passando cada vez mais para o primeiro plano - talvez sob a pressão de assegurar a grandeza da Alemanha e, se possível, a sua hegemonia sobre os povos da Europa — um nacionalismo anti-humanitário, sem escrúpulos de consciência.
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Já falei do choque que representou a derrota de 1918. Muitos alemães, sobretudo jovens oficiais e estudantes, sentiram a capitulação como um atleta que, em plena corrida, embate subitamente num muro. Eles estavam absolutamente convencidos de que a Alemanha se achava predestinada para a guerra. Esta crença tinha para muitos alemães a mesma certeza que para outros tem uma fé religiosa. Até ao último momento, eles não duvidaram da vitória final. De súbito, tudo acabou. Nesta situação, a idéia de que só uma traição, uma punhalada pelas costas, podia explicar a derrota da Alemanha era redentora. Assim armados, podiam dedicar-se de novo a conduzi-la ao seu destino histórico, à sua grandeza, enquanto potência hegemonia natural da Europa. A tarefa, nos seus traços mais gerais, era perfeitamente clara para muitos oficiais, acadêmicos, industriais e muitos outros, desde o dia da conclusão da paz em Versalhes. Estava em jogo libertarem-se das cadeias deste acordo, procederem ao rearmamento, repararem a derrota da Alemanha, provocada pela traição, através de uma vitória definitiva e, assim, reconduzi-la ao seu destino histórico. Não vou investigar aqui porque é que estes objectivos, que logo após a conclusão da paz já se achavam bem definidos entre os denominados «círculos nacionais», só puderam ser seriamente promovidos por Hícler e Hindenburgo, cerca de doze anos mais tarde, no contexto de uma grave crise econômica. Não faltam, porém, provas documentais da fixação precoce destes objectivos, nem de que as intenções de Hítler iam indubitavelmente nessa direcção. Ele ficaria certamente satisfeito se fosse possível alcançar na Europa uma posição hegemônica para a Alemanha sem recorrer à guerra. No entanto, era perfeitamente evi-
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dente que não hesitaria em declarar a guerra, fazendo entrar em acção o novo exército alemão entretanto fortalecido, a qualquer Estado que se atravessasse no caminho da Alemanha para a posição de grande potência. Os serviços de informação dos aliados ocidentais, bem como os de Estaline, não poderão ter feito um bom trabalho, ou, então, não encontraram audiência. Como se poderá explicar de outro modo que tanto Chamberlain como Estaline, segundo parece, acreditassem realmente que podiam, através de acordos e sempre mais concessões, impedir Hitler e os seus de compensarem a derrota de 1918 com uma guerra vitoriosa? Se observarmos mais atentamente, descobriremos, também aqui, a cegueira peculiar dos homens que conduzem os destinos dos povos. As muitas concessões que foram feitas a Hitler, as conquistas que ele conseguiu sem disparar um único tiro de canhão, contribuíram, apenas, pelos vistos, para nele reforçar a certeza mágica de que também ganharia uma guerra. Olhando para trás, reconhecemos nitidamente o enorme esforço que foi exigido a todo o povo alemão para se manter pronto e apto para a guerra. Hitler vivia, mais do que talvez se tenha notado, num mundo semimítico. Um raro talento para ver com realismo as correlações de poder entre os Estados e no interior do Estado ligava-se, nele, a um receio mágico de inimigos internos, que, muitas vezes, exagerava hiperbolicamente o perigo real. Uma organização e uma vigilância extremamente eficazes e, como dantes se dizia, altamente racional e realista da totalidade do povo encontrou a sua legitimação na certeza mágica de que este povo estaria predestinado por um destino indefinido — pela natureza? — a ser o Povo de Senhores da Europa, se não do mundo inteiro. Como ele procedia com aqueles que o seu mito estigmatizava como inimigos é sobejamente conhecido, mas talvez seja útil chamar a atenção para a ligação com o traço caracterial da época do Kaiser, a que acima me referi. Falei da ambição de alcançar a supremacia sem escrúpulos de consciência e sem outra legitimação que não fosse o destino histórico e o valor transcendente do próprio grupo. Nas declarações da época do Kaiser, encontram-se abundantes referências de que, para muitos membros daqueles círcuíos que se consideravam «nacionais», o próprio facro de ser alemão representava o valor supremo. O mito nacional-socialista da Raça de Senhores alemã prolongou em linha recta a tradição imperial, numa forma mais adequada à popularização e
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mais elaborada enquanto sistema de argumentação. Os indivíduos de raça germânica eram chamados pela natureza e pela história a constituir um escol de senhores, uma espécie de aristocracia da humanidade. As outras raças, sobretudo os Judeus e os Negros, eram inferiores e, por isso, inimigos naturais. O melhor seria exterminá-los. Aquilo cuja recordação, ainda hoje, deixa muitos homens preocupados é o íacto de, entre os Alemães, ter revivido um mito que não só contrariava os principais esforços da nossa época por uma maior igualdade entre os homens na Terra como, indo mais longe, com base na referência ao valor superior do próprio grupo, instituía a desigualdade entre os homens como um valor em si. A humanidade desenvolvera-se a muito custo até um ponto em que, embora ainda existissem de facto desigualdades gritantes entre diferentes grupos, a igualdade existencial e a paridade social eram largamente reconhecidas como o verdadeiro objectivo a atingir. Este trabalho de gerações era, agora, explicitamente refutado. Além disso, o que, na nossa memória, torna o nacional-socialismo, ainda hoje, tão intolerável não é simplesmente a brutalidade dos seus representantes. Brutalidades de toda a espécie são, no nosso mundo, uma coisa trivial. O que ainda hoje assusta é, por um lado, a edificação minuciosa, quase racional ou realista, de uma grande organização e da utilização de tecnologias científicas e, simultaneamente, a neutralização e a anulação radicais da consciência face ao sofrimento e à morte de milhões de homens, mulheres e crianças - de seres humanos que não representavam qualquer perigo para o grupo dominante, que não possuíam quaisquer armas e que foram chacinados pior do que reses num matadouro, de uma maneira abominável.
Gostaria muito de poder dizer que tudo isto, que os horrores do tempo de Hitler e da Segunda Guerra Mundial estão agora, passados quarenta anos, mais ou menos esquecidos. Eles não estão, porém, esquecidos. A recordação de Hitler e da grande matança acha-se ainda extremamente viva por toda a Terra, em muitos grupos de homens, como símbolo de algo extremamente sinistro, e há poucas perspectivas de que a recordação do domínio de Hitler e dos muitos milhões de homens que, de todos os lados, perderam a vida em conseqüência das suas decisões desapareça num futuro previsível da memória da humanidade. Hoje, choramos estes mortos — eu, sobretudo, os meus, outros, os seus. Eles não foram esquecidos. Este dia do quadragésimo aniversário da conclusão da paz é um dia em que nos propomos tudo fazer para que, dentro de oitenta anos, possamos comemorar o mesmo dia em pa2, como um dia de festa. Mas não se trata de um dia do esquecimento. Não se presta ao povo alemão um bom serviço quando se pretende que, agoraf com a celebração conjunta por todos os povos beligerantes do dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou, também a própria guerra e a grande matança a ela ligada se acham esquecidas. Eu sei que há muitos alemães que dizem: «Eu não quero ouvir falar mais de tudo isso.» Esse é, porém, o caminho errado. Hitler e os seus actos não desaparecem da memória da humanidade pelo facto de não se falar mais deles. A forte tendência para vencer o passado reprimindo-o tem como conseqüência, segundo me parece, o não se conseguir vencê-lo. A maioria dos alemães hoje vivos não teve nada a ver com Hitler ou com os nacionais-socialístas. Todavia, é um equívoco acreditar que a incri-
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minação do nome alemão através da memória da época hitleriana possa ser dissipada pelo facto de muitos alemães de hoje, enquanto indivíduos, nada terem a ver com os accos dos nacionais-socialistas. O que acontece é que todos os homens transportam consigo, no seu habitas pessoal, particularidades do babítus do seu grupo, e que o destino de cada homem singular é determinado também pelo destino e pela reputação dos grupos a que ele ou ela pertencem. Eu sei demasiado bem em que medida o meu destino pessoal foi determinado por eu ser tanto alemão como judeu. Como judeu, tive de abandonar a Alemanha. Porém, ao seguir para o exílio na França e depois na Inglaterra, fui internado como alemão, juntamente com outros alemães, em Inglaterra, depois do avanço dos grupos de exército alemães no Ocidente e o correspondente aumento do receio de uma invasão. Ainda me recordo nitidamente de como o comandante inglês do campo de concentração nos reuniu, um dia, com a intenção expressa de nos alegrar, comunicando-nos para tanto a novidade, em seu entender muito feliz para nós, de que as tropas alemãs teriam tomado Paris. Não foi possível fazer entender aos Ingleses que, para nós, isso não era uma notícia feliz, visto, assim, aumentar o perigo de invasão. Simultaneamente, porém, os nacionais-socialistas internados no campo de concentração procuravam explicar aos judeus alemães, com os olhos brilhantes de alegria, aquilo que as tropas de Hitler fariam com eles, caso lograssem invadir a Inglaterra. Talvez elas até decidissem vir primeiro à ilha de Man, onde se encontrava o campo de concentração, para começar aí a limpeza. Posso apenas fazer uma pequena idéia do que tiveram de sofrer os meus antepassados devido ao facto de os seus antepassados, séculos antes, terem sido presumivelmente responsáveis pela crucificação de Cristo. Que o destino e a reputação individual de cada homem sejam, em larga medida, determinados pelo destino e pelo prestígio de grupos - e na nossa época, particularmente, pelo destino e prestígio dos Estados, das nações, a que pertencem os indivíduos - é, pura e simplesmente, um facto, um aspecto do mundo dos homens. Não se trata de saber se isso é bom ou mau; é assim que acontece. Em conformidade com isto, sinto muitas vezes, quando amigos e conhecidos meus cristãos me demonstram com toda a seriedade que nunca tiveram nada a ver com o nacíonal-socialismo, a inutilidade dos seus esforços. Eles têm toda a minha simpatia, mas sei, também, que eles não estão a ver o principal
da questão. A maldição deste passado alemão recente não é superável através de meras referências à inocência ou à cumplicidade de indivíduos singulares. Trata-se de um problema do destino social dos Alemães e, muito particularmente, da sua identidade nacional. Esta foi manchada por barbaridades, que não são fáceis de afastar da memória dos homens. Isto é assustador e aflitivo, pois o número de jovens alemães, que, de facto, não têm absolutamente nada a ver com Hitler e as suas hostes cresce constantemente. E, no entanto, também pesa sobre eles a memória deste passado colectivo da nação. Permitam que me detenha um momento para vos dizer que, se me esforço por desvendar esta realidade, não é porque tenha censuras ou acusações em mente. Nada está mais longe de mim. Falo, um pouco, à maneira de um médico. A participação do indivíduo no destino e na reputação do respectivo grupo é, como já foi referido, um facto. Faz parte do destino dos homens, é um aspecto da conditio humana. Nada mais perigoso do que o pendor para evitar uma tal realidade pelo encobrimento ou pelo recalcamento. Só olhando-a de frente, com toda a coragem e dererminação, podemos colocar-nos a questão: que fazer em tal situação? E esta é, de facto, a questão decisiva. A identidade nacional dos Alemães foi manchada. Os alemães ocidentais têm a possibilidade de discutir abertamente esta questão. Não creio que o modo como os alemães orientais procuram ultrapassar o problema possa ter êxito. Eles parecem actuar segundo a máxima: «O nosso fato velho tem nódoas. Então, façamo-lo desaparecer e vistamos um novo.» Não estou totalmente certo de, neste contexto, poder dizer muita coisa sobre as tarefas que se impõem quando se coloca o problema da maneira como eu o tentei colocar. No entanto, talvez seja útil esboçar mais claramente o problema em causa através de uma comparação. Trata-se, sem dúvida, de um problema ttágico. Por acaso, tive há pouco tempo ocasião de reler a tragédia de Sófocles Edipo Rei. Uma grande desgraça, uma peste, abateu-se sobre o povo de Tebas. O rei Édípo fala ao seu povo. E fala-lhe com um calor, com uma simpatia que comovem o leitor duma maneira particular, talvez porque eles estejam, muitas vezes, totalmente ausentes das relações contemporâneas entre dirigentes e dirigido. «Meus filhos», é assim que Edípo trata os Tebanos reunidos. Ele diz-lhes que partilha as preocupações deles e que tudo fará para descobrir porque é que os deuses condenaram Tebas à maldição da peste. Gradualmente, torna-se evidente que o
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culpado é ele próprio. Ele próprio, sem o saber, assassinou o pai e casou com a mãe. Sófocles torna bem claro que Édípo cometeu este crime odioso com toda a inocência. Ele não sabia que o ancião que o desafiou, e que ele acabou por matar, era o seu pai. Não sabia que a mulher, com quem acabou por casar era a sua mãe. Pior ainda: os deuses, na sua arbitrariedade incompreensível, tinham imposto a Edipo, enquanto membro de uma família maldita, este mesmo destino já antes do seu nascimento; eles haviam predeterminado que ele seria o assassino do pai e o marido da mãe. Inocente, ele tornou-se culpado por decisão dos deuses, como castigo por um delito que os seus antepassados tinham cometido. O manchar do bom nome dos Alemães pela desumanidade do Terceiro Reich não assenta numa maldição dos deuses. Os diferentes grupos de povos da Terra têm imagens colectivas mais ou menos exactas uns dos outros. A imagem colectiva dos Alemães na memória de outros povos, e talvez na sua própria memória, foi manchada pelo Terceiro Reich. Noutros países, as vozes da recordação deste passado tornaram-se menos audíveis. A República Federai muito fez para que isso fosse possível. O regime parlamentar, antes odiado e combatido pela maioria dos alemães, funciona muito bem. O «milagre econômico» contribuiu muito para fortalecer a autoconfiança dos alemães federais. E foi também graças à prosperidade econômica que a Alemanha se tornou para outros países um aliado e um parceiro bem-vindo, em especial no caso dos países menos desenvolvidos da África e do resto do mundo. Todavia, a questão sobre que gênero de tradições nacionais e, principalmente, que características do caracter nacional alemão tornaram possíveis as barbaridades do Terceiro Reich, assim como a outra questão sobre se esta tradição nacional poderá de novo prevalecer, não se tornou, decerto, ociosa.
O problema de que aqui se trata será mal entendido, se for apresentado como um caso de culpa colectiva. O problema para que tento chamar a atenção não é de culpa, mas de factos. A sociedade alemã contemporânea saiu da anterior. Como noutros Estados nacionais, também na Alemanha existe uma continuidade na tradição dos comportamentos. A grande linha desta tradição é bastante mais quebrada do que a da maioria dos outros Estados nacionais europeus — por razões que não posso aqui abordar. Por conseguinte, também o sentimento de identidade nacional, a consciência do valor próprio dos Alemães, muito particularmente na República Federal, são mais vacilantes, mais inseguros, numa palavra, mais problemáticos do que na maioria dos outros Estados europeus. Os Dinamarqueses, os Franceses, os Ingleses, apesar da perda de poder e de ítatus que sofreram todos os países europeus, ainda não têm, actualmente, grandes dificuldades com a sua identidade nacional. Os Alemães, e principalmente os alemães federais, têm dificuldades consideráveis. Não se fala muito disso, em parte, porque, devido à consciência nacional convulsivamente exagerada do Terceiro Reich, quaisquer tentativas dos Alemães para falarem publicamente da sua consciência nacional levanta a suspeita de que se estará a querer reavivar a exagerada consciência nacional do Terceiro Reich. A este respeito, sou totalmente insuspeito. É mais fácil para mim do que para muitos outros alemães dizer que o problema da identidade nacional da República Federal deveria, sem convulsões e, se possível, sem ligação à tradição do nacionalismo alemão posterior a 1870, ser examinado a fundo e discutido publicamente como um problema humano, particularmente das gerações mais jovens.
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O problema de identidade nacional da República Federal tem, como noutros casos, duas facetas que se completam. Primeiro, temos o problema da nossa identidade: que espécie de homens somos nós, enquanto alemães federais? Quais as características, qual o sentido e o valor da nova vida colectíva alemã federal? Como podem os Alemães criar novos valores dentro do concerto europeu? Estas questões não serão tão simples como parecem, precisamente porque a imagem do Terceiro Reich, ao cabo de quarenta anos, ainda lança uma sombra sobre a identidade actual dos Alemães. Estas questões são difíceis, em segundo lugar, porque uma identidade separada dos alemães federais, para a maneira de sentir de alguns deles, parece consagrar a divisão do velho império alemão. Todavia, talvez não se devesse estar tão receoso a este respeito. A Baviera, a Saxónia, a Prússia também já foram Estados autônomos, com uma determinada identidade própria, e talvez a possuam ainda hoje, o que tornou a unificação final, talvez, mais difícil, mas de modo algum impossível. Num futuro previsível, não é de esperar uma análoga unificação dos dois Estados alemães contemporâneos. Ela não será impedida pelo facto de a República Federal começar a promover, finalmente, -com a maior determinação, o seu valor próprio e, assim, a sua identidade própria. Seja qual for o problema nacional da República Federal a que se aluda, ele é sempre doloroso e não isento de perigos. E, por conseguinte, não se fala disso. No entanto, o problema de identidade nacional da Alemanha Ocidental é um problema sério, e eu acho que se deveria falar sobre ele. Talvez não achem incorrecto referi-lo neste dia, pois, (k facto, embora não formalmente, o 8 de Maio de 1945 foi o dia do nascimento da República Federal, o dia que tornou possível o aparecimento de uma Alemanha relativamente livre, governada por um regime parlamentar e, neste sentido, democrática. Talvez se possa dizer hoje, ao fazer a retrospectiva após quarenta anos, que a formação estatal que então saiu da três zonas ocidentais de ocupação era algo novo na história da Alemanha. Pode ser que não se tenha aproveitado suficientemente a oportunidade de renovação. Trata-se de uma falta que ainda se poderá, certamente, reparar. Neste contexto, lembro-me sempre de um episódio da história da Dinamarca. Em 1866, a Dinamarca foi derrotada pela Prússia. As perdas territoriais, principalmente no Schleswig-Holstein, foram conside-
ráveis. Na altura, houve na Dinamarca homens que perceberam que o futuro do país estaria ameaçado, caso não se facultasse o acesso a um nível de formação superior à massa da população camponesa. Grundtvig, para contrabalançar a derrota, que fora sentida quase como uma catástrofe nacional, lançou os alicerces de um extenso movimento de criação de universidades populares, no fundo, portanto, um movimento de renovação de toda a nação. A par disso deu-se também um fortalecimento da consciência nacional, até então moderada e inofensiva. As conseqüências deste movimento de renovação são hoje ainda perceptíveis. Ele permitiu aos Dinamarqeuses sobreviverem, com um sentimento de tranqüila coesão nacional, até mesmo ao período da ocupação na guerra de Hitler, para outros povos tão desestabilizador. A Alemanha não tem só uma, mas duas pesadas derrotas militares atrás de si. Os seus dirigentes, primeiro o Kaiser e depois Hitler, mobilizaram por duas vezes todo o potencial do povo alemão para conquistarem para a Alemanha uma posição hegemônica na Europa. O objectivo era atraente — tão atraente que talvez só um estadista do calibre de Bismarck poderia ter compreendido que o potencial bélico da Alemanha, enquanto «país do meio», não era suficientemente grande para conduzir uma guerra prolongada e, ao fim e ao cabo, vitoriosa contra a maioria das outras grandes potências européias, e, principalmente, contra os Estados Unidos da América. Bismarck foi um grande homem. No entanto, a sua política foi, no essencial, uma política de moderação. Após ter vencido a Áustria, ele apercebeu-se imediatamente da necessidade de conquistar a amizade da Áustria, de fazer do inimigo de ontem o amigo de hoje. Ainda não estava cego pelo mito nacional da época do Kaiser e de Hitler. Mais tarde, as camadas dirigentes da Alemanha, embriagadas com a idéia de uma hegemonia alemã, perderam a noção da grandeza do risco que faziam correr ao povo alemão. Nunca foi muito provável que os Estados Unidos assistissem passivamente ao nascimento de um grande império alemão sob uma direcção imperial ou mesmo ditatorial, portanto, de um possível rival no espaço euro-asiático, com uma ideologia perigosamente agressiva. Todavia, a cegueira profissional, tanto do Governo imperial como da chefatura de Hitler, impediu-os de tomarem seriamente em consideração o potencial de guerra americano.
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No fim de cada uma das duas guerras hegemônicas perdidas pelos Alemães, os seus dirigentes safaram-se, um para a Holanda, o outro na morte, deixando ao povo as migalhas que para ele tinham esboroado. Depois de Bismarck, o povo alemão não teve grande sorte com os seus dirigentes.
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A luta pela hegemonia perdida pela Alemanha foi, tanto quanto é dado ver, a última tentativa de um Estado europeu para conquistar a supremacia na Europa. A Alemanha foi a grande derrotada dessa guerra, mas não a única. Também a França e a Inglaterra, nominalmente vencedoras da Segunda Guerra Mundial, pertencem, de facto, aos Estados que a perderam. Oa verdadeiros vencedores foram a União Soviética e os Estados Unidos. Ambas estas potências passaram, no fim da guerra, para o vértice da hierarquia dos Estados não só da Europa mas do mundo inteiro. Estes dois Estados possuíam, agora, as duas organizações militares mais fortes do mundo. Não estou bem certo de que seja suficientemente claro o problema perante o qual se viram as chefias americana e russa quando Hitler e Goebbels se furtaram pelo suicídio à responsabilidade pelos Alemães, que eles durante tanto tempo tinham chamado a si, e quando a resistência alemã se desmoronou. As tropas russas vindas de leste e as tropas americanas e aliadas vindas de oeste marcharam através da Alemanha ao encontro umas das outras. O que não deixava de ser uma situação perigosa, pois os vencedores ocidentais e orientais podiam, facilmente, durante o seu avanço, entrar em conflito entre si. Era, portanto, necessário que se chegasse a um acordo sobre as fronteiras entre as zonas de ocupação das forças militares oriental e ocidental, caso se quisesse evitar um possível confronto armado entre ambos os exércitos. Não era necessário ser-se particularmente arguto para prever que uma fronteira instituída por acordo entre os exércitos oriental e ocidental se transformaria numa fronteira duradoura. Podia-se antever
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que os Russos nunca se retirariam dos territórios conquistados pelo seu exército sem pressão militar; que não prescindiriam voluntariamente da hegemonia sobre os territórios por eles ocupados, sobretudo sobre os territórios alemães. Eles tinham sofrido perdas gigantescas e queriam a maior segurança possível para o seu território central. Nada estava, porém, mais longe dos Americanos e dos seus aliados do que a idéia de se envolverem numa guerra com os Russos por causa da unidade da Alemanha ou da liberdade de outros territórios ocupados pela União Soviética. Em contrapartida, para outros Estados europeus, cujos cidadãos tinham sofrido sob a ocupação alemã e que haviam saboreado antecipadamente através das SS e da Gestapo o que seria uma hegemonia da Alemanha de Hitler - particularmente os Franceses -, era apenas justo que a Alemanha fosse dividida em duas partes pela fronteira entre as tropas ocupantes. O colosso alemão, no Centro da Europa, tinha tentado por duas vezes obter a hegemonia no continente europeu por meio da guerra. Esta tentativa fracassou por duas vezes, depois de guerras devastadoras. Os Alemães, ao ocuparem outros países, particularmente durante a guerra de Hitler, apresentando-se como uma raça de senhores, tinham feito poucos amigos e muitos inimigos.* No fundo, todos estavam muito satisfeitos por este temível colosso militar do Centro da Europa ter sido dividido em dois e ter-se tornado, assim, menos ameaçador para os seus vizinhos. Todavia, a divisão da Alemanha em duas zonas de ocupação e, depois, em dois Estados, tal como a divisão da Coréia, foi, em última análise, apenas uma conseqüência da rivalidade que foi crescendo a pouco e pouco entre as duas potências militares mais fortes da Terra, a União Soviética e os Estados Unidos. Chamei atrás a atenção para a regularidade com que, numa hierarquia de Estados, após uma série de lutas eliminatórias, dois ou, às vezes, também três Estados se encontram à cabeça deste grupo de Estados como rivais na luta pela hegemonia, normalmente sem que o tenham pretendido ou planeado. Eles vêem-se, assim, confrontados com um dilema, pois cada um dos dois ou três candidatos à hegemonia tem forçosamente de recear que a sua independência e a sua liberdade de decisão lhe venham a ser roubadas pelo outro, caso este se torne mais forte do que ele. Eu referi os casos de Esparta e Atenas, dos Gregos e dos Persas, de Roma e de Cartago, dos Habsburgos e dos Bourbons, e poderia apresentar ainda muitos outros exemplos. Nos nossos dias, os Estados Unidos e a União
Soviética encontram-se, nolem volens, nesta situação dilemática, como rivais na luta pela hegemonia entre os Estados da Terra. Em épocas passadas, a par de tais lutas bipolares pela hegemonia, ocorriam também contrastes entre formas internas de dominação e de sociedade. A longa luta eliminatória pela hegemonia entre Esparta e Atenas, por exemplo, travou-se a par do antagonismo dos sistemas sociais e das classes sociais que imperavam em ambas as cidades-estado. À Atenas democrático-popular opunha-se a Esparta aristocrático-oligãrquica. Quando venceu, Esparta impôs aos Atenienses a forma de dominação aristocrático-oligárquica dos chamados Trinta Tiranos. Do mesmo modo, a diferença entre as formas de dominação e de sociedade também desempenham, actualmente, um papel decerto importante nos conflitos pela hegemonia entre a União Soviética e os Estados Unidos, travados na antecâmara de uma possível guerra. Nestas lutas pela supremacia, desempenha um papel relevante o facto de a União Soviética ser uma ditadura de um partido, os Estados Unidos um regime parlamentar bipartidário e o facto de, em ambos os países, dominarem ideologias com concepções antagônicas do mundo. No entanto, o grande perigo que a ameaça recíproca destes dois candidatos à hegemonia representa para nós, para toda a humanidade, assenta, em primeiro lugar, naquilo que o seu antagonismo tem em comum com as lutas anteriores pela hegemonia. Esse perigo assenta no facto de os dois Estados militares, que são de longe os mais fortes, se confrontarem como rivais. A corrida aos armamentos entre estes dois Estados, que justificadamente nos preocupa, conheceu incontáveis precedentes. Todos eles mostram como é extremamente difícil quebrar o mecanismo social deste movimento recíproco de escalada. Só quando se deixar de considerar este antagonismo crescente entre a União Soviética e os Estados Unidos como algo de singular, só quando se vir que há centenas de casos precedentes, que se trata de uma configuração social com certas regularidades, com processos que se repetem, só então se poderá destacar claramente o que há de original na situação de hoje. Entre as regularidades desta configuração conta-se uma tendência polarizadora de muitos outros Estados da hierarquia estatal, cujo vértice é constituído pelas duas potências militares antagônicas. Apesar de todas as variações, que podem sempre ocorrer, os outros Estados do conjunto geral dos Estados mostram uma forte tendência para se um-
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tem a um ou a outro dos dois Estados hegemônicos e para se agruparem à sua volta como limalha de ferro em torno dos pólos de um grande íman. Às regularídades desta configuração pertencem igualmente as manobras, por agora sem derramamento de sangue, de ambos os Estados hegemônicos para obterem as melhores posições de assalto em caso de guerra; as manobras com vista a alcançarem posições nos territórios, maiores ou menores, situados entre os núcleos centrais dos dois próprios Estados. O conflito bélico entre ambos os Estados hegemônicos, quando acontece, começa habitualmente por desenrolar-se nestes territórios intermédios, situados entre as regiões centrais das potências rivais. Normalmente, cada uma delas procura formar uma zona de segurança o mais ampla possível de aliados e Estados vassalos nas regiões adjacentes aos seus próprios territórios e, simultaneamente, ganhar para si aliados e Estados vassalos na zona de segurança que rodeia as regiões centrais do adversário. A constituição de uma zona de segurança em torno da sua própria região central deve tornar o acesso a esta região o mais difícil possível ao adversário. Em contrapartida, os aliados ou Estados vassalos da zona que rodeia o adversário devem facilitar o mais possível a penetração no.terrítório central do adversário ou a sua destruição. Deixemos em suspenso a questão de saber se estas manobras com vista a uma melhor posição de assalto no período anterior à guerra ainda têm, na época das armas nucleares e dos mísseis, o mesmo significado que na época dos canhões e das espingardas ou das lanças, das setas e das espadas. Mas o determinismo da configuração e decerto também a tradição militar, que se prolonga ininterruptamente desde o tempo dos príncipes até ao dos chefes partidários e dos presidentes, exercem uma forte pressão nesse sentido. Já os czares tentaram assegurar bases no Afeganistão para a defesa do seu território central. Já então os Ingleses tentaram impedi-los. Os Americanos são agora os seus herdeiros. Por seu lado, os Russos estão contentes com as suas bases em Cuba e na Nicarágua e, não nos esqueçamos, no Vietname. E os Americanos não se poupam a esforços para os desalojar, se possível sem intervenção do seu próprio exército, da sua perigosa proximidade na América Central. Este jogo perigoso é tão velho como os próprios Estados. Já na Antigüidade, Assírios e Egípcios procuraram ganhar a hegemonia na Palestina, Romanos e Cartagineses na Sicília, antes de penetrarem nos respectivos territórios centrais.
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Há muitas outras regularidades destas lutas bipolares pela hegemonia, que se podem observar em quase todos os casos. Quero referir ainda uma delas, que pode ser assustadora, mas não tem qualquer sentido fecharmos os olhos. Não conheço um único caso, no desenvolvimento da humanidade, em que um tal conflito entre as duas potências militares mais fortes, situadas no vértice de uma hierarquia de Estados, não conduzisse, mais cedo ou mais tarde, a uma guerra, à solução do conflito latente pela força das armas. E mesmo que existisse o precedente de um desanuviamento pacífico, da desescalada de uma guerra pela hegemonia em fase de preparação, não poderíamos deixar de estudar mais rigorosamente a regularidade com que uma tal configuração conduz a um conflito armado. Na verdade, por maiores que sejam as semelhanças com processos anteriores deste tipo, a luta pela hegemonia dos nossos dias tem também, ao mesmo tempo, determinadas particularidades estruturais que lhe são absolutamente próprias. Encontramo-nos, hoje, numa situação para a qual não há quaisquer precedentes. Chegámos, assim, num duplo aspecto, ao fim do caminho.
11 Já disse que não conheço nenhum caso em que a constelação das duas ou três potências militares mais fortes no vértice de uma pirâmide de Estados, em que cada uma das potências címeiras se sente ameaçada na sua segurança pela outra, não conduzisse, mais cedo ou mais tarde, a graves conflitos bélicos. Entre as singularidades da constelação actual de poderes, conta-se o facto de uma guerra entre ambos os Estados hegemônicos, no estado actual da técnica dos armamentos, ter como conseqüência a destruição generalizada de ambas as potências hegemônicas e dos seus aliados e, possivelmente, também, uma diminuição temporária ou permanente da habitabiiidade da Terra. Muitos são da opinião de que a grandeza do perigo irá, só por si, trazer à razão os dirigentes políticos dos dois grandes Estados militares. Mas eu não creio que se possa imaginar a passagem da luta de posições relativamente incruenta para a guerra sangrenta entre os dois grupos de Estados, simplesmente como resultado do que, hoje, muitas vezes se designa por «decisão racional». Nesta constelação das potências ha tantas possibilidades de uma passagem irreflectida, dominada por desejos e temores, da guerra fria à guerra quente que a esperança de que a razão humana, mais cedo ou mais tarde, possa pôr termo à imensa pressão de uma tal constelação no sentido da guerra se me afigura francamente ilusória. Eu tenho, decerto, uma ídeia do que se poderia fazer para inverter o movimento do mecanismo, que se alimenta a si próprio, da ameaça recíproca crescente das grandes potências militares na direcção oposta, no sentido de uma desesc01a"aTalvez, mais adiante, ainda tenha tempo para dizer alguma coisa sobre isso.
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Referi que a guerra pela hegemonia entre os dois maiores Estados militares, que começou no fim da Segunda Guerra Mundial, nos anos 40 do século xx, é singular, pois com ela a humanidade chegou ao fim de um caminho. Esta metáfora do fim do caminho não se refere só ao perigo da autodestruição da humanidade numa próxima guerra. Mesmo se abstrairmos do caracter inaudito deste perigo, descobrimos que as lutas contemporâneas pela hegemonia entre os dois Estados militares mais fortes têm um caracter singular. Os exemplos de épocas anteriores tornam claro que as lutas deste tipo podem terminar num empate ou numa ascensão do Estado vencedor à supremacia integral sobre o grupo de Estados no seu conjunto. As lutas eliminatórias das cidades-estado sumárias, assim como as das cidades-estado gregas, terminaram num empate, portanto sem que Esparta, Atenas, Corinto ou Tebas tivessem logrado conquistar uma hegemonia sobre as outras cidades-estado e, desse modo, conseguissem reuni-las num Estado grego unificado. Tal aconteceu, finalmente, por intermédio de um Estado estranho, através dos soberanos do reino da Macedónía, Filipe e Alexandre, que conduziram as cidades-estado, unidas com relutância, à luta final contra o inimigo mortal de há muitos anos, conrra o ameaçador Estado persa. Se, actualmente, uma das duas potências hegemônicas pudesse alcançar a vitória sobre a outra sem destruição recíproca, seria possível que, também assim, se atingisse o fim de um caminho. A União Soviética ou os Estados Unidos poderiam então ser promovidos a potência hegemônica de toda a humanidade. Diferentemente de todos os vencedores anteriores das lutas pela hegemonia dentro de um grupo de Estados — portanto, diferentemente da China ou dos Romanos, que, embora se julgassem senhores de um império mundial, se limitaram de facto a unificar e pacificar uma parte limitada da humanidade —, o vencedor da luta contemporânea pela hegemonia, caso não sobreviva a esta luta demasiado enfraquecido, estaria em situação de controlar meios militares e econômicos de uma dimensão tal que tornariam impossível a concorrência de qualquer outro Estado. E improvável que uma tal situação possa realmente ocorrer. Mas o facto que aqui se investiga, e sobre o quaí eu disse que também ele significava o fim de um caminho, é bem real. Deveria dizer-se talvez: ele significa o fim de um caminho e o começo de um novo. O desenvolvimento da humanidade alcançou um ponto ou, melhor dizendo,
atingiu um período em que os homens, pela primeira vez, se encontram perante a tarefa de se organizarem globalmente, ou seja, como humanidade. Esta tarefa coloca-se-lhes em conseqüência de uma longa evolução. Ao mesmo tempo, ela faculta-lhes as possibilidades técnicas de uma organização da humanidade. Por favor, não me entendam mal. Não estou a falar aqui do que normalmente se chama uma utopia. A tarefa de desenvolver uma ordem da vida em comum que abranja toda a humanidade coloca-se hoje, efectivãmente, aos homens, quer se tenha consciência dessa tarefa quer não. Ninguém pode prever quanto rempo a humanidade precisará para realizar esra tarefa. Ninguém pode prever se a humanidade, durante as lutas preparatórias nessa direcção, se destruirá a si própria e tornará a Terra inabitável.
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12 Durante as etapas anteriores, a pacificação de um grupo de Estados ocorreu sempre, em princípio, devido ao facto de, na seqüência de lutas eliminatórias no interior de um grupo de Estados, emergir um único Estado como vencedor e, assim, como potência hegemônica. A pax romana é disso um exemplo bem conhecido. Indicações neste sentido mostram-se também no caso das duas maiores potências militares que, durante a segunda metade do século XX, ocuparam em todo o mundo o primeiro plano nos conflitos entre Estados. Ainda meio encoberto, o sonho nacional de uma posição hegemônica sobre toda a humanidade anuncia-se já nas ideologias nacionais das duas potências militares mais fortes da segunda metade do século XX. É útil, neste contexto, usar um pouco a inteligência para imaginar situações possíveis, mesmo que elas não tenham nenhuma ou só uma muito pequena possibilidade de se tornarem situações reais. Imaginemos o seguinte: se os Estados Unidos não existissem, a União Soviética ter-se-ia tornado hoje, depois da vitória sobre a Alemanha, provavelmente a potência militar de longe mais forte não só da Europa mas também da humanidade. Naturalmente, permanece em aberto a questão de saber se a União Soviética poderia ter alcançado a vitória sobre a Alemanha sem a ajuda dos Estados Unidos e dos seus aliados. Mas imaginemos que isso tivesse acontecido. O poderio militar soviético teria alcançado um avanço tão grande sobre o poder militar de todos os outros Estados da humanidade que a União Soviética se teria tornado, de facto, na potência hegemônica da humanidade. Neste caso, os chefes dos partidos comunistas de todos os países seriam os soberanos efectivos desses países. A direcção do Partido Comunista da
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União Soviética, do Estado militar mais forte da Terra, ocuparia então uma posição hegemônica sobre toda a humanidade. Presumivelmente, ela tentaria impedir os conflitos armados entre os Estados vassalos, graças ao seu poderio militar preponderante, e, deste modo, realizar a pacificação da humanidade, implantar a pax soviética, O sonho de uma hegemonia mundial russo-soviética está contido, sob uma forma um tanto oculta, na doutrina oficial dogmática russo-soviética. A doutrina marxista, que se restringe algo unilateralmente às relações econômicas e de classes, oculta-o. Esta doutrina fala, pura e simplesmente, da necessidade social, com que, mais cedo ou mais tarde, revoluções comunistas darão origem a ditaduras do proletariado ou, mais exactamente, a ditaduras da direcção do Partido Comunista. A unilateralídade da doutrina marxista, que não reconhece às fontes estatais e, principalmente, às fontes militares do poder nenhum significado social autônomo, oculta um facto que Marx certamente não poderia ter previsto: o facto de uma vitória do comunismo na Terra inteira acarretar consigo a posição hegemônica da potência militar comunista mais poderosa, ou seja, da União Soviética. A pax soviética, considerada como possibilidade hipotética, tem o seu equivalente na pax americana. O sonho americano, the american arcam, muito freqüentemente objecto de controvérsia nos próprios Estados Unidos, não está até hoje orientado, expressamente, para uma posição hegemônica americana. Mas não faltam indicações neste sentido. Também no caso dos Estados Unidos, à semelhança do que ocorre na União Soviética, e como resposta à ambição comunista de hegemonia mundial, o zelo posto na defesa do próprio sistema capitalista e pluripartidário adquire, com muita freqüência, o caracter de uma missão mundial. Tal como na União Soviética, também nos Estados Unidos a preocupação com a própria segurança corre a par da exigência de que o seu próprio poder militar tenha de ser o mais forte do mundo para poder garantir a integridade militar do país. E esta, também, uma das simetrias características da luta bipolar pela hegemonia: enquanto os dois Estados militares mais poderosos se mantiverem em equilíbrio, enquanto os seus meios de poder militar e econômico se equilibrarem aproximadamente, ainda resta aos Estados menos poderosos um campo de manobra não despiciendo para decisões próprias, uma margem de liberdade para a sua autonomia. Quanto mais o equilíbrio dos poderes se inclinar em favor de uma das duas
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superpotências, tanto mais inequivocamente ela ganhará o caracter de potência hegemônica da humanidade. Todavia, só menciono esta possibilidade para tornar compreensível a dinâmica social própria deste tipo de constelação de Estados. Na realidade, o aumento do poder de uma das duas potências hegemônicas - quer directamente, por intermédio do crescimento do potencial militar, quer por intermédio de uma nova aliança, de uma vantagem posicionai no campo dos Estados não alinhados — provoca habitualmente, da parte da outra potência hegemônica, uma tentativa de contrabalançar esse acréscimo de poder por forma a restabelecer o equilíbrio e, com ele, a única forma de segurança que ambas as potências hegemônicas podem ter na sua relação uma com a outra. Trata-se de uma situação difícil. Cada uma das duas potências realiza, constantemente, tentativas para sobrepujar a outra; cada uma delas tenta, permanentemente, contrabalançar toda e qualquer pequena vantagem da outra. Cada uma procura, involuntariamente, acercar-se sempre mais de uma hegemonia mundial, da posição do Estado militar mais poderoso; cada uma é constantemente estorvada, nestes propósitos, pela jogada da outra. Longe de mim dizer que os governos de ambos os Estados ambicionam conscientemente a hegemonia mundial. Digo apenas que a peculiar situação forçada em que se encontram ambas as potências as impele nesta direcção. Aquilo a que chamamos escalada armamentista é, igualmente, um resultado desta situação. Não creio também que o governo de um ou dos dois Estados hegemônicos nos conduza para uma guerra com plena consciência das suas conseqüências. Digo, simplesmente, que os governos de ambos os países, ao procurarem obter involuntariamente vantagens militares ou posicionais em relação à parte adversa, aproximam-se cada vez mais de uma guerra. Há boas provas de que ambas as partes, tanto a superpotência comunista como a capitalista - principalmente entre as camadas dirigentes, mas, talvez, também parte dos respectivos povos — sonham com o desaparecimento da outra parte. Ambas sonham com o colapso do adversário, e talvez também façam alguma coisa para provocar esse colapso, se possível, sem a necessidade de uma guerra. Todavia, os governantes de ambos os lados parecem não ver claramente que, se a outra parte sentir que está a ser encostada à parede pelo adversário e os seus governantes não encontrarem mais nenhuma saída, será muito grande a probabilidade de lançarem mão da guerra como último recurso e, portanto, da utilização das numerosas armas atômicas armazenadas.
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Durante roda a minha longa vida, pelo menos desde o meu úlrimo ano do liceu, os comunistas meus conhecidos e amigos fizeram sempre os seus cálculos de modo que a crise da altura seria a última crise do capitalismo, à qual se seguiria, necessariamente, a revolução comunista e, por sobre a ditadura do proletariado, a sociedade sem opressão, tudo isto quase sem a necessidade de um governo. Ouvi isto em 1913, ouvi-o, de novo, no início desre ano; e, nos anos que decorreram entre estas datas, ouvi-o outra e outra vez, sempre com a mesma convicção inabalável. O ideal comunista de que a profecia marxista do fim do capitalismo se consumaria dentro de pouco tempo, de que a crise final do capitalismo teria finalmente chegado, inspirou ao longo de todo esre século a imaginação dos fiéis. Todavia, a idéia de que o colapso do adversário se dará sem a necessidade de uma guerra não se restringe, de modo algum, a uma das partes. Também entre os Americanos e nos países europeus da aliança ocidental se encontra com bastante freqüência a idéia de que o bloco de Leste irá conhecer dentro de pouco tempo uma crise, dissolvendo-se, então, por si mesmo. Tenho a impressão de que esta ilusão de um colapso espontâneo do comunismo na União Soviérica e nos Estados de Leste ganhou mais força e uma mais vasta audiência nas últimas décadas, e, como se disse já, faz-se sempre ainda qualquer coisa para de algum modo contribuir para o desejado e iminente desmoronamento espontâneo do comunismo. Creio que esras idéias sobre o presumível desmoronamento automático dos regimes capitalista e comunista não passam de sonhos ilusórios. Falta-lhes toda e qualquer base, além disso, são ilusões perigosas. Os comunistas desde sempre contribuíram activamente para o desmoronamento do capítaíimo, profetizado por Marx, e, nos últimos tempos, um governo americano parece ter o mesmo em mente em relação ao regime comunista. Se um dos dois Estados conseguisse efectivamenre encurralar o outro, isso aumentaria enormemente o perigo de uma guerra. Já o disse atrás, mas vale a pena dize-lo duas vezes.
13 Que fazer? O regime comunista e ditatorial da União Soviética não faz tenções de desaparecer por sua própria iniciativa. O regime capitalista e parlamentar dos EUA também não tenciona desaparecer do mesmo modo. Uma guerra entre os dois Estados não é de modo algum impossível, mas seria uma calamidade tão grande para toda a humanidade que, talvez, se devesse reflectir mais sobre as alternativas à guerra. A guerra entre o grupo de Estados liderados pela União Soviérica e pelos Estados Unidos acabaria, porventura, com uma vasta destruição e, certamente, com um enorme enfraquecimenro de ambos os grupos de Estados. Os vencedores previsíveis de um tal conflito seriam outros países - caso possam manter-se fora da guerra e salvaguardar a sua população, o seu território e o seu capital das conseqüências desrruidoras de uma guerra nuclear. A índia, o Brasil e, principalmenre, a China estariam então entre os candidatos às posições dirigentes na hierarquia dos Estados do mundo. Vale a pena assinalar que as idéias sobre as relações reciprocas dos Estados do mundo, caso não se comecem a modificar gradualmente antes de uma guerra nuclear, conhecerão, por certo, uma modificação radical depois de uma tal guerra. Actualmente, faz parte de uma quase incontestável tradição da humanidade, e, no fundo, rambém da humana conditio, do destino inexorável dos homens, a idéia de que, em caso de conflito, os Estados se podem ameaçar mutuamente com a guerra. A organização de todos os Estados assenta na possibilidade de um confliro bélico. Praticamente todos os Estados têm instituições militares capazes de defender o próprio país de ataques militares de outro país ou, no caso de um conflito
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com outro país, de atacar este último. Em termos mais prosaicos: hoje em dia, praticamente em todo o mundo, os Estados estão preparados para, em caso de conflito com outros Estados, fazerem uso da violência física, ou, por outras palavras, ferirem e matarem os cidadãos e as cidadãs de um Estado inimigo, destruírem todos os seus meios de produção, o seu potencial militar e quebrarem a sua resistência, por tanto tempo quanto for necessário para que o Estado inimigo fique exausto ou, pura e simplesmente, sucumba. A maneira como está tradicionalmente organizada a maioria das sociedades estatais do mundo determina que, em caso de conflito nas relações entre os Estados, elas façam aquilo que é estritamente proibido e punido nas relações internas dos Estados, ou seja, tentem decidir o conflito a seu favor recorrendo à violência física.
sua própria população mas ainda uma parte considerável da humanidade a uma morte mais ou menos cruel, ao mesmo tempo que tornarão inabitável para os homens uma vasta parte da Terra, senão mesmo a Terra inteira. A poderosa coacção exercida por esta tradição milenar da humanidade no sentido da solução dos conflitos entre grupos pela força das armas; a fraca medida em que os dirigentes dos Estados mais importantes são capazes de se libertar da pressão desta tradição, da pressão das instituições e dos hábitos de actuação que ela criou, está hoje patente com uma clareza assustadora. A guerra parece ser o destino eterno da humanidade. Nenhuma compreensão da singularidade da situação contemporânea parece estar em condições de quebrar a força desta tradição de actuação que impele para a guerra. O que é tanto mais surpreendente quanto os Estados mais importantes da Terra já não são, como muitos Estados do passado, governados por homens educados na tradição da nobreza guerreira. Os dirigentes da União Soviética legitimam-se como representantes do operariado industrial; os dos Estados Unidos como representantes do empresariado industrial. Para ambos, a nobreza militar e agrária, a nobreza feudal, como por vezes lhe chamam, fora um adversário nos conflitos internos dos respectivos Estados. Não deixa de ser instrutivo ver a inexorabílidade com que representantes da burguesia e do operariado industrial, agora que exercem funções dirigentes, seguem o exemplo dos príncipes da nobreza, sendo arrastados pelo peso das instituições estatais para a tradição de actuação dos seus antecessores sociais. A compreensão da singularidade da situação contemporânea parece ser completamente impotente face às pressões da tradição milenar de utilização da força física como meio de resolver os conflitos entre unidades de sobrevivência mais ou menos autônomas, ou, actualmente, entre Estados independentes e soberanos. Depara-se-nos aqui um exemplo típico de uma particularidade do desenvolvimento da humanidade que sempre se repete. O desenvolvimento da humanidade realiza muito menos através de processos de aprendizagem baseados no discernimento, no conhecimento antecipado das conseqüências possíveis do agir colectivo de um grupo humano, do que através de processos de aprendizagem na seqüência de decisões erradas e das amargas experiências que elas determinam. Não será totalmente absurdo, como já se disse, supor que, após uma guerra
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Não é absurdo supor que depois da próxima guerra, se ela ocorrer, a humanidade sobrevivente chegue à conclusão de que é necessário quebrar com a tradição que não só faculta aos Estados como are lhes recomenda que, em caso de conflito com um outro Estado, procurem decidir a situação em seu favor pelo recurso à força física, através de uma luta de vida e de morte, numa palavra: pela entrada em acção de uma organização müirar que cada Estado mantém para esse fim. Então, talvez os homens possam fazer causa comum e dizer: «Não há nada pior do que a guerra. Que podemos fazer para evitar a guerra?» Sob a impressão causada por uma tal guerra, é provável que eles estejam mais facilmente em situação de fazer aquilo que nós hoje somos capazes de realizar: isto é, criar instâncias de arbitragem dos conflitos entre os Estados, a que todos eles se devem submeter. Esta condição da vida humana, esta condiria humana, o vaivém das guerras, parece ser hoje, bem como ao longo de todo o desenvolvimento da humanidade, inevitável. Hoje, porém, talvez o deva dizer mais uma vez, encontramo-nos numa situação sem precedentes, numa situação inédita no desenvolvimento da humanidade. Nós chegámos, como disse, ao fim do caminho. Se os Estados hegemônicos da actualidade, ou seja, os Estados com maior poder militar, seguirem hoje a tradição milenária da humanidade — segundo a qual é evidente que grupos humanos rivais podem lurar pela sua segurança e, se possível, pela própria posição de supremacia entre os demais grupos humanos, recorrendo para tanto à violência física, a uma luta de vida e de morte -, estarão a abandonar, com toda a probabilidade, não só grande parte da
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nuclear, a humanidade sobrevivente, ensinada pela dura experiência, esteja mais inclinada a esforçar-se no sentido da criação de instituições visando resolver por meios não volentos os conflitos entre Estados. Podemos muito bem imaginar quef após uma guerra nuclear, o saber que a soberania dos Estados encontra os seus limites ali onde a existência e o bem-estar da humanidade estão em jogo já não será considerado utópico, mas, pelo contrário, extremamente realista. O governo de um país que, então, segundo o velho hábito, prepare a guerra contra outro país ou que chegue mesmo a invadi-lo pela força das armas, com os conseqüentes morticínos, será levado ao tribunal mundial como um grupo de criminosos contra a humanidade — quer através da pressão de sanções econômicas por parte de todos os países do mundo ou pela pressão da opinião pública mundial, quer mediante a intervenção de um corpo expedicionário conjunto dos Estados aliados do mundo.
14 Perante a visão de uma Terra meio destruída, ou talvez somente ao recordá-la, será mais fácil habituar até mesmo os governos de Estados muito grandes e populosos a submeterem as suas divergências de interesses e de opinião, sobretudo as diferenças de opinião entre os Estados no que se refere a questões de segurança, a um tribunal dos Estados aliados da Terra. E em relação a diferenças de crença ou de sistema social poder-se-ia então esperar que todos os lados se mostrassem naturalmente tolerantes. O luto da humanidade pelo esplendor desaparecido da Terra pode vir também, é certo, tarde de mais. A Terra que conhecemos pode ficar irremediavelmente perdida e os homens, caso ainda existam, recuarem para um regime de vida familiar nas cavernas. No entanto, se as condições de organização estatal que se encontram nas tradições dos Estados contemporâneos ainda existirem nessa altura, talvez seja mais fácil adoptar uma providência, cuja aplicação se tornou já hoje urgente, ante a perspectiva de uma guerra nuclear, mas que, devido a uma tradição" esclerosada, se nos afigura ainda totalmente utópica e irrealizável. A impotência relariva do Tribunal Internacional de Haia mostra claramente o ponto fraco da estrutura desta instituição. Ao contrário dos tribunais nacionais, os tribunais internacionais carecem de órgãos executivos, graças aos quais as suas decisões conseguem fazer-se cumprir, mesmo naqueles casos em que homens ou grupos de homens poderosos se procuram furtar à sentença. Parece-nos hoje ilusório pensar que se poderia levar Estados poderosos como a União Soviética e os Estados Unidos da América a submeterem as suas constantes acusações recíprocas a um tribunal de homens e mulheres cuja integridade e
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isenção são universalmente reconhecidas. É ilusório porque, apesar do perigo coleccivo de uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, os Estados do mundo reunidos não podem falar com uma só voz, não são capazes de impor medidas econômicas ou policiais conjuntas que pudessem garantir o respeito por uma sentença do seu tribunal mesmo por parte de quem lhes resistisse. Além disso, já se tornou hoje suficientemente claro que, nas conversações directas entre ambas as porências hegemônicas que ameaçam a paz no mundo, os argumentos apresentados por ambos os lados são com freqüência tão determinados pelo imperativo de ocultar as próprias intenções, pela pressão da propaganda e, sobretudo, por uma tal incapacidade de compreender as preocupações e receios reais do outro lado, que nada parece mais desejável e necessário do que uma comissão neutral de vigilância. Nada será também, sem dúvida, mais ilusório. Mas se uma tal comissão, como é de admitir, não poderia funcionar de imediato como tribunal de arbitragem, ela poderia, ao menos, começar por informar a opinião pública sobre a situação real subjacente aos argumentos bem pouco transparentes e em larga medida incompreensíveis para o público de todo o mundo apresentados por ambas as partes. Os media assumiram, em parte, a tarefa de informar o público dos diversos Estados sobre o que está por detrás das ocultadoras comunicações oficiais das duas superpotências. Uma entidade pública de homens e mulheres imparciais que esteja em situação de informar com grande regularidade o público mundial sobre as intenções e os receios que se escondem por detrás das comunicações ideologicamente veladas e dissimuladas de ambos os governos hegemônicos poderia exercer, a longo prazo, uma influência substancial sobre o envolvimento das duas grandes potências nas suas perigosas estratégias de ocultação. E seria certamente desejável que os governos das grandes potências que ameaçam a paz procurassem diminuir os seus temores não só por meio de negociações directas — que, evidentemente, são úteis e indispensáveis — mas pudessem, ainda, contar com a ajuda de entidades suprapartidárias com funções consultivas ou de arbitragem (como as que intervieram recentemente, por exemplo, no caso do Peru e do Chile), sobretudo quando as negociações caem num impasse e não conseguem avançar. Todavia, como se disse, neste período de antes da guerra nuclear, até mesmo estas modestas propostas para diminuir o perigo podem ser
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irrealizáveis. Talvez só seja possível dar os passos necessários para a formação de organizações supra-estatais, que possam funcionar efectivamente como vigilantes da paz, depois de uma tal guerra. De qualquer modo, pode desde já indicar-se onde se deverá procurar o núcleo da resistência à formação de instituições eficazes que diminuam o perigo de guerra. Trata-se, sem sombra de dúvida, de determinadas particularidades estruturais da tradicional organização estatal que entravam o desenvolvimento efectivo de instituições de prevenção da guerra. No centro desta resistência, depara-se-nos a idéia da soberania absolutamente ilimitada e inviolável de cada Estado singular. Esta idéia e as instituições que lhe correspondem também foram herdadas pelos principais Estados nacionais da actualidade ou, melhor dizendo, pelos Estados governados por representantes de um partido, dos antigos Estados monárquicos. Todo o governante principesco reivindicava o governo absoluto e ilimitado dentro da sua esfera de dominação. Embora, na realidade, os príncipes mais poderosos violassem e, eventualmente, até liquidassem a soberania de príncipes menos poderosos, a idéia da autonomia e da soberania absoluta e ilimitada do Estado manteve-se, mesmo assim, como doutrina obrigatória de todos os Estados monárquicos absolutos. Ela conservou-se, essencialmente, devido a uma derradeira solidariedade entre todos os príncipes e governos dirigidos por príncipes. Visto todos os príncipes reclamarem para si próprios a soberantía absoluta — e assim, também, o direito de decidirem da paz e da guerra —, todos eles tinham interesse em conceder aos seus pares, em princípio, uma igual autonomia e inviolabilidade da sua soberania. As guerras anteriores já tinham tornado manifesto que, na prática, o princípio da soberania absoluta dos príncipes era frágil. Todavia, quando o governo dos príncipes foi substituído pelo dos representantes de partidos políticos, o princípio de que todos os Estados são soberanos manteve-se. Nesta fase do desenvolvimento, torna-se particularmente evidente que o reconhecimento e o respeito pela autonomia absoluta de um Estado por parte de todos os outros tem, para todos eles, uma função protectora. Até um certo grau, ela salvaguarda qualquer Estado da perda ou da restrição da sua independência. Também aqui podemos observar, de novo, uma espécie de solidariedade entre rodos. Uma vez que cada Estado atribui grande valor à sua própria soberania, à sua
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autonomia e à sua independência em relação aos outros Estado, a maioria dos governos respeita, na medida em que os seus interesses o permitem, a soberania de outros Estados, No entanto, apesar de o respeito pela soberania estatal, enquanto princípio, usufruir de um reconhecimento universal, na realidade este princípio é sempre de novo desrespeitado e desconsiderado, em função das grandes diferenças de poder entre os Estados. Os Estados menos poderosos têm, com freqüência, apenas uma soberania limitada. A crescente interdependência econômica dos Estados põe, igualmente, limites à independência de cada um deles. O grau relativamente mais elevado de independência, de «soberania», e, portanto, também, um maior campo de manobra, só o possuem os Estados militares mais poderosos, situados no vértice da hierarquia de Estados. Com este exame, aproximamo-nos do âmago do problema do actual perigo de uma guerra. Os avanços na técnica dos armamentos criaram uma situação singular também no que diz respeito a este aspecto da questão. Hoje em dia, os governos de ambas as potências hegemônicas podem decidir acções, pelas quais não só se ameaçam reciprocamente com uma vasta destruição e, talvez mesmo, com o aniquilamento total — mas poderia dizer-se que isso só a eles diz respeito. O cartaginês Aníbal ameaçou Roma, e os Romanos, depois da sua vitória, destruíram Cartago e venderam a população sobrevivente como escrava. O raio de destruição das armas nucleares, porém, não pode ser localizado. Ambos os governos, o da União Soviética e o dos Estados Unidos, têm a possibilidade de tomar decisões que comprometem o destino de toda a humanidade ou, em todo o caso, de uma parte substancial da humanidade. E aqueles que são atingidos pelo perigo mal podem, com a sua organização actual, ter influência nestas decisões. Em nome da soberania do Estado, ambos aqueles governos, talvez de acordo com largas camadas da população dos seus países, arrogam-se o direito de tomar decisões, das quais dependem não só o bem-estar da sua própria população mas também o dos habitantes de muitos outros Estados e, talvez, a existência da Terra, enquanto morada dos homens. Poderia pensar-se que depois da próxima guerra — partindo sempre da suposição de que irão sobreviver grupos de homens suficientemenre bem organizados — o problema que se nos depara será reconhecido com mais clareza e resolvido mais facilmente do que hoje acontece, ou seja, antes da guerra. Hoje em dia, o desenvolvimento da técnica
dos armamentos gerou uma situação inconciliável com o tradicional direito soberano de os Estados decidirem, por si sós, sobre a guerra e a paz. Por isso mencionei, atrás, o problema da criação de instâncias supranacionais e suprapartidárias que — talvez apoiadas pela opinião mundial — possam ajudar, a nível consultivo ou pela arbitragem, as potências militares, desesperadamente envolvidas no seu antagonismo e na corrida aos armamentos, quando os próprios governos de ambos os Estados não conseguem encontrar uma saída para o corpo-a-corpo em que mutuamente elas se imobilizaram. O árbitro aproxima-se dos pugilistas engalfinhados um no outro e separa-os. Em nome da sua soberania, nenhuma das superpotências se submete a um árbitro, e pode muito bem acontecer que a embriaguez da hegemonia tape os ouvidos aos seus dirigentes. Talvez tenha, no entanto, chegado a hora de apresentar a exigência de que, se ambas as potências hegemônicas não são capazes de, através de negociações directas, realizar a desaceleração da corrida aos armamentos e o desanuviamento da «sua» guerra fria, que ameaça toda a humanidade, recorram, para tanto, a uma entidade neutra! consultiva. E talvez esteja na hora de reflectir sobre que aspecto deverá ter uma tal entidade estritamente apartidária e como ela poderá ser suficientemente apoiada pela opinião pública da humanidade. Porquê protelar a criação de uma tal instância até depois da guerra? Se os dois gigantes não estão em condições de se libertarem, por si mesmos, do corpo-a-corpo imobilizado em que se encontram, então deveriam ter, pelo menos, o discernimento suficiente para solicitarem a ajuda de peritos isentos. De outro modo, o perigo que ambos representam para a humanidade é demasiado grande. Os homens não são capazes de eliminar a morte, mas estão, sem dúvida, em condições de eliminar o morticínico recíproco.
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15 Referi já o facto de o conflito actual entre duas grandes potências militares que lideram uma hierarquia de Estados ter também, a par de muitas semelhanças com as anteriores lutas hegemônicas deste tipo, determinadas características estruturais próprias. Entre estas peculiaridades conta-se o facto de a guerra, para a qual são accualmente arrastadas as duas superpotências em luta, caso aconteça, ter um caracter destruidor de dimensões superiores a qualquer luta final anterior entre as potências militares mais poderosas. Nos casos anteriores, é possível, como já disse, observar duas formas de desfecho, que se repetem, de um tal combate decisivo. Num dos casos, que se nos depara freqüentemente, a luta permanece indecisa, na medida em que nenhuma das potências cimeiras logra alcançar a hegemonia efectiva sobre o conjunto de Estados e, assim, integrá-los a todos como membros ou súbditos de um Estado de ordem superior, de um Estado unitário, sob a direcção da potência hegemônica vencedora. A luta pela supremacia entre Atenas e Esparta fornece o exemplo de um exemplo da ascensão de uma potência hegemônica ao longo de mais de quatrocentos anos. As lutas elminatórias dos Estados alemães também tiveram, durante muitos séculos, o caracter de um equilíbrio multipolar entre Estados. Embora os imperadores viessem formalmente à cabeça, o poder efectivo estava nas mãos dos múltiplos príncipes reinantes e das cidades livres do império, até que, por fim, a Prússia, ao cabo de uma longa série de lutas eliminatórias, em que se viu freqüentemente à beira do abismo, ascendeu a potência hegemônica e, nessa qualidade, reuniu os diferentes Estados alemães anteriormente autônomos num Estado unitário — renunciando ao Império
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dos Habsburgos, que, de tão multíforme que era, não se deixava integrar facilmente num Estado alemão unitário. Vale a pena reflectir sobre as possibilidades que se oferecem, no plano actual, ao vencedor de uma luta pela hegemonia, quer se trate de um dos dois Estados envolvidos, ou seja, a União Soviética ou os Estados Unidos, ou — no caso de estes dois Estados se terem enfraquecido mutuamente, como é de esperar — um dos Estados eventualmente não envolvidos, por exemplo, a China. Será acaso verosímil que uma União Soviética vitoriosa, uns Estados Unidos vitoriosos, ou uma China que não se envolveu na guerra, ao ascenderem então à hegemonia de um império mundial que abarcaria a maioria dos Estados, pudessem instituir, à semelhança dapax romana, umapax soviética, americana ousinica^ A resposta a esta pergunta não é simples, porque também aqui se verifica que a tarefa que se coloca a uma potência hegemônica na fase accual, depois de ela ter eliminado todos os possíveis concorrentes, é, em certo sentido, diferente das tarefas análogas em todas as fases anteriores. Actualmente, a tarefa de uma potência hegemônica consistiria em assegurar a sua dominação efectiva sobre todos os Estados do mundo e, assim, com base na sua supremacia, reuni-los num Estado mundial unificado. Nesse caso, estaríamos, de facto, perante um impertum munâi, fosse ele uma criação soviética, americana, ou mesmo chinesa. Não é por demais ousado supor que nos próximos dois séculos — com ou sem guerra — se irá reforçar a necessidade de desenvolver instituições estatais mundiais, de que são modelos a Sociedade das Nações e as Nações Unidas. Se observarmos mais atentamente a configuração total dos Estados na Terra, parece ser bastante improvável que um único Estado possa alguma vez estar em condições de obrigar todos os Estados do mundo a reunirem-se num Estado unitário sob o seu domínio. Quero, em primeiro lugar, referir brevemente que, na minha opinião, o poderio de um único Estado — mesmo o do mais populoso, o da China, ao nível de Estado industrial plenamente desenvolvido — não bastaria para estabelecer um imperium mundi efectivo e duradouro, uma dominação do mundo por parte de um Estado ou de um grupo de Estados, e para instaurar a pacificação da humanidade, a eliminação da instituição tradicional da guerra à maneira romana, ou seja, pelo poder bélico avassalador de um único Estado e dos seus aliados. A configuração da humanidade, quero eu dizer com isto, dificil-
mente permitirá que se realize uma paz global sob a forma mais tradicional, freqüente e generalizada da pacificação de grupos humanos anteriormente independentes e com freqüência hostis entre si por intermédio do poderio militar superior de caracter monopolista de um único grupo de homens. E certo que determinados aspectos do progresso técnico, como, por exemplo, o desenvolvimento monopolista das viagens interplanetárias das colônias espaciais, favorecem as tendências que vão no sentido de uma hegemonia militar. Mas as malhas da rede da humanidade são muito extensas e o número dos Estados, grandes e pequenos, habituados à independência, é demasiado considerável para que um único Estado ou grupo de Estados tenha alguma vez uma boa oportunidade de estabelecer uma hegemonia económico-militar duradoura sobre toda a humanidade. O significado das diversidades nacionais para o sentimento de identidade dos homens que formam estes Estados está demasiado profundamente arraigado para que eles possam, no seu conjunto, suportar a longo prazo a dominação autocrática de um único Estado e com ela, também, a de uma única cultura, sem que surjam constantemente movimentos de resistência. Bem entendido, não estou a dizer que uma pacificação da humanidade baseada na hegemonia económico-militar de um único Estado seja uma coisa desejável. Limito-me, pura e simplesmente, à investigação do potencial efectivo dos Estados, e penso que a oportunidade de alcançar aquela supremacia de meios de poder de que um Estado precisaria para instituir uma hegemonia duradoura sobre todos os outros é muito pequena. Sob este ponto de vista, também hoje nos encontramos numa situação singular.
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16 A dinâmica da constelação que, num dado momento, lança as potências militares mais poderosas de um grupo de Estados umas contra as outras e que promete ao vencedor dessa «eliminatória» uma posição hegemônica nesse grupo de Estados não é hoje menor, e a febre hegemônica, a idéia embriagante da que o próprio povo possa vir a ser o mais forte, o mais rico e prestigiado de todos os desse grupo de Estados não é, para os dois candidatos à hegemonia na fase de desenvolvimento actual, manifestamente menos cativante do que o foi em «eliminatórias» análogas, em fases anteriores do desenvolvimento da humanidade. Falei da embriaguez hegemônica de Alexandre, o Grande. Referi a série de guerras que permitiram aos Romanos ascender à posição de potência hegemônica dos países do Mediterrâneo. Poderia ter aludido à série de lutas no decorrer das quais os pequenos reis de Paris se assenhorearam lentamente dos variados domínios, anteriormente autônomos, que constituem hoje a França unida e internamente pacificada; ou à ascensão da Inglaterra à supremacia sobre todas as Ilhas Britânicas, incluindo temporariamente o Estado hoje independente da Irlanda. Vem a propósito pensarmos na luta pela supremacia dos Alemães, mais tardiamente unificados, e na embriaguez hegemônica das épocas do Kaiser e de Hitler. Como disse, a dinâmica da configuração que impele, hoje em dia, a União Soviética e os Estados Unidos da América, ambos preocupados com a sua própria segurança, um contra o outro, e assim, quer o saibam quer não, para uma confrontação militar decisiva com vista a uma posição hegemônica monopolista entre os Estados do mundo, não é menos forte do que a de muitas lutas hegemônicas análogas de tempos passados.
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Sem dúvida que a consciênca da alta recompensa que representaria para o vencedor de uma tal «eliminatória» a conquista de uma posição hegemônica sobre os Estados do mundo é, em ambos os casos, algo perturbada pelo reconhecimento do risco terrível que comporta uma guerra nuclear. Todavia, a pretensão de ambos os lados de serem militarmente mais fortes do que o respectivo rival e de se tornarem, assim áefacto, social e militarmentef o Estado dirigente e modelar da Terra, é claramente perceptível em ambos os casos. Como noutros, esta pretensão exprime-se na crença numa missão mundial própria. Em fases anteriores, de que também já falámos, a crença na missão de difundir ou de fazer prevalecer uma religião sobrenatural associou-se muitas vezes ao ideal de dilatar o próprio domínio. A entrada de Napoleão na luta pela hegemonia ocorreu sob a bandeira da difusão dos objectivos da Revolução e, mais tarde, também, em nome da pátria francesa, da sua tarefa civilizadora e da sua glória. No caso de Hitler, cal ocorreu em nome da própria raça. As potências hegemônicas do fim do século xx legitimam a sua luta pela hegemonia sobre a humanidade através da missão que se arrogam de expandir uma determinada ordem social, capitalista ou comunista, segundo o lado que se considere. Quajido na Rússia, a seguir a uma revolução, um grupo de políticos de partido, para quem a doutrina social de Marx servia de guia, tomou o comando, a função desta doutrina modificou-se. A doutrina de Marx prognosticava que os conflitos sociais entre empresários industriais e operários terminariam, mais cedo ou mais tarde, em todo o mundo, com a vitória e a ditadura temporária do operariado. A doutrina alimentava a esperança no advento inevitável de uma sociedade sem classes e, por fim, de uma humanidade sem ricos nem pobres, sem exploradores nem explorados. A doutrina de Marx da vitória final do comunismo em todo o mundo, exactamente como a doutrina oposta do liberalismo econômico clássico, revelava uma peculiar cegueira teórica relativamente à função própria do Estado e às fontes específicas de poder de um governo estatal. Esta afinidade entre ambas as classes industriais no século XIX, e talvez ainda no século xx, é facilmente compreensível. Do ponto de vista dos operários, o Estado, no século xix, não passava de um aliado dos empresários; do ponto de vista dos empresários, o Estado, sobretudo o governo, através dos seus decretos, intervinha com freqüência no curso dos processos econômicos de uma maneira apenas perturbadora e sem critério.
Na seqüência da Revolução Russa, políticos de partido, cujo principal meio teórico de orientação era uma teoria que não entendia a função específica de um Estado e do seu governo, viram-se na posição de membros do governo e de representantes do Estado. Eles sofreram no próprio corpo as conseqüências da autonomia das funções estatais e, particularmente, das governamentais — autonomia que não era redutível a funções econômicas —, e depressa aprenderam com a prática a utilizar os instrumentos de política interna e externa do poder estatal. No entanto, eles não puderam modificar as estruturas fundamentais da doutrina social delineada por Marx, e aperfeiçoada por Lenine, que legitimava a sua revolução. Estas estruturas fundamentais eram economícistas e assentavam nas relações entre classes. Enquanto, na prática, o governo do Estado e, sobretudo, a utilização do monopólio da força física, representado pelos militares e pela polícia, tiveram uma influência determinante no desenvolvimento do Estado comunista, conservou-se, ao mesmo tempo, a crença ortodoxa de que o governo tinha apenas uma função superstrutural, ou seja, em primeiro lugar, uma função de defesa de uma classe exploradora. Enquanto o Estado conquistado pelos políticos revolucionários de partido se envolvia inevitavelmente no turbilhão das relações de força da política internacional, tal era interpretado, pura e simplesmente, em conformidade com a orientação teórica, como uma continuação da luta de classes. Enquanto, na prática, a ditadura da classe operária, que talvez fosse pretendida de início, há muito que se tornara já numa ditadura do Partido Comunista, os meios de orientação teórica mantiveram-se largamente inalterados, tal como tinham sido desenvolvidos por Marx e Lenine. A ditadura do proletariado, como estes tinham previsto, desaparecerá quando o capitalismo tiver sido vencido definitivamente, ou seja, em todos os países. E, assim, defendia-se a ditadura do partido e, principalmente, a da cúpula do partido, referindo-se, a propósito, a necessidade de proteger o Estado soviético dos ataques dos países em que o capitalismo ainda subsistia, nos quais a esperada revolução ainda não se consumara. A função da doutrina de Marx foi, assim, como que curiosamente alterada. A idéia da transição nacional para uma ordem social comunista, que, segundo Marx, deveria ocorrer em todos os países capitalistas devido à lógica interna do capitalismo, convertia-se agora numa arma da política externa soviética, em larga medida determinada pelos
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interesses do próprio Estado. O Estado soviético estava agora envolvido, como outros Estados antes dele, na luta pela hegemonia. A profecia marxiana da Revolução Mundial era-lhe, agora, útil. Mas também a função desta foi alterada, provavelmente sem que se tivesse plena consciência disso. Na prática, ela significava, agora, a dilatação da supremacia de um Estado — a União Soviética. O facto de a profecia marxiana de uma revolução bem sucedida da classe operária de todos os países ter adquirido, durante algum tempo, uma nova função — a de profetizar que a União Soviética revolucionária e, em especial, a sua nação hegemônica, a República Socialista da Rússia estariam destinadas a alcançar a supremacia sobre todos os Estados do mundo — desempenhou, seguramente, um papel de peso no crescente conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos. Tinha-se, assim, a impressão, que até certo ponto ainda hoje persiste, de que à direcção do Partido Comunista Russo não seria inteiramente estranha a idéia de uma hegemonia da União Soviética sobre os Estados do mundo. Actualmente, os porta-vozes da União Soviética acentuam constantemente o seu desejo de igualdade e de coexistência com os Estados Unidos. O que é, em si, promissor. E o caminho correcto.-Todavia, não se pode esquecer tão depressa que, até há pouco tempo, a União Soviética não propagandeava a igualdade e a coexistência com o mundo capitalista, mas a ruína deste. A profecia de uma futura revolução em rodos os Estados capitalistas e, assim, da sua sintonização com a União Soviética, não foi, certamente, a causa do antagonismo tantas vezes acerbo entre as duas superpotências e da escalada armamentista, da corrida aos armamentos. Mas a propaganda ofensiva, a agressiva doutrina dogmática soviética, contribuiu, sem dúvida, para uma agudização da luta pela hegemonia com os Estados Unidos. O governo americano procura, agora, pagar da mesma moeda. Para tanto, serve-se igualmente de uma crença ofensiva, que reivindica o prestígio e a validade mundial do sistema econômico e político, para o efeito um tanto embelezado, dos Estados Unidos. Até há pouco, faltava aos Estados capitalistas sob a égide destes um traço humanista universal. Nos últimos tempos, o credo capitalista, um tanto árido no que respeita a humanitarismo, adquiriu um rosto mais humano e ganhou força combativa, graças ao empenho dos seus representantes na defesa dos direitos humanos no mundo inteiro.
É bonito que a exigência de respeito pelos direitos humanos elementares encontre hoje mais audiência. Tal significa um fortalecimento da consciência humana, da simpatia e da compaixão dos homens uns para com os outros, que na Alemanha sob o domínio nazi desapareceu temporariamente por completo. Ainda hoje não se encontram vestígios desta elementar simpatia entre os homens e, por maioria de razão, para com os adversários, nas câmaras de tortura e nos campos de concentração das numerosas ditaduras. E encorajador que o governo de um Estado milítarmente tão poderoso como os Estados Unidos intervenha tão decididamente em defesa dos direitos do homem. Todavia, assim como os lemas da propaganda soviética de luta pela igualdade entre os homens e contra a opressão se destinam, essencialmente, à exportação, também o empenho do governo americano na defesa dos direitos humanos visa, sobretudo, a exportação. Por mais sérios que sejam estes objectivos, não nos podemos furtar à suspeita de que eles estejam a ser utilizados por este governo para, sobretudo, reforçar a sua pretensão a uma posição hegemônica entre os Estados do mundo.
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17 Eis, pois, duas potências que lutam entre si pela hegemonia a nível global e que começam por empregar meios relativamente pacíficos. Tenho boas razões para crer que estas diligências no sentido de conquistar uma posição hegemônica entre os Estados da Terra podem ser, no caso de uma potência singular, bem sucedidas temporariamente, mas nunca a longo prazo. As tentativas de fundar um Estado mundial dominado pela União Soviética, pelos Estados Unidos, pela China, ou seja por quem for, portanto, um imperium romanum global, podem, talvez, resultar a curto prazo, mas, a longo prazo, estão irremediavelmente condenadas ao fracasso. E importante afirmá-lo claramente, pois seria uma grande calamidade, caso alguma potência quisesse empreender uma tal tentativa de hegemonia mundial. Actualmente, ao que parece, nem os dirigentes da União Soviética nem os dos Estados Unidos são imunes aos ataques da febre hegemônica. Eles não são invulneráveis à tentação do sentimento exaltado, que se pode exprimir assim: «Queremos, temos de ser a potência mais forte da Terra!», ou então: «Nós somos a potência mais forte da humanidade.» Peco-vos, mais uma vez, que não me interpretem mal. Não falo aqui dos meus próprios desejos. E certo que não me sentiria bem num mundo em que um Estado ou um grupo de Estados dominasse toda a humanidade. Apesar disso, poderia reflectír-se sobre se a hegemonia de um Estado, que fosse o mais poderoso de todos, seria realmente um preço demasiado alto a pagar pela pacificação da humanidade e, consequentemente, pela abolição das guerras enquanto instituição permanente nas relações entre os Estados. Poderia mesmo dizer-se que, se um determinado Estado obtivesse a supremacia militar sobre todos os
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outros - ao ponto de possuir de facto um monopólio global da violência física e de o seu exército, convertido numa espécie de polícia do mundo, poder impedir todos os outros Estados de utilizar a sua própria organização militar em caso de conflitos —, se, pois, este Estado fosse tão poderoso que realizasse a pacificação da humanidade, a sua libertação das guerras, valeria a pena pagar por isso, pelo menos por algum tempo, o preço da subjugação a um Estado hegemônico e suportar a soberba do povo dominante, que nunca deixa de surgir nestes casos. E bastante corrente que um povo, militar e economicamente mais poderoso do que os outros, desenvolva uma imagem orgulhosa de si próprio. Afigura-se aos seus cidadãos, habitualmente, serem eles os melhores por nascimento, e terem, portanto, mais valor do que os outros povos. Digo, mais uma vez, que não desejo para mim, nem para vós, que vivamos num mundo com uma semelhante estrutura da humanidade. Todavia, quando disse acima que pensava ser muito improvável que um Estado singular conseguisse obter uma hegemonia efectiva sobre todos os outros Estados do mundo, não o disse por não o desejar. Falava e falo-vos como sociólogo, que investiga problemas da sociedade humana da mesma maneira e com a mesma atitude com que um médico procura estabelecer diagnósticos sobre o estado de saúde de uma pessoa. Se um médico, ao fazer um diagnóstico, se deixa influenciar pelos seus desejos, o diagnóstico não vale nada e não passa, provavelmente, de urn diagnóstico errado. O mesmo se passa em relação a um diagnóstico sociológico. Neste sentido, puramente do ponto de vista diagnóstico, já chamei a atenção para o facto de a configuração social da humanidade — principalmente a sua divisão em mais de cento e cinqüenta Estados, uns maiores outros mais pequenos, dos quais muitos possuem uma marcada tradição nacional, uma conformação nacional personalizada — torna improvável a hegemonia permanente de um único Estado. Já as duas guerras mundiais, em que a Alemanha procurou realizar a sua aspiração a uma posição hegemônica na Europa mediante uma vítótia militar, fracassaram pelo facto de o potencial na Alemanha não ter sido suficente para fazer frente aos meios de poder somados da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, e, na Segunda Guerra Mundial, também aos da União Soviética. Não vejo que haja um único Estado no mundo cujos meios de poder bastem para lhe garantit a hegemonia em face de uma aliança entre um número considerável de Estados mais
fracos. Além disso, o caminho para uma posição hegemônica de uma só potência, no actual estado de coisas, passa com toda a certeza por uma guerra nuclear e desembocará, provavelmente, como conseqüência disso, num ciclo de actos de violência. Para entender esta situação, não é de modo algum necessário supor que os governos dos actuais pretendentes a uma hegemonia mundial anunciem franca e expressamente o objectivo de alcançar uma posição hegemônica global, seja por intermédio de estratégias não bélicas, seja por meio de uma guerra. Eu constato, simplesmente, que a situação em que eles se encontram os empurra, a ambos, nesta direcção. Para ganhar segurança, cada uma das duas potências hegemônicas aumenta constantemente o seu potencial militar. O crescimento deste potencial afasta-as cada vez mais da esfera de concorrência de todos os outros Estados, que, assim, ficam em posição sempre mais desvantajosa. Simultaneamente, cada uma das potências hegemônicas tenta suplantar o seu adversário na corrida aos armamentos. E o que pretendo fazer ver quando digo que ambas são impelidas pelo automatismo da sua situação para uma posição hegemônica. Ao constatar que ambos os Estados são forçados, por uma situação compulsiva, a assumir uma hegemonia global, quando a probabilidade de um único Estado vir a exercer uma hegemonia efectiva e duradoura sobre todos os outros é diminuta, estou a tentar tornar compreensível o caracter paradoxal desta situação e, também, o seu perigo. Em fases anteriores do desenvolvimento dos Estados, como se disse, as coisas nem sempre se passaram assim. Os Britânicos, por exemplo, no decorrer de quatro ou cinco séculos, conseguiram uma integração, orientada a partir da Inglaterra, dos povos que viviam nas Ilhas Britânicas. A Inglaterra transformou-se na potência hegemônica, e o inglês na língua unificadora das ilhas. Os dialectos celtas sobreviveram, aqui e ali. A consciência nacional escocesa e galesa enfraqueceu, para o que não terá contribuído em último lugar a comparticipação nos dividendos do império mundial britânico. Só a tradição própria dos Irlandeses, em parte sob a influência da religião, impôs, mesmo ao cabo de vários séculos, uma fronteira ao movimento britânico de integração. Este é um dos muitos exemplos de processos prolongados de assimilação e de integração. Um breve relance de olhos pelo processo de integração, quase plenamente conseguido, por parte de um país hegemônico mais antigo,
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corna mais compreensível o processo de integração em curso sob a égide de uma potência hegemônica actualmente em ascensão, que ainda não vingou, mas que poderá vir a resultar. Observo com atenção redobrada os esforços que a Rússia Soviética investe na integração, ou talvez melhor dizendo, na russificação dos diferentes povos da União Soviética e, para além disso — ainda de forma hesitante —, do bloco de Estados do Leste. O que de modo algum implica que os dirigentes da União Soviética entendam este acontecimento como um processo de assimilação e integração. Influenciados por uma teoria de Estaline que acentua a autonomia das nações, eles poderão não estar conscientes da dinâmica a longo prazo destes processos de formação de Estados. Uma integração dos povos da União Soviética, que avance ao longo de séculos até se tornar irreversível, situa-se, em todo o caso, no domínio do possível. A russificação da Bulgária também é imaginável, mais difícil, porém, será conceber a da Romênia, da Hungria ou da Polônia. Mas poderemos, acaso, imaginar que a União Soviética - partindo da premissa de que numa possível guerra futura algum dos participantes pudesse sair vencedor —, sendo a vencedora de uma tal guerra, estaria em condições de levar os partidos comunistas ao poder em todos os países da Terra? Seria, acaso, provável que a União Soviética também então estivesse em condições de enfraquecer, por meio da assimilação e num espaço de tempo razoável a consciência nacional dos povos por ela dominados em toda a Terra, dos Indianos e dos Chineses, dos Senegaleses e dos Nigerianos, dos Ingleses, dos Italianos e dos Franceses, dos Brasileiros e dos Argentinos, de tal modo que eles cessassem de sentir a posição hegemônica dos Russos no mundo como uma dominação estrangeira? Será, acaso, imaginável que mesmo uma hegemonia indirecta da União Soviética sobre os Estados do mundo, por intermédio de presidentes autóctones do partido colocados à cabeça de uma hierarquia de partido que abrangesse a totalidade de cada país, seria suportável, a longo prazo, por parte de muiros Estados, com os seus perfis nacionais bem marcados, sem provocar constantemente a mais veemente das resistências? Mas se a possibilidade de uma dominação comunista de todos os Estados do mundo por um partido, mesmo que sob a hegemonia de um império soviético que abrangesse toda a Europa, é improvável e torna, de facto, provável o surgimento de renovados movimentos de oposição por parte dos povos oprimidos, para quê, então, a vitória? E então para quê, sobretudo, a
guerra? Poderá esperar, realmente, a União Soviética uma maior segurança de fronreiras tão alargadas? Não seria de admitir que, durante séculos, iriam deflagrar sempre novas lutas de libertação dos povos refractários à assimilação e que estas iriam consumir as forças do país hegemônico? E o mesmo se passaria no caso de uma supremacia mundial dos Estados Unidos da América. Um considerável trabalho de assimilação é-lhes já hoje exigido, mesmo quando se trata apenas de absorver no interior do Estado os muitos grupos de emigrantes. Nem sequer é ainda previsível se a população de língua inglesa dos Estados Unidos estará em condições de absorver a população que fala espanhol, ou se a língua espanhola se irá estabelecer nos EUA como segunda língua, em ligação com elementos da tradição cultural latino-americana. Partamos, também neste caso, da idéia ilusória de que um dos dois Estados hegemônicos inimigos do mundo actual, os Estados Unidos, pudesse sobreviver a uma guerra nuclear como vencedor. Também este Estado estaria, então, em condições de providenciar, dando o exemplo ou exercendo pressão, para que em todos os Estados do mundo fossem criadas instituições políticas e econômicas que correspondessem aos ideais dos grupos americanos dominantes, ou seja, sobretudo, formas parlamentares de governo e uma economia de mercado livre. Se, por um curro espaço de tempo e na pior das hipóteses, ainda seria possível que a União Soviética conseguisse manter todos os Estados do mundo sob a sua vigilância militar e policial e, desse modo, fundar provisoriamente um monopólio do poder, um Estado unificado abrangendo toda a Terra, tal seria, para um país regido por instituições parlamentares, uma tarefa quase impossível. Não podemos excluir a possibilidade de os Estados Unidos, como aconteceu com Roma, sob a pressão da necessidade de garantir a sua hegemonia no mundo, se transformarem de uma república oligárquica num país governado ditatorialmente ou, eventualmente, numa ditadura presidencial. Todavia, seja qual for a forma do seu governo, o potencial militar, econômico e populacional dos EUA seria ainda menos suficiente do que o da União Soviética para criar uma pax americana, um Estado global unificado, governado a partir de um único centro, que abranja toda a multifacetada humanidade e que assuma o papel de polícia dessa mesma humanidade.
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18 O que procuro demonstrar com estes ensaios de reflexão é o seguinte: em todas as fases anteriores do desenvolvimento da humanidade foi possível que o vencedor de uma luta pela hegemonia realizasse a integração efectiva de unidades de sobrevivência mais pequenas, anteriormente autônomas, no quadro de uma organização mais abrangente de dominação, e esse foi, de facto, em numerosos casos, o caminho pelo qual uma multiplicidade de tribos mais pequenas se transformaram em tribos maiores ou também em Estados, e uma variedade de Estados mais pequenos se transformaram num Estado maior. Todavia, a união, e com ela também a pacificação da humanidade, não é realizável deste modo - por intermédio de uma guerra. Muitas guerras passadas foram guerras pela hegemonia. Fossem quais fossem os fins a curro prazo dos próprios beligerantes, estas guerras tiveram freqüentemente como conseqüência a integração e, com ela também, a pacificação de grandes regiões. Os homens, na sua inevitável cegueira, só raramente encontraram, até hoje, outro meio para levar a paz a grandes regiões que não fosse o do conflito bélico. Esta longa tradição chegou até aos nossos dias. Instituições como o exército permanente e todo um complexo tradicional de meios de orientação que impelem constantemente para conflitos bélicos entre os Estados são disso o indicio. Agora, porém, encontramo-nos, nós, a humanidade — repito-o —, perante um problema sui generis. Trata-se de um problema que é, em determinados aspectos, diferente dos que se colocaram aos homens em fases anteriores do seu desenvolvimento. Antigamente, a questão que se punha era a da união e, habitualmente também, a da pacificação de partes da humanidade. Agora, alcançámos um nível em que a questão
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é a pacificação num plano global, portanto, de toda a humanidade. Esta tarefa não é realizável de modo tradicional, com as instituições e os modos de pensar tradicionais, que em boa parte remontam à época dos Estados dos príncipes. O paradoxo desra nova situação assenta no facto de a humanidade, devido às distâncias de tempos remotos, se ter tornado extremamente multifbrme, e, por outro lado, simultaneamente, devido ao actual encurtamento das distâncias e ao facto de os laços de interdependência se tornarem sempre mais longos, complexos e sólidos, se terem aproximado extraordinariamente todas as suas partes, mesmo as mais recônditas. As duas grandes potências da actual humanidade desenvolvem o seu armamento em concorrência uma com a outra, como se para elas, à semelhança das potências de outros tempos, ainda existisse a possibilidade de uma vitória e de obterem uma maior segurança para o seu território central por intermédio da anexação de territórios ou da incorporação de grupos da população do adversário derrotado. Mas a idéia de que se pode conseguir maior segurança, como aconteceu por vezes em períodos anteriores, por intermédio de uma guerra é ilusória. Quando se pensa assim e se age também em conseqüência, é porque se procura, pura e simplesmente, enfrentar uma,situação nova com meios intelectuais antiquados. Talvez soe como uma trívialidade se eu disser que a segurança de um Estado já não é alcançável, na situação actual, pelos meios da escalada armamentista, ou até mesmo da guerra. Que fazer, então? Qual é o problema? Ele é quase insolúvel, pelo menos, por agora. Uma vez que a coacção do exterior, na forma de um poder hegemônico, já não parece ser muito prometedora para assegurar a paz a nível mundial, os povos da Terra encontram-se, hoje, perante a rarefa alternativa de contribuir gradualmente para a renúncia às instituições bélicas tradicionais, mediante a sua auto-restrição voluntária e, eventualmente, também pela subordinação voluntária à arbitragem da humanidade. Talvez a massa dos homens e, em particular as camadas dirigentes dos Estados, possam evoluir muito gradualmente até este nível civilizacional. Todavia, face à dura hostilidade, à aversão tenaz e selvática, ao desrespeito infundado, que determinam hoje com bastante freqüência, aberta ou encapotadamente, a conduta de membros de Estados diferentes nas relações entre si, a tarefa de uma pacificação da humanidade não imposta do exterior, mas assente em decisões voluntárias, começa por afigurar-se insolúvel. Ela poderá apenas ser divulgada como a
única alternativa possível à catástrofe — embora, claro, sem grande esperança. E bem possível que os homens só possam ser motivados para um corte com a tradição rotineira, para uma renúncia voluntária, inclusivamente por parte dos Estados mais poderosos, à defesa da segurança dos respectivos territórios por meios violentos, através da calamidade de uma nova guerra. Mas, então, pode ser já demasiado tarde. Chamei já, várias vezes, a atenção para as peculiaridades da embriaguez hegemônica. A política das duas grandes potências actuais só é explicável neste sentido, nomeadamente pela esperança secreta dos seus dirigentes de que poderiam liquidar, desta ou daquela forma, o adversário sem serem atingidos no centro do seu próprio potencial, de modo que o seu próprio Estado se tornaria, então, com toda a segurança, na potência dominante da humanidade. Tais esperanças só se podem acalentar na base de um sentido reduzido das realidades. Não é difícil admitir que, na situação actuaí, as armas de ataque ou de defesa não podem oferecer a um país a segurança suficiente que lhe permita sair de uma guerra sem os mais graves prejuízos para o seu potencial de poder, portanto, sem perder por longo espaço de tempo, talvez para sempre, o seu papel dirigente entre os Estados do mundo. Nesta situação, só acordos é que podem oferecer segurança aos Estados. A ratificação de acordos vinculativos entre os Estados pressupõe, porém, um grau considerável de confiança recíproca. Mas é em relação a este aspecto que estamos mal. A extrema desconfiança, constantemente alimentada por uma maré de propaganda, determina hoje em dia as relações entre muitos Estados e, em particulat, entre as duas grandes potências. Surge, assim, no centro do nosso campo de visão, uma tarefa que talvez não seja totalmente irrealizável e sobre a qual, em todo o caso, se pode trabalhar: a da redução da desconfiança. Se se quiser evitar a supremacia de um só povo, ou seja, a coacção vinda do exterior, será necessário colocar exigências maiores a si mesmo, à própria capacidade de tolerância. A diminuição da desconfiança entre os Estados não é realizável de hoje para amanhã. Ela exige o esforço conjunto e paciente de muitos homens, que lutem nos seus países para que cresça a disponibilidade para resolver os conflitos entre os Estados, seja por meio de compromissos não violentos, seja por via da arbitragem exercida por órgãos supra-estatais. A diminuição multilateral e não apenas unilateral das hostilidades absolutas entre grupos humanos é, sem dúvida, uma das tarefas que a guerra que nos ameaça coloca aos homens ainda vivos.
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Em última análise, todo este trabalho visa criar uma confederação pacífica dos Estados a nível mundial, assente na união voluntária destes e que possua órgãos eficientes para a resolução de conflitos enrre Estados e para a penalização daqueles que desrespeitem a paz. Ela é a alternativa à corrida aos armamentos das duas potências hegemônicas, à sua dominação e à muito freqüente paralisação dos esboços de uma tal confederação, além de ser também, com toda a certeza, a alternativa à hegemonia de uma única grande potência sobre todos os Estados do mundo. Uma tal confederação válida de todos os Estados começa por ser apenas, seguramente, uma grande palavra. Muita água correrá sob as pontes antes que essa palavra se traduza em actos. Todavia, talvez não seja inútil continuar a ter em vista este mesmo objectivo, como algo em direcção ao qual se trabalhe com muita paciência e cautela, mesmo que ele não seja realizável durante o tempo de uma vida. Muitos homens cometem, a este respeito, um erro. Fundamentalmente, eles só se sentem capazes de se responsabilizar por objectivos a curto prazo. Só se interessam por aquilo que crêem que se possa realizar amanhã, depois de amanhã ou, em todo o caso, durante o tempo da sua própria vida. «Depois de nós, o dilúvio», é o que eles dizem; «o que acontecer depois da minha morte não me diz respeito.» Porém, é precisamente disso que se trata: trabalhar pela paz entre os homens é uma tarefa a longo prazo.
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Além disso, esta tarefa não é realizável sem uma compreensão inteligente das relações de equilíbrio muito instáveis da hierarquia dos Estados. Tomemos, por exemplo, o caso actual dos Estados europeus ocidentais. Eles são aliados dos Estados Unidos. Uma tal posição exige uma elevada compreensão das questões relativas ao equilíbrio político. Nos países europeus, alguns grupos exigem o abandono completo da aliança americana. Se esta exigência fosse satisfeita, isso significaria uma oscilação muito significativa do equilíbrio do poder em favor da União Soviética. Porém, ao mesmo tempo, mantém-se o perigo, não pequeno para os Estados europeus, de resvalarem do papel de aliados para o de Estados vassalos. Esre perigo seria certamente mais pequeno, se os Estados da Europa ocidental ou, pelo menos, alguns deles, se unissem. Por outras palavras, a situação mundial actuai põe os Estados europeus, e talvez muito particularmente a República Federal, em risco de se tornarem defacto Estados vassalos da União Soviética ou dos Estados Unidos. Manter o justo equilíbrio entre estas duas possibilidades talvez só seja possível em associação com os outros países europeus. Todavia, esta indicação mostra, simultaneamente, como é irrealista pensar em termos de alternativas absolutas e, portanto, também, de inimizades absolutas. Na situação actual de polarização antagonista, é este freqüentemente o caso. Pensa-se em termos de preto e branco, de tudo ou nada: ou afastamento dos Estados Unidos, ou dedicação incondicional a eles. Manter o justo equilíbrio em casos destes é uma tarefa política muito mais difícil do que fazer uma política do «tudo ou nada». Não menos difícil para os países europeus, e, particularmente, para a Alemanha Federal, é a compreensão de que a decisão sobre a guerra
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nuclear já quase não está nas suas mãos, mas quase exclusivamente nas mãos das superpotências e dos seus governos. De momento, não quero ocupar-me dos problemas de outros países europeus que, como a Inglaterra e a França, graças à posse de armas nucleares próprias, possuem um certo grau de autonomia. Para os cidadãos da República Federal não deixa de ser importante que romem consciência de que a decisão sobre se irão viver em guerra ou em paz só em muito pequena medida depende deles. Eles só têm voto no que diz respeito ao seu destino na medida em que possam influenciar as decisões de ambos os Estados hegemônicos e o equilíbrio de poderes entre eles. Para um povo que estava habituado à independência, é difícil não fechar os olhos para o facto de que o seu Estado, depois de ter perdido duas guerras, perdeu boa parte da sua autonomia. Talvez seja mais difícil ainda tirar deste facto as conseqüências práticas que se impõem. Entre estas conseqüências está o facro de, para os alemães federais, ser quase impossível realizar uma política de paz por conta própria. Façam eles o que fizerem, a questão decisiva é a do significado que isso possa ter para o equilíbrio de poderes entre as duas potências hegemônicas. Se a República Federal se distanciar do seu aliado americano, por exemplo, através de uma tentativa de neutralismo, tal significaria, automaticamente, um enfraquecimento dos Estados Unidos da América e, em conseqüência disso, um fortalecimento da União Soviética. Certamente, não caberá a toda a gente ver estes problemas políticos como problemas de equilíbrio de poderes. Porém, é esta a verdadeira estrutura das relações entre os Estados; só nos aproximamos do núcleo da questão se tivermos uma compreensão da instabilidade do equilíbrio do poder entre os Estados. Na corrida aos armamentos, o problema é sempre o do equilíbrio. Ambas as potências hegemônicas receiam constantemente ficar atrás da potência adversária no que respeita às alianças ou aos sistemas de armas. Há pouco tempo ainda, os Soviéticos tinham a iniciativa na corrida aos armamentos. Actualmente, têm-na os Americanos. Todavia, a tentativa do governo americano de, com o desenvolvimento de novos sistemas de armas, obrigar os Soviéticos, economicamente mais fracos, a acompanhá-los — logo, a fazerem despesas com armamentos que dificilmente poderão suportar — não deixa de ser perigosa. Com isso, os Americanos obteriam, temporariamente, a posição de potência hegemônica sem igual, portanto, de potência militar mais
poderosa da Terra. No entanto, com este deslocamento do equilíbrio de poder em seu prejuízo, os dirigentes da União Soviética poderiam sentir-se gravemente ameaçados; poderiam sentir que, desse modo, ficariam numa posição de inferioridade permanente em relação aos Estados Unidos. Não se pode prever como reagiriam os dirigentes da União Soviética quando chegassem à conclusão de que estariam em perigo de não conseguir acompanhar mais a corrida aos armamentos; quando tivessem de reconhecer que estariam a perder terreno, devido a uma desigualdade crescente dos potenciais econômicos e militares em relação aos Estados Unidos. Seria perfeitamente imaginável que os dirigentes da União Soviética, num caso destes, e talvez tomados de pânico, se decidiriam por uma guerra preventiva, mesmo sabendo que esta decisão seria idêntica a um acto de autodestruição. Como é natural, o inverso também é válido. Os grupos dirigentes dos Estados Unidos, numa situação de pânico, por exemplo, devido à descoberta inesperada de armas soviéticas até então mantidas secretas, também poderiam tomar a decisão de antecipar o ataque esperado da parte dos Soviéticos. Estas considerações, a descrição antecipadora de futuros possíveis, não são jogos ociosos da imaginação. Se atentarmos em situações deste tipo, estaremos mais bem colocados para ponderar sobre o que se pode e o que se não pode fazer. É habitual, em face de tais perigos, como o da decisão, devido à sensação de se estar a ser encostado à parede pela outra parte, de uma guerra preventiva suicidaria chamar-se a atenção para a necessidade do equilíbrio militar entre os dois Estados. O esforço contínuo no sentido de manter a paridade do armento mediante negociações entre os representantes de ambas as potências militares mais poderosas é certamente imprescindível, mas dele decorre, também, que seja inevitável o receio do desequilíbrio. Quando os representantes de ambas as potências não conseguem realizar progressos nos seus esforços, talvez devessem soar de todos os lados, mais alto e com mais veemência, as exigências dos outros países no sentido de as duas grandes potências recorrerem à ajuda de conselheiros e de árbitros neutrais. Com efeito, não estou certo de que se possa realmente esperar que sejam os políticos dirigentes dos dois Estados hegemônicos a decidir, sozinhos e sem a ajuda de conselheiros menos directamente envolvidos, sobre o destino da humanidade.
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20 Estou absolutamente certo de que o problema da escalada armamentista não se resolve restringindo as negociações a acordos sobre os armamentos. O receio de uma possível supremacia militar do adversário é, hoje em dia, em larga medida reforçado pelas manifestações de uma profunda hostilidade emocional por parte dos representantes de ambos os Estados. Esta hostilidade, como todos sabeis, não tem as suas raízes somente na ameaça militar recíproca; tem-nas, também, no facto de as duas maiores potências militares do mundo representarem credos sociais diferentes e, de facto, opostos. De um lado, estão os representantes de um sistema social comunista, inspirados pela crença no valor insuperável deste sistema para toda a humanidade. Do outro lado, encontram-se os representantes de uma ordem social capitalista. Estes são igualmente inspirados pela idéia de que o seu sistema econômico, a instituição de uma concorrência empresarial relativamente livre, é a melhor organização, é a organização ideal, e de que só ela poderá assegurar o bem-estar crescente e o progresso da humanidade. Esre antagonismo entre instituições e ideais sociais é depois ainda reforçado pelo facto de, com a Revolução Russa, se ter instalado uma ditadura de partido que se perpetua, ao passo que a instituição econômica da concorrência empresarial mais ou menos livre, na maioria dos Estados mais desenvolvidos e, principalmente, nos pf°~ prios Estados Unidos da América, se associou à instituição política "° sufrágio individual e secreto e à concorrência relativamente livre e flao violenta de pelo menos dois partidos, portanto, a uma emulação aos partidos com vista a ganharem os votos dos cidadãos e, por seu interr^6" diof o acesso aos postos de governo.
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No conflito das duas grandes potências agem permanentemente um sobre o outro dois impulsos, dois receios elementares, estreitamente relacionados, mas que podem ser claramente destrinçados na prática e na teoria. Primeiramente, temos a preocupação dos povos americano e soviético, e dos povos seus aliados, pela respectiva segurança física — o receio ancestral que um grupo humano sente de ser destruído por outro. Este temor é uma condição até agora inalterável da vida dos homens, uma conditio humana. Se a União Soviétida e os seus aliados obtivessem militarmente a supremacia, estariam em situação de matar milhões de cidadãos dos Estados Unidos e dos países seus aliados na Europa ocidental e na Ásia; poderiam pôr estes países de joelhos. O mesmo se passaria se o equilíbrio dos armamentos se modificasse em favor dos Americanos. Então, os Estados Unidos e os seus aliados poderiam levar a destruição e a morte aos povos da União Soviética e aos seus aliados. Mas isto não é tudo. Ao receio da ameaça física, alia-se, em ambos os lados, um outro: o receio de serem ameaçadas as próprias instituições sociais e o da perda do sentido e do valor da vida, em conseqüência da sua destruição. Enquanto força motriz das hostilidades, da permanente difamação mútua, não se deverá atribuir a este receio um significado menor do que ao temor do extermínio e da destruição física. Graças a um poder bélico superior, os Soviéticos poderiam impor aos Americanos e aos seus aliados as suas instituições políticas e sociais. Na base de um poder militar superior, poderiam instituir uma ditadura do Partido Comunista nos EUA e, em cada um dos Estados seus aliados, poderiam transformar todas as empresas privadas em empresas estatais — numa palavra, poderiam abolir as formas de vida e de poder existentes e colocar, em seu lugar, outras, segundo o seu próprio modelo. Os livros autorizados do sistema confessional comunista, muito particularmente também as obras de Karl Marx, imprescindíveis para a legitimação da ditadura comunista do partido, contêm numerosas expressões de desprezo e de ódio dirigidas contra todos os que se recusam a partilhar a palavra de ordem de uma luta de classes implacável ou a crença na necessidade de uma revolução sangrenta e de uma ditadura como sua conseqüência. No sentido da tradição que remonta a Marx e a Lenine, uma revolução, portanto, de um ponto de vista prá-
tico, a utilização da força física, aparece como a única via para a resolução dos conflitos entre trabalhadores e empresários. O sistema confessional comunista apresenta a queda do capitalismo como se se tratasse de uma necessidade imanente ao desenvolvimento da humanidade. Esta é a razão pela qual, nos países capitalistas, ao receio da destruição física pelo poder militar comunista se alia o receio da destruição das formas tradicionais de vida e de poder, e o da sua substituição por instituições de modelo soviético. As camadas dirigentes da aliança de Estados encabeçada pelos Estados Unidos sentem-se particularmente ameaçados por este perigo. Uma vitória militar da aliança de Estados comunistas — partindo do princípio de que ela seria possível apenas com a utilização de armas convencionais, e sem uma contaminação motivada pela utilização de armas nucleares — acarretaria consigo uma completa degradação social dos grupos humanos anteriormente dirigentes e, em muitos casos, o seu encarceramento ou a sua deportação para campos de concentração distantes. Os diferentes sistemas confessionais das sociedades capitalistas apresentam contornos menos nítidos do que os das sociedades comunistas, que se acham expostos numa série de livros autorizados, dos quais são dados a ler excertos aos indivíduos já na escofa, e que contribuem, em conformidade com a forma ditatorial de governação, para uma uniformização relativamente elevada das formas individuais do saber e do pensamento. Todavia, apesar de nas sociedades capitalistas faltarem livros que desempenhem um papel fulcral semelhante, enquanto representantes de um sistema social confessional, como as obras de Marx, Engels e Lenine o fazem na União Soviética, não falta, no entanto, um consenso ideológico bastante alargado que não se esgota, certamente, numa recusa do sistema confessional característico dos países comunistas, mas que encontra nessa recusa a sua expressão talvez mais concisa e generalizada. Em ligação com estas expressões colectívas de rejeição do sistema confessional comunista, que se estendem, com uma grande riqueza de cambiantes por todo um espectro de ideais não comunistas, encontramos também contrapartidas da estigmatização e da difamação do capitalismo, para as quais Marx criou o modelo quase insuperável e que, na União Soviética, foram transferidas, inesperadamente, do plano da política interna para o da política externa. Inseridas nos diferentes sistemas confessionais dos países capitalistas, encontram-se numerosas contrapartidas da forma de argumen-
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cação introduzida por Marx, que estigmatiza o adversário, pura e simplesmente, como digno de destruição, como se fosse um mal absoluto. Assim, o receio que existe no lado americano também ocorre no lado soviético. Também deste lado não se trata só do receio da destruição física, mas, ao mesmo tempo, do da destruição social. Uma supremacia militar irresistível dos Estados Unidos e dos seus aliados ameaça, para além da existência física dos povos do bloco de Leste, igualmente as suas formas actuais de vida e de poder. E o perigo para as camadas dirigentes é também, neste caso, particularmente grande. Seriam, sobretudo, os membros dos partidos comunistas, que desempenham nestes países um papel determinante, quem correria o risco de perder as suas posições privilegiadas após uma derrota militar. Grupos inteiros seriam, talvez, condenados pelos tribunais de um novo regime — como, no caso de uma vitória comunista, aconteceria com os grupos dirigentes dos países capitalistas — a uma vida nas prisões ou em campos de concentração. Também, neste caso, o perigo da guerra não significa para muitos homens apenas uma pura e simples ameaça à sua vida, mas, ainda, uma ameaça à sua existência social, representando, assim um grave perigo para tudo o que, aos seus olhos, dá sentido e valor à vida.
21 Quando apelamos a uma reflexão sobre possíveis estratégias de desanuviamento, é útil conceber, com mais clareza do que acontece habitualmente, estas duas raízes da ameaça mútua e do receio de ambos os lados um em relação do outro, o seu aspecto social e físico. Temos, por vezes, a sensação de que, freqüentemente, a alguns homens parece ser muito simples e evidente o que se poderia fazer para libertar os grupos dirigentes de ambas as superpotências, intrincadas uma na outra, do corpo-a-corpo congelado em que se encontram e, deste modo, também, da compulsão fatal da escalada armamentista. A muitos parece ser suficiente mostrar ao mundo inteiro que eles próprios são pessoas de boa vontade e que, consequentemente, são pela paz. Só isso já seria um contributo significativo para evitar o perigo da guerra. Muitos homens parecem pôr, hoje, as suas esperanças nos acordos das duas potências militares sobre a restrição dos armamentos. Tais acordos são, sem dúvida, de grande utilidade. Porém, é precisamente quando estamos conscientes da dupla raiz da ameaça bilateral que devemos colocar a questão de se os acordos sobre armamentos militares, só por si, podem ser alguma vez suficientes, se eles são sequer possíveis, enquanto a outra raiz da profunda hostilidade recíproca das duas potências hegemônicas não for igualmente tomada em consideração. Com isto, quero dizer o seguinte: por muito úteis e indispensáveis que sejam os acordos sobre restrições dos armamentos, eles só têm uma probabilidade muito pequena de gerarem, a longo prazo, uma paragem na corrida aos armamentos, pois a continuação desta, sob a forma de uma escalada que se incrementa a si própria, será sempre de novo
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alimentada pelo receio mútuo, pela desconfiança de ambos os lados e, sobretudo, pela inimizade implacável de ambas as camadas dirigentes, que encontra a sua expressão na contínua difamação ideológica de ambas as partes, e para a qual, além disso, há, como se disse, boas razões. Creio que a probabilidade de parar o processo de corrida aos armamentos é pequena enquanto não nos esforçarmos, simultaneamente, por um desarmamento ideológico. Esta é, porém, uma tarefa que exige, em larga medida, uma estratégia bem diversa do procedimento que se encontra no centro dos acordos sobre armamentos. Sem dúvida que as negociações entre especialistas desempenham um papel fundamental nos esforços para o desarmamento ideológico entre ambos os grupos de povos que se ameaçam reciprocamente. Porém, dentro dos povos ameaçados, há também outros círculos que podem e devem participar nesta tarefa. E bastante irrealista ter esperanças de que ambos os lados estejam em condições de parar, efectivamente e a longo prazo, a dinâmica auto-sustentada da corrida aos armamentos, caso eles continuem a manifestar, nos seus discursos de propaganda, a implacável hostilidade recíproca que se exprime, sobretudo, na crença comum de que a outra parte, .mais cedo ou mais tarde, terá de desaparecer da face da Terra. Se observarmos mais rigorosamente o desenvolvimento desta guerra fria, verificaremos que a força e o impacte dos insultos recíprocos estão sujeitos a oscilações. Durante algum tempo, os comunistas estiveram por toda a parte na ofensiva em matéria de injúrias contra os capitalistas. Em todas as crises dos países capitalistas, que de resto pertencem à sua especificidade estrutural normal, eles viam a crise final. Todas as gerações comunistas esperavam sempre de novo que a profecia marxista do declínio do capitalismo se consumasse durante o tempo da sua vida. Em cada esquina era vaticinada triunfalmente a revolução. Em certa medida, Marx tinha conseguido esterilizar teoricamente o processo de uma revolução. Por isso, poderia facilmente esquecer-se que as revoluções são acontecimentos sociais exactamente tão violentos, sangrentos e homicidas como as guerras. Anteriormente, falava-se, com freqüência, de uma guerra justa ou injusta; pode ser que, aos olhos de muitos comunistas, uma revolução apareça como um acto de violência justo, e uma guerra como um acto de violência injusto. Em todo o caso, isto é bem um exemplo da dificuldade em promover o desarmamento sem recorrer a um desarmamento ideológico. E difícil
imaginar que os Estados com regimes parlamentares sejam capazes de fazer um acordo duradouro sobre a corrida aos armamentos enquanto, simultaneamente, os seus parceiros de negociações propagam a crença na ocorrência inevitável de uma revolução sangrenta nestes Estados. Entretanto, é certo que a idéia de que os Estados capitalistas desaparecerão por eles mesmos, com a ajuda de uma revolução, ainda durante a vida dos crentes, perdeu muito da sua força persuasiva. Mas os moinhos da propaganda continuam a girar a toda a velocidade com os mesmos cabeçalhos. E difícil ter esperanças na possibilidade de uma coexistência relativamente pacífica com outros grupos de homens a quem, ao mesmo tempo, se ameaça permanentemente com o declínio e que se consideram, do ponto de vista ideológico, como desprovidos de valor. O mesmo é válido para o outro lado. Enquanto soviéticos e comunistas, os dirigentes da União Soviética têm mostrado, com freqüência, uma susceptibilidade muito especial em face de medidas ou de afirmações que parecem recusar-lhes o reconhecimento como grande potência de pleno direito entre os Estados mais desenvolvidos da Terra. Como resposta à tradicional ofensiva ideológica dos países comunistas, tem vindo a reforçar-se, ultimamente, a ofensiva ideológica dos países capitalistas, particularmente dos Estados Unidos. Fala-se do mundo civilizado do Ocidente, visando as ditaduras de partido dos países comunistas, que surgem aos olhos desse Ocidente como a expressão da não liberdade e da não igualdade institucionalizadas. Tal como os homens se deixam muitas vezes enganar nos países comunistas pela mágica expectativa de que o capitalismo desaparecerá por si próprio, por obra e graça da tão ansiada revolução, também há quem se entregue esperançosamente, segundo parece, em muitos círculos do Ocidente, à expectativa mágica de que o regime comunista, mais cedo ou mais tarde, desaparecerá na União Soviética e nos Estados seus aliados, seja devido à inércia inibitiva da sua burocracia, seja por eles não conseguirem acompanhar o desenvolvimento dos Estados de regime parlamentar. Também aqui se multiplicam as expressões de desprezo ideológico pelo lado oposto. É esta situação que torna necessário um desarmamento ideológico, mas não o entendo como um abandono dos objecrivos e das convicções sociais próprios. Não há nenhuma razão para que os comunistas não possam conservar a sua atitude valorativa e os capitalistas a sua. Também não recomendo o neutralismo, tudo isso está longe de mim.
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O que eu recomendo é uma política ampla e geral de moderação — uma moderação substancial da hostilidade face a grupos humanos ou a indivíduos que não partilham a convicção de outros. Em face do perigo de uma guerra atômica, polêmicas apaixonadas e intolerantes entre homens de diferentes crenças partidárias são perigosas. Penso, portanto, que será necessário falar mais e mais claramente sobre aquilo que diz respeito a todos nós, pois o nosso fervor e a nossa própria paixão no ódio ou no desprezo pelo outro lado incrementam a passíonaüdade do conflito, que ainda hoje anima ambos os governos, os governos principais responsáveis, em última instância, pela guerra e pela paz. O perigo de uma guerra nuclear é demasiado grande e as conseqüências de uma tal guerra, para os povos da Terra que viessem a ser afectados por ela, são demasiado terríveis para que, na nossa época, nos possamos continuar a dar ao luxo de uma hostilidade implacável e inconciliável, de uma incessante difamação e imprecação mútuas, numa palavra: ao luxo da intolerância ideológica. Como disse, isto nada tem a ver com a rejeição das convicções próprias, refere-se apenas ao tom de voz com que as defendemos. Mais do que isso: exige o reconhecimento, no campo dos países de orientação capitalista, de que o regime-comunista dos países do bloco de Leste é demasiado forte e poderoso para que possa ser suprimido de outra maneira que não seja por uma vitória sem ambigüidades em conseqüência de uma guerra nuclear. Exige, por outro lado, o reconhecimento, no campo dos países de orientação comunista, de que os países governados de um modo capitalista são demasiado fortes e poderosos e de que, além disso, a orientação parlamentar dos homens e a economia de mercado estão ali demasiado enraizadas para que possam ser eliminadas de outro modo que não seja por meio da violência nua e crua vinda do exterior, portanto, por meio de uma vitória comunista numa guerra nuclear. Em ambos os casos, é mais do que duvidosa a possibilidade de uma vitória numa guerra deste gênero, e que tal guerra não tenha, em última análise, por conseqüência o povoamento das regiões contaminadas por uma nova população e, assim, uma transformação completa do mapa da Terra. Os dirigentes de ambos os campos entregam-se certamente à esperança de que o regime adversário se irá desmoronar por si próprio dentro de pouco tempo, devido às suas contradições internas ou à sua incapacidade burocrática, de tal modo que, no fim, talvez só seja pre-
ciso dar-lhe o golpe de misericórdia. Ambos os lados subestimam a força e a vontade de resistência do lado oposto. Mas que acontecerá se a desejada e magicamente esperada auto-execução do adversário não tiver lugar num espaço de tempo previsível? A probabilidade de que os sentimentos de mútua inimizade que foram acumulados, que, além disso, são constantemente reforçados em ambos os lados por um sistema cerrado de argumentação, sejam descarregados involuntariamente em actos bélicos e abram assim o ciclo de violências é, pois, muito grande. Não é estranho que, apesar de se estar consciente do perigo que as grosseiras armas físicas representam, não se esteja consciente do perigo que representam as armas do pensamento, da maneira de pensar, que despertam esperanças falsas e que empurram para a guerra por meio do atiçar de inimizades mútuas? Como se poderá tomar providências quando só se negoceia e reflecte sobre a redução de armamentos e não, simultaneamente, sobre o que os homens que decretam o fabrico destas armas e eventualmente a sua utilização pensam uns dos outros? Falei anteriormente na anulação da desconfiança. Isto é imprescindível, mas trata-se de um processo difícil e longo. Não exige apenas uma maior moderação dos interlocutores envolvidos na guerra fria — na guerra de prevenção — de ambas as grandes potências, exige, além disso, algo muito mais difícil: a renúncia a determinados axiomas perigosos da concepção de mundo de ambos os partidos; assim, por exemplo, a renúncia à esperança de que o lado adversário, a par da sua forma de regime e de economia, desaparecerá brevemente da face da Terra e que será substituído pela forma oposta de regime e de economia. Seria bom, e também muito útil para minimizar o perigo de guerra, se os Americanos e os seus aliados reduzissem a propaganda que apresenta o comunismo como algo totalmente diabólico. Talvez ainda não se esteja neste bloco muito consciente de que os Estados pluripartidários terão de viver, num futuro previsível, como vizinhos dos países do bloco de Estados governados de um modo comunista e ditatorial, a não acontecer uma guerra que modifique todo o mapa da Terra. A violência não distingue entre as suas vítimas. Não se pode abominar e estigmatizar o apelo à violência da revolução no interior dos Estados e, ao mesmo tempo, preparar e louvar o emprego da força nas relações entre os Estados. E, por outro lado, seria bom que os dirigentes do bloco soviético pudessem de igual modo amenizar gradualmente a sua propaganda
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revolucionária. Para o bloco soviético também é válido o facto de que os homens que o constituem terão de viver num futuro previsível juntamente com os Estados governados de um modo parlamentar e providos, em medida variável, de uma economia de mercado livre. Não se pode esperar que uma vida pacífica conjunta seja possível, que o perigo de guerra diminua, enquanto no bloco soviético as crianças tiverem de aprender na escola e, mais ainda, os estudantes, nas universidades que os países do bloco de Estados capitalistas e parlamentares se irão transformar, mais cedo ou mais tarde, por meio de uma revolução sangrenta, em ditaduras comunistas do partido do proletariado, em conformidade com o modelo da União Soviética. Como jã se disse, a violência não distingue entre as suas vítimas. Não se pode esperar uma diminuição do perigo de virem a ser cometidos actos de violência bélica nas relações entre Estados e, ao mesmo tempo, profetizar e propagar, como palavra de ordem altamente louvável, uma subversão violenta, uma revolução no interior de outros Estados. A diminuição da desconfiança é, certamente, uma tarefa de alguma urgência, mas não devemos iludir-nos: trata-se de uma tarefa difícil. As duas grandes potências em luta corpo a corpo apenas poderão tentar diminuir, durante um espaço de tempo prolongado e passo a passo, a inimizade entre elas e ganhar, assim, um pouco mais de confiança uma na outra. Talve2 este processo possa ser favorecido pelo facto de elas não estarem a ser instigadas uma contra a outra e a fazer guerra por um daqueles conflitos de interesses que tornam impossível a coexistência enquanto povos autônomos. Os povos do bloco soviético, para poderem existir com relativa autonomia, não precisam da terra onde vivem os Americanos, e os estes, enquanto povo, não precisam das regiões da União Soviética. Se o conflito de interesses fosse deste tipo, seria então significativamente mais difícil desviar a humanidade de uma guerra. Porém, os conflitos de interesses de ambas as grandes potências não assentam em reivindicações de territórios; eles baseiam-se, principalmente, no facto de elas se ameaçarem reciprocamente na sua segurança e, ao mesmo tempo, no de se terem tornado involuntariamente rivais na luta pela posição cimeira na hierarquia de Estados, pela posição de potência mais poderosa da humanidade. Hoje, cada uma das duas grandes potências, a União Soviética ou os Estados Unidos, seria de facto, eventualmente, a nação mais poderosa da Terra, caso a outra não
estivesse a obstruir-lhe o caminho. A isso acrescenta-se, naturalmente, a diferença das suas instituições e ideais sociais, que ambas tentam difundir por toda humanidade. Não é devido a reivindicações territoriais inconcílaveis, mas, sim, enquanto rivais na luta pela hegemonia entre os Estados do mundo e enquanto representantes de sistemas sociais opostos, que elas se ameaçam reciprocamente, que os grupos dirigentes de ambas as grandes potências se confrontam com a maior das desconfianças. Cada um deles crê que o futuro lhe pertence. Os que se vêem como libertadores da opressão de uma classe exploradora são, para o outro lado, opressores ditatoriais do povo. Este intrincado de atitudes e sentimentos fundamentalmente hostis impregna todas as negociações e dificulta todos os esforços com vista a alcançar compromissos.
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22 Estes sentimentos de hostilidade são, certamente, partilhados por largas camadas de ambos os grupos populacionais. Pode ser prejudicial para a existência social das pessoas, talvez até perigoso para a sua existência física, se for posta em dúvida a sua lealdade relativamente às crenças sociais doutrinárias sancionadas oficialmente na sua sociedade. Com uma certa margem de tolerância nas sociedades governadas de modo parlamentar, e quase sem ela nas governadas de modo ditatorial, é ainda hoje válido o velho princípio: Cuius regia, eius religto. Por outras palavras: é aconselhável mostrar que se é partidário de uma das confissões sociais aprovadas na sua própria sociedade estatal e evitar a suspeita de que se partilha uma crença social que é negada, proscrita e freqüentemente também odiada na sua própria sociedade. Se se observar de uma certa distância a situação de guerra fria, até agora característica, apesar de algumas oscilações, da segunda metade do século xx, verificar-se-ã, sem dificuldade, que a «guerra quente» — para a qual nos guiam os dirigentes de ambos os blocos, na qualidade de propulsores e, simultânea e irremediavelmente, de propulsionados — tem, sob muitos aspectos, o caracter de uma guerra religiosa. Ainda não foi há muito tempo que grupos de protestantes e de católicos se enfrentaram em muitas regiões da Europa numa inimizade inconciliável, lutando uns contra os outros pela hegemonia, em várias guerras de vida ou de morte. Relações em que os homens se odeiam e matam devido às suas diferentes crenças religiosas prolongam-se em algumas partes da Europa, por exemplo, na Irlanda do Norte, até aos fins do século xx. Todavia, de uma maneira geral, o furor da inimizade inconciliável cedeu a um clima mais ameno de relações entre protestantes e católicos.
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Já no século XXI havia homens que se horrorizavam perante os excessos de intolerância e hostilidade que ocorriam entre diferentes grupos humanos. Porém, arautos da moderação e da tolerância, como Montaigne e Erasmo, apesar de terem sido respeitados, encontraram, nessa qualidade, pouca audiência. O ódio e a ameaça entre os que permaneceram fiéis à velha Igreja e os que aderiram às novas igrejas e seitas eram demasiado grandes, as feridas demasiado recentes para que pudesse ser posto fim às violências e ao sofrimento sem sentido que os partidários das diferentes religiões causavam uns aos outros. Muitos séculos passaram antes que a hostilidade implacável entre os diferentes grupos religiosos se atenuasse, bem como a rendência irresistível para atacar com palavras e actos os homens de outra fé, e para tentar convertê-los, se possível, à verdadeira fé. Hoje, passados três ou quatro séculos, aquilo que então parecia irrealista, aquilo que o jovem Thomas More descreveu como um ideal e que parecia ser realizável, quanto muito, no país das utopias — a tolerância recíproca entre os dois grupos religiosos — tornou-se substancialmente maior. Não faltam ressonâncias da velha condenação infamante entre protestantes e católicos, porém a inimizade profundamente sentida dissipou-se quase por completo. Partidários de ambos os grupos religiosos são muitas vezes capazes de viver em paz e amizade. Parece ser quase incompreensível porque é que eles se odiavam tanto em tempos passados, a ponto de se guerrearem entre si. Que a actual inimizade, tão profundamente arraigada como a anterior e que é certamente alimentada por palpáveis antagonismos de interesses, em especial os dos grupos dirigentes, possa diminuir entre os Estados em que imperam doutrinas confessionais comunistas e capitalistas poderá parecer, hoje, uma coisa utópica. O problema, porém, é que o tempo urge. Já não dispomos de três a quatro séculos para esperar que os ânimos arrefeçam. Hoje, uma das tarefas mais urgentes é a de orientar os nossos esforços tanto com vista a uma diminuição do armamento como também a uma atenuação dos amargos sentimentos de hostilidade e do respectivo receio mútuo que conduzem dois grupos de Estados, com instituições e doutrinas sociais diferentes, a uma escalada armamentista imparável e com ela, finalmente, a uma possível destruição do adversário e de si próprio. Esta é a razão pela qual me parece ser importante combinar os esforços por um desarmamento militar com o empenho por um desarmamento ideológico. Com vista à
realização desta tarefa, terá também um papel decisivo a disponibilk dade dos representantes do Estado de ambos os lados para baixarem o tom da voz, para moderarem os seus ataques verbais, numa palavra: para a tolerância recíproca. Todavia, como já foi referido, os governados podem colaborar, em larga medida, nesta tarefa, pois não esqueçamos o seguinte: a guerra é, em última instância, uma instituição social, um acontecimento que, sendo sempre de novo reproduzido pelos homens, não pode ser eliminado precisamente porque se trata de um hábito — tanto o hábito do ódio como o de decidir os conflitos entre Estados pela utilização do poder militar — profundamente arraigado nas estruturas da personalidade. Numa época em que o desenvolvimento da técnica dos armamentos e, mais ainda, da técnica em geral, lançou nas mãos dos homens meios poderosos, com os quais eles podem destruir grande parte da humanidade e talvez, até, tornar inabitável a Terra, é necessário submeter a um exame todas as formas tradicionais de vida colectiva e, particularmente, os padrões de comportamento a todos os níveis. A amplitude das destruições que os homens podem provocar com os meios técnicos dos nossos dias é bem maior do que alguma vez no passado. Poderá mesmo dizer-se que a elevação a um nível até hoje nunca alcançado do perigo que os homens, nas suas unidades de sobrevivência, sobretudo nos Estados, representam uns para os outros significa a transição para uma era nova. Encontramo-nos perante a necessidade de optar enrre a autodestruição generalizada da humanidade e a supressão das atitudes que conduzem à guerra como meio de resolver os conflitos entre Estados. A segunda alternativa exige um novo passo civilizacional, exige, particularmente, uma moderação superior à que alguma vez foi mostrada na abordagem de conflitos sociais por parte de todos os interessados. Um dos problemas que, neste contexto, temos de enfrentar é o de que o desenvolvimento das relações entre os homens e entre instituições que os enquadram se processa, actualmente, muito mais devagar, além de ser muito mais difícil, do que o desenvolvimento das relações entre os homens e a natureza não humana, portanto, do que o do saber das ciências naturais e da técnica. As dificuldades que daí resultam são ainda reforçadas por uma tradição do saber que, apesar do seu caracter manifestamente discutível, se mantém com uma força inalterável e que consiste no hábito tradicional da apresentar as relações dos homens
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com a natureza não humana e as dos homens entre si no seu desenvolvimento, por intermédio da fala e do pensamento, como processos completamente independentes. É apenas um pequeno exemplo desta tendência para classificar os novos acontecimentos arrumando-os em gavetas diferentes o facto de os representantes dos maiores Estados militares da actualidade crerem poder chegar a acordos efectivos sobre a extensão dos seus arsenais e o tipo de armas aí armazenadas sem, simultaneamente, refrearem a inimizade recíproca e examinarem com o maior cuidado a natureza dos conflitos e das suas próprias atitudes, que constantemente fornecem novos incitamentos à escalada armamentista.
23 A encapotada mas persistente inimizade entre os dois principais Estados militares dos nossos dias empurra permanentemente ambos os lados para uma característica deturpação dos fãctos. São os governantes quem costuma dar o tom, no lançamento destas deturpações; uma parte significativa dos governados acredita piamente nelas, pois lisonjeíam o seu ego. Ao núcleo das profissões de fé sociais de ambos os lados pertence uma imagem idealizada da sociedade que cada uma delas legítima e uma imagem depreciativa da do adversário. Como em muitos outros casos — antigamente, por exemplo, entre protestantes e católicos — a diferença entre as instituições sociais e as doutrinas confessionais dos Estados capitalistas e comunistas apresenta-se também, hoje, aos homens nelas envolvidos, como um antagonismo entre o bem e o mal absolutos. Parece mesmo tratar-se de um antagonismo insuperável, que radica na própria existência da humanidade. Ele duraria eternamente — é assím, pelo menos, que o mito se impõe à consciência de muitos homens — a não ser que o próprio lado, portanto, o lado bom, consiga a vitória sobre o mal absoluto, representado pelo outro lado. O comunismo vitorioso, ou o capitalismo vitorioso, apresentam-se, neste sentido, como o estádio final do desenvolvimento da humanidade, como o ideal tornado realidade. No ardor da batalha, cegamente arrastados pela dinâmica desta situação de pré-guerra, muitos partidários de ambos os blocos são incapazes de pensar em seja o que for que esteja para além da vitória final da sua própria crença social e da organização de toda a humanidade segundo o seu modelo, mesmo quando, noutro compartimento mental, estão conscientes de que o enfraqueci-
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mento de todos os participantes, depois de uma terceira guerra mundial, seria, com toda a probabilidade, suficientemente grande para que o papel dirigente dos Estados Unidos e da União Soviética entre os Estados da humanidade passasse definitivamente para outras mãos. Tal como as coisas estão, parece que ambas as potências hegemônicas, envolvidas no seu combate, só podem continuar a pensar, apesar da modificação das condições de luta, dentro dos parâmetros habituais. A dinâmica da configuração que ambas constituem é, de facto, tão forte como isso. O comunismo vitorioso, o capitalismo vitorioso surgem como o estádio derradeiro da humanidade. Para além disso, ninguém pensa. Os governantes de ambos os lados sentem a necessidade de preparar os seus cidadãos para uma possível guerra. Se esta vier, então, para ambos os lados, muito depende da moral dos soldados, da disposição dos membros do grupo a que cada um pertence para sacrificar a vida pela boa causa do seu lado. Isso obriga a um esforço preparatório para consolidar profundamente na sensibilidade dos homens do seu próprio partido a crença no bem absoluto da própria causa e no mal absoluto da do adversário. Pode aceitar-se que as camadas dirigentes de ambos os grupos de Estados agem com toda a sinceridade. Elas próprias podem estar, até, profundamente impregnadas da crença no bem absoluto do seu próprio ideal social e, correlativamente, da crença no mal absoluto do do adversário. Desta crença, de sinal contrário conforme o caso, parecem partilhar os grupos dirigentes e talvez, também, largas camadas de ambos os blocos de Estados adversários. E ela é, manifestamente, um dos motivos ímpulsionadores decisivos da desconfiança inextinguível entre ambos os lados, desconfiança essa que desempenha um papel de peso como o motor da corrida aos armamentos, tão difícil de parar. A estratégia actual da argumentação em defesa do comunismo ou do capitalismo é, de facto, como se pode ver, bastante estranha. Ela seduz e desencamínha graças a uma mistura peculiar de ideal e de realidade. Assim, por exemplo, nem sempre se torna claro se, aos olhos dos seus representantes, a ordem social soviética actual constitui, já, a realização do ideal comunista, portanto, se é uma ordem social comunista, ou se se encontra apenas a caminho dela; e, neste último caso, seria interessante saber se o caminho para a realização deste ideal é ainda muito longo. Com o sistema social capitalista e parlamentar passa-se algo não muito diferente. Habituámo-nos a falar do mundo
livre. Seria, certamente justificável se se dissesse que os homens, nos Estados de regime parlamentar, podem levar, na generalidade, uma vida individual mais livre, com todos os seus riscos, do que nos países de regime ditatorial. Porém, falar, simplesmente de uma sociedade livre, em sentido absoluto, significa pura gabarolice. O que quero dizer com isto é o seguinte: através da constante idealização da sua própria ordem social, que é a contrapartida da difamação da ordem social inimiga, os homens dão a impressão de que a ordem social vigente no seu lado seria um estádio último da humanidade, o ideal realizado. Seria útil para o desanuviamento se se distinguisse, mais claramente do que é habitual fazer-se, entre a imagem ideal de uma sociedade comunista e a sociedade real da União Soviética; entre a imagem ideal de uma sociedade capitalista e parlamentar e a sociedade de facto existente nos Estados Unidos. Será então mais fácil compreender que nem o comunismo nem o capitalismo são um estádio derradeiro no desenvolvimento das sociedades humanas. Ambos são fases de um desenvolvimento que, com grande probabilidade, caso não sobrevenha uma guerra, conduzirá para além das formas sociais actuaís, portanto, para além do capitalismo e do comunismo no sentido actual destes termos, em direcção a outras formas sociais. Assim, tal como hoje se nos apresentam na realidade, as sociedades comunistas e capitalistas estão cheias de defeitos evidentes que carecem e são passíveis de ser corrigidos. Não vale de todo a pena correr o risco de uma guerra em que o futuro da humanidade está em jogo só por causa do antagonismo entre duas formas de sociedade, cada uma com os seus méritos e desvantagens próprias, mas que, em relação às necessidades dos homens que as constituem, são ainda formas muito imperfeitas e transitórias da vida em sociedade. Uma questão inteiramente diferente é a de se, ao compararmos uma sociedade comunista com uma sociedade capitalista reais, e com pleno conhecimento dos seus defeitos aqui e agora, preferimos uma destas sociedades à outra. Eu, pessoalmente, estou convicto de que o sistema social ocidental é de longe preferível ao oriental. Os meus talentos, fossem eles o que fossem, teriam estiolado, quisesse o destino que eu ficasse na Alemanha oriental, onde nasci. Todavia, a questão que todos f os homens devem colocar, pertençam eles a que campo pertencerem, e esta: valerá a pena, por causa de uma opção partidária, particularmente
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de uma parcialidade emocional, racharmos as cabeças uns aos outros, lutando por dois sistemas sociais tão imperfeitos, mais exactamente: suscitar e correr o risco de uma guerra nuclear devido aos ataques constantes e implacáveis contra o outro lado? Este perigo, em que todos nos encontramos, não exigirá, só por si, uma política de tolerância? Refiro-me aqui, portanto, repiro-o mais uma vez, a uma causa para a qual todos os homens que se interessam activamente por tais problemas podem contribuir com a sua parte. O perigo de uma nova guerra de religião, de uma guerra entre partidários de confissões sociais antagônicas, é grande. O problema que se nos coloca é o de como pôr fim à escalada não só dos armamentos mas também da hostilidade entre os grupos humanos que se encontram frente a frente - pois os armamentos não crescem por si próprios. O que provoca a sua escalada é o medo, o receio, a inimizade expressa ou tácita entre os grupos humanos. É aqui, pois, que temos de actuar. Que aconteceria se se pudesse levar os dirigentes de ambos os grupos de Estados a demonstrar, pela prática, que a forma de sociedade por eles criada, enquanto projecto de homens para os homens, é melhor que a outra? E possível que o que hoje se possa dizer sobre isso seja utópico, seja um mero exercício intelectual. Que aconteceria se os dois grupos adversários fizessem um pacto em que renunciassem a resolver os seus conflitos pela força e, em vez disso, entrassem em competição um com o outro para apurar qual dos dois grupos de Estados estará, no decorrer dos próximos cinqüenta anos, em condições de melhor providenciar no sentido do bem-estar, da liberdade e da igualdade dos homens que o constituem? Considero muito provável que, durante um longo período de paz, em que estaremos porventura a ponto de entrar, os sistemas sociais de hoje se modificarão substancialmente. A ser assim, afigura-se-me muito provável que, por exemplo, com base num maior bem-estar e numa maior cultura da população, a ditadura dos partidos comunistas se modificaria muito significativamente, no sentido de uma maior reciprocidade do controlo dos governantes e dos governados, e que, também nos Estados Unidos, a reciprocidade do controlo dos governantes e governados, ainda relativamente limitada devido às particularidades do sistema eleitoral, durante um longo período de paz, e na base de um bem-estar e educação crescentes da população, se desenvolveria mais a favor desta última.
Salientei já que nenhuma das duas formas de sociedade, cujos representantes lutam actualmente pela hegemonia, é perfeita. Em ambos os casos trata-se de fases do desenvolvimento da humanidade, que eventualmente avançará ou recuará. Pessoalmente, pode preferir-se as formas de sociedade e de governo ocidentais às do bloco soviético, mas não é indispensável que a decisão pelas formas de vida do mundo ocidental se associe a uma nota de hostilidade e de menosprezo em relação às formas de vida do bloco oriental. O bem-estar da humanidade torna forçoso, mesmo no caso de uma tal decisão, defender uma maior tolerância em relação ao outro lado, defender o direito dos países de governo comunista a poderem seguir o seu próprio caminho sem se sentirem ameaçados — com uma só restrição: esta atitude só pode lançar raízes nos países ocidentais se assentar numa reciprocidade, se também os homens do bloco comunista se esforçarem por reduzir gradualmente a sua ameaça aos países ocidentais, muito particularmente a que é representada pela propaganda revolucionária. Entre as teses da ideologia comunista, inclui-se a de que as dificuldades dos países soviéticos e, principalmente, a existência prolongada de uma ditadura de partido não podem ser eliminadas devido à inimizade dos Estados capitalistas e à ameaça que eles tepresentam para os Estados comunistas. Ora o que é perigoso, em todos os grandes ciclos de violência, é precisamente o facto de se tratar sempre de uma inimizade recíproca e de os sentimentos e actos de hostilidade de ambos os lados se exacerbarem mutuamente. A violência do regime czarista encontrou o seu equivalente nas violências da Revolução Russa; esta, por sua vez, teve a sua contrapartida nas violências das tropas contra-revolucionárias, em parte, de países capitalistas. Ora bem, esta engrenagem de inimizades recíprocas, de ameaças mútuas de dois grupos de Estados no sentido de se eliminarem um ao outro pela violência militar, conduziu a humanidade a um dilema. Não é esta a primeira vez que este dilema surge entre Estados, não e esta a primeira escalada das hostilidades numa luta hegemônica, talvez antes seja a última. Muitos homens sentirão, por certo, actualmente, a gravidade desta escalada. A ameaça de uma nova guerra anda na boca de toda a gente. Os jovens, particularmente, sofrem com a perspectiva de terem de viver durante toda a sua vida à sombra de uma guerra nuclear. Não tenho a pretensão de dizer que conheço uma saída. Tudo o que se poderá fazer, de imediato, é explicar o nó duplo que liga uma
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à outra as duas grandes potências, a tenaz com que se prendem entre si; o que se pode fazer é preparar instrumentos intelectuais que mostrem onde está a chave, com a ajuda da qual, gradualmente, com tenacidade e paciência, se poderia afrouxar o aperto dessa tenaz. Esta chave não se encontra nas armas — por muito útil e desejável que seja uma diminuição do número de armas, tal não elimina o perigo. Ela reside, como se compreenderá, nos próprios homens que utilizam as armas. Embora isto seja óbvio, nem sempre é, porém, dito clara e distintamente. O perigo assenta, única e exclusivamente, na atitude dos homens uns em relação aos outros. Se fosse possível diminuir a inimizade e a desconfiança entre os dois grupos de Estados e, particularmente, entre as suas camadas dirigentes, o perigo também se atenuaria. No entanto, tal só teria sentido se ocorresse em simultâneo de ambos os lados, o que seria, certamente, um processo lento, que exigiria um longo período de tempo. Teria de dizer-se no Ocidente: «Deixemos os Soviéticos mostrarem aquilo de que são capazes. Eles sempre têm afirmado que a sua ordem social é a melhor. Conflrmar-se-á isso, uma vez desaparecida a ameaça da guerra?» E, nos países de Leste, deveria dizer-se: «Deixemos que os países capitalistas mostrem aquilo de que são capazes. Eles também têm afirmado constantemente que a sua ordem social é melhor do que a comunista. Manter-se-á essa afirmação, durante um período de paz prolongado e de competição pacífica entre os diferentes sistemas de Estado?» Isto é o que eu entendo por desarmamento ideológico. Ele requer, de facto, um avanço civüizacional, urna maior moderação e tolerância por parte dos diferentes grupos de Estados nas suas relações entre si. Não digo que esta modificação de atitude e, particularmente, a modificação simultânea das atitudes, de ambos os lados do Muro, seja realizável. Limito-me a apresentar um diagnóstico. Digo, apenas, que o perigo de uma guerra nuclear não é inevitável, que as gerações vindouras não estão incondicionalmente condenadas a viver sob o perigo constante de uma guerra devastadora. É certo que, para as camadas dirigentes das grandes potências, detentoras de grandes arsenais de armas, é difícil recolher as garras. Mas não vejo outro caminho. A questão é, tão-só, a de saber se uma tal modificação do comportamento, se uma moderação dos Estados nas relações uns com os outros, é alcançável sem a experiência avassaladora de uma guerra.
24 Só se poderá ver os problemas de que aqui falei de uma forma desfocada e pouco nítida se os considerarmos numa perspectiva a curto prazo, inteiramente circunscrita à actuaüdade. Tentei mostrar um pouco do que se torna visível destes problemas, quando os articulamos num contexto de longo prazo. Permitam-me, para concluir, que volte mais uma vez aos problemas da República Federal. Espero que, também estes, se possam ver melhor se elevarmos o olhar para além das questões quotidianas e se, como disse, os abordarmos com uma certa moderação. Talvez se compreenda, então, melhor que é justamente na República Federal onde muito poderá ser feito para contrariar a selvajaria, a embriaguez hegemônica, que com freqüência se manifestam num ou noutro lado. A situação actual da República Federal lembra-me muitas vezes uma história que ouvi, uma vez, há já muito tempo, e que me ficou na memória apenas nos seus traços gerais. A história trata de um grupo de homens que moravam num grande palácio. Durante uma guerra, o palácio foi consumido pelas chamas. A partir daí, o grupo dos antigos locatários revê de passar a viver em tendas. Eles instalaram-se, sofrivelmente, na sua cidade de tendas e sentiram-se, a princípio, satisfeitos, pois os mais velhos disseram-lhes que as tendas eram uma habitação provisória, havendo apenas que aguardar uma oportunidade para reconstruir o palácio destruído pela guerra. E assim continuaram a viver nas tendas. Os jovens tornaram-se adultos. Cresceu um nova geração, que perguntou aos mais velhos: «Porque é que temos de viver em tendas? Podemos construir aqui uma casa nova, em vez de vivermos em tendas.» — «Não», disseram os mais velhos, «se construirmos, aqui, uma casa nova e modesta, perdemos a oportunidade de recons-
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truir o belo palácio antigo.» E assim se continuou a viver na cidade de tendas, geração atrás de geração. Comemoram, assim, o quadragésimo aniversário da fundação da cidade de tendas, depois o quinquagésimo, o sexagésimo, o septuagésimo quinto. Os mais novos continuavam a perguntar: «Porque é que não podemos construir uma casa nova e sólida, em vez desta cidade de tendas?» E os mais velhos diziam sempre: «Não. Se construirmos, aqui, uma casa nova, perdemos o direito de reconstruir o velho palácio, a partir das ruínas do incêndio.» E assim continuaram a esperar, geração atrás de geração, pelo dia em que poderiam reconstruir o velho palácio. Sinto, por vezes, que seria bom para o futuro da República Federal se nos tornássemos conscientes de que nos transformámos lentamente num Estado nacional com as suas tradições próprias, com uma identidade própria. Poderíamos, então, entregar-nos a toda uma longa série de tarefas, difíceis de realizar enquanto se viver na República Federal apenas como num campo de tendas provisório. Ha tanta coisa para fazer... Presentemente, a consciência de si da República Federal assenta sobretudo, ao que parece, no fortalecimento da economia. Ela poderia também, encontrar satisfação no facto de os Alemães terem conseguido criar, peja primeira vez e a longo prazo, na República Federal, um sistema pluripartidário que funciona. Não se trata de um sistema ideal mas talvez veja este sistema com outros olhos, diferentemente da maioria de vós, quem tenha vivido tanto como eu. Eu recordo ainda, perfeitamente, com que aversão conhecidos meus, que eram nacionalistas, falavam do regime parlamentar da República de Weimar, com que ódio eles falavam daquela câmara de tagarelas. «Nós não podemos ter», diziam eles, «nenhum parlamentarismo na Alemanha. Isso não é alemão, é algo que foi imposto pelo Ocidente, algo que não está na tradição alemã.» Ainda me lembro muito bem disso. Realmente, não estava nada na tradição alemã. Mas, agora, um dos grandes e novos méritos deste novo Estado, da República Federai da Alemanha, é o ter ela um governo parlamentar que realmente funciona; agora, portanto, depois de uma guerra, depois da amarga experiência de uma guerra, foi possível romper com determinados hábitos. Se, finalmente, deixássemos de considerar esta República Federal como algo provisório, se a pudéssemos ver como ela é realmente - um novo Estado alemão que, como há razões para esperar, ainda viverá muitas décadas em paz e prosperidade —, poderia, então, mais conscientemente, começar a edificar-se na República
Federai uma tradição de humanismo, de que já hoje existem indíçjos Isto porque a modificação civilizacional de atitudes, que atrás rçf er j talvez já esteja realmente a ocorrer. Então, também seria mais fácil alcançar aquilo a que, por vezçs se chama a superação do passado. Já o disse: Hitler e a recordação de tO(jo o horror que este nome significa não desaparecerão da história alenta" £ difícil, particularmente, para os jovens, abordar e superar este p ro _ blema enquanto a República Federal se assumir apenas como um provjsorium e não como um Estado alemão de pleno direito, com a sua cu ]_ tura e as suas tradições. E estranho que se imagine que com is$o se renunciaria à possibilidade de uma reunificação com o outro Estado alemão. Se a oportunidade surgir, se ambos os lados quiserem e puderem, não representará, decerto, um obstáculo a essa tal aproximação o facto de a República Federal fazer aquilo que a RDA já fez há muito tempo, ou seja: assumir-se como um Estado alemão com a sua própria cultura, a sua própria tradição e, ao mesmo tempo, também, com a velha tradição alemã comum. Talvez, então, também se entendesse melhor o significado que num Estado destes reveste a formação de uma cultura autônoma, o cultivo da criatividade individual e, como se disse, do humanismo, ou seja, entre outras coisas, também o desenvolvimento de atitudes cordiais e solidárias face a outros grupos de homens, tanto no próprio como noutros países. Embora os países europeus, entre eles a Alemanha ocidental, não se possam comparar em poder militar, quer individualmente quer em conjunto, com nenhuma das grandes potências actuais, não há razão alguma para que os habitantes de países pequenos não possam realizar algo de grande. A idéia, ainda hoje muito difundida, de que os Estados militares mais poderosos têm de estar também à cabeça da humanidade em aspectos não militares e, particularmente, em matéria de direitos humanos ou de criatividade artística, científica e técnica, e uma lenda angustiante. A própria lenda, assim como o ferrere de inferioridade tão facilmente imposto aos membros de Estados menos poderosos, pode contribuir significativamente para a paralisação ou ate mesmo para a estiolação da sua criatividade. Este perigo é particularmente grande no caso dos muitos países europeus que já foram Estados hegemônicos e militares de primeira grandeza. Não só a República Federal, mas quase todos os Estados oeste-europeus vivem hoje à sombra do seu grande passado. Também
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eles precisam de construir uma casa nova. Todos eles têm, corno herdeiros de uma grandeza desaparecida, de superar um passado que os oprime com a sensação de, enquanto nação, terem descido na consideração do mundo. O que eles têm de superar é muito diferente, segundo os casos concretos. Ele coloca aos vivos de hoje, por exemplo, aos Italianos ou aos Holandeses, uma tarefa diferente da que coloca aos Espanhóis e aos Suecos. Os sucessores das seculares potências hegemônicas da Europa, os Franceses e os Ingleses, encontram-se colocados perante uma tarefa de superar o seu passado em muitos aspectos diferente, embora não menos difícil, da dos alemães federais. Todavia, se se observar a Europa de alguma distância, o caracter colectivo do destino dos Europeus torna-se bem nítido. Vê-se, enrão, que a Segunda Guerra Mundial trouxe uma modificação mais decisiva da situação das nações européias do que as guerras anteriores. Não foi só um único país europeu mas os países europeus no seu conjunto que perderam, em boa parte, a sua posição como grupo dirigente da humanidade, que tinham ocupado durante três ou quatro séculos. Trata-se, como referi, de uma situação que não deixa de ser perigosa. Podia recordar-vos o caso de Estados que, mesmo ao longo de muitos séculos, não se refizeram totalmente de uma perda deste tipo e que, devido a isso, prejudicaram seriamente a sua capacidade actual de criatividade. Neste contexto, porém, temos de limitar-nos a aludir ao problema, cingindo-nos a chamar a atenção para um dos traços comuns do destino europeu. Tenho a impressão de que, nesre domínio, a República Federal está no bom caminho. Não precisamos de esquecer o passado, nem a tarefa de o superar, quando dirigimos decisivamente os olhos para o futuro. Se tal acontecer, cornar-se-ã mais claro o significado que tem o facto de, na República Federal, se fortalecer, com o tempo, a consciência: aqui terá nascido um novo Estado alemão, um Estado humano, cujos cidadãos são capazes de associar um sentimento de filiação comum ao da sua pertença ao grupo dos Estados europeus. Se esta consciência se fortalecer, e, com ela, o sentimento da criatividade própria, não só no domínio da economia como em todos os outros sectores da actividade humana, então, parece-me, será também mais facilmente possível que as jovens gerações da República Federal, ao serem abordadas no estrangeiro a respeito de Hitler, possam dizer com alguma serenidade: «Hitler? Sim, com certeza, isso aconteceu. Mas, hoje, nós somos diferentes.»
Colecção MEMÓRIA E SOCIEDADE
AAW Estudos Portugueses Homenagem a Luciana Stegagno Piccbio Almeida, Pedro Tavares de Eleições e Caciquismo no Portugal Oitoceníista (1868-1890) Bourdieu, Pierre O Poder Simbólico Cabral, João de Pina Os Contextos da Antropologia Chartier, Roger A História Cultural entre Práticas e Representações Crespo, Jorge A História do Corpo Geertz, Clifford Negara. O Estado Teatro no Século XIX Ginzburg, Cario A Aíicro-História e Outros Ensaios Godinho, Vitorino Magalhães Mito e Mercadoria. Utopia e Prática de Navegar Oliveira, Antônio Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino <1580-l640)
El
Norbert
Revel, Jacques A Invenção da Sociedade
A publicar:
C o n d i ç ã o h u m a n a con o b r e a e v o l u ç ã o da por o c a s i ã o d o qu 31ó/E42c
Burke, Pecer Antropologia Histórica Dunning, Eric e Elias, Norbert A Busca da Excitarão Elias, Norbert A Condição Humana Shils, Edward Centro e Periferia